sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - Cumprimento da promessa feita à moribunda / V — A pequena sozinha

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Terceiro — Cumprimento da promessa feita à moribunda 

V - A pequena sozinha
     
      Como a estalagem dos Thenardier ficava na parte da aldeia próxima à igreja, era à fonte do bosque situada para o lado de Chelles que Cosette tinha de ir buscar a água.
     A pobre rapariguinha não tornou a olhar para nenhuma outra barraca. Enquanto não passou o beco do Boulanger nem os arredores da igreja, a iluminação das lojas alumiava lhe o caminho; bem depressa, porém, desapareceu o último clarão da última barraca, e Cosette achou-se na obscuridade, mas continuou a caminhar no meio dela.
      Somente, como se ia apossando dela certa comoção, agitava o mais que podia a asa do balde. Isto produzia um ruído que lhe servia de companhia.
     Quanto mais caminhava, porém, mais espessas se tornavam as trevas. Pelas ruas já se não via ninguém. Todavia, Cosette encontrou uma mulher, que se voltou ao vê-la passar e que parou, murmurando por entre dentes:

— Onde irá esta criança? Será um lobisomem?

     Depois, a mulher, reconhecendo Cosette, exclamou:

 — Olha, é a Cotovia!

      Costte atravessou assim o labirinto de ruas tortuosas e desertas onde termina a aldeia de Montfermeil, para a parte de Chelles. Enquanto se viu no meio de casas e mesmo só de paredes, caminhou afoita. De vez em quando via o clarão de uma vela, pelas fendas de alguma janela, e isto para ela era luz e vida. É porque ali havia gente, e esta ideia tranquilizava-a. Todavia, à medida que caminhava, o seu passo afrouxava, como que maquinalmente. Depois de passar a esquina da última casa, parou. Passar adiante da última loja fora difícil; passar além da última casa tornava-se impossível.
     Cosette, pois, pousou o balde no chão, meteu a mão por entre os cabelos e pôs-se a coçar a cabeça lentamente, gesto particular às crianças atemorizadas e indecisas. Já não era Montfermeil, eram os campos.
     Diante de si tinha o espaço, negro e deserto. Cose e olhou com angústia para aquela obscuridade, em que não havia ninguém, em que só havia lobos ou talvez almas do outro mundo. Esbugalhou mais os olhos e ouviu os lobos a caminhar por cima da erva, e viu distintamente as almas do outro mundo agitando-se nos ramos das árvores. 
     Cosette, a quem o medo dava audácia, pegou então outra vez no balde e disse:

— Ora! Digo-lhe que não havia água!

      E tornou a entrar resolutamente em Montfermeil. Apenas, porém, andou cem passos, parou de novo e pôs-se a coçar a cabeça. Agora era a Thenardier que lhe aparecia; a Thenardier medonha com a sua boca de hiena e a cólera a chamejar-lhe nos olhos. 
     A criança deitou um olhar lamentoso para diante e para trás. Que fazer? Que expediente tomar? Para que lado caminhar?
      Na sua frente o espectro da Thenardier; por detrás todos os fantasmas da noite e dos bosques. Recuou, pois, diante da Thenardier. A assustada criança tornou a tomar o caminho da fonte, deitando a correr. E assim transpôs as casas da aldeia e entrou no bosque, sem olhar para coisa nenhuma, sem nada escutar, cessando apenas de correr quando lhe faltou a respiração, mas não deixando nunca de andar. Caminhava como se fora um autómato e quase sem a certeza de que vivia. 
     Ao passo, porém, que ia andando, sentia vontade de chorar. Apossava-se dela o estremecimento noturno da floresta. 
      Nem já pensava, nem via. Aquele entezinho fazia frente a imensidade das trevas. 
     De um lado a sombra toda, do outro um átomo. 
     Da extremidade do bosque à fonte havia apenas sete ou oito minutos de caminho, que Cosette conhecia perfeitamente por o ter passado muitas vezes de dia.
     Estranha coisa! Aquela criança não se perdeu, e, contudo, não deitava os olhos nem para a direita nem para a esquerda, com receio de ver alguma coisa nos ramos das árvores ou na erva que cobria o chão. Conduzia-a vagamente um resto de instinto: assim chegou à fonte, que era uma espécie de tanque natural, cavado pela água num terreno argiloso, de uma profundidade de perto de dois pés, cercada de musgo e dessas ervas a que pelos seus rendilhados se dá o nome de golinhas de Henrique IV, e forrada com algumas grandes pedras.
      Da fonte deslizava um regatozinho, sussurrando mansamente.
      Cosette nem sequer parou para tomar o fôlego. Estava escuríssima a noite; porém, acostumada a vir àquela fonte, procurou com a mão esquerda na escuridão um carvalho novo que se debruçava sobre a nascente e que lhe servia ordinariamente de ponto de apoio; encontrou um ramo, agarrou-se a ele, baixou-se e meteu o balde na água. A emoção daquele momento fora tão violenta que lhe triplicara as forças. Ao curvar-se, porém, não reparou que naquela posição lhe ficava voltado para baixo o bolso do avental e caiu-lhe na água a moeda de quinze soldos. Cosette não a viu, nem a ouviu cair. Tirou para fora o balde quase cheio e pousou-o em cima da erva.
      Feito isto, conheceu então que estava extenuada de cansaço. Bem quisera tornar a partir imediatamente, mas fora tal o esforço de encher o balde que lhe foi impossível dar um passo e viu-se obrigada a sentar-se. Deixou-se, pois, cair sobre a relva e ali ficou acocorada. 
     Fechou os olhos, depois tornou a abri-los, sem saber porquê, mas sem poder esquivar-se a este movimento. Junto dela a água, agitada no balde, formava círculos, que pareciam serpentes de fogo branco.
      Por cima da sua cabeça mal se divisava o céu coberto de vastas nuvens negras, que eram como paredes de fumo. Sobre aquela criança parecia inclinar-se vagamente a máscara trágica das sombras, no meio das quais deslizava Júpiter radiante. 
     A criança olhava desvairada para aquela grande estrela que não conhecia e que lhe me a medo. Efetivamente, o planeta achava-se naquele momento muito perto do horizonte e atravessava uma névoa espessa, que a corava de uma vermelhidão horrível. A névoa lugubremente purpureada tornava maior o âmbito do astro. Dir-se-ia uma chaga luminosa.
    Da planície soprava uma aragem fria. Espessas trevas envolviam o bosque, onde se não ouvia nenhum rumor de folhas, nem se via um só desses vagos e frescos clarões do estio. Os ramos levantados para o ar pareciam espectros terríveis. Nas clareiras zunia o vento por entre os silvados defecados e disformes, e aos assobios das rajadas formigavam como enguias as ervas crescidas, torciam-se as silvas como compridos braços armados de garras, tentando cravar-se em alguma presa.
     De espaço a espaço passavam rapidamente, impelidas pelo vento, algumas urzes secas, que pareciam fugir assustadas a qualquer coisa que as perseguia. De todos os lados havia amplidões lúgubres.
      A escuridão causa vertigens. O homem precisa de luz. O que se embrenha no contrário do dia sente apertar-se-lhe o coração. Onde os olhos veem negrura, vê o coração perturbação. O eclipse, a noite, a opacidade fuliginosa causa ansiedade, ainda aos mais fortes. Não há ninguém que caminhe sozinho de noite por uma floresta sem tremer. Sombras e árvores são duas serrações temíveis. Na profundeza indistinta afigura-se ao espírito uma realidade quimérica. Debuxa-se o inconcebível a alguns passos de vós, com uma limpidez de espectro. Veem-se flutuar no espaço, ou no próprio cérebro, umas coisas vagas e impalpáveis como os sonhos das flores adormecidas. Toma atitudes ferozes o horizonte. Aspiram-se os eflúvios da grande e negra amplidão do espaço. Tem a gente medo e vontade de olhar para trás. Sente-se indefesa contra as cavidades da noite, contra os objetos que se tornam medonhos, contra os perfis taciturnos que se dissipam ao aproximar-se, contra os vultos desgrenhados que se desenham nas trevas, contra as montanhas irritadas, contra os charcos lívidos, contra o lúgubre refletido no fúnebre, contra a imensidade sepulcral do silêncio, contra os seres incógnitos possíveis, contra o misterioso debruçar dos ramos, contra o terrível torcer das árvores, contra os extensos punhados de ervas que se agitam rumorejando. Não há ousadia que não estremeça e que não sinta a aproximação da angústia. Experimenta-se o que quer que seja de pavoroso, como se a alma se amalgamasse com a sombra. Esta penetração das trevas, porém, numa criança é inexprimivelmente sinistra.
     As florestas são apocalipses e o sacudir de asas de uma alma pequenina produz um ruído de agonia sob a abóbada monstruosa que as cobre. 
     Cosette, sem ter consciência do que experimentava, sentia-se penetrada por esta grandeza obscura da natureza. Não era simplesmente terror o que se apossava dela; era alguma coisa mais terrível ainda do que o terror. A rapariguinha estremecia.
     Falecem-nos as expressões para dizer o que tinha de estranho esse estremecimento que a gelava até ao fundo do coração. O seu olhar tinha se tornado desvairado. Julgava sentir que talvez não pudesse deixar de voltar ali no outro dia à mesma hora.
     Cosette, então, por uma espécie de instinto, para sair deste singular estado, que não compreendia, mas que a aterrava, principiou a contar em voz alta um, dois, três, quatro, até dez, e, chegando ao fim, tornou a começar. Restituiu-lhe isto a verdadeira percepção das coisas que a rodeavam. Sentiu frio nas mãos, que havia molhado ao meter o balde na água, e levantou-se. Voltara-lhe o medo, mas um medo natural e invencível. Não lhe ocorreu mais do que um só pensamento fugir; fugir a toda a pressa pelo meio dos bosques, pelo meio dos campos, até às casas, até às janelas, até às velas acesas. O seu olhar, porém, fixou-se no balde que tinha diante de si, e tal era o susto que a Thenardier lhe inspirava, que não se atreveu a fugir sem o balde. Pegou-lhe, pois, pela asa com as duas mãos, custando-lhe a levantá-lo do chão.
      Assim andou uns doze passos, porém o balde estava cheio, era pesado, e a pobre criança viu-se obrigada a pousá-lo no chão outra vez. Respirou um instante, depois pegou novamente na asa e continuou a caminhar, desta vez por mais algum tempo.
      Foi-lhe necessário, porém, tornar a parar, e, após alguns segundos de descanso, partiu de novo. Cosette caminhava vergada para diante, com a cabeça curvada como uma velha; o peso do balde distendia e inteiriçava-lhe os magros braços. A asa de ferro acabava de lhe entorpecer e gelar as mãozinhas molhadas; de espaço a espaço via-se obrigada a parar, e todas as vezes que parava caía-lhe pelas pernas nuas a água fria que extravasava do balde. Passava-se isto no fundo de um bosque, de noite, no Inverno, longe de todas as vistas humanas; era uma criança de oito anos a que ali estava; só Deus naquela ocasião é que via aquele triste espetáculo.
      E talvez também sua mãe. Há coisas que fazem abrir os olhos aos mortos nos seus túmulos!
     A sua respiração parecia uma espécie de estertor doloroso; os soluços apertavam-lhe a garganta, mas ela não ousava chorar, tal era o medo que tinha da Thenardier, mesmo na sua ausência. Era sempre o seu costume afigurar-se que estava na presença de Thenardier.
      Cosette, porém, daquele modo não podia andar muito, e por isso ia vagarosamente. Debalde diminuía a duração das estações, caminhando entre uma e outra o maior espaço de tempo que podia; lembrava-se com angústia que levaria mais de uma hora a chegar assim a Montfermeil, e que a Thenardier, portanto, lhe bateria, e esta angústia misturava-se com o susto de se ver sozinha de noite no meio do bosque. A pobre Cosette estava extenuada de cansaço e ainda não tinha saído da floresta.
     Chegada ao pé de um velho castanheiro que conhecia, fez uma última paragem, mais demorada que as outras, para se refazer bem de forças, e depois reuniu quantas tinha, tornou a pegar no balde e pôs-se de novo a caminho corajosamente. A pobre criança, porém, não pôde sufocar tanto a sua angústia que não exclamasse:

