em busca do tempo perdidovolume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
II(a)
Combray, de longe, por dez léguas em redor, vista do trem, quando chegávamos na
semana anterior à Páscoa, não era mais que uma igreja que resumia a cidade,
representava-a, falava dela e por ela as distâncias, e, quando nos aproximávamos,
mantinha aconchegados em torno de sua grande capa sombria, em pleno campo, contra
o vento, como uma pastora a suas ovelhas, os lombos lanosos e cinzentos das casas
reunidas que um resto de muralhas da Idade Média cingia aqui e ali num traço tão
perfeitamente circular como uma cidadezinha em um quadro de primitivos. Para morar,
Combray era um pouco triste, como eram tristes suas ruas, cujas casas, edificadas com as
pedras escuras da região, precedidas de degraus exteriores e com seus telhados de beirais
salientes que faziam sombra, eram tão escuras que, mal começava a declinar o dia, já era
preciso erguer as cortinas nas “salas”; ruas de graves nomes de santos (vários dos quais
se ligavam à história dos primeiros senhores de Combray), rua de Santo Hilário, rua de
São Tiago, onde ficava a casa de minha tia, rua de Santa Hildegarda, para onde davam as
grades, e rua do Espírito Santo, para onde se abria o portãozinho lateral de seu jardim; e
essas ruas de Combray existem em um local tão recôndito de minha memória, pintado
em cores tão diferentes das que agora revestem para mim o mundo, que na verdade me
parecem todas, bem como a igreja que as dominava na praça, ainda mais irreais que as
projeções da lanterna mágica; e em certos momentos me parece que poder atravessar
ainda a rua de Santo Hilário, poder alugar um quarto na rua do Pássaro — a velha
hospedaria do Pássaro Ferido, de cujos suspiros saía um cheiro de cozinha que,
intermitente e cálido, ainda sobe por momentos em minha lembrança — seria entrar em
contato com o Além de um modo mais maravilhosamente sobrenatural do que se me
fosse dado conhecer a Golo e conversar com Geneviève de Brabant.[1]
A prima de meu avô — minha tia-avó — em cuja casa parávamos, era mãe dessa tia
Léonie que desde a morte do marido, meu tio Octave, não quisera abandonar, primeiro
Combray, depois em Combray, sua casa, depois seu quarto, depois seu leito e que não
mais “descia”, sempre deitada, em um estado incerto de pesar, de debilidade física, de
doença, de ideia fixa e de devoção.[2] Seu apartamento particular dava para a rua de São
Tiago, que findava muito além, no Prado Grande (por oposição ao Prado Pequeno,
verdejante no meio da cidade, entre três ruas), e que, uniforme e pardacenta com os três
altos degraus de pedra diante de quase todas as portas, parecia um desfiladeiro talhado
por um imagista medieval diretamente na pedra em que teria esculpido um presépio ou
um calvário. Minha tia, na verdade, não habitava mais que duas peças contíguas,
passando de tarde para uma, enquanto arejavam a outra. Eram desses quartos de
província que — da mesma forma que em certas regiões há partes inteiras do ar e do
mar iluminadas ou perfumadas por miríades de protozoários que nós não vemos — nos
encantam com os mil odores que neles exalam as virtudes, a prudência, os hábitos, toda
uma vida secreta, invisível, superabundante e moral que a atmosfera ali mantém em
suspensão; odores naturais, sim, e cor de natureza como os dos campos próximos, mas
já caseiros, humanos e confinados, a fina geleia industriosa e límpida de todos os frutos
