quarta-feira, 9 de outubro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Quarta expedição: II - Mobilização das tropas

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1



Quarta expedição 


II - 

Mobilização de tropas 

     Descoloraram-se batalhões de todos os Estados: 12.°, 25.°, 30 .º, 31.°, 32.°, do Rio Grande do Sul; o 27.°, da Paraíba; o 34.°, do Rio Grande do Norte; o 33.° e o 35.°, do Piauí; o 5.°, do Maranhão; o 4.°, do Pará; o 26.º, de Sergipe; o 14.° e o 5.°, de Pernambuco; o 2.°, do Ceará; o 5.° e parte do 9.° de Cavalaria, Regimento da Artilharia da Capital Federal: o 7.°, o 9.° e o 16.º, da Bahia.  
     O comandante do 2.° Distrito Militar, general Artur Oscar de Andrade Guimarães, convidado para assumir a direção da luta, aceitou-a, tendo antes, numa proclamação pelo telégrafo, definido o seu pensar sobre as coisas: "Todas as grandes ideias tem os seus mártires; nós estamos votados ao sacrifício de que não fugimos para legar à geração futura uma República honrada, firme e respeitada."
     A mesma nota em tudo: era preciso salvar a República...


Concentração em Queimadas

     As tropas convergiam na Bahia. Chegavam àquela capital em batalhões destacados e seguiam imediatamente para Queimadas. Esta medida, além de corresponder à urgência de uma organização pronta naquela vila — feita base de operações provisórias — , impunha-se por outro motivo igualmente sério.
     suspeita extravagante a respeito das crenças monárquicas da Bahia. Ali saltavam com altaneria provocante de triunfadores em praça conquistada. Aquilo, preestabelecera-se, era um Canudos grande. A velha capital com o seu aspecto antigo, alteada sobre a montanha, em que embateram por tanto tempo as chusmas dos "varredores do mar", batavos e normandos; conservando, a despeito do tempo, as linhas tradicionais da antiga metrópole do oceano; ereta para a defesa, com os seus velhos fortes disjungidos, esparsos pelas eminências, acrópoles desmanteladas, canhoneiras abertas para o mar; com as suas ladeiras a prumo, envesgando pela montanha segundo o mesmo traçado das trincheiras de taipa de Tomé de Sousa; e com as suas ruas estreitas e embaralhadas pelas quais passaria hoje Fernão Cardim ou Gabriel Soares sem notar diferenças sensíveis — aparecia-lhes como uma ampliação da tapera sertaneja. Não os comovia; irritava-os. Eram cossacos em ruas de Varsóvia. Nos lugares públicos a população surpreendida ouvia-lhes comentários acerbos, enunciados num fanfarrear contínuo, sublinhado pelo agudo retinir das esporas e das espadas. E a animadversão gratuita, dia a dia avolumando-se, traduzia-se ao cabo em desacatos e desmandos.
     Citemos um caso único: os oficiais de um batalhão, o 30.°, levaram a dedicação pela República a um assomo iconoclasta. Em pleno dia tentaram despedaçar, a marretadas, um escudo em que se viam as armas imperiais, erguido no portão da alfândega velha. A soldadesca por seu lado, assim edificada, exercitava-se em correrias e conflitos.
     A paixão patriótica roçava, derrancada, pela insânia. A imprensa e a mocidade do Norte, afinal, protestaram e, mais eloquente que as mensagens então feitas, falava em toda a parte o descontentamento popular, prestes a explodir.
     Assim, como medida preventiva, os batalhões chegavam, desembarcavam, atulhavam os carros da Estrada de Ferro Central e seguiam logo para Queimadas. De sorte que em pouco tempo ali estavam todos os corpos destinados à marcha por Monte Santo; e o comandante geral das forças, em ordem do dia de 5 de abril, pôde organizar a expedição:


Organiza-se a 4.ª expedição

     "Nesta data ficam assim definitivamente organizadas as forças sob meu comando:
     Os 7.°, 14.° e 30.° Batalhões de Infantaria constituem a 1 a Brigada sob o comando do coronel Joaquim Manuel de Medeiros; 16.°, 25.° e 27.° Batalhões da mesma arma, a 2 a Brigada ao mando do coronel Inácio Henrique Gouveia; 5.° Regimento da Artilharia de Campanha, 5.° e 9.º Batalhões de Infantaria, a 3.ª Brigada sob o comando do coronel Olímpio da Silveira; 12.°, 31.° e 33.° da mesma arma e uma divisão de artilharia, a 4.ª Brigada sob o comando do coronel Carlos Maria da Silva Teles; 34.°, 35.° e 40.º, a 5.ª Brigada sob o comando do coronel Julião Augusto de Serra Martins; 26.°, 32.° da Infantaria e uma divisão de artilharia, a 6.ª Brigada sob o comando do coronel Donaciano de Araújo Pantoja.
     A 1.ª, 2ª e 3ª Brigadas formaram uma coluna, sob o comando do general João da Silva Barbosa, ficando responsável pela mesma, até a respectiva apresentação daquele general, o coronel comandante da 1.ª Brigada; a 4.ª, 5.ª e 6.ª Brigadas outra coluna, sob o comando do general Cláudio do Amaral Savaget."