— Oh, meu Deus! Meu Deus!

      Neste momento, Cosette sentiu que o balde já não lhe pesava, pois acabava de o agarrar pela asa, levantando-o vigorosamente, uma mão que lhe pareceu enorme.
      A criança levantou a cabeça e viu caminhando ao lado dela, na escuridão, um vulto negro direito e de pé. Era um homem que viera por trás, mas que a criança não sentiu vir, e que, sem lhe dirigir uma palavra, travara da asa do balde que ela levava.  
     Há instintos para todos os encontros da vida. 
     A criança não se assustou.

continua na página 304...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - V — A pequena sozinha
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (2a) - De repente Míchkin se aproximou

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
2.

     De repente Míchkin se aproximou de Evguénii Pávlovitch.

- Evguénii Pávlovitch disse ele, com estranha vivacidade, apertando-lhe a mão -, creia que eu o considero como o melhor e o mais honrado dos homens, apesar de tudo. Pode ficar certo disso!...

     Evguénii Pávlovitch recuou um passo, surpreendido. Teve de lutar, um momento, com uma irresistível vontade de rir. Mas, reparando melhor, notou que o príncipe parecia outro, ou, no mínimo, estava em um estado de espírito todo especial.

- Não tenciono apostar, príncipe - disse ele -, que o senhor não quisesse dizer o que disse e nem tampouco deixar de falar comigo, absolutamente. Mas de que é que se trata? Não está se dando bem, aqui?
- Talvez, talvez. E o senhor foi muito hábil em perceber que talvez não fosse ao senhor que eu quisesse me dirigir. - disse isso com um sorriso estranho e até mesmo absurdo; mas logo, como que repentinamente excitado, ajuntou: - Não me queira relembrar a minha conduta de há três dias atrás. Só eu sei quanto vivi envergonhado estes três últimos dias... Sei que fui culpado!...
- Mas que foi que o senhor fez assim de tão terrível?
- Vejo que está mais sentido comigo do que qualquer outra pessoa, Evguénii Pávlovitch. Está até corando; isso é sinal de bom coração. Vou-me embora, dentro em breve, pode ficar certo disso.
- Que foi que lhe aconteceu? Porventura irá ter um ataque? - perguntou Lizavéta Prokófievna a Kólia, muito espantada.
- Não se assuste, Lizavéta Prokófievna. Não estou com um ataque. O que há é que estou resolvido a sumir. Eu sei que sou um desfavorecido da natureza. Estive doente durante vinte e quatro anos, desde o meu nascimento até completar vinte e quatro anos. Deve tomar tudo quanto eu digo agora, como coisa de um homem doente. Vou-me embora, imediatamente, imediatamente. Pode ficar certa disso. Não me sinto envergonhado, não, pois seria estranho que eu estivesse envergonhado disto, não seria? Mas estou deslocado na sociedade... Falo, não por vaidade ferida! ... Estive a refletir durante estes três dias e achei cá comigo que lhe devia explicar certas coisas sinceramente e de modo bem digno para com a senhora, na primeira oportunidade que eu tivesse. Há ideias, grandes ideias, sobre as quais eu não devo começar a falar, porque na certa faria todo o mundo rir, O Príncipe Chtch... ainda agora me avisou sobre tal coisa. Minha atitude não é conveniente. Não tenho nenhum senso de proporção. Minhas palavras são incoerentes, não se enquadrando no assunto; e isso é uma degradação para tais ideias. Portanto, não tenho nenhum direito!... Além disso, sou sensível morbidamente... Estou mais do que certo de que ninguém, aqui nesta casa, feriria meus sentimentos e que sou mais querido aqui do que mereço. Mas eu sei (e sei ao certo) que vinte anos de doença devem deixar traços, e que por conseguinte é impossível a qualquer pessoa deixar de rir de mim... as vezes. Não é assim, não é mesmo? - e ficou como que à espera de uma resposta, olhando à sua volta. 

     Todos se detiveram, em uma difícil perplexidade, ante esta explosão inesperada, mórbida e, em todo o caso, aparentemente sem causa. Mas esta explosão acabou por produzir um estranho episódio.

- Mas por que está dizendo isto aqui?! - exclamou Agláia, de repente. - Por que está dizendo isso a eles? A eles? A eles? - parecia irritada até ao ápice de indignação. Seus olhos faiscavam. O príncipe ficou a olhá-la, mudo, atarantado, cada vez mais lívido. - Não há aqui ninguém que mereça tais palavras - rompeu Agláia - Não há aqui ninguém, ninguém que valha o seu dedo mínimo, nem o seu espírito, nem o seu coração! É mais honrado do que qualquer deles, mais nobre, melhor, mais bondoso, mais inteligente do que qualquer deles! Alguns nem mereceriam se abaixar para levantar o lenço que o senhor deixasse cair!... Por que humilhar se, pôr-se abaixo deles? Por que há de falsear tudo que é seu? Por que é que não tem orgulho?  
- Deus nos acuda! Quem esperaria uma coisa destas? - gritou Lizavéta Prokófievna.
- Salve, “pobre cavaleiro”! - gritou Kólia, entusiasmado. 
- Cale a boca!... Como ousam eles insultar-me em sua casa? - disse Agláia, correndo para perto de sua mãe e a ela se dirigindo, sem que ninguém esperasse. Estava agora naquele estado histérico em que não há mais diferenciação nem conveniência a respeitar.- Por que é que todos me torturam todos, todos? Por que estiveram me importunando estes três últimos dias, por sua causa, príncipe? Nada me induziria a casar-me com o senhor! Consinta que lhe diga que jamais o faria, sob consideração de espécie alguma. Mas compreenda bem! Então pode lá alguém casar com uma criatura como o senhor? Mire-se em um espelho, veja com o que se parece aí, parado! Por que me martirizam e não param de dizer que me hei de casar com o senhor? O senhor deve saber. O senhor está dentro do conluio, com eles, também!  
- Mas nunca ninguém te martirizou a tal respeito! - murmurou Adelaída assombrada. 

