OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
Quarta expedição
VIII -
Novos reforços
Este ataque chegou à Bahia com as proporções de batalha perdida, pondo mais um solavanco no desequilíbrio geral, mais uma dúzia de boatos no turbilhonar das conjeturas; e o governo começou a agir com a presteza requerida pela situação. Reconhecida a ineficácia dos reforços recém-enviados, cuidou de formar uma nova divisão, arrebanhando os últimos batalhões dispersos pelos Estados, capazes de mobilização rápida. E, para pulsear de perto a crise, resolveu enviar para a base de operações um de seus membros, o Secretário de Estado dos Negócios da Guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt.
Este ataque chegou à Bahia com as proporções de batalha perdida, pondo mais um solavanco no desequilíbrio geral, mais uma dúzia de boatos no turbilhonar das conjeturas; e o governo começou a agir com a presteza requerida pela situação. Reconhecida a ineficácia dos reforços recém-enviados, cuidou de formar uma nova divisão, arrebanhando os últimos batalhões dispersos pelos Estados, capazes de mobilização rápida. E, para pulsear de perto a crise, resolveu enviar para a base de operações um de seus membros, o Secretário de Estado dos Negócios da Guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt.
Este seguiu em agosto para a Bahia, ao tempo que de todos os ângulos do país abalavam
novos lutadores. O movimento armado repentinamente se generalizava, assumindo a forma de
um levantamento em massa.
As tropas confluíam do extremo norte e do extremo sul, acrescidas dos corpos policiais de S.
Paulo, Pará e Amazonas. Nessa convergência para o seio da antiga metrópole, o paulista,
forma delida do bandeirante aventuroso; o rio-grandense, cavaleiro e bravo; e o curiboca
nortista, resistente como poucos — índoles díspares, homens de opostos climas, contrastando
nos usos e tendências étnicas, do mestiço escuro ao caboclo trigueiro e ao branco, ali se
agremiavam sob o liame de uma aspiração uniforme. A antiga capital agasalhava-os no
recinto de seus velhos baluartes, rodeando num mesmo afago carinhoso e ardente a imensa
prole havia três séculos erradia. Depois de longamente dispersos os vários fatores da nossa
raça volviam repentinamente ao ponto de onde tinham partido, tendendo para um
entrelaçamento belíssimo. A Bahia ataviara-se para os receber . Transfigurou-a aquele fluxo
da campanha — mártires que chegavam, combatentes que seguiam — e, partida a habitual
apatia, revestiu a feição guerreira do passado. As inúteis fortalezas, que se lhe intercalam,
decaídas à parceria burguesa das casas, no alinhamento das ruas, prontamente reparadas,
cortadas as árvores que nasciam nas fendas das suas muralhas, ressurgiam à luz, recordando
as quadras em que rugiam naquelas ameias as longas colubrinas de bronze.
Nelas aquartelavam os contingentes recém-vindos: o 1.° Batalhão Policial de S. Paulo, com
458 praças e 21 oficiais, comandado pelo tenente-coronel Joaquim Elesbão dos Reis; os 29.º,
39.°, 37.°, 28.º, e 4.°, dirigidos pelo coronel João César de Sampaio, tenentes-coronéis José da
Cruz, Firmino Lopes Rego e Antônio Bernardo de Figueiredo e major Frederico Mara, com
efetivos sucessivos de 240 praças e 27 oficiais, 250 praças e 40 oficiais, 332 praças e 51
oficiais, 250 praças e 11 oficiais, além de 36 alferes adidos, e o 4.° com 219 praças e 11
alferes que eram toda a oficialidade, não tendo nem capitães nem tenentes. Por fim dois
corpos: o Regimento Policial do Pará, somando 640 combatentes, comandados pelo coronel
José Sotero de Meneses, e um da polícia do Amazonas, sob o comando do tenente Cândido
José Mariano, com 328 soldados.
Estes reforços, que montavam a 2.914 homens incluídos perto de trezentos oficiais, foram
repartidos em duas brigadas, a de linha, ao mando do coronel Sampaio e os da polícia —
excluída a de S. Paulo, que seguira isolada na frente, sob o do coronel Sotero — constituindo
uma divisão que foi entregue ao general de Brigada Carlos Eugênio de Andrade Guimarães.
Todo o mês de agosto gastou-se em mobilizá-los. Chegavam destacadamente à Bahia;
municiavam-se e embarcavam para Queimadas e dali para Monte Santo, onde deviam
concentrar-se nos primeiros dias de setembro.
Os batalhões de linha, além de desfalcados, como o indicam os números acima, reduzidos
quase a duas companhias, vinham desprovidos de tudo, sem os mais simples apetrechos
bélicos — à parte as espingardas velhas e o fardamento ruço, que haviam servido na recente
campanha federalista do Sul.
O marechal Bittencourt
O marechal Carlos Machado de Bittencourt, principal árbitro da situação, desenvolveu, então,
atividade notável.