Crítica

     Estava constituída a expedição.
     A ordem do dia nada dizia quanto ao desdobramento das operações, talvez porque este, desde muito conhecido, pouco se desviara do traçado anterior. Resumia-se naquela divisão de colunas. Ao invés de um cerco à distancia, para o que eram suficientes aqueles dezesseis corpos articulando-se em pontos estratégicos e a pouco constringindo-se em roda do arraial, planeara-se investir com os fanáticos por dois pontos, seguindo uma das colunas, a primeira, por Monte Santo, enquanto a segunda, depois de reunida em Aracaju, atravessaria Sergipe até Jeremoabo.
     Destas vilas convergiriam sobre Canudos.
     Linhas já escritas dispensam o insistir na importância de semelhante plano — cópia ampliada de erros anteriores, com uma variante única: em lugar de uma eram duas as massas compactas de soldados que iriam tombar, todos a um tempo, englobadamente, nas armadilhas da guerra sertaneja. E quando, agitando as mais favoráveis hipóteses, isto não acontecesse, era fácil verificar que a plena consecução dos itinerários preestabelecidos problematizava ainda um desenlace satisfatório da campanha. À simples observação de um mapa ressaltava que a convergência predeterminada, embora se realizasse, não determinaria o esmagamento da rebelião, mesmo à custa do alvitre extremo e doloroso da batalha.
     As estradas escolhidas, do Rosário e de Jeremoabo, interferindo-se fora do povoado, num ponto de sua amplíssima periferia, eram inaptas para o assédio. Os jagunços batidos numa direção única, no quadrante de sudeste, tinham, caso fossem desbaratadas, francos para o ocidente e para o norte, os caminhos do Cambaio, do Uauá e da Várzea da Ema; todo o vasto sertão do S. Francisco, asilo impenetrável a que se acolheriam a salvo e onde se aprestariam para a réplica. Ora, a consideração desse abandono em massa do arraial raiava pelo mais exagerado otimismo. Os sertanejos resistiriam, como resistiram, e, reagindo aos assaltos feitos apenas por um único flanco, teriam como tiveram, pelos outros, mil portas por onde comunicarem com as cercanias e abastecerem-se à vontade.
     Eram circunstâncias fáceis de deduzirem-se. E, previstas, apontavam naturalmente um corretivo único: uma terceira coluna, que, partindo de Juazeiro ou Vila Nova, e vencendo uma distancia equiparada às percorridas pelas outras, com elas convergisse, trancando a pouco e pouco aquelas estradas, originando por fim um bloqueio efetivo.
     Não se cogitou, porém, desta divisão suplementar indispensável. Não havia tempo para tal. O país inteiro ansiava pela desafronta do Exército e da pátria...
     Era preciso marchar e vencer. O general Savaget seguiu logo, nos primeiros dias de abril, para Aracaju; e o comandante-em-chefe, em Queimadas, dispôs-se para a investida.