do ano que deixaram o pomar pelo armário; odores provenientes das estações, mas
mobiliários e domésticos, a corrigir o picante da escarcha com a doçura do pão quente,
ociosos e pontuais como um relógio de aldeia, vagabundos e ordeiros, descuidosos e
previdentes, roupeiros, madrugadores, devotos, felizes de uma paz que só nos traz mais
ansiedade e de um prosaísmo que é um grande reservatório de poesia para aquele que os
atravessa sem ali ter vivido. Estava aquele ar saturado da fina flor de um silêncio tão
nutritivo, tão suculento, que eu por ali só andava com uma espécie de gula,
principalmente naquelas manhãs, ainda frias da semana da Páscoa, em que melhor os
saboreava porque mal acabara de chegar a Combray; antes que entrasse para
cumprimentar minha tia, faziam-me esperar um instante na primeira peça, onde o sol,
ainda de inverno, viera aquecer-se diante do fogo, já aceso entre os dois ladrilhos e que
pincelava toda a peça de um cheiro de fuligem, tornando-a como uma dessas grandes
“bocas de forno” do campo, ou desses panos de chaminé de castelos, a cujo abrigo nos
vem o desejo de que rebente lá fora a chuva, a neve, até mesmo alguma catástrofe
diluviana para acrescentar ao conforto da reclusão a poesia do inverno; eu dava alguns
passos, do genuflexório até as poltronas de veludo estampado, sempre revestidas de
cabeceiras de crochê; e o fogo, que cozinhava como se fosse uma massa os apetitosos
cheiros de que se achava coalhado o ar do quarto e que já tinham sido trabalhados e
“levantados” pela frescura úmida e ensolarada da manhã, folhava-os, dourava-os,
enrugava-os, tufava-os, fazendo deles um invisível e palpável bolo provinciano, uma
imensa torta, na qual, depois de ligeiramente saboreados os aromas mais estalantes, mais
finos, mais respeitáveis, mas também mais secos, do armário, da cômoda, do papel de
remagem, eu voltava sempre, com inconfessada cobiça, a enviscar-me no odor
medíocre, pegajoso, insípido, indigesto e acentuado da colcha de flores.
No quarto próximo, ouvia minha tia falar sozinha a meia-voz. Sempre falava muito
baixo, porque supunha ter dentro da cabeça alguma coisa de quebrado e flutuante, que
ela poderia deslocar se falasse muito alto, mas nunca permanecia muito tempo, mesmo
sozinha, sem dizer alguma coisa, porque julgava que isso era bom para a garganta e,
impedindo que o sangue ali parasse, tornaria menos frequentes as sufocações e angústias
de que sofria; e depois, na inércia absoluta em que vivia, emprestava a suas mínimas
sensações uma importância extraordinária; dotava-as de tal motilidade que lhe era difícil
guardá-las para si e, na falta de confidente a quem comunicá-las, anunciava-as a si
mesma, em um perpétuo monólogo que era sua única forma de atividade. Infelizmente,
tendo adquirido o hábito de pensar em voz alta, nem sempre reparava se havia alguém
no quarto próximo, e eu a ouvia muitas vezes dizer a si mesma: “Tenho de me lembrar
de que não dormi” (pois nunca dormir era sua grande pretensão, pretensão de que nossa
linguagem guardava as marcas e o respeito: pela manhã. Françoise não ia “acordá-la”,
mas “entrava” em seu quarto; quando minha tia desejava tirar uma sesta, diziam que ela
queria “refletir” ou “repousar”; e quando lhe sucedia descuidar-se, na conversa, a
ponto de dizer “o que me despertou” ou “sonhei que…”, ficava vermelha e corrigia-se
em seguida).