     E Aleksándra, por sua vez, disse: 

- Mas nunca ninguém pensou em tal coisa! Nunca se disse uma palavra quanto a isso! Quem a andou atormentando? Quando foi atormentada? Quem podia ter dito tal coisa? Não estará ela delirando? - e a generala se dirigiu para a sala, trêmula de raiva.   
- Todo o mundo anda falando, todo o mundo, nestes três últimos dias! Não quero me casar com ele, absolutamente, jamais! - e ao gritar assim, rompeu em pranto, e escondendo o rosto no lenço, caiu sobre uma cadeira. 
- Mas nem ele próprio...

     E inesperadamente o príncipe titubeou: 

- Mas eu não vos pedi... Agláia Ivánovna!
- O... quê? - aparteou Lizavéta Prokófievna indignada, toda espanto e horror. - Que é isso? - e não podia dar crédito aos seus ouvidos. 
- Quero dizer que... quero dizer que... - gaguejou o príncipe. - Eu apenas quis explicar a Agláia Ivánovna... isto é, só quis ter a honra de aclarar bem que não tive a intenção.., a honra de pedir a mão dela... em tempo algum. A culpa não é minha, a culpa não éminha, com efeito, Agláia Ivánovna. Eu nunca desejei, nunca isso me entrou na cabeça. E nunca hei de querer, vós mesma vereis isso por vós. Podeis ficar certa. Alguma pessoa por vingança me deve ter caluniado. Por que estardes aborrecida?

     E dizendo isso, se aproximou de Agláia. Afastando o lenço com que cobria o rosto, Agláia olhou de esguelha para aquele rosto aparvalhado, entendeu bem a significação do que ele dizia e caiu repentinamente em um acesso de riso. Mas um riso tão alegre, tão irresistível, tão engraçado e tão gostoso que Adelaída não se pôde conter, principalmente quando olhou também para o príncipe. Atirou-se para a irmã, abraçou-a e rompeu no mesmo riso de meninas de escola, um riso que era um prazer. Olhando-as, o príncipe também se pôs a rir, repetindo várias vezes, com uma expressão de júbilo e de felicidade:

- Isso! Assim! Muito bem! Muito bem! Deus seja louvado!

     Aleksándra também se juntou a eles, rindo de todo o coração. Parecia que as três não parariam mais de tanto rir. - Coisas mesmo de loucos! - sentenciou Lizavéta Prokófievna. - Primeiro assustam a gente, depois então...

     Agora dera o Príncipe Chtch... em rir também, o mesmo fazendo Evguénii Pávlovitch. Kólia, esse então ria sem parar. o mesmo se dando com Míchkin, que olhava para todos eles.

- Vamos dar um passeio, vamos dar um passeio! - exclamou Adelaída. - Nós todas, e o príncipe vem conosco. Por que há de ir embora, excelente amigo? Ele não é formidável.,Agláia? Não é. mamãe? Vou até lhe dar um beijo e abraçá-lo, por causa da explicação que deu ainda agora a Agláia. Mamãe, deixas-me dar um beijo nele? Agláia, deixas que eu dê um beijo no teu príncipe? - ia dizendo a estouvada rapariga.

     E imediatamente saltou para o príncipe e o beijou na testa. Ele lhe agarrou as mãos, apertando-as com tanta força que ela quase gritou. Olhou-a com infinito contentamento e apressadamente lhe puxou a mão que três vezes beijou.

- Vamos! - chamava Agláia. - Príncipe, escolte-me! Deixa, mamãe, apesar dele me ter recusado? O senhor me recusou foi por bem, não é, príncipe? Mas não é assim que se oferece o braço a uma dama. Não sabe como é que se dá o braço a uma dama? Assim, sim. Vamos; nós é que abriremos o caminho. Não quer que nós dois sigamos na frente, téte-à-téte? - não parava de falar, sempre rindo, espasmodicamente. 
- Louvado Deus! Louvado Deus! - repetia Lizavéta Prokófievna, embora não soubesse com o que se estava alegrando tanto.
“Que gente extraordinariamente engraçada!” - pensava o Príncipe Chtch..., talvez pela centésima vez desde que os conhecia; mas gostava dessa gente engraçada. Quanto a Míchkin, não se sentia lá muito atraído por ele. E ao saírem, o príncipe parecia meio sem jeito e, por certo, um tanto preocupado. Quanto a Evguénii Pávlovitch, esse estava no mais franco bom-humor. Em todo o caminho para a estação da estrada de ferro brincava com Adelaída e Aleksándra que riam de suas graças com tão acentuada presteza que logo desconfiou que elas não estavam mais era ouvindo o que ele dizia. E ao pensar nisso, rompeu de repente em uma risada franca, cujo motivo não houve meio de elas compreenderem. Esse modo divertido era característico do homem que ele era. Conquanto as duas irmãs continuassem de disposição hilariante, não deixavam de olhar para Agláia e Míchkin que seguiam na frente. Evidente era que a conduta da irmã mais moça constituía um completo enigma.

     O Príncipe Chtch... tentava conversar sobre outros assuntos com Lizavéta Prokófievna, com a intenção, decerto, de lhe distrair o espírito, só conseguindo amolá-la terrivelmente. Parecia estar ofuscada, respondia ao acaso, e às vezes nem mesmo isso. Mas esse não seria o fim dos enigmas de Agláia, aquela noite. O último coube como quinhão ao príncipe, sozinho. Quando se tinham distanciado cerca de uns cem passos da casa, Agláia disse, quase ciciando, de tão baixo, ao seu obstinadamente mudo cavalheiro: 

- Olhe ali, à direita.

     O príncipe olhou. 

- Mas olhe com mais atenção. Está vendo ali no parque, aquele banco lá onde estão aquelas três grandes árvores?... Um banco verde? Míchkin respondeu que estava vendo. - Gosta do lugar? Muitas vezes vou me sentar lá, sozinha, às sete horas da manhã, quando todo o mundo está dormindo. - o príncipe sussurrou que o local era encantador. - E agora pode me deixar. Não quero mais continuar andando de braço dado. Ou melhor, pode continuar de braço comigo, mas não me dirija a palavra, uma só vez que seja. Quero ir pensando só.  

     Tal aviso era desnecessário, porém. O príncipe não teria proferido, em caso algum, uma só palavra, pois o seu coração começara a palpitar violentamente desde que ela lhe mostrara o banco lá no parque. Depois de um minuto de atarantamento, enxotou, com vergonha, certa ideia inconcebível.
     É um fato mais do que sabido já por todo o mundo que o público que se ajunta em volta do coreto de música de Pávlovsk é mais “seleto” nos dias de semana do que nos domingos e feriados ou dias santos, em que “toda espécie de gente” acorre para lá, vinda da cidade. E a moda é juntarem-se perto do coreto de música no Vauxhall. A orquestra é a melhor das nossas bandas de parques e quase sempre toca peças novas. Há muito decoro e decência de comportamento nos jardins, embora haja um ar de simplicidade e de convívio. Esses veranistas reúnem-se ali com o fim de encontrar conhecidos. Muitos o fazem com real prazer e frequentam os jardins só com esse fim. Outros há que vão apenas por causa da música. Cenas desagradáveis são ali muito raras, embora possam ocorrer ocasionalmente, até mesmo em dias de semana. O que, aliás, é inevitável. Estava uma noite propícia e havia muita gente no jardim. Todos os lugares perto da orquestra estavam tomados. O nosso grupo sentou-se nas cadeiras um pouco mais ao lado, perto da saída, à esquerda do edifício.
      Todo aquele povo e mais a música reavivavam um pouco Lizavéta Prokófievna e divertiam as moças. Já tinham trocado olhares com alguns veranistas e acenado afavelmente para vários conhecidos, examinado vestidos, notado os que lhes pareciam excêntricos, discutindo-os com sorrisos sarcásticos. Evguénii Pávlovitch também, a cada instante, se curvava, saudando pessoas de suas relações. Agláia e Míchkin, sempre juntos, já estavam começando a atrair atenções. E logo vários rapazes vieram ter com as moças e a generala, uns dois ou três ficando a conversar com elas. Eram amigos de Evguénii Pávlovitch. Entre eles estava um belo e jovem oficial, de muito bom-humor e que conversava muito. Apressou-se em se dirigir a Agláia e fazia o possível para despertar a atenção dela. Ela se portou muito graciosamente, e com desembaraço, perante ele, Evguénii Pávlovitch pediu licença ao príncipe para apresentar-lhe esse seu amigo.
     Míchkin a custo compreendeu o que queriam dele, mas a apresentação foi feita, tendo ambos se inclinado e apertado as mãos. O amigo de Evguénii Pávlovitch fez logo uma pergunta ao príncipe que, ou não respondeu, ou gaguejou qualquer coisa de modo tão estranho que o oficial ficou a olhar para ele um pouco, depois para Evguénii Pávlovitch, de soslaio, compreendendo logo por que fora feita a apresentação; sorriu, altivamente, e se voltou de novo para Agláia. O único a notar que Agláia havia enrubescido, foi Evguénii Pávlovitch.
     O príncipe nem sequer observou que outras pessoas estavam conversando e prestando atenção em Agláia. Achava-se talvez inconsciente ou, pelo menos, durante momentos e momentos esteve ali como se não estivesse sentado ao lado dela. Agora, por exemplo, aspirava estar muito longe, poder desaparecer dali completamente.
     É indubitável que se sentiria bem melhor em um lugar ermo e triste onde pudesse ficar sozinho com os seus pensamentos, sem que ninguém soubesse do seu paradeiro. Ou, no mínimo, estar em casa, na varanda, sem mais ninguém, acolá, sem Liébediev e nem os filhos dele; estirado no sofá, com a cabeça enterrada no travesseiro e assim permanecer um dia, uma noite e mais outro dia. Pensava e sonhava com as montanhas e, de modo muito particular, com um sítio em que sempre gostava de pensar, um sítio onde sempre gostara de ir e donde costumava contemplar a aldeia lá embaixo; a cascata brilhando como um filete branco, a cair; as nuvens brancas, e aquele castelo em ruínas. Oh, que saudades! Por que não estava agora lá. sem pensar em nada? Oh! A não pensar em coisa alguma, pelo resto da vida! E então mil anos não seriam demasiado longos! E ser completamente esquecido aqui! Oh! Sim, completamente. Teria sido bem melhor, com efeito, que o não tivessem conhecido, e que tudo não passasse de um sonho. Pois não dava justamente ao mesmo, sonho ou realidade? De vez em quando olhava para Agláia, e por cinco minutos não retirou o olhar de cima do seu rosto.
 