Delongas

     Mas esta só se realizaria dois meses depois, em fins de junho. Os lutadores, soldados e patriotas, chegavam à obscura estação da estrada de ferro do S. Francisco e quedavam impotentes para a partida.
     O grande movimento de armas de março fora uma ilusão. Não tínhamos exército, na significação real do termo, em que se inclui, mais valiosa que a existência de alguns milhares de homens e espingardas, uma direção administrativa, técnica e tática, definida por um Estado-maior enfeixando todos os serviços, desde o transporte das viaturas aos lineamentos superiores da estratégia, órgão preparador por excelência das operações militares.
     Faltava tudo. Não havia um serviço de fornecimento organizado, de sorte que numa base de operações provisória, presa ao litoral por uma estrada de ferro, foi impossível conseguir-se um depósito de víveres. Não havia um serviço de transporte suficiente para cerca de cem toneladas de munições de guerra.
     Por fim não havia soldados: os carregadores de armas, que por ali desembarcaram, não vinham dos polígonos de tiro, ou campos de manobra. Os batalhões chegavam, alguns desfalcados, menores que companhias, com o armamento estragado e carecendo das noções táticas mais simples. Era preciso completá-los, armá-los, vesti-los, municiá-los, adestrá-los e instruí-los.
     Queimadas fez-se um viveiro de recrutas e um campo de instrução. Os dias começaram a escoar-se monotonamente em evoluções e manobras, ou exercícios de fogo, numa linha de tiro improvisada num sulco aberto na caatinga próxima. E o entusiasmo marcial dos primeiros tempos afrouxava, molificando na insipidez daquela Cápua invertida, em que bocejavam, remansando, centenares de valentes, marcando passo diante do inimigo...
     Dali seguiram, batalhão por batalhão, iludindo em transporte parcial a carência de viaturas, para Monte Santo, onde a situação não variou. Continuaram até meados de junho os mesmos exercícios e a mesma existência aleatória de mais de 3 mil homens em armas, dispostos aos combates mas impotentes para a partida e — registremos esta circunstância singularíssima — vivendo à custa dos recursos ocasionais de um município pobre e talado pelas expedições anteriores.
     A custo terminara-se a linha telegráfica de Queimadas, pela comissão de engenheiros militares, dirigida pelo tenente-coronel Siqueira de Meneses. E foi a única coisa apreciável durante tanto tempo perdido. O comandante-em-chefe, sem carretas para o transporte de munições, desapercebido dos mais elementares recursos, quedava-se, sem deliberar, diante da tropa acampada, e mal avitualhada por alguns bois magros e famintos dispersos em torno sobre as macegas secas das várzeas. O deputado do quartel-mestre-general não conseguira sequer um serviço regular de comboios, que partindo de Queimadas abastecessem a base das operações, de modo a armazenar reservas capazes de sustentar por oito dias a tropa. De sorte que ao chegar o mês de julho, quando a 2 .ª coluna, atravessando Sergipe, se abeirava de Jeremoabo, não havia em Monte Santo um único saco de farinha em depósito. A penúria e uns como prenúncios de fome condenavam à imobilidade a divisão em que se achava o principal chefe da campanha.
     Esta estagnação desalentava os soldados e alarmava o país. Como um diversivo, ou um pretexto de afastar por alguns dias de Monte Santo mil e tantos concorrentes aos escassos recursos da coluna, duas brigadas seguiram em reconhecimentos inúteis até ao Cumbe e Maçacará. Foi o único movimento militar realizado e não teve sequer o valor de aplacar a impaciência dos expedicionários.
     Uma delas, a 3 .ª de Infantaria — recém-formada com o 5.º e 9.° Batalhões de Artilharia, porque esta se reconstituíra com a anexação de uma bateria de tiro rápido e com o 7.º destacado da 1.ª — estava sob o comando de um oficial incomparável no combate, mas de temperamento irrequieto demais para aquela apatia. E ao chegar a Maçacará, depois de prear em caminho alguns cargueiros que demandavam o arraial sedicioso, em vez de volver à base de operações esteve na iminência de seguir, isolada, pela estrada do Rosário, para o centro da luta O coronel Thompson Flores, planeando este movimento indisciplinado e temerário, mal contido pela sua oficialidade, delatava, bem que exagerada pelo seu forte temperamento nervoso, a situação moral dos combatentes. Revoltava-os a todos a imobilidade em que se amortecera o arranco o marcial dos primeiros dias.
     Estremeciam muitos imaginando o desapontamento de receberem, de improviso, a nova da de Canudos pelo general Savaget . Calculavam os efeitos daquela dilação ante a opinião pública ansiosa por um desenlace; e consideravam quão útil se tornaria ao adversário alentado por três vitórias aquele armistício de três meses.
     Esta última consideração era capital.


Não há um plano de campanha

     O general Artur Oscar determinou de agir traçando, a 19 de junho, a ordem do dia da partida na qual "deixa à imparcialidade da História a justificativa de tal demora". Sem o laconismo próprio de tais documentos, o general, após augurar inevitável vitória sobre a gente de Antônio Conselheiro, "o inimigo da República", aponta às tropas os perigos que as saltearão à entrada do sertão, onde "o inimigo as atacará pela retaguarda e flancos" no meio daquelas "matas infelizes" eivadas "de caminhos obstruídos, trincheiras, surpresas de toda a sorte, e tudo quanto a guerra tem de mais odioso". Em que pese à sua literatura alarmante, eram dados verdadeiros estes. A comissão de engenharia realizara reconhecimentos acordes no afirmarem, mais viva, a aspereza do solo, cujos traços topográficos impunham três condições ao favorável sucesso da campanha: forças bem abastecidas, que dispensassem os recursos das paragens pobres; mobilidade máxima; e plasticidade, que as adaptasse bem às flexuras do terreno revolto e agro.
 
continua na página 220...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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