Passado um instante, eu entrava para beijá-la; Françoise lhe preparava o chá; ou,
quando ela se achava nervosa e pedia sua tisana em vez do chá, era eu o encarregado de
derramar do saco de farmácia em um pires a requerida quantidade de tília que se devia
pôr em seguida na água fervendo. O dessecamento dos caules havia-os encurvado em
uma caprichosa trama em cujo entrelaçamento se abriam as flores pálidas, como se um
pintor as tivesse arranjado, colocando-as da maneira mais decorativa. As folhas, tendo
perdido ou modificado o aspecto próprio, apresentavam o ar das coisas mais
disparatadas, de uma asa transparente de mosca, do reverso branco de um selo, de uma
pétala de rosa, mas que tivessem sido empilhadas, trituradas ou trançadas como na
confecção de um ninho. Mil pequeninos detalhes inúteis — encantadora prodigalidade
do farmacêutico —, que se teriam suprimido em um preparado de fábrica, davam-me,
como um livro no qual a gente se maravilha de encontrar o nome de uma pessoa
conhecida, o prazer de compreender que eram mesmo caules de verdadeiras tílias, como
aquelas que eu via na avenida da Estação, e modificados justamente porque eram de
verdade, e não cópias, e haviam envelhecido. E como cada nova característica não era
mais que a metamorfose de uma característica anterior, eu reconhecia, nas bolinhas
cinzentas, os botões verdes que não tinham vingado; mas, principalmente, o brilho
róseo, lunar e suave com que se destacavam as flores na floresta frágil dos caules onde
estavam suspensas como pequeninas rosas de ouro — sinal, como esse esplendor que
ainda revela em um muro o local de um afresco apagado, da diferença entre as partes da
planta que haviam tido “cores” e as que não as tiveram — mostrava-me que aquelas
pétalas eram as mesmas que, antes de florirem o saco de farmácia, tinham balsamizado as
noites de primavera. Aquela flama rósea de círio era ainda sua cor, mas meio apagada e
adormecida nessa vida atenuada que era agora a sua e que é como o crepúsculo das
flores. Em breve minha tia podia mergulhar, na fervente infusão de que saboreava o
gosto de folha morta ou de flor fanada, uma madalena, da qual me oferecia um pedaço
quando já estivesse bem amolecido.
Ao lado de seu leito havia uma grande cômoda amarela de limoeiro e uma mesa que
acumulava as funções de botica e altar-mor, e onde, junto a uma imagem da Virgem e
uma garrafa de Vichy-Célestins, encontravam-se livros de missa e receitas médicas, tudo
o que era preciso para seguir da cama os ofícios religiosos e o regime, para não perder
nem a hora da pepsina nem a das Vésperas. Do outro lado do leito estava a janela: assim
tinha a rua à vista, e nela costumava ler da manhã à noite, por desfastio, à maneira dos
príncipes persas, a crônica cotidiana mas imemorial de Combray, que comentava em
seguida com Françoise.
Não fazia cinco minutos que estava eu com minha tia quando ela me mandava
embora, de medo que a fatigasse. Oferecia a meus lábios sua fronte pálida e fria, sobre a
qual, àquela hora matutina, ainda não tinha arranjado a cabeleira postiça, e onde
transpareciam os ossos como as pontas de uma coroa de espinhos ou as contas de um
rosário, e dizia-me: “Anda, meu pobre filho, vai preparar-te para a missa; e se
encontrares Françoise por aí dize-lhe que não se entretenha muito com você e suba em
seguida para ver se não preciso de alguma coisa”.
Com efeito, Françoise, que estava a seu serviço havia anos e não suspeitava então
que passaria um dia para o nosso, descuidava-se um pouco de minha tia durante os
meses em que lá estávamos. Houve uma época em minha infância, antes que fôssemos a
Combray, quando minha tia Léonie passava ainda o inverno em Paris, em casa de sua
mãe, em que eu conhecia tão vagamente a Françoise que, no dia primeiro do ano, antes
de entrarmos em casa de minha tia-avó, minha mãe metia-me na mão uma moeda de
cinco francos, recomendando-me: “Trata de não te enganares de pessoa. Espera, para
dar, que me ouças dizer: ‘Bom-dia, Françoise’; ao mesmo tempo eu te tocarei de leve no
braço”. Apenas chegávamos à escura antecâmara de minha tia, percebíamos na sombra,
sob as abas de uma touca ofuscante, tesa e frágil, como se fosse de açúcar em fio, os
remoinhos concêntricos de um sorriso de antecipada gratidão. Era Françoise, imóvel e
de pé no enquadramento da pequena porta do corredor, como uma imagem de santa em
seu nicho. Depois que a gente se habituava um pouco àquelas trevas de capela, distinguia
em seu rosto o amor desinteressado da humanidade, o comovido respeito às altas
classes, exaltado nas melhores regiões de seu coração pela esperança dos presentes de
boas-festas. Mamãe me beliscava o braço violentamente e dizia com voz forte: “Bom-dia, Françoise”. A este sinal, meus dedos se abriam e eu largava a moeda, que
encontrava, para recebê-la, a mão confusa, mas estendida. Mas desde que íamos a
Combray, a ninguém conhecia eu melhor do que a Françoise; éramos os seus favoritos,
e tinha por nós, pelo menos nos primeiros anos, a par de tanta consideração como a
minha tia, um gosto mais vivo, porque acrescentávamos, ao prestígio de fazer parte da
família (e Françoise dedicava aos invisíveis elos que cria, entre os membros de uma
família, a circulação de um mesmo sangue, tanto respeito como um trágico grego), o
encanto de não sermos seus patrões habituais. Daí o júbilo com que nos recebia,
lamentando que não fizesse melhor tempo no dia de nossa chegada, às vésperas da
Páscoa, em que às vezes soprava um vento glacial, e quando mamãe lhe perguntava por
sua filha e seus sobrinhos, se seu neto era um bom menino, o que pretendiam fazer dele,
e se se parecia com a avó.