Vinha de molde para todas as dificuldades do momento.
Era um homem frio, eivado de um ceticismo tranquilo e inofensivo. Na sua simplicidade
perfeitamente plebeia se amorteciam todas as expansões generosas. Militar às direitas, seria
capaz — e demonstrou-o mais tarde ultimando tragicamente a vida — de se abalançar aos
maiores riscos. Mas friamente, equilibradamente, encarrilhado nas linhas inextensíveis do
dever. Não era um bravo e não era um pusilânime.
Ninguém podia compreendê-lo arrebatado num lance de heroísmo. Ninguém podia imaginá-lo
subtraindo-se tortuosamente a uma conjuntura perigosa. Sem ser uma organização militar
completa e inteiriça, afeiçoara-se todavia ao automatismo típico dessas máquinas de músculos
e nervos feitas para agirem mecanicamente à pressão inflexível das leis.
Mas isto menos por educação disciplinar e sólida que por temperamento, inerte, movendo-se
passivo, comodamente endentado na entrosagem complexa das portarias e dos regulamentos.
Fora disto era um nulo. Tinha o fetichismo das determinações escritas. Não as interpretava,
não as criticava: cumpria-as. Boas ou péssimas, absurdas, extravagantes, anacrônicas,
estúpidas ou úteis, fecundas, generosas e dignas, tornavam-no proteiforme, espelhando-as —
bom ou detestável, extravagante ou generoso e digno. Estava escrito. Por isto, todas as vezes
que os abalos políticos lhes baralhavam, se retraía cautelosamente ao olvido.
O marechal Floriano Peixoto — profundo conhecedor dos homens do seu tempo — nos
períodos críticos de seu governo, em que a índole pessoal de adeptos ou adversários influía,
deixou-o sempre, sistematicamente, de parte. Não o chamou; não o afastou; não o prendeu.
Era-lhe por igual desvalioso como adversário ou partidário. Sabia que o homem, cuja carreira
se desatava numa linha reta, seca, inexpressiva e intorcível, não daria um passo a favor ou
contra no travamento dos estados de sítio.
A República fora-lhe acidente inesperado no fim da vida.
Não a amou nunca. Sabem-no quantos com ele lidaram. Foi-lhe sempre novidade irritante,
não porque mudasse os destinos de um povo senão porque alterava umas tantas ordenanças e
uns tantos decretos, e umas tantas fórmulas, velhos preceitos que sabia de cor e salteado.
Ao seguir para a Bahia desenfluíra todos os entusiasmos. Quem dele se abeirasse, buscando
alentos de uma intuição feliz ou um traço varonil, sulcando a situação emocionante e grave,
que até lá o arrastava, topava, surpreso, a esterilidade de uns conceitos triviais, longas
frivolidades cruelmente enfadonhas sobre paradas de tropas, intermináveis minúcias sobre
distribuição de gêneros e remontas de cavalhadas — como se este mundo todo fosse uma
imensa Casa da Ordem, e a História uma variante da escrituração dos sargentos.
Saltou naquela capital quando ia em sua plenitude o fervor patriótico de todas as classes; e de
algum modo o amorteceu. Manifestações ruidosas, versos flamívomos, oradores explosivos
passaram-lhe por diante, estrondaram lhe em torno, deflagraram lhe aos ouvidos, num
estrepitar de palmas e aplausos. Ouviu-os indiferente e contrafeito. Não sabia respondê-las.
Tinha a frase emperrada e pobre. Além disso, tudo quanto saía do passo ordinário da vida não
o comovia, desorientava-o, contrariava-o.
Recém-vindos da luta, requerendo uma transferência ou uma licença, nada adiantavam se,
dispensando a formalidade de um atestado médico, lhe pusessem à vista apenas o rombo de
um tiro de trabuco ou um gilvaz sanguíneo ou um rosto cadavérico de esmaleitado. Eram
coisas banais, do ofício.
Quadro lancinante
Certa vez essa insensibilidade lastimável calou profundamente. Foi numa visita a um dos
hospitais.
O quadro do amplo salão era impressionador...
Imaginem-se dois extensos renques de leitos alvadios, e sobre eles — em todas as atitudes,
rígidos debaixo dos lençóis escorridos como mortalhas; de bruços, ou acaroados com os
travesseiros, em mudos paroxismos de dores; sentados, ou acurvados, ou estorcendo-se em
gemidos — quatrocentos baleados ! Cabeças envoltas em tiras sanguinolentas; braços
partidos, em tipóias; pernas encanadas, em talas, rigidamente estendidas; pés disformes pela
inchação, atravessados de espinhos; peitos broqueados à bala ou sarjados à faca; todos os
traumatismos e todas as misérias...
A comitiva que encalçava o ministro — autoridades estaduais e militares, jornalistas, homens
de toda a condição — ali entrou silenciosamente, tolhida de assombros.