O Idiota: Terceira Parte (2a) - De repente Míchkin se aproximou
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Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - s)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor

Primeira Parte
Ao Redor da Sra. Swann


(s)

continuando...

     Swann saiu a transmitir a autorização ao príncipe e, em sua companhia, voltava para junto da mulher, a menos que, no intervalo, entrasse a Sra. Verdurin. Quando se casara com Odette, pedira-lhe que não mais frequentasse o pequeno clã (tinha para tantos motivos e, ainda que os não tivesse, teria procedido da mesma maneira a obediência era uma lei de ingratidão que não suporta exceções e que faz ressentir a negligência ou o desinteresse de todos os intermediários). Somente permitia que Odette trocasse com a Sra. Verdurin duas visitas por ano, o que ainda era excessivo a certos fiéis, indignados com a injúria feita à Patroa, que durante anos havia tratado Odette, e mesmo Swann, como os filhos queridos da casa, se continha falsos confrades que largavam certas noites para atender a um de Odette, sem dizer uma palavra, prontos, caso fossem descobertos, para desculpar com a curiosidade de encontrar Bergotte (embora a Patroa afirmasse não frequentava os Swann, era destituído de talento e, apesar disso, procura acordo com uma expressão que lhe era cara, atraí-lo), o pequeno clã possuía também seus "radicais". E estes, ignorando conveniências particulares que às vezes desviam as pessoas das atitudes extremadas que gostariam de vê-las dirimir para aborrecer a alguém, teriam desejado, sem consegui-lo, que a Sra. Verdurin interrompesse todas as relações com Odette, tirando-lhe, assim, a satisfação de dizer rindo:

- Vamos tão raramente à casa da Patroa desde o Cisma. Era impossível quando meu marido era solteiro, mas, para um casal, nem sempre há para se falar a verdade, o Sr. Swann não suporta a mãe Verdurin e não gostaria que eu a frequentasse habitualmente. E eu, esposa fiel... 

     Swann acompanhava a mulher aos saraus dos Verdurin, mas evitava estar presente quando a Sra. Verdurin vinha visitar Odette. Assim, se a Patroa estivesse no salão, o príncipe entrava sozinho. Aliás, era também sozinho que era apresentado por Odette, preferia que a Sra. Verdurin não ouvisse nomes obscuros e, vendo mais ainda um desconhecido dela, pudesse julgar-se num meio de notabilidade sarcástica, cálculo que dava tão bom resultado que, à noite, a Sra. Verdurin dizia mágoa ao marido:

- Ambiente encantador! Estava presente toda a fina flor.

     Reação que Odette, em comparação com a Sra. Verdurin, vivia numa ilusão. Não que aquele salão tivesse recém começado o que o veremos tornar-se um outro salão. A Sra. Verdurin nem sequer estava no período de incubação, quando são suspensas as grandes festas em que os raros elementos brilhantes, recentemente se afogariam na turba excessiva, e quando é preferível que o poder gerador dos justos que se conseguiu atrair, tenha produzido setenta vezes dez. Como Odette demoraria em fazê-lo, a Sra. Verdurin se propunha à "alta Sociedade" como a voz; porém, suas regiões de ataque eram ainda tão limitadas e aliás, daquelas por onde Odette apresentava alguma chance de alcançar um resultado idêntico, a furar, que esta vivia na mais completa ignorância dos planos elaborados pela Patroa. E era com a melhor boa-fé do mundo que falavam a Odette da Sra. Verdurin como sendo uma esnobe, ela se punha; dizia:

- Pelo contrário. Primeiro, ela não possui todos os elementos para falar quando não conhece ninguém. Depois, é necessário fazer-lhe justiça que é assim mesmo que lhe agrada. Não, ela gosta mesmo é das suas quartas-feiras, dos que têm conversa agradável.

     E, em segredo, invejava a Sra. Verdurin (embora não desesperasse de ter ela própria, em tão grande escola, acabado por assim içá-las) essas artes às quais a patroa dava tanta importância, de modo que apenas matizassem o inexistente, esculpissem o vácuo, e sejam, propriamente falando, as Artes do Nada: a arte (para uma dona-de-casa) de saber "reunir", "agrupar", "pôr em evidência", de se "apagar", de servir de "traço-de-união". Em todo o caso, as amigas da Sra. Swann ficavam impressionadas por verem em sua casa uma mulher que normalmente só era imaginada em seu próprio salão, cercada de um quadro inseparável de convidados, de todo um grupinho que assombrava-se ver assim evocado, resumido, apertado em um único sofá, sob as aparências da Patroa, transformada em visitante no abafamento de seu casacão forrado de plumas, tão penugento como os agasalhos de peles que revestiam o salão, em meio ao qual a própria Sra. Verdurin era um salão. As mulheres mais tímidas queriam retirar se por discrição e, empregando o plural como quando se deseja fazer compreender aos outros que é mais sensato não cansar demais um doente que se levanta pela primeira vez, diziam:

- Odette, já vamos te deixar. - invejavam a Sra. Cottard, que a Patroa chamava pelo prenome. -Será que posso te levar? - perguntava-lhe a Sra. Verdurin, que não podia suportar a ideia de que uma fiel ficaria ali em vez de segui-la. - Mas a senhora é bastante amável para me levar. - respondia a Sra. Cottard, não desejando parecer que esquecia, em favor de uma pessoa mais célebre, ter aceito a oferta da Sra. Bontemps de levá-la no seu carro enfeitado de plumas.
- Confesso que sou especialmente reconhecida às amigas que desejam levar-me com elas em seus carros. É na verdade uma pechincha, já que não tenho cocheiro. -Tanto mais - respondia a Patroa (sem ousar dizer mais, pois conhecia um pouco a Sra. Bontemps e acabava de convidá-la para as reuniões das quartas-feiras) que na casa da Sra. de Crécy você não está perto de sua casa. Oh, meu Deus! Nunca hei de chegar a dizer Sra. Swann.
 
      Era um gracejo no pequeno clã, das pessoas que não eram dotadas de muito espírito, darem a impressão de não poderem se acostumar a dizer Sra. Swann:

- Já me habituei tanto a dizer Sra. de Crécy, que ainda costumo enganar-me. -

     Somente a Sra. Verdurin, quando falava com Odette, não caía em erro e se enganava de propósito.

- Não tem medo, Odette, de morar neste bairro perdido? Creio que só ficaria meio sossegada ao voltar para casa à noite. Além disso, é tão úmido. Não deve ser nada bom para o eczema do seu marido. Ao menos não têm ratos?
- Claro que não! Que horror! 
- Tanto melhor, tinham-me falado nisso. Estou muito contente em saber que não é verdade, pois tenho um medo horrível deles, e não voltaria mais aqui se tivessem. Até logo, minha querida, até breve, sabe como estou feliz por vê-la. Você não sabe arrumar os crisântemos - dizia ela ao sair, enquanto a Sra. Swann se erguia para levá-la à porta - São flores japonesas; convém dispô-las como fazem os japoneses.
- Não na opinião da Sra. Verdurin, ainda que em todas as coisas ela seja para mim a Lei dos Profetas. 
- Não há ninguém como você, Odette, para encontrar crisântemos belos, ou antes tão belas, visto que parece ser assim que se diz hoje - declarara a Sra. Cottard, quando a Patroa fechara a porta. 
- A cara Sra. Verdurin nem sendo benevolente para com as flores alheias - respondia suavemente a Sra. Swann. 
- Quem está cultivando, Odette? - perguntava a Sra. Cottard, para não deixar que se prolongassem as críticas à Patroa...
- Lemaitre? Confesso que na frente da casa Lemaitre havia outro grande arbusto cor-de-rosa que me fez cometer uma loucura. - Mas, por pouco recusou-se a dar informações mais precisas sobre o preço do arbusto e disse que o professor, "que no entanto não era de mau gênio", fizera um escândalo quando lhe dissera que ela não conhecia o valor do dinheiro. - Não, não, tenho melhor que Debac. 
- Eu também. - dizia a Sra. Cottard -, mas confesso que faço infidelidades com Lachaume.-
- Ah, você o engana com Lachaume; vou contar à ele. - replicava a Sra. Swann, que se esforçava por mostrar espírito e condolência na conversação em sua casa, onde se sentia mais à vontade que no pequeno salão. - Afinal, Lachaume faz-se na verdade muito caro; seus preços são excessivos; sabe; chego a considerá-los inconvenientes! -acrescentava rindo.

     Entretanto, a Sra. Bontemps, que dissera cem vezes que não desejava ir à casa dos Verdurin, encantada por ser convidada para as quartas, pusera-se no lar como poderia fazer para lá se encontrar o maior número de vezes porém ignorava que a Sra. Verdurin desejava que não lhe faltassem a uma só; por outro lado, era dessas pessoas pouco solicitadas que, quando são convidadas para "sério'' por uma dona-de-casa, não aparecem, ao contrário dos que sabem causar sempre quando têm um momento livre e vontade de sair; elas não privam de assistir, por exemplo, ao primeiro e ao terceiro saraus, pensando que sua ausência será notada, reservando se para o segundo e o quarto; a menos que suas intuições lhes afirmem que o terceiro será especialmente brilhante, elas não usam outra ordem, alegando que "infelizmente da última vez não se achavam disponíveis". Assim, a Sra. Bontemps computava quantas quartas-feiras ainda podia antes da Páscoa e de que maneira podia fazer para ir a mais uma quarta, se no entanto parecesse estar impondo sua presença. Contava com a Sra. Cottard; quem sairia junto, para obter algumas indicações.

- Oh, Sra. Bontemps! Vejo que está indo. Não fica bem dar o sinal de retirada. Deve-me uma compensação, por ter vindo na quinta passada... Vamos, volte a sentar-se por um momento. Assim, não vai fazer outra visita antes do jantar.
-De fato não se deixa tentar? acrescentava a Sra. Swann, estendendo-lhe um prato com doces: - Sabe que não são nada más, essas coisinhas? - O aspecto não ajuda, mas prove, que vai ver... 
- Pelo contrário, isto parece delicioso - respondia a Sra. Cottard. - Em sua casa, Odette, nunca faltam iguarias. Não preciso lhe perguntar a marca da fábrica, sei que você manda vir tudo do Rebattet. Devo dizer que sou mais eclética. Para os sequilhos, para as guloseimas em geral, muitas vezes vou ao Bourbonneaux. Mas reconheço que eles não sabem o que é um sorvete.
-Para tudo quanto é sorvete, ou refresco, Rebattet é o grande artista. Como diria meu marido, é o nec plus ultra. - Mas isto é simplesmente feito aqui. Não quer mesmo?
- Não poderia jantar - respondia a Sra. Bontemps - mas sento-me de novo por alguns instantes; sabe, adoro conversar com uma mulher inteligente como você. Você vai me julgar indiscreta, Odette, mas gostaria de saber como julga o chapéu da Sra. Trombert. Sei muito bem que é moda usar chapéus grandes. Ainda assim, não está um pouco exagerado? E, em comparação com o chapéu com que ela foi outro dia à minha casa, esse que ela usava há pouco era microscópico.
- Mas não, eu não sou inteligente - dizia Odette, pensando que isso ficava bem. - No fundo, sou uma palerma que acredita em tudo que lhe dizem, que se incomoda por nada.- 

      E insinuava que, no começo, muito sofrera por ter casado com um homem como Swann, que levava uma vida toda sua e a traía. Entretanto, o príncipe de Agrigento, tendo ouvido as palavras "não sou inteligente", achou-se no dever de protestar, mas não sabia aproveitar a ocasião própria.  

- Ora, ora - gritava a Sra. Bontemps. - Então você não é inteligente?! - De fato, eu estava dizendo para mim mesmo: Que ouço! - dizia o príncipe, apanhando a deixa. - Com certeza meus ouvidos me enganaram.

- Mas não, asseguro-lhe - dizia Odette -; no fundo sou uma pequeno-burguesa que se escandaliza facilmente, cheia de preconceitos, vivendo no seu buraco, e sobretudo muito ignorante. - e para pedir notícias do barão Charles: -Tem visto o nosso caro baronete? - dizia ela.
- Você, ignorante? - exclamava a Sra. Bontemps. - Muito bem. Que diria então do mundo oficial, todas essas mulheres de excelências, que só sabem falar de futilidades! Veja, senhora, não faz uma semana falei no Lohengrin para a ministra de Instrução Pública. Ela responde: "Lohengrin? Ah, sim, a última revista do Folies-Bergere, dizem que é hilariante." Muito bem, senhora, que quer? quando a gente ouve coisas desse tipo, chega a ferver o sangue. Tive desejos de esbofeteá-la. Pois sou lá meio geniosa, você sabe. Veja, senhor - disse, voltando-se para mim -, não tenho razão?
- Escute - dizia a Sra. Cottard -, é desculpável responder um pouco atravessado quando se é interrogada assim à queima-roupa, sem aviso. Sei disso, pois a Sra. Verdurin também tem o hábito de nos pôr entre a faca e a parede.
- A propósito da Sra. Verdurin - perguntava a Sra. Bontemps à Sra. Cottard -, sabe o que haverá na quarta-feira na casa dela?... Ah, lembro-me agora que aceitamos um convite para a quarta seguinte. Não quer jantar conosco na quarta, às oito horas? Iríamos juntas para a casa da Sra. Verdurin. Fico intimidada de entrar sozinha, não sei porque, mulherão sempre me dá medo. - Vou lhe dizer - respondia a Sra. Cottard. O que assusta na Sra. Verdurin é o seu tom de voz. Que quer? Nem todos têm uma voz tão bonita como a da Sra. Swann. Mas é só começar a conversar, como diz e logo o gelo se quebra. Pois no fundo ela é bastante acolhedora. Mas eu compreendo muito bem a sua sensação; nunca é agradável encontrar-se pela primeira vez em região perdida.
-Você também poderia jantar conosco - dizia a Sra. Bontemps à Swann. - Depois do jantar, iremos todos para a casa dos Verdurin, fazer visita mesmo que isso tenha como resultado fazer a Patroa me olhar com maus olhos e não me convidar mais, uma vez em sua casa ficaremos as três a conversar nós, pois sinto que isto é o que mais me agradaria. - Mas esta afirmação não pode ser muito verídica, pois a Sra. Bontemps perguntava:
- Quem acha que estará quarta-feira, às oito? Que vai acontecer? Pelo menos, não haverá muita gente não é? 
- Certamente não irei - dizia Odette. - Só vamos aparecer rapidamente na última quarta-feira. Se não se importa de esperar até lá... -

     Mas a Sra. Bontemps parecia seduzida por essa proposta de adiamento. Conquanto os méritos espirituais de um salão, e sua elegância, é geralmente antes em relações inversas do que diretas, é preciso crer, visto que a Sra. Swann achava agradável a Sra. Bontemps, que toda degradação aceita tem consequência tornar as pessoas menos difíceis quanto àquelas com quem pensam conviver, menos difíceis quanto ao seu espírito como em relação a mais de uma. E, se isto é verdade, os homens devem, como os povos, ver sua cultura, a sua língua, desaparecer com a sua independência. Um dos efeitos dessa inteligência é o de agravar a tendência que, a partir de uma certa idade, as pessoas de acharem agradáveis as palavras que homenageiam nosso próprio pensar, nossas inclinações, e representem um estímulo para nos entregar à elas; é a idade em que um grande artista prefere, à companhia dos gênios ou a dos alunos que só têm em comum consigo a letra de sua doutrina e pela qualidade é ouvido e incensado, em que um homem ou uma mulher notáveis, que vivem um amor, consideram como mais inteligente, em uma reunião, uma pessoa, de nível inferior, mas que, numa frase, terá revelado que sabe compreender e levar o que é uma existência voltada à galanteria, e, assim, terá lisonjeado agilmente a tendência voluptuosa do amante ou da amante; era também a idade que Swann, na qualidade de marido de Odette, se comprazia em ouvir a Sra.Bontemps dizer que era ridículo só receber duquesas (daí concluindo, do que teria feito outrora na casa dos Verdurin, que se tratava de uma boa bastante espirituosa e nada esnobe) e a contar-lhe histórias que a faziam "Ser de riso", pois não as conhecia e de que ela, aliás, "pegava" logo o espírito, para agradar e divertir-se.

- Então o doutor não é doido por flores como você? - perguntava a Sra. Swann à Sra. Cottard. 
- Ora, você sabe que meu marido é sábio; é moderado em todas as coisas. No entanto, sim, tem uma paixão.

      Com os olhos brilhantes de malícia, de alegria e de curiosidade, a Sra. Bontemps indagava:

- Qual, madame?

     Com simplicidade, a Sra. Cottard respondia:

-  A leitura.
- Oh, é uma paixão repousante para um marido! -exclamava a Sra. Bontemps, sufocando um riso satânico. - Quando o doutor está lendo um livro, já sabe! - Muito bem, madame, isso não deve espantá-la demais... - Claro que sim! Por causa da vista. Vou estar com ele outra vez, Odette, e voltarei a bater à sua porta na próxima semana. Por falar em vista, já lhe disseram que a residência que a Sra. Verdurin acaba de comprar será iluminada com eletricidade? Não o soube pela minha pequena polícia particular, e sim de outra fonte: foi o próprio eletricista, Mildé, quem me disse. Estão vendo que cito meus informantes. Até os quartos terão lâmpadas elétricas com um abajur para matizar a luz. Evidentemente, é um luxo encantador. Aliás, as mulheres de hoje querem absolutamente o que há de mais novo, como se já não houvesse bastante novidade neste mundo. A cunhada de uma de minhas amigas tem telefone instalado em casa! Pode fazer uma encomenda a um fornecedor sem sair do seu apartamento! Confesso que fiz as mais baixas maquinações para conseguir falar um dia nesse aparelho. Aquilo me seduz muito, mas antes na casa de uma amiga do que na minha. Creio que não gostaria de ter telefone em casa. Passado o primeiro momento de diversão, deve ser uma verdadeira chatice. Muito bem, Odette, já estou indo; não retenha mais a Sra. Bontemps, porque ela vai comigo. Tenho mesmo que ir; você me faz passar cada uma! Vou chegar em casa depois do meu marido!

      E eu também precisava voltar para casa, antes de haver desfrutado aqueles prazeres de inverno, dos quais os crisântemos me pareceram ser o brilhante invólucro. Tais prazeres não tinham vindo e, no entanto, a Sra. Swann não parecia esperar ainda alguma coisa. Deixava os criados levarem o chá como se tivesse anunciado:

 "Vai fechar!" E acabava de me dizer: "Então, vai embora mesmo? Muito bem, good-bye!"

     Sentia eu que poderia ter permanecido sem encontrar esses prazeres ignorados e que não era só minha tristeza que me privava deles. Não estariam, portanto, situados naquele caminho batido das horas que levam sempre tão depressa ao instante da partida, e sim em algum caminho transversal que desconhecia, e por onde seria necessário bifurcar? Pelo menos, atingira o objetivo de minha visita: Gilberte saberia que estivera na casa de seus pais em sua ausência e, como não deixava de repetir a Sra. Cottard, "conquistara logo de assalto a Sra. Verdurin", a quem, acrescentava a esposa do doutor, ela nunca vira "fazer tantas amabilidades", - Parece dissera ela que vocês dois têm átomos enganchados. - Assim Gilberte saberia que falara dela como devia fazê-lo, com ternura, mas que já não sentia aquela incapacidade de viver sem que nos víssemos, que eu julgara ser a fonte de aborrecimento que ela sentira por mim nos últimos tempos. Dissera à Sra. Swann que não mais podia me encontrar com Gilberte. Dissera-o como se tivesse decidido para todo o sempre não mais vê-la. E a carta que iria enviar a Gilberte seria concebida dentro do mesmo espírito. Apenas, para criar coragem, propunha a mim mesmo só um supremo e breve esforço de alguns dias. Dizia comigo: "É o último encontro dela que vou recusar; aceitarei o próximo." Para que a separação fosse menos difícil de se realizar, imaginava-a como não definitiva. Mas bem sabia que iria sê-lo.
     O dia 1° de janeiro me foi especialmente doloroso naquele ano. Sem dúvida, quando somos infelizes, todos os dias de festa de aniversário o são. Mas, se o dia nos recorda apenas, por exemplo, a perda de um ente querido, o sofrimento só consiste numa comparação mais viva com o passado. No meu caso, acrescentava-se a esperança não formulada de que Gilberte, tendo querido me deixar a iniciativa dos primeiros passos e, vendo que eu não os dera, houvesse esperado o pretexto do dia de Ano-Novo para me escrever: "Enfim, o que há? Sou louca por ti; vem para que nos expliquemos com toda a franqueza; não posso viver sem ver-te." Desde os últimos dias do ano, essa carta me pareceu provável. Talvez não o fosse, mas, para acreditar nessas coisas, basta o desejo e a necessidade que temos de que sejam possíveis. O soldado está persuadido de que existe à sua frente um espaço de tempo infinitamente inadiável antes de ser morto; o ladrão, antes de ser preso; os homens em geral, antes que a morte os leve. É este o amuleto que preserva os indivíduos e às vezes os povos não do perigo, e sim do medo do perigo, na verdade da crença no perigo, o que em certos casos permite que o desafiem, sem que sejam obrigatoriamente corajosos. Uma confiança desse gênero, tão pouco fundada, é a que sustenta o apaixonado que conta com uma reconciliação, com uma carta. Para que eu deixasse de esperar a de Gilberte, bastaria que deixasse de deseja-la. Embora saiba que somos indiferentes em relação à mulher que ainda amamos, atribuímos-lhe uma série de pensamentos - mesmo que sejam de indiferença -, uma intenção de manifestá-los, uma complicação de vida interior onde somos talvez o objeto de uma antipatia, mas também de uma atenção, permanentes. Ao contrário, para imaginar o que se passava no espírito de Gilberte, seria preciso que eu simplesmente antecipasse, naquele dia de Ano-Novo, o que iria sentir num dos anos vindouros, e no qual a atenção ou o silêncio, ou o carinho, ou a frieza de Gilberte, tivessem passado quase despercebidos a meus olhos; onde não tivesse sonhado, e nem sequer pudesse sonhar, em buscar a solução dos problemas que teriam deixado de se colocar para mim. Quando a gente ama, o amor é grande demais para caber inteirinho em nós; irradia-se para a pessoa amada, encontra nela uma superfície que o faz parar, força-o a voltar ao ponto de partida e é esse choque de volta do nosso próprio carinho a que chamamos os sentimentos do outro e que nos encanta mais do que na ida, pois já não reconhecemos que procede de nós. O dia 1º de janeiro fez soar todas as suas horas sem que chegasse carta de Gilberte. E, como recebi outras congratulações tardias, ou atrasadas; pelo acúmulo de serviço no correio nessas datas, ainda esperava nos dias 3 e 4 de janeiro, entretanto cada vez menos. Chorei muito nos dias seguintes. Claro, isto porque, ao renunciar a Gilberte, fora menos sincero do que julgava, conservara a esperança de receber uma carta dela no Ano-Novo. E, vendo-o terminado antes que tivesse tomado a precaução de me servir de outra ilusão, sofria como um enfermo que esvaziou sua ampola de morfina sem ter uma outra à mão. Porém, talvez em mim essas duas explicações não se excluem, pois um só sentimento é feito às vezes de coisas contrárias; a esperança de enfim receber uma carta aproximara de mim a imagem de Gilberte; recriara as emoções que me haviam causado antigamente a espera de me encontrar junto dela, de sua vista, sua maneira de estar comigo. A possibilidade imediata de uma reconciliação suprimira essa coisa de cuja enormidade não nos damos conta: a resignação. Os neurastênicos não podem crer nas pessoas que lhes asseguram que aos poucos se acalmarão; permanecendo na cama sem receber cartas, sem ler jornais. Imaginam que tal regime só contribuirá para exasperar seu nervosismo. Da mesma forma os enamorados, como o consideram do fundo de um estado oposto, não tendo ainda começado a experimenta-lo, não podem acreditar na força benfazeja da renúncia.
      Por causa da violência das batidas do meu coração, diminuíram minha dose de cafeína, e elas cessaram. Então, perguntei-me se não era um pouco devido a ela que me sentira angustiado quando quase briguei com Gilberte, e que atribuíra, cada vez que se renovava a angústia, ao sofrimento de não mais ver a minha amiga ou de arriscar-me a vê-la apenas dominada pelo mesmo mau humor. Mas, se esse medicamento estivera na origem dos sofrimentos que minha imaginação, à época, interpretara falsamente (o que não seria nada extraordinário, pois as penas morais mais cruéis têm muitas vezes como causa, no caso dos amantes, o hábito físico da mulher com quem vivem), era à maneira do filtro que, muito tempo depois de ter sido absorvido, continua a unir Tristão a Isolda. Pois a melhora física que a diminuição da cafeína me trouxe quase imediatamente não estancou a evolução da mágoa que a absorção do tóxico tinha tornado mais aguda, se é que não havia criado.
  
continua na página 83...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - q)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Uma trajetória de amor e separação

Dalva de Oliveira e Herivelto Martins


Nos anos 50, ela e ele, que se aproximaram nos anos 30, estavam afastados e unidos na Musica Brasileira.
Eis essa trajetória de amor e separação.





QUE SERÁ
Compositor: Marino Pinto e Mário Rossi
Dalva de Oliveira 

Que será........
Da minha vida sem o teu amor
Da minha boca sem os beijos teus
Da minha alma sem o teu calor
Que será....Da luz difusa do abajour lilás
Se nunca mais vier a iluminar
Outras noites iguais
Procurar...Uma nova ilusão não sei
Outro amor....Não quero ter além daquele que sonhei
Meu amor...Ninguém seria mais feliz que eu
Se tu voltasses a gostar de mim
Se teu carinho se juntasse ao meu

Eu errei....Mas se me ouvires me darás razão
Foi o ciúme que se debruçou
Sobre o meu coração


Dalva de Oliveira 
- Que Será




SEGREDO
Compositores: Marino Pinto / Herivelto Martins
Canta: João Nogueira 

Seu mal é comentar o passado
Ninguém precisa saber
O que houve entre nós dois
O peixe é pro fundo das redes
Segredo é pra quatro paredes
Não deixe que males pequeninos
Venham transtornar os nossos destinos
O peixe é pro fundo das redes...
Segredo é pra quatro paredes
Primeiro é preciso julgar...Pra depois condenar

Quando o infortúnio nos bate à porta
E o amor nos foge pela janela
A felicidade para nós está morta
E não se pode viver sem ela
Para o nosso mal...Não há remédio, coração
Ninguém tem culpa da nossa desunião


João Nogueira 
- Segredo




ERREI SIM !
Ataulfo Alves
Canta: Dalva de Oliveira - 1950) -

Errei, sim
Manchei o teu nome
Mas foste tu mesmo o culpado
Deixavas-me em casa
Me trocando pela orgia
Faltando sempre
Com a tua companhia

Lembro-te agora
Que não é só casa e comida
Que prende por toda vida
O coração de uma mulher
As joias que me davas
Não tinham nenhum valor
Se o mais caro me negavas
Que era todo o teu amor

Mas se existe ainda
Quem queira me condenar
Que venha logo
A primeira pedra me atirar


Dalva de Oliveira
- Errei, sim





ATIRASTE UMA PEDRA
Composição: David Nasser / Herivelto Martins.
Nelson Gonçalves

Atiraste uma pedra
No peito de quem só te fez tanto bem
E quebraste um telhado, perdeste um abrigo
Feriste um amigo
Conseguiste magoar quem das mágoas te livrou
Atiraste uma pedra com as mãos que essa boca
Tantas vezes beijou
Quebraste um telhado
Que nas noites de frio te servia de abrigo
Perdeste um amigo que os teus erros não viu
E o teu pranto enxugou

Mas acima de tudo atiraste uma pedra
Turvando esta água
Esta água que um dia, por estranha ironia
Tua sede matou


Nelson Gonçalves 
- Atiraste uma Pedra...





CALÚNIA
Composição: Marino Pinto / Paulo Soledade.
Dalva de Oliveira

Quiseste ofuscar minha fama
E até jogar-me na lama
Só porque eu vivo a brilhar
Sim, mostraste ser invejoso
Viraste até mentiroso
Só para caluniar.

Deixa a calúnia de lado
Se de fato és poeta
Deixa a calúnia de lado
Que ela a mim não afeta
Tu me ofendes, tu serás o ofendido
Pois quem com o ferro fere
Com ferro será ferido.


Dalva de Oliveira 
- Calúnia





CAMINHEMOS
Composição: Herivelto Martins.
Canta: Nelson Gonçalves

Não, eu não posso lembrar que te amei
Não, eu preciso esquecer que sofri
Faça de conta que o tempo passou
E que tudo entre nós terminou
E que a vida não continuou pra nós dois
Caminhemos, talvez nos vejamos depois

Vida comprida, estrada alongada
Parto à procura de alguém, à procura de nada
Vou indo, caminhando sem saber onde chegar
Quem sabe na volta, te encontre no mesmo lugar


Nelson Gonçalves 
- Caminhemos




BANDEIRA BRANCA
Composição: Laercio Alves / Max Nunes
Dalva de Oliveira

Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade
Que me invade
Eu peço paz (bis)

Saudade mal de amor, de amor
Saudade dor que dói demais
Vem meu amor
Bandeira branca
Eu peço paz


Dalva de Oliveira 
- Bandeira Branca





CABELOS BRANCOS
Compositor: Herivelto Martins/ Marino Pinto
Canta: Nelson Gonçalves

Não falem dessa mulher, perto de mim,
Não falem pra não lembrar minha dor,
Já fui moço, já gozei a mocidade,
Se me lembro dela, me dá saudade.
Por ela vivo aos trancos e barrancos,
Respeitem ao menos, meus cabelos brancos!

Ninguém viveu a vida que eu vivi
Ninguém sofreu na vida o que eu sofri,
As lágrimas sentidas e o meu sorriso franco,
Refletem-se hoje em dia, nos meus cabelos brancos.
E agora em homenagem ao meu fim,
Não falem dessa mulher perto de mim...(Bis)


Nelson Gonçalves
- Cabelos Brancos





Herivelto Martins




Dalva de Oliveira 
relata porque o "Trio de Ouro" terminou





Trio de Ouro
- Ave Maria no morro 





Trio de Ouro (Carnaval de 1937)
- Ceci e Peri



Dalva de Oliveira, Herivelto Martins e Nilo Chagas

Uma das Músicas do primeiro 78 RPM depois que Dalva de Oliveira se Juntou a Dupla Preto e Branco, formando assim o Trio de Ouro. Carnaval de 1937, foi um dos primeiros sucessos do Trio, na época contratados pela Rádio Mayrink Veiga. O que é pouco conhecido é o fato de Dalva só entrar na Dupla e formar o Trio de Ouro em 1939, muito tempo depois de cantar pela primeira vez com Herivelto e Nilo.

A marchinha "Ceci e Peri", foi lançada para o carnaval de 1938 e, obteve um pequeno destaque radiofônico!....O autor desta obra, o compositor Príncipe Pretinho, plagiou o tema melódico principal, da ópera "O Guarani" de Carlos Gomes -- rsrsrsrs!....(Walmir Dantas)



Trio de Ouro 
- Dalva de Oliveira, Herivelto Martins e Nilo Chagas 
- DORA - Música de Dorival Caymmi




Gravação original do próprio Caymmi, em junho de 1945, lançada em agosto. 
Exatamente um ano depois, agosto de 1946, a mesma Odeon pôs nas lojas este registro do Trio de Ouro, feito em 4 de abril do mesmo ano, disco 12715-B, matriz 8056. Samuel Machado Filho.



Lurdes, o "tudo" de Herivelto

"Com a morte de Pio Pinto, a mãe de Lurdes, Sílvia, partiu com os filhos para o Rio, onde havia nascido - ela não queria viver tutelada pelo sogro. Lurdes seguiu com eles, levando seu filho. Era lá que ela conheceria seu grande amor."


Filha de Herivelto está em ‘Dalva’ e conta outra história de amor

"Uma reviravolta no baú dos pais, Herivelto e Lurdes, fizeram de Yaçanã Martins uma das principais colaboradoras da minissérie "Dalva e Herivelto - Uma canção de amor", que estréia no próximo dia 4 de janeiro. Além de entregar à autora Maria Adelaide Amaral as cartas de amor dos pais, Yaçanã ganhou um papel muito especial: ela será Sílvia Torelly, sua avó materna, na minissérie. Já sua mãe será vivida por Maria Fernanda Candido." 12/12/2010.


Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (1d) - Todos riram, outra vez.

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
1.

continuando...

     Todos riram, outra vez.

- Individual, naturalmente, individual! - disseram, rindo, Aleksándra e Adelaída. 
- Deixe que lhe previna de novo, Evguénii Pávlovitch - disse o Príncipe Chtch... - que a sua brincadeira continua, e muito, chocha.  
- Que é que o senhor acha, príncipe? - prosseguiu Evguénii Pávlovitch, sem escutar, mas vigiando os olhos com que Míchkin, muito sério e interessado, o encarava - Acha o senhor que é um caso individual, ou genérico? E devo confessar que foi por sua causa que pensei nisso. 
- Não. Individual, não! - respondeu o príncipe, com gentileza, mas firmemente.  
- Mas, palavra de honra, Liév Nikoláievitch! - exclamou o Príncipe Chtch..., desapontado - Pois não vê o senhor que ele o quer apanhar em falso? Ele está troçando e quer brincar com o senhor!  
- Pensei que Evguénii Pávlovitch estivesse falando sério - respondeu Míchkin, enrubescendo e abaixando os olhos.
- Meu caro príncipe - continuou o Príncipe Chtch... lembre-se do que estivemos a conversar uma vez, deve haver uns três meses. Disse-me o senhor que se podiam apontar notáveis e talentosos advogados em nossos tribunais recentemente criados! E que muitíssimos veredictos altamente magistrais tinham sido exarados! Quanto isso o alegrava e como eu estava satisfeito de ver esse prazer! Dizia-me o senhor que nos tínhamos de nos orgulhar do nosso Direito!... Logo, esta inepta defesa, este estranho argumento naturalmente, uma casual exceção, uma entre mil certas.

     O príncipe pensou um momento, e com um ar de perfeita convicção, apesar de se pôr a falar serenamente e até um pouco tímido, respondeu:

- Apenas quis significar que uma perversão de ideias e de concepções - conforme se expressou Evguénii Pávlovitch - com a qual nos defrontamos muitas vezes, é, infelizmente, muito mais a regra geral de que um caso excepcional. E tanto que se esse não fosse um fenômeno tão geral talvez não fosse possível haver tantos crimes como esse.  
- Crimes impossíveis? Mas lhe afirmo que crimes destes e talvez até ainda mais terríveis, existiram no passado e em todos os tempos, e não só entre nós senão por toda a parte e, na minha opinião, ocorrerão muitas e muitas vezes durante muito tempo. A diferença está em que havia muito menos publicidade na Rússia, outrora, ao passo que agora se começou a falar e mesmo a escrever sobre tais casos a ponto tal que é como se esses criminosos fossem um fenômeno recente. Eis como advém o seu engano, engano extremamente ingênuo, príncipe, fique sabendo - disse o Príncipe Chtch... com um sorriso irônico.
- Não deixo de reconhecer que houvesse outrora muitíssimos crimes e bem terríveis. Estive ultimamente visitando prisões e consegui travar conhecimento com alguns criminosos convictos. Há mesmo criminosos muito maiores do que esse, homens que cometeram uma dúzia de assassinatos e que todavia nem sentem o menor remorso. Mas vou dizer o que observei: reparei que o mais feroz e impenitente assassino, apesar de tudo, sabe que é um "criminoso”, isto é, considera em sua consciência que agiu mal, mesmo que não se arrependa. Verifiquei tal, em um por um. Ao passo que aqueles, de que Evguénii Pávlovitch estava falando, se recusam a se considerar criminosos, e acham que estão no seu direito - e que agiram certo; esta é a atitude deles. E eis em que consiste a diferença. E observe, são todos eles jovens, isto é, estão na idade em que se pode mais fácil e inexoravelmente tombar sob a influência de ideias pervertidas.  

     O Príncipe Chtch... parou de sorrir, e ficou escutando Míchkin com um ar espantado. Aleksándra, que ia dizer qualquer coisa, mudou de ideia, como se um pensamento especial a tivesse detido. Evguénii Pávlovitch olhava para Míchkin com verdadeiro pasmo, sem vestígio de gracejo.

- Mas, meu bom senhor, diga lá por que o está olhando tão surpreso? - interveio Lizavéta Prokófievna, inesperadamente - Por que cuidava que ele não fosse tão inteligente quanto o senhor e não pudesse raciocinar como o senhor pode?
- Nunca pensei nisso, absolutamente - disse Evguénii Pávlovitch. - Apenas, como é que, desculpe a pergunta, já que vê tão claramente, como é que o senhor, desculpe-me outra vez, não notou a mesma perversão de ideias e de convicções morais naquele estranho caso.., o outro dia, lembra-se.., o caso de Burdóvskii lembra-se? É exatamente a mesma coisa. Parece-me que naquela ocasião não viu isso, absolutamente. 
- Mas consinta que lhe diga, meu caro - interrompeu Lizavéta Prokófievna, esquentando-se -, que todos nós notamos. Aqui estamos sentados, julgando-nos superiores a ele. Pois recebeu uma carta de um desses daquela noite, do pior do bloco, o escrofuloso, lembras-te, Aleksándra? E na carta pede perdão, lógico que à sua maneira, naturalmente, e declara que rompeu com os companheiros que o instigaram naquela ocasião, lembraste, Aleksándra? E que deposita total confiança no príncipe. Nós, porém, não tivemos carta, embora estivéssemos de nariz voltado para ele.
- E Ippolít acaba de se mudar para a nossa vila, também - contou Kólia.
- O quê? Já está lá? - perguntou o príncipe, afogueado.
- Chegou logo que o senhor saiu com Lizavéta Prokófievna. Eu o levei. 
- Bem, pois eu aposto uma coisa - disse Lizavéta Prokófievna, inflamando- se repentinamente, esquecida já de que estivera elogiando o príncipe. - Aposto que este aqui foi vê-lo a noite passada na sua água-furtada e lhe pediu perdão de joelhos, a fim de que esse rancoroso espalha-brasas se pudesse mudar para a sua vila. Você não esteve lá, ontem? Você mesmo confessou. É ou não é verdade? E não se ajoelhou?
- Não fez nada disso - gritou Kólia. - Muito ao contrário. Foi Ippolít quem segurou a mão do príncipe ontem e a beijou duas vezes. Eu vi. Foi como a entrevista acabou, e mais, o príncipe lhe disse apenas que ele ficaria mais confortavelmente lá na vila, concordando ele em ir logo que se sentisse melhor. 
- Kólia, não precisa você... - balbuciou o príncipe, levantando-se e pegando no chapéu - Para que há de você estar a falar nisso? Eu... 
- Onde é que vai? - perguntou Lizavéta Prokófievna, interceptando-o. 
- Não se amofine, príncipe - continuou Kólia, vivamente - Se o senhor for lá agora o incomodará. Ele ficou a dormir, depois da viagem. Está satisfeito e - quer saber de uma coisa, príncipe? - acho até que será melhor o senhor não ir vê-lo hoje, senão ele torna a ficar desapontado. Ainda esta manhã me dizia que nunca se sentira tão forte e tão bem, nestes últimos meses, como agora. Já não tosse nem a metade do que tossia. 

     Notou o príncipe que Agláia deixara o seu lugar e se aproximava da mesa. Não teve coragem de olhá-la, mas sentiu em todo o seu ser que ela o estava olhando naquele instante e que, decerto, o estava olhando colericamente, que devia haver indignação em seus olhos negros e que o seu rosto devia estar vermelho. 

- Mas eu acho que fez mal em o fazer vir para cá, Nikolái Ardaliónovitch, se é que se está referindo àquele rapaz tuberculoso que chorou e que nos convidou para o seu enterro - comentou Evguénii Pávlovitch - Ele falava com tamanha eloquência da parede da casa fronteira à sua, que certamente morrerá de saudades dessa parede; fique certo disso.  
- Tal e qual. E brigará e romperá com o senhor e irá embora outra vez; esse é que vai ser o fim. - e Lizavéta Prokófievna puxou para perto de si a cesta de costuras, com um ar de dignidade, esquecendo-se de que todo o mundo se estava preparando para ir dar um passeio.
- Lembro-me quanto ele alardeou sobre a tal parede - recomeçou Evguénii Pávlovitch. - E sem aquela parede ele não conseguirá morrer eloquentemente! E o diabo é que está ansioso por uma cena de morte com bastante retórica.
- Como? - perguntou o príncipe, que prosseguiu: - Se o senhor não o perdoar, há de ele então morrer sem o seu perdão.. Pois olhe, ele veio para cá, por causa das árvores.
- Oh! Quanto a mim, perdoo-lhe tudo por tudo. Pode até lhe dizer isso. 
- Não é bem essa a maneira - respondeu o príncipe, mansamente, e como que com relutância, com os olhos fixos em um ponto do assoalho, sem os levantar - O senhor devia estar preparado para receber o perdão dele também. 
- Não vejo porquê! Que lhe fiz eu de mal?
- Se o senhor não compreende, então... Mas o senhor compreende; ele desejava abençoar todos e que todos o abençoassem. E era só.
- Caro príncipe - apressou-se a se interpor o Príncipe Chtch... com certa apreensão, e trocando olhares com alguns dos demais - não é fácil atingir o paraíso aqui na terra, mas o senhor teima em contar encontrá-lo. O paraíso é um negócio difícil, príncipe, muito mais difícil do que parece ao seu bom coração. O melhor é pormos o assunto de lado, senão acabaremos nos sentindo atrapalhados também, e então...
- Vamos Ouvir música! - aconselhou Lizavéta Prokófievna com entusiasmo, levantando-se do seu lugar espetacularmente. 

     Saiu; e todos seguiram o seu exemplo. 

O Idiota: Terceira Parte (1d) - Todos riram, outra vez.
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