E, quando não havia gente por perto, mamãe, que sabia que Françoise chorava
ainda a seus pais, mortos, havia tantos anos, falava deles bondosamente, inquirindo mil
detalhes.
Adivinhava que Françoise não gostava do genro e que este lhe estragava o prazer
que tinha em estar com a filha, com quem não podia falar com a mesma liberdade
quando ele se achava presente. Assim, quando Françoise ia visitá-los, a algumas léguas
de Combray, mamãe dizia-lhe, sorrindo: “Se Julien foi obrigado a sair e você tiver de
ficar sozinha com Marguerite o dia inteiro, vai ser mesmo uma pena; mas não há de ser
nada, bem, Françoise?”. E Françoise, a rir: “A senhora sabe de tudo, a senhora é pior
que o raio x (dizia o xis com uma dificuldade afetada e um sorriso, para zombar de si
mesma, uma ignorante, que se atrevia a empregar aquele termo científico) que mandaram
buscar para a sra. Octave e que enxerga o que a gente tem no coração”,[3] e
desaparecia, confusa de que se ocupassem dela, acaso para que não a vissem chorar;
mamãe era a primeira pessoa que lhe dava aquela doce emoção de sentir que sua vida,
suas ditas e pesares de camponesa podiam apresentar interesse, ser motivo de alegria ou
de tristeza para uma outra que não ela própria.[4] Minha tia se resignava a privar-se um
pouco de Françoise durante nossa estada, pois sabia o quanto minha mãe apreciava os
serviços daquela criada tão inteligente e ativa, que se apresentava tão correta, como para
ir à missa; desde as cinco da manhã, na cozinha, com sua touca cujas abas deslumbrantes
e fixas pareciam de porcelana; que fazia tudo bem, trabalhando como um cavalo,
estivesse com saúde ou não, mas sem barulho, sem que parecesse fazer nada, e a única
das criadas de minha tia que, quando mamãe pedia água quente ou café puro, trazia-os
realmente a ferver; era dessas criadas que desagradam à primeira vista a um estranho,
talvez porque não se deem o trabalho de conquistá-lo nem se mostrem muito solícitas,
pois sabem muito bem que não precisam dele, e que os de casa prefeririam deixar de
recebê-lo a despedi-las; e que, por outro lado, são aquelas a quem mais se afeiçoam os
patrões, que puseram à prova sua capacidade real e não se importam com esse agrado
superficial, essa tagarelice servil que impressiona favoravelmente a um visitante, mas
que muitas vezes encobre uma irremediável nulidade.
continua na página 49...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (Combray, de longe - a)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Mistura proustiana de referências reais e fictícias. As ruas de Santo Hilário, do
Espírito Santo, do Pássaro e a hospedaria do Pássaro Ferido encontravam-se na
cidadezinha de Illiers; a rua de Santa Hildegarda é de sua invenção. [n. e.]
[2] A reclusão da tia antecipa metaforicamente a daquele que vai se dedicar à busca do
tempo perdido. Em um texto de juventude, Proust já destacava o fascínio despertado
pela figura de Noé e sua condição privilegiada de observar o mundo a partir de sua arca.
[n. e.]
[3] Anacronismo, pois o raio x só seria descoberto por Röntgen no ano de 1895. [n.
e.]
[4] Essa característica da mãe transmite-se ao herói, que votará sua simpatia e sua ironia
afetuosa a detalhes de seres e coisas aparentemente insignificantes. [n. e.]
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