Começou a lúgubre visita. O marechal aproximava-se de um ou outro leito, lendo
maquinalmente a papeleta pendida à cabeceira; e seguia.
Mas teve que estacar um momento. Surgira-lhe em frente, emergindo dos cobertores, a face
abatida de um velho, um cabo de esquadra, veterano de 35 anos de fileira. Uma vida batida a
coice de armas desde os pântanos do Paraguai às caatingas de Canudos... E no rosto macilento
do infeliz resplandecia um belo riso jovial e forte. Reconhecera o ministro do qual fora
ordenança nos bons tempos de moço, em que o acompanhara na batalha, nos acantonamentos,
nas longas marchas fatigantes. E dizia-o, agitado, voz sacudida e rouca, numa alegria
dolorosíssima, num delírio de frases rudes e sinceras — olhos refulgentes de alacridade e de
febre, e forçando por erguer-se, abordoando o tronco esmirrado aos braços finos e trêmulos;
entreaberta a camisa de algodão deixando ver, na clavícula, a nódoa de uma cicatriz antiga...
Era empolgante a cena. Resfolegaram surdamente, opressos, todos os peitos. Empanaram-se
todas as vistas, de lágrimas... e o marechal Bittencourt prosseguiu, tranquilamente,
continuando a leitura maquinal das papeletas.
É que tudo aquilo — fortes emoções ou quadros lancinantes — estava fora do programa. Não
o distraía.
Era realmente o homem feito para aquela emergência. O governo não depararia quem melhor
lhe transmitisse a ação, intacta, rompendo retilineamente no tumulto da crise.
Nesse abnegar-se a si próprio, abdicando todas as regalias da própria posição, fez-se, na
lídima significação do termo, o Quartel-Mestre-General de uma campanha em que era chefe
supremo um seu inferior hierárquico.
É que um bom senso sólido, blindado da frieza que o libertava de quaisquer perturbações,
fizera que ele apanhasse, de um lance, as exigências reais da luta. Destas — compreendeu-o
logo — a menos valiosa era, de certo, a acumulação de um maior número de combatentes no
conflito. Estes, penetrando a região conflagrada, agravariam antes o estado dos companheiros,
que pretendessem auxiliar, se lá fossem compartir as mesmas provações, reduzir-lhes os
recursos escassos no concorrerem à mesma penúria. O que era preciso combater a todo o
transe, e vencer, não era o jagunço, era o deserto. Fazia-se imprescindível dar à campanha o
que ela ainda não tivera: uma linha e uma base de operações. Terminava-se por onde devia
começar-se. E foi essa a empresa impulsionada com sucesso pelo ministro. Atraído durante
toda a estadia na Bahia por sem número de questões de pormenores — equipamento dos
batalhões que chegavam e acomodações para as turmas incessantes de feridos — o seu
espírito superpunha-lhes sempre aquele objetivo capital, condição preponderante, e talvez
única, do sério problema a resolver. Venceu-o, por fim, num destruir tenaz de numerosas
dificuldades.
Nos últimos dias de agosto organizara-se, afinal, definitivamente, um corpo regular de
comboios, atravessando continuamente os caminhos e ligando de modo efetivo, com breves
intervalos de dias, o exército em operações a Monte Santo.
Este resultado pressagiava o desenlace próximo da contenda. Porque desde o começo,
revelam-no as expedições antecedentes, as causas do insucesso em grande parte repousavam
no insulamento em que cegamente se encravaram os expedicionários perdendo-se na região
estéril, isolando-se diante
do inimigo em espetaculosas diligências policiais, onde não havia rastrear-se os mínimos
preceitos da estratégia.
O marechal Bittencourt fez, pelo menos, isto: transmudou um conflito enorme em campanha
regular. A que até então se fizera traduzira-se num prodigalizar inútil da bravura, mas o
heroísmo e abnegação mais rara não a impulsionaram. Cristalizara num assédio platônico e
dúbio, recortado de fuzilarias inúteis, em que se jogava nobre e estupidamente a vida. E este
prolongar-se-ia, indeterminado, até que o arraial sinistro absorvesse, um a um, os que o
acometiam. Em tal caso a simples substituição dos que ali tombavam — oito a dez por dia —
por outros, tornava-se um círculo vicioso crudelíssimo. Além disto, numerosos assaltantes
eram uma agravante. Circulariam todo o povoado, trancar-lhe-iam todas as saídas, mas
teriam, passados poucos dias, latentes em roda, as linhas do outro cerco intangível e
formidável — o deserto recretado, das caatingas, pondo-os nas aperturas crescentes e
inelutáveis da fome.
Previu-o o marechal Bittencourt.
continua na página 290...
______________________
Leia também:
OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES - O Homem: V Uma missão abortada
Leia também:
OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES - O Homem: V Uma missão abortada
OS SERTÕES - Quarta expedição: VIII - Novos reforços
OS SERTÕES - Quarta expedição: VIII - Colaboradores prosaicos demais
______________________
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário