segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Em breve saberei quem sou...

A velhice

Jorge Luis Borges


Mundo Dos Poemas





“A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.”


Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap I - Muitas mulheres)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra



Capítulo Primeiro
Segunda Parte


continuando...

Muitas mulheres, por meio de quem me parecia possível obter apresentação, estavam no jardim, onde, fingindo uma admiração exaltada não sabiam bem o que fazer. As festas desse tipo são em geral atentas; só têm realidade no dia seguinte, quando ocupam a atenção das pessoas que não foram convidadas. Se um verdadeiro escritor, destituído de amor-próprio de tantos literatos, ao ler o artigo de um crítico que se lhe testemunhou a maior admiração, vê citados os nomes de autores medíocres, mas não o seu, não tem tempo de se deter no que poderia ser ele um motivo de espanto: seus livros o reclamam. Mas uma mulher da sociedade não tem o que fazer e, vendo no fígaro:

"Ontem o príncipe e a princesa de Guermantes deram uma grande reunião noturna, etc.", exclama: Como! Há três dias conversei durante uma hora com Marie-Gilbert sem que ela me dissesse nada! E quebra a cabeça para adivinhar o que pode ter feito contra os Guermantes. É preciso esclarecer que, no que dizia respeito às festas da princesa, o espanto era às vezes tão grande entre os convidados como entre os que não tinham estado presentes. Pois os convites explodiam no momento em que menos os esperavam, e apelavam para pessoas que a Sra. De Guermantes havia esquecido durante anos. E quase todas as pessoas da alta sociedade são tão insignificantes que cada um de seus pares não toma, para avaliá-las, senão a medida de sua amabilidade: convidado, estima-as; excluído, detesta-as. Quanto a estes últimos, se, de fato, a princesa, mesmo se fossem seus amigos, não os convidava, devia-se isto muitas vezes ao temor de descontentar "Palamede", que os havia excomungado. Assim, eu podia ter certeza de que ela não falara de mim ao Sr. de Charlus, sem o que não me encontraria ali. Ele estava agora diante do jardim, ao lado do embaixador da Alemanha, reclinado na rampa da grande escadaria que levava ao palácio, de forma que os convidados, apesar das três ou quatro admiradoras que tinham se agrupado em torno do barão e quase o ocultavam, eram obrigados a vir cumprimentá-lo. Ele retribuía declinando o nome das pessoas. E sucessivamente ouvia-se:

- Boa-noite, Sr. du Hazay; boa-noite, Sra. da La Tour du Pin-Verclause; boa-noite, Sra. de La Tour du Pin-Gouvernet; boa-noite, Philibert; boa-noite, minha cara embaixatriz, etc. -

Isto formava um cacarejo contínuo, interrompido por recomendações benévolas ou perguntas (cujas respostas não ouvia), que o Sr. de Charlus fazia num tom adocicado, artificial, a fim de testemunhar a indiferença, e benigno: 

- Tomem cuidado para que a menina não sinta frio, os jardins são sempre um tanto úmidos. Boa-noite, Sra. de Brantes. Boa-noite, Sra. de Mecklembourg. E a menina veio? Com aquele encantador vestido cor-de-rosa? Boa-noite, Saint-Géran. -

Certamente ele sentia orgulho nessa atitude. O Sr. de Charlus sabia que era um Guermantes que ocupava um lugar proeminente naquela festa. Mas não havia só orgulho, e essa mesma palavra festa evocava, para o homem de dotes estéticos, o sentido luxuoso, curioso, que essa reunião pode ter se é dada não na casa de pessoas da alta sociedade, mas num quadro de Carpaccio ou de Veronese. É mesmo mais provável que o príncipe alemão, que o Sr. de Charlus era, devesse antes imaginar a festa que se desenrola em Tannhâuser, e a si mesmo como o Margrave, tendo, à entrada da Warburg, uma boa palavra de condescendência para cada convidado, enquanto a sua passagem pelo castelo ou pelo parque é saudada pela longa frase, cem vezes repetida, da famosa "Marcha". No entanto, precisava decidir-me. Percebia perfeitamente, sob as árvores, mulheres a quem estava mais ou menos ligado, mas elas pareciam transformadas, pois estavam na casa da princesa e não na de sua prima, e eu as via sentadas não diante de um prato de Saxe, mas sob os galhos de um castanheiro. A elegância do ambiente não contava para, mesmo que fosse infinitamente menor que na casa de "Oriane", eu, sentido perturbação igual. Desde que a eletricidade se extinga em salão e devamos substituí-la por lampiões a óleo, tudo nos parece maior. Arrancou-me da minha incerteza a Sra. de Souvré: 

- Boa-noite - disse vindo ao meu encontro. - Faz muito tempo que não vê a duquesa de Guermantes? - Ela primava em dar a esse tipo de frase uma entonação provava que não as dizia por simples tolice, como as pessoas que, não sabendo de que falar, abordam-nos mil vezes citando uma relação frequentemente muito vaga. Ao contrário, teve ela um sutil fio condutor de olhar, que significava: 

"Não creia que o não reconheci. O senhor é o rapaz que vi na casa da duquesa de Guermantes. Lembro-me muito bem. Infelizmente, a proteção que estendia sobre mim aquela frase de aparência estúpida e de intenção delicada era extremamente frágil e desvaneceu logo que pretendi usá-la. A Sra. de Souvré possuía a arte, caso se tratasse de apoiar uma solicitação junto a alguém importante, de parecer ao mesmo tempo, aos olhos do solicitante, que o estava recomendando e, aos olhos da alta personagem, que não o estava recomendando, de modo que os gesto de duplo sentido lhe abria um crédito de reconhecimento quanto a este último, sem lhe criar nenhum débito em relação ao outro. Animada, pelas boas graças desta senhora a lhe pedir que me apresentasse ao Sr. De Guermantes, ela aproveitou um instante em que os olhos do dono da casa não estavam voltados para nós, tomou-me maternalmente pelos ombros e sorrindo à figura virada do príncipe que não podia vê-la, impeliu-me com um movimento pretensamente protetor e voluntariamente ineficaz, que me deixou imóvel quase no meu ponto de partida. Tal é a covardia das pessoas da sociedade. Maior ainda foi a de uma dama que veio me cumprimentar, chamando-me pelo meu nome. Eu procurava achar o seu enquanto lhe falava; lembrava-me muito bem de haver jantado com ela, lembrava-me das palavras que ela dissera. Porém, minha atenção, voltada para a região interior onde existiam essas lembranças dela, não podia descobrir-lhe o nome. Entretanto ele se achava ali. Meu pensamento se empenhara numa espécie de jogo com ele para captar-lhe os contornos, a letra pela qual se principiava, e, por fim, iluminá-lo por completo. Era trabalho perdido. Ela, sentia mais ou menos a sua massa, o seu peso, mas, quanto às suas formas, confrontando-as com o tenebroso cativo agachado na noite interna dizia eu comigo: "Não é isto." Decerto o meu espírito teria podido criar mais difíceis apelativos. Por desgraça, não era caso de criar e sim de produzir. Toda ação do espírito é facilitada se não está submetida ao esquecimento. Ali eu era forçado a me submeter. Por fim, de um golpe, o nome surgiu inteiro:

"Senhora d'Arpajon".

Estou errado em dizer que ele veio, pois julgo não me surgiu numa propulsão de si mesmo. Tampouco penso que as ligeiras e numerosas lembranças que se relacionavam com essa dama, e às quais eu não cessava de pedir que me ajudassem (por exortações do tipo desta: "Vamos, esta dama é que é amiga da Sra. de Souvré, que experimenta em relação a Victor Hugo uma admiração tão ingênua, mesclada de tanto pasmo e horror"), não creio que todas essas lembranças, revoando entre mim e seu nome, tenham servido no que quer que fosse para fazê-lo flutuar. Nesse grande "esconde-esconde" que se brinca na memória, quando se deseja encontrar um nome, não existe uma série de aproximações graduadas. Não se vê coisa alguma, e depois, de súbito, aparece o nome exato e bem diferente daquilo que julgávamos adivinhar. Não foi ele que veio até nós. Não, creio antes que, à medida que vivemos, passamos o nosso tempo a nos afastar da zona em que um nome é nítido, e era por um exercício da minha vontade e de minha atenção, que aumentava a acuidade de meu olhar interior, que de chofre eu havia perfurado a semiobscuridade e visto com clareza. Em todo caso, se há transições entre o esquecimento e a lembrança, então essas transições são inconscientes. Pois os nomes de etapas por que passamos, antes de achar o nome verdadeiro, são falsos e em nada nos aproximam dele. Nem chegam a ser propriamente nomes, mas, muitas vezes, simples consoantes, e que não se achariam no nome reencontrado. Aliás, esse trabalho do espírito, passando do nada à realidade, é tão misterioso que é possível que, afinal, essas consoantes falsas sejam degraus prévios, desajeitadamente colocados para ajudar-nos a alcançar o nome correto. "Tudo isto, dirá o leitor, nada me informa acerca da falta de complacência dessa dama; mas, já que vos demorastes tanto tempo, deixai-me, senhor autor, fazer-vos perder mais um minuto para dizer que é lastimável que, jovem como éreis (ou como era o vosso herói caso não seja vós), já tivésseis tão pouca memória a ponto de não poder lembrar-vos do nome de uma dama que conhecíeis tão bem." De fato, é lastimável, senhor leitor. E mais triste do que pensais, quando se sente aí o anúncio da época em que os nomes e as palavras desaparecerão da zona clara do pensamento, e onde será preciso renunciar para sempre a dizer para nós mesmos os nomes daqueles a quem melhor conhecemos. É lastimável, com efeito, que desde a juventude se necessite desse trabalho para reencontrar nomes que se conhecem bem. Mas, se essa deficiência só ocorresse quanto aos nomes mal conhecidos, muito naturalmente olvidados, e de que ninguém se dá ao trabalho de tentar recordar, tal deficiência não deixaria de ter suas vantagens. "E quais são, se me fazeis o favor?" Bem, meu senhor, é que só o mal faz a gente reparar e aprender, permitindo decompor os mecanismos sem isso, não conheceríamos. Um homem que todas as noites tomba uma massa no seu leito e não vive mais até o momento de acordar se erguer, por acaso esse homem pensará alguma vez em fazer, se não descobertas, ao menos pequeninas observações sobre o sono? Mal ele se dorme. Um pouco de insônia não é inútil para dar valor ao projetar alguma luz sobre essa noite. Uma memória sem falhas não é excitante muito poderoso para estudar os fenômenos da memória. "E. a Sra. d'Arpajon vos apresentará ao príncipe?" Não, mas calai-vos e deixe-me retomar minha narrativa. 

A Sra. d'Arpajon foi mais covarde ainda que a Sra. de Souvré, sua covardia tinha mais desculpas. Ela sabia que sempre tivera pouca poder na sociedade. Semelhante poder fora ainda mais debilitado pela ação que tivera com o duque de Guermantes; o abandono deste dera-lhe o golpe de misericórdia. O mau humor que lhe causou o meu pedido de apresentação ao príncipe fê-la manter um silêncio que teve a ingenuidade de acreditar ser um sinal de não ter ouvido o que eu dissera. Nem mesmo percebeu que a cólera a fazia franzir as sobrancelhas. Ou talvez, ao contrário, houvesse percebido e não se preocupasse com a contradição; servindo-se dela para a aula de discrição que podia me dar sem muita graça seria, quero dizer, uma aula muda e que nem por isso era menos elogiosa. Além do mais, a Sra. d'Arpajon estava muito contrariada; muitos olhares se haviam erguido para um balcão renascentista, em cujo ângulo em lugar de estátuas monumentais que se colocavam tanto por essa casa, debruçava-se, não menos escultural do que elas, a magnífica duquesa de Surgis-le-Duc, a que acabava de suceder à Sra. d'Arpajon no coração de Basin de Guermantes. Sob o leve tule branco que a abrigava do frescor da noite, via-se, flexível, o seu corpo sedutor de Vitória. Eu só podia recorrer ao Sr. de Charlus, que voltara para uma peça do andar térreo que dava para o jardim. Tive todo o tempo; já que ele fingia estar absorvido numa simulada de que lhe permitia dar a impressão de não ver as pessoas para admirar a intencional e artística simplicidade de seu fraque; em uns detalhes que só um costureiro teria percebido, tinha o aspecto de uma "Harmonia" em preto e branco de Whistler; ou melhor, preto, branco e vermelho, pois o Sr. de Charlus trazia, suspensa por uma larga fita à camisa, a cruz em esmalte branco, preto e vermelho de cavaleiro da ordem religiosa de Malta. Nesse momento, a partida do barão foi interrompida Sra. de Gallardon, conduzindo seu sobrinho, o visconde de Courvoisier; rapaz de belo rosto e de ar impertinente: 

- Meu primo - disse ela permita-me que lhe apresente meu sobrinho Adalbert. Adalbert, tu sabes, famoso tio Palamede de quem sempre ouves falar.

- Boa-noite, senhora de Gallardon - respondeu o Sr. de Charlus. E acrescentou, sem mesmo olhar para o rapaz:

- Boa-noite, senhor - com ar emburrado e um tom de voz tão violentamente descortês que todo mundo ficou estupefato. Talvez o Sr. de Charlus, sabendo que a Sra. de Gallardon tinha dúvidas sobre seus costumes e não pudera certa vez resistir ao prazer de lhes fazer alusão, fizesse questão de cortar de vez tudo o que ela poderia fantasiar acerca de uma acolhida amável a seu sobrinho, ao mesmo tempo que fazia uma retumbante profissão de indiferença quanto aos jovens; talvez não tivesse achado que o dito Adalbert correspondesse com aspecto suficientemente respeitoso às palavras da tia; talvez, desejoso de mais tarde fazer seus avanços a um primo tão agradável, quisesse obter as vantagens de uma agressão prévia, como os soberanos que, antes de principiar uma ação diplomática, apóiam-na com uma ação militar. 

Não seria tão difícil como eu achava que o Sr. de Charlus concordasse com o meu pedido de apresentação. Por um lado, no decurso dos últimos vinte anos, esse Dom Quixote lutara contra tantos moinhos de vento (muitas vezes parentes que ele pretendia terem se comportado mal com ele), com tanta frequência proibira alguém "como pessoa impossível de ser recebida" em casa de tais ou quais Guermantes, que estes começavam a ter medo de que os indispusesse com todas as pessoas de quem gostavam, que os privasse até a morte da convivência de alguns estreantes que lhes despertavam a curiosidade, para esposar os rancores trovejantes porém inexplicáveis de um cunhado ou primo que desejaria que por ele abandonassem mulher, irmão e filhos. Mais inteligente que os outros Guermantes, o Sr. de Charlus percebia de que só levavam em conta as suas proibições uma vez em duas, e, antecipando o futuro, temendo que um dia fosse dele que se privassem, começara a contemporizar, a baixar seus preços, como se diz. Além do mais, se possuía a faculdade de dar por meses ou anos uma vida idêntica a uma pessoa detestada a esta não teria tolerado que fizessem um convite e seria antes capaz de se bater como um carregador contra uma rainha, dado que para ele não mais contava a qualidade de quem se lhe opunha. Em compensação era possuído de frequentes explosões de cólera para que não fossem muito fragmentárias. 

"Imbecil! Idiota! Hão de pô-lo no seu lugar, varrê-lo para o esgoto onde, infelizmente, não será inofensivo para a higiene da cidade!" berrava, mesmo sozinho em casa, à leitura de uma carta que julgava irreverente, ou lembrando-se de uma frase que lhe haviam repetido. Mas uma nova cólera contra um segundo imbecil dissipava a outra, e, por menos que o primeiro se mostrasse diferente, a crise que ele havia ocasionado era esquecida, não tendo duração suficiente para formar uma base de ódio sobre a qual se pudesse construir. Desse modo, talvez eu tivesse, apesar de seu mau humor contrário, obtido sucesso junto a ele, quando lhe pedi que me apresentasse o príncipe, caso não tivesse tido a infeliz ideia de acrescentar por escrúpulo e para que ele não pudesse me atribuir a indelicadeza de ter entrado ao acaso, contando com ele para ficar na festa: 

- O senhor sabe que os conheço muito bem; a princesa foi muito amável comigo. 

- Pois bem; o senhor os conhece, em que precisa de mim para ser apresentado?- respondeu-me em tom cortante; voltando-me as costas, retomou a posição fingido ler um anúncio, do embaixador da Alemanha e um personagem que eu não conhecia.

Então, do fundo daqueles jardins onde outrora o duque criava animais raros, chegou-me, pelas portas escancaradas, o rumor de aspirar que hauria tantas elegâncias e nada queria perder. O ruído se aproximou, caminhei casualmente em sua direção, tanto que a expressão "boa-noite" foi sussurrada ao meu ouvido pelo Sr. de Bréauté, não com som ferroso e embotado de uma faca passada pelo amolador, e menos como o grito do pequeno javali devastador de terras cultivadas, mas, a voz de um possível salvador. Menos potente que a Sra. de Souvré, menos profundamente atingido do que ela de imprestabilidade, muito menos à vontade com o príncipe do que o era a Sra. d'Arpajon, talvez alimentando ilusões quanto à minha situação no meio dos Guermantes, ou talvez a conhecendo melhor que eu. Tive entretanto, nos primeiros segundos, a dificuldade de captar sua atenção, pois, com as narinas dilatadas ele olhava para todos os lados, assestando curiosamente o seu movimento, como se se achasse em presença de quinhentas obras-primas. Mas, escutado o meu pedido, acolheu-o com satisfação, conduziu-me para o príncipe e me apresentou com ar guloso, cerimonioso e vulgar, como lhe passasse, recomendando-os, um prato de sequilhos. Tanto a acolhida do duque de Guermantes era, quando ele o queria, amável, cheia de camaradagem, cordial e familiar, quanto achei o do príncipe comedidor, solene, altivo. Mal me sorriu, pronunciou gravemente:

"Senhor."

Muitas vezes eu ouvira o duque zombar da arrogância do primo. Mas, desde as primeiras palavras que este me disse e que, por sua frieza e seriedade, faziam inteiro contraste com a linguagem de Basin, compreendi de imediato homem fundamentalmente desdenhoso era o duque, que nos falava desde a primeira visita "de igual para igual", e que, dos dois primos, o príncipe, era verdadeiramente simples. Descobri em sua reserva um sentimento não direi de igualdade, o que teria sido inconcebível nele, mas pelo menos da consideração que se pode ter para com um inferior, como acontece em todos os meios fortemente hierarquizados; no Palais por exemplo, numa faculdade, onde um procurador-geral ou um "deão", conscientes de seu alto cargo, escondem talvez muito mais simplicidade real e, quando os conhecemos melhor, mais bondade, simplicidade verdadeira, cordialidade, em sua altivez tradicional, que os outros mais modernos na afetação de uma camaradagem divertida.

- Pretende seguir a carreira do senhor seu pai? - indagou ele com ar distante, porém interessado.

Respondi sumariamente à sua pergunta, compreendendo que só a fizera por delicadeza, e me afastei para deixá-lo acolher os novos visitantes.

sábado, 28 de outubro de 2023

Memórias - 29: los campesinos

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Um

baitasar

Memórias

29 – los campesinos

como você já percebeu, minha querida e fiel amiga, as costas de Qualquer pesavam muito, vivia com a perturbação de vir a ser mais um jogado numa cova de milho com suas raízes saindo del la boca, ojos, orejas, narinas, uno más enterrado y acuosos, crecido hasta el cielo, florido de grãos, envolvido por mariposas brancas até ser colhido, debulhado e amarrotado para virar farinha ou triturado por dentes podres até virar novamente adubo, excremento humano

o destino dos homens e mulheres de milho se mistura con lo maíz de la Montaña

los campesinos continuam ensinando como sobreviver, lições duras de aprender que os requintados e as elegantes senhoras enrugadas de luto pela morte que se aproxima não têm vontade nem ânimo de treinar, resmungam que a minha gente não sente o sentido da própria vida, estabelecem que não temos vontade competente para receber nossa liberdade, nos preferem em covas de milho

os canalhas disfarçados de humanidade piedosa desfilam por salões elegantes, enfiados em seus trajes cerimoniais – fraque e cartola, vestidas de joias – com a malquerença do sangue mestiço de hombres y mujeres sin patria, abandonados ao destino da miséria, um triste testemunho da crueldade que os homens e mulheres de bem infligem aos miseráveis

este lugar, como muitos outros guetos, se erige como uma fortaleza artificial onde se empujam los campesinos para longe dos olhos da vista e a consciência daqueles que desfrutam de uma vida mais cômoda, uma separação injusta e uma discriminação sistemática, os habitantes deste gueto, campesinos pobres e marginalizados, enfrentam a dura realidade de um extermínio silencioso

a lenta agonia da privação, a falta de recursos básicos e a negação de oportunidades do poder para um genocídio misericordioso

a crueldade com que se perpetua este ciclo de desespero, a indiferença e o desprezo de quem quer que seja, o poder que se manifesta em ações deliberadas que resultam na morte dos campesinos, a negligência histórica e a opressão brutal fazem com que esta montanha seja um lugar onde a vida é uma luta constante pela sobrevivência

como podemos permitir que la Montaña de maíz – e lugares parecidos – existam como monumentos à crueldade e à injustiça, devemos nos esforçar para construir um outro mundo que ofereça oportunidades e apoie todos, independentemente de sua origem ou circunstâncias, la tira de maíz deveria servir como um registro da necessidade de uma mudança profunda e duradoura na forma com que tratamos as pessoas mais vulneráveis, os nascidos naquela faixa de milho também têm lado, o lado dos desprezados – material orgânico para adubar a riqueza dos elegantes que empunham o chicote e a cruz

e assim, matando e rezando, a mão do chicote saqueia quem lhes pode fazer lutas de resistência, um costume de exterminar os teimosos e obstinados

e Qualquer virou Um, passou a ser avocado Qualquer Um, transformado num irredutível obstáculo ao mormaço da paz impassível do repouso nas covas de milho

estava onde não estava e não estava onde estava

deformados pela imaginação ganharam invenção poética, nada era provado, ninguém conseguia desmanchar o fantasma encantado de la leporina Blanca

la Montaña sabía que así nacen las leyendas

caso haja destino – y el mío es ser puta – minha irmã e seu homem foram reservados para serem devorados pelo bem e pelo mal, quanto maior a fama maior a fúria e o descontrole para caçar e matar

apostavam sobre quem lhes cortaria as cabeças, o fim é sempre um fim

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Leia também:

Livro Um:
Memórias - 01: a lua cheia
Memórias - 02: a servidão natural
Memórias - 03: um negócio inesgotável
Memórias - 04: la sina de papá
Memórias - 05: ervas e flores do campo
Memórias - 06: el regazo de Blanca
Memórias - 07: lleno de deseo
Memórias - 08: mi ojos fingidos de dormidos

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Mas, atingida por uma doença)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


Mas, atingida por uma doença que não perdoa e cujo caráter inexorável julgava conhecer, vangloriando-se de saberes médicos, temia não poder viver até lá. Pelo menos sentia-se feliz naquela noite ao pensar que todas aquelas mulheres a quem mal conhecia veriam junto dela, um de seus amigos, o jovem marquês de Beausergent, irmão da Sra. de Argencourt, que também frequentava as duas sociedades e cuja companhia as mulheres da segunda apreciavam muito ostentar aos olhos da primeira. Estava sentado atrás da Sra. de Cambremer, numa cadeira enviesada, para poder observar os demais camarotes. Conhecia todos ali e, para cumprimentar, com a arrebatadora elegância das lindas mesuras garbosas de sua cabeça loura, erguia a meio o corpo bem aprumado, com um sorriso nos olhos azuis, num misto de respeito e desenvoltura, gravando assim com precisão, no retângulo do plano oblíquo em que se achava posto, algo como uma dessas velhas estampas que mostram um grão-senhor altivo e cortesão. Muitas vezes aceitava, desse modo, ir ao teatro com a Sra. de Cambremer; na sala, e à saída, no vestíbulo, permanecia corajosamente junto dela no meio da multidão de amigas mais brilhantes do que a que lhe estava ao lado, à qual evitava falar, não querendo constrangê-las, e como se estivesse em má companhia. Se então passava a princesa de Guermantes, ligeira e bela como Diana, arrastando atrás de si uma capa incomparável, fazendo com que todas as cabeças se virassem e seguida de todos os olhares (mais pelos da Sra. de Cambremer que pelos dos outros), o Sr. de Beausergent se absorvia numa conversação com sua vizinha, não correspondia ao sorriso amistoso e deslumbrante da princesa senão por obrigação e forçado, e com a reserva bem-educada e a caridosa frieza de alguém cuja amabilidade pode se tornar momentaneamente constrangedora.

A Sra. de Cambremer, mesmo que não soubesse que a frisa pertencia à princesa, teria no entanto reconhecido que a Sra. de Guermantes era a convidada, devido ao ar de maior atenção que esta prestava ao espetáculo da cena e da sala, para ser amável com quem a convidara. Mas ao mesmo tempo que essa força centrífuga, uma força contrária desenvolvida pelo mesmo desejo de amabilidade levava a atenção da duquesa de volta à própria toalete, para a sua aigrette, o colar, o corpete, e até para o da própria princesa, de quem parecia se proclamar vassala, escrava, vinda até aqui exclusivamente para vê-la, pronta para segui-la alhures se à titular do camarote lhe desse a fantasia de ir-se embora, e só considerando um grupo de estranhos curiosos o restante da sala, onde possuía entretanto um grande número de amigos, em cujos camarotes ela se encontrava em outras semanas e para com os quais então não deixava de dar mostras da mesma lealdade exclusiva, relativista e semanal. A Sra. de Cambremer estava espantada de ver a duquesa nessa noite. Sabia que ela ficava até bem tarde em Guermantes e supunha que ali se achasse ainda. Mas contaram-lhe que, às vezes, quando se dava em Paris um espetáculo que ela julgava interessante, a Sra. de Guermantes mandava atrelar um de seus carros logo depois de tomar chá com os caçadores e, ao sol poente, partia a trote rápido através da floresta crepuscular, depois pela estrada, para tomar o trem em Combray a fim de estar à noite em Paris. "Talvez ela tenha vindo de Guermantes expressamente para ouvir a Berma", pensava a Sra. de Cambremer com admiração. E se lembrava de que ouvira Swann dizer, nesse jargão ambíguo que ele possuía em comum com o Sr. de Charlus: - A duquesa é uma das criaturas mais nobres de Paris, da elite mais requintada e escolhida. - Por mim, que fazia derivar do nome de Guermantes, do nome de Baviera e do nome de Condé a vida e o pensamento das duas primas (não podia fazer o mesmo no tocante a seus rostos, pois já os vira), preferia conhecer o seu julgamento sobre a Fedra do que o do maior crítico do mundo. Pois no julgamento delas não teria encontrado mais que inteligência, inteligência superior à minha, mas da mesma natureza. Porém o que pensavam a duquesa e a princesa de Guermantes, e que me teria fornecido um documento inestimável acerca da natureza dessas duas poéticas criaturas, eu o imaginava com a ajuda de seus nomes, aos quais atribuía um encanto irracional e, com a sede e a nostalgia de uma pessoa febril, o que eu pedia que sua opinião sobre a Fedra me desse era o encanto das tardes de verão em que eu ia passear para os lados de Guermantes.

A Sra. de Cambremer tentava distinguir que espécie de toalete usavam as duas primas. Quanto a mim, não duvidava que essas toaletes lhe fossem peculiares. Não só no sentido em que a libré de gola vermelha ou lapela azul pertencera outrora exclusivamente aos Guermantes e aos Condé, mas antes como a um pássaro a plumagem que não é apenas um ornamento de sua beleza, mas uma extensão de seu corpo. A toalete dessas duas mulheres parecia-me como uma materialização nívea ou matizada de sua atividade interior, e, como os gestos que eu vira fazer a princesa de Guermantes, e que não duvidara correspondessem a uma ideia oculta, as plumas que desciam de sua testa e o corpete esplendoroso e recamado de sua prima pareciam ter um significado, ser, para cada uma, um atributo que era apenas delas e cujo sentido gostaria de conhecer: a ave-do-paraíso me parecia inseparável de uma, como o pavão de Juno; não imaginava que uma pudesse usurpar o corpete recamado da outra como não faria com a égide cintilante e franjada de Minerva. E, quando erguia meus olhos para aquele camarote, muito mais que no teto do teatro, onde estavam pintadas alegorias, era como se avistasse, graças à abertura miraculosa das nuvens de costume, a assembleia dos Deuses ocupados em contemplar o espetáculo dos homens, debaixo de um toldo rubro, numa clareira luminosa, entre dois pilares do Céu. Eu contemplava essa apoteose momentânea com uma perturbação que mesclava a paz ao sentimento de ser ignorado pelos Imortais; a duquesa me vira uma vez com o marido, mas certamente não devia se lembrar disso, e não me era penoso que ela, pelo posto que ocupava no camarote, ficasse contemplando as madrepérolas anônimas e coletivas da plateia das primeiras filas, pois sentia com felicidade o meu ser dissolvido no meio delas, quando, no momento em que, em virtude das leis da refração, veio sem dúvida pintar-se na corrente impassível dos dois olhos azuis, a forma confusa do protozoário desprovido de existência individual que eu era, vi uma claridade iluminá-los: a duquesa, transformada de deusa em mulher e parecendo-me subitamente mil vezes mais bela, ergueu para mim a mão enluvada de branco que mantinha apoiada no rebordo da frisa, agitou-a em sinal de amizade, meu olhar se sentiu atravessado pela incandescência involuntária e pelo fogo dos olhos da princesa, que os fizera entrar em conflagração só pelo fato de movê-los para ver a quem a prima cumprimentava; e esta, que me reconhecera, fez chover sobre mim o aguaceiro fulgurante e celeste de seu sorriso. 

Agora, todas as manhãs, bem antes da hora em que ela saía, eu rumava por um longo desvio e ia me postar na esquina da rua pela qual ela costumava descer e, quando o momento de sua passagem me parecia próximo, subia com um ar distraído, olhando na direção oposta e erguendo os olhos para ela assim que chegava à sua altura, mas como se de modo nenhum esperasse vê-la. Nos primeiros dias até, para estar mais seguro de não perdê-la, eu esperava diante da casa, E, todas as vezes que o portão principal se abria (deixando passar sucessivamente tantas pessoas que não eram aquela que eu esperava), a sua agitação logo se prolongava em meu peito, em oscilações que custavam a se acalmar. Pois nunca um fanático de uma grande comediante a quem não conhece, cansando-se de esperar de pé diante de onde saem os artistas, nunca uma multidão exasperada ou idólatra, reunida para insultar ou carregar em triunfo o condenado ou o grande homem que se julga estar a ponto de passar a cada vez que se ouve um rumor vindo do interior da prisão ou do palácio, se sentiram tão emocionados como eu, esperando a saída daquela grande dama que, em sua toalete simples, sabia, pela graça de seu caminhar (bem diverso do modo de andar que exibia ao entrar num salão ou num camarote), fazer de seu passeio matinal para mim, em todo o mundo, só existia ela a passear todo um poema de elegância e o mais requintado adereço, a mais curiosa flor do bom tempo. Mas, depois de três dias, para que o porteiro não percebesse a minha manobra, fui até bem mais longe, até a um ponto qualquer do percurso habitual da duquesa. Com frequência, antes daquela noite no teatro, eu dava desse modo pequenas escapadas antes do almoço, quando fazia bom tempo; se tivesse chovido, eu descia à primeira estiagem para dar alguns passos e, de repente, vindo pela calçada ainda úmida, transformada pela luz em laca de ouro, na apoteose de uma encruzilhada coberta de pó de uma névoa que o sol curtia e dourava, avistava uma pensionista seguida de sua professora, ou uma leiteira com suas mangas brancas; eu permanecia imóvel, uma mão no peito, e o coração já se lançava para uma vida estranha; procurava lembrar-me da rua, da hora, da porta em que a menina (que às vezes eu seguia) desaparecera sem voltar a sair. Felizmente, a fugacidade dessas imagens afagadas (e que eu me prometia tentar rever) as impedia de se fixarem com força em minha lembrança. Não importa, sentia-me menos triste por estar doente, de nunca ter tido ainda coragem de me pôr a trabalhar, a começar um livro. A terra me parecia mais agradável de morar, a vida mais interessante de percorrer desde que via que as ruas de Paris, como as estradas de Balbec, estavam floridas por essas belezas ignoradas que tantas vezes eu procurara fazer surgir dos bosques de Méséglise, e o desejo voluptuoso que cada uma excitava somente ela seria capaz de saciar.

Voltando da ópera, acrescentara, para o dia seguinte, às imagens que desde alguns dias sonhava reencontrar, a da Sra. de Guermantes, grandiosa, com seu penteado alto de cabelos louros e leves, com a ternura prometida no sorriso que me endereçara da frisa de sua prima. Seguiria o caminho que Françoise me dissera que a duquesa tomava e, no entanto, trataria de não perder a saída de uma aula e de um catecismo, a fim de reencontrar duas moças que havia visto na antevéspera. Mas, à espera, de vez em quando, do cintilante sorriso da Sra. de Guermantes, a sensação de doçura que ele me proporcionara me voltava à lembrança. E, sem saber muito bem o que fazia, tentava pô-los (como uma mulher observa o efeito que faria sobre o vestido uma determinada espécie de botões de pedrarias que acabam de lhe presentear) ao lado das ideias romanescas que possuía há muito e que a frieza de Albertine, a partida prematura de Gisele e, antes disso, a separação intencional e excessivamente prolongada de Gilberte, haviam liberado (a ideia, por exemplo, de ser amado por uma mulher, de ter uma vida em comum com ela); depois, era a imagem de uma ou outra das duas moças que eu aproximava dessas ideias, às quais, logo após, tratava de adaptar a lembrança da duquesa. Junto dessas ideias, a recordação da Sra. de Guermantes na ópera era bem pouca coisa, uma estrelinha ao lado da longa cauda de seu cometa flamejante; além do mais, conhecia muito bem essas ideias longo tempo antes de conhecer a Sra. de Guermantes; a recordação, ao contrário, possuía-a imperfeitamente; escapava-me por instantes; e foi durante as horas em que, flutuando em mim na mesma qualidade das imagens de outras mulheres bonitas, ela passou aos poucos a uma associação única e definitiva exclusiva de qualquer outra imagem feminina com minhas ideias romanescas tão anteriores a ela, foi durante essas horas em que melhor a recordava que deveria ter-me ocorrido saber com exatidão em que consistia essa lembrança; mas eu não sabia então a importância que viria a ter para mim; era doce apenas como um primeiro encontro com a Sra. de Guermantes dentro de mim mesmo, era o primeiro esboço, o único verdadeiro, o único feito conforme a vida, o único que de fato foi a Sra. de Guermantes; durante as poucas horas em que tive a felicidade de a deter sem saber lhe prestar atenção, devia entretanto ser bastante encantadora essa recordação, visto que era sempre a ela, livremente ainda naquele momento, sem pressa nem cansaço, sem nada de necessário ou de ansioso, que minhas ideias de amor retornavam; a seguir, à medida que essas ideias se fixaram mais definitivamente, adquiriu delas uma força muito grande, mas tornou-se ele próprio mais vago; em breve, não consegui mais reencontrá-lo; e, nos meus devaneios, deformava-o completamente, sem dúvida, pois, cada vez que via a Sra. de Guermantes, constatava um afastamento, aliás sempre diferente, entre aquilo que havia imaginado e aquilo que via. Agora, todos os dias, certamente, no momento em que a Sra. de Guermantes desembocava no fim da rua, eu ainda avistava seu talhe alto, o rosto de olhar claro sob uma cabeleira leve, todas as coisas pelas quais estava ali; mas, em compensação, alguns segundos mais tarde, quando, tendo desviado os olhos em outra direção para fingir que não estava esperando esse encontro que viera buscar, erguia-os para a duquesa no momento em que chegava ao mesmo nível da rua que ela, e o que via então eram as marcas vermelhas, que não sabia se eram causadas pelo ar livre ou pela acne num rosto entediado que, por um sinal bastante seco e bem diverso da amabilidade da noite de Fedra, correspondia ao cumprimento que lhe dirigia diariamente com ar de surpresa e que não parecia lhe agradar. Entretanto, ao fim de alguns dias, durante os quais a lembrança das duas moças lutou com chances desiguais pelo predomínio de minhas ideias amorosas com a da Sra. de Guermantes, foi a desta, como se de si mesma, que principiou por renascer com mais frequência, enquanto suas concorrentes eram eliminadas; em suma, foi para a Sra. de Guermantes que acabei transferindo, ainda voluntariamente e como por escolha e por prazer, todos os meus pensamentos de amor. Já não sonhava com as meninas do catecismo, nem com uma certa leiteira; e, no entanto, não esperava mais encontrar na rua o que fora buscar, nem a ternura prometida no teatro por um sorriso, nem a silhueta e o rosto claro sob a cabeleira loura que só o eram assim de longe. Agora, não poderia sequer dizer como era a Sra. de Guermantes, nem como a reconhecia, pois a cada dia, no conjunto de sua pessoa, o rosto era tão diverso como o vestido e o chapéu. 

continua na página 26...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Mas, atingida por uma doença)
Volume 7

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Ensaiando...

ENSAYOS "MEDEA"

BNE Historia. 
Ballet Nacional de España





Nas palavras do Maestro Granero, “O artista que é artista provoca no espectador a reflexão sobre o que viu e sentiu”.

Coreografía: José Granero
Música: Manolo Sanlúcar
 
Elenco ensayo:
Medea: Ana González
Jasón: Antonio Márquez
Creusa: Maribel Gallardo
Creonte: Currillo de Bormujos
Nodriza: Lupe Gómez
Repetidores: Felipe Sánchez y Juan Mata





Como disse o Maestro Granero: “A vida de um dançarino nem sempre é fácil ou bonita, mas é cheia de experiências indescritíveis”. Esperamos que este fragmento de um ensaio de Medeia em nossa antiga sede em Isaac Peral transmita para vocês parte dessas experiências.


Coreografía: José Granero
Música: Manolo Sanlúcar

Elenco ensayo:
Medea: Ana González
Jasón: Antonio Márquez
Creusa: Maribel Gallardo
Creonte: Currillo de Bormujos
Monstruos: Francisco García y José Martín
Nodriza: Lupe Gómez


Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - g)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor


Ao Redor da Sra. Swann


(g)

continuando...

Quando chegou o dia 1° de janeiro, a princípio fiz visitas de família com minha mãe, que, para não me cansar, classificara-as antecipadamente (com a ajuda de um itinerário elaborado por meu pai) por bairro, em vez de fazê-lo por graus de parentesco. Porém, mal entramos no salão de uma prima bem afastada, aonde íamos primeiro porque sua casa ficava bem próxima da nossa, ao contrário do seu parentesco, minha mãe ficou assombrada ao ver, trazendo seus marrons-glacês ou deguisês, o melhor amigo do mais suscetível de meus tios, ao qual contaria que não tínhamos iniciado nosso giro por ele. Esse tio ficaria seriamente ofendido; acharia natural que começássemos indo da Madeleine ao Jardim das Plantas, onde morava, antes de parar em Saint-Augustin, para ter de voltar logo à rua da Faculdade de Medicina. 

Acabadas as visitas (minha avó nos dispensava que lá fôssemos, pois naquele dia jantaríamos com ela), corri aos Champs-Élysées a fim de levar à nossa vendedora, que por sua vez a entregaria à pessoa que vinha várias vezes na semana, da casa dos Swann, comprar pão de mel, a carta que, desde o dia em que minha amiga me causara tanta mágoa, decidira lhe enviar no dia de Ano-Novo, e na qual dizia que nossa amizade antiga desaparecia com o ano findo, que esquecia minhas censuras e decepções e que, a partir de 1° de janeiro, era uma nova amizade iríamos construir, tão sólida que nada a arruinaria, tão maravilhosa que esperava que Gilberte tivesse alguma faceirice em conservar toda a sua beleza se de vez em quando, como eu prometia fazer também, logo que ocorre um perigo capaz de destruí-la.

Voltando para casa, Françoise me fez parar na rua Royale, diante de uma venda de mercadorias ao ar livre, onde escolheu de presente, fotos de Pio IX e de Raspail e onde, de minha parte, com Berma. As numerosas admirações que a artista suscitava conferiam certa beleza àquele rosto único que ela possuía para lhes retribuir, imutável e precário as roupas dessas pessoas que não têm outra para trocar, rosto em que tinha deixado sempre a mesma ruga pequena sobre o lábio superior, o soerguimento das sobrancelhas, outras peculiaridades físicas, sempre as mesmas que, em suma, mercê de queimadura ou de um choque. Além disso, esse rosto não parecido belo em si mesmo, porém dava-me a ideia e, por conseguinte, desejo de beijá-lo por causa de todos os beijos que já recebera e que, do fundo do álbum, parecia solicitar ainda com aquele olhar de terna faceirice e o sorriso mansamente ingênuo. Pois a Berma devia efetivamente sentir para como muitos, os desejos que confessava, sob a capa da personagem Fedra, e que lhe é fácil satisfazer por tudo, até pelo prestígio de seu nome que se acrescentava beleza e prorrogava-lhe a juventude. A noite caía, e parei diante de uma teatro onde estava afixado o cartaz sobre a representação que a Berma faria dia 1° de janeiro. Soprava um vento úmido e suave. Era um tempo bem conhecido, que eu tinha a sensação e o pressentimento de que o dia de Ano-Novo não era diferente dos outros, que não era o primeiro de um mundo novo em que teria podido a oportunidade ainda intacta, refazer minhas relações com Gilberte como a da Criação, como se ainda não existisse passado, como se tivessem sido criadas, juntamente com os indícios que delas se pudessem tirar para o decepções que ela me causara às vezes; um novo mundo onde não sairia nada do antigo... a não ser uma coisa: meu desejo de que Gilberte me quisesse. Compreendi que meu coração desejava tal renovação, a seu redor, de um, que não o satisfizera, porque ele, meu coração, não havia mudado, e disse mesmo que não havia motivo algum para que o de Gilberte tampouco houvesse mudado; senti que aquela nova amizade era a mesma, como não são 38 dos outros por um fosso, os anos novos que o nosso desejo, sem poder modificá-los, reveste, sem que o saibam, de um nome diferente.

Por mais que dedicasse a Gilberte aquele ano, e da mesma forma como se superpõe uma religião às leis cegas da natureza, e tentasse imprimir ao dia do Ano-Novo a ideia que fazia dele, era tudo em vão; sentia que ele não sabia que o chamava de Ano-Novo, que terminava no crepúsculo de um modo que para mim não era novo; e vento suave que soprava ao redor da coluna de cartazes, eu reconheceria ao reaparecer a matéria eterna e comum, a umidade familiar, a ignorante dias antigos.

Voltei para casa. Acabava de viver o 1° de janeiro dos homens velhos que diferem este dia dos jovens, não porque não lhes deem presentes, mas porque não acreditam mais no Ano-Novo. Ganhara presentes, mas não o único que teria me alegrado, um bilhete de Gilberte. No entanto, eu ainda era jovem, pois que lhe escrevera uma carta com a qual esperava, falando-lhe dos sonhos solitários, da minha ternura, a fim de despertar-lhe sonhos idênticos. A tristeza dos homens que envelheceram é a de nem sequer pensar em escrever tais cartas, de que já conhecem a inutilidade.

Quando me deitei, os rumores da rua, que se prolongaram até mais tarde naquele dia de festa, mantiveram-me acordado e eu pensava em todas as pessoas que acabariam a noite no meio dos prazeres, pensava no amante; no grupo de devassos, talvez, que tinham ido procurar a Berma ao fim daquela representação que eu vira anunciada para a noite. Nem sequer podia, para acalmar a agitação que essa ideia fazia nascer em mim naquela noite de insônia, dizer comigo que a Berma não pensava talvez no amor, visto que os versos que recitava, que longamente estudara, lembravam-lhe o ato do instante como era delicioso o amor, o que aliás ela bem sabia, tanto que mostrava muito em suas falas, conhecidas emoções; porém, dotadas de uma violência nova e de uma doçura insuspeitada à espectadores maravilhados, os quais, entretanto, já as haviam conhecido por si mesmos. Acendi a vela apagada para olhar ainda uma vez o seu rosto. À ideia de que ele era, naquele instante, sem dúvida, acariciado por esses homens a quem não podia impedir de dar à Berma, e dela receber, alegrias sobre-humanas e vagas, experimentei uma perturbação mais cruel, por não ser voluptuosa, uma nostalgia a que veio agravar o som da trompa, como o que se ouve na noite da Mi-Carême, e muitas vezes em outras festas e que, como então é destituído de poesia, é mais triste, saindo de uma taberna, do que "a noite no fundo das florestas". Nesse momento, talvez, um bilhete de Gilberte não seria o que mais me faltasse. Nossas aspirações vão se entrecruzando na confusão da existência, e raro que uma felicidade venha se colocar exatamente sobre o desejo que a reclamava.

Continuei a ir aos Champs-Élysées nos dias em que fazia bom tempo. Nas ruas cujas mansões elegantes e róseas se banhavam, já que era a época da moda em voga de exposições de aquarelistas, em um céu móvel e tênue. Mentiria se dissesse que nesse tempo os palácios de Gabriel me pareceriam de maior beleza do que os palácios vizinhos; ou até mesmo de outra época. Eu julgava que com mais estilo a teria achado mais antigo, senão o palácio da Indústria, ao menos o do Trocadéro. Numa agulhada em sono agitado, minha adolescência envolvia num mesmo sonho todo o bairro por onde o levava, e eu jamais sonhara que pudesse haver um edifício do século XVIII na rua Royale; assim como teria ficado espantado se soubesse que a porta de Saint-Martin e a Porta Saint-Denis, obras-primas do tempo de Luís XIV, não eram contemporâneas dos imóveis mais recentes daqueles distritos sórdidos. Uma única vez um dos palácios de Gabriel me fez parar longamente; é que havia caído a noite e suas colunas desmaterializadas pelo luar, pareciam recortadas e lembrando-me um cenário da opereta Orfeu nos Infernos, davam-me pelo menos uma vez a impressão de beleza.

Entretanto, Gilberte não voltava aos Champs-Élysées. E, contudo tinha necessidade de vêla, pois nem sequer me lembrava de seu rosto. A maneira indagadora, ansiosa, exigente com que encaramos a pessoa amada, nossa expectativa da palavra que nos dará, ou matará a esperança de um encontro no dia seguinte, até que tal palavra seja dita, nossa imaginação alternativa, senão simultânea de alegria e desespero; tudo isso torna a nossa atenção, em face do ser amado trêmula demais para que possa obter dele uma imagem bem nítida. Também, essa atividade de todos os sentidos ao mesmo tempo; que tenta, somente com os olhares, aquilo que se encontra além deles; seja porque a gente se entrega com demasiada indulgência para mil formas, sabores e movimentos da pessoa viva; a todas essas coisas que de costume tornamos inerte quando não estamos enamorados. O modelo que ao contrário, se movimenta; dele só possuímos fotografias defeituosas. Eu, na verdade, não sabia de fato como eram os traços de Gilberte, salvo nos momentos divinos em que eles se desdobravam para mim: só me recordava do seu sorriso. E, não rever aquele rosto bem-amado, a todo esforço que fizesse para me lembrar, por encontrar, desenhados em minha memória com precisão definitiva, inúteis e impressionantes do homem dos cavalos de madeira e da vendedora de pirulitos; assim, aqueles que perderam um ente querido que jamais torna a rever, se desesperam de encontrar sem cessar em seus sonhos tantas pessoas insuportáveis e que já é demais terem conhecido no estado de vigília. Em sua impotência de imaginarem o objeto de sua dor, quase se acusam de não sentir bastante dor. Quanto a mim, não estava longe de crer que, não podendo me lembrar de Gilberte, esquecera ela própria, não a amava mais. Por fim, ela que eu via quase todos os dias, pondo diante de mim novas coisas a desejar, a lhe pedir para o dia seguinte e fazendo cada dia, em tal sentido, de minha ternura uma nova. Mas uma coisa veio mudar, e de modo brusco, a maneira encontrar todas as tardes, cerca das duas horas, se colocava o problema do meu amor. Será que o Sr. Swann havia surpreendido a carta que escrevera à sua filha; ou Gilberte me avisava muito depois sobre um estado de coisas já antigo, a fim de que eu fosse mais prudente? Como lhe dissesse o quanto admirava seu pai e sua mãe, assumiu este ar vago, cheio de reticências e segredo, que apresentava somente quando lhe falarem do que tinha de fazer, de seus passeios e visitas, e, de repente, acabam de falar: 

"Sabe, eles acham você intragável!" e escorregadia como uma ondina, assim desatou a rir. Muitas vezes o seu riso, estava em desacordo com suas palavras e parecia, como o faz a música, descrever em outro plano uma superfície invisível. O Sr. e a Sra. Swann não pediam a Gilberte que deixasse de jogar comigo; porém, parecia que seus pais preferiam que aquilo não tivesse começado. Não viam favoravelmente minhas relações com ela, porque não me atribuíam grande moralidade e imaginavam que eu só poderia exercer uma influência malsã sobre a filha. Esse tipo de pessoas jovens e pouco escrupulosas, às quais Swann parecia comparar-me, eu as imaginava como detestando os pais da moça a quem amava, elogiando-os em sua presença mas troçando deles com ela, impelindo-a a desobedecê-los e, quando a conquistam, impedem-na até de vê-los. A esses traços (que nunca são aqueles sob os quais se enxerga o maior miserável), com que violência meu coração opunha os sentimentos de que estava animado em relação a Swann, ao contrário, tão apaixonados que já não duvidava de que, se ele os tivesse suspeitado, se arrependesse do julgamento a meu respeito como de um erro judiciário! Tudo o que sentia por ele, ousei escrever numa longa carta que confiei à Gilberte, pedindo que a fizesse lhe chegar às mãos. Ela consentiu. Ai de mim! Ele via então na minha pessoa um impostor maior ainda do que eu imaginara; dos sentimentos que eu acreditara pintar-lhe em dezesseis páginas, com tanta verdade, ele duvidava então: a carta que lhe escrevi, tão ardente e tão sincera como as palavras que havia dito ao Sr. de Norpois, não alcançara maior êxito. Gilberte me contou no dia seguinte, depois de me levar à parte para trás de um bosquete de loureiros, numa pequena alameda, onde cada um se sentou numa cadeira, que, ao ler a carta, que ela me devolvia, seu pai dera de ombros dizendo:

"Tudo isso não quer dizer nada, apenas mostra o quanto eu tenho razão."

Eu que conhecia a pureza de meus sentimentos, a bondade da minha alma, estava indignado que minhas palavras nem sequer tivessem abalado o absurdo erro de Swann. Pois que se tratava de um erro, já não tinha mais dúvidas. Sentia que descrevera com tanta exatidão certas características irrecusáveis de meus sentimentos generosos que, para que Swann, por meio delas, não as tivesse logo reconstituído, não me viesse pedir perdão e confessar que se enganara, era preciso que ele jamais tivesse sentido esses nobres sentimentos, o que deveria torna-lo incapaz de compreendê-los nos outros.

Ora, talvez Swann soubesse que a generosidade não passa, muitas vezes, do aspecto interior assumido pelos nossos sentimentos egoístas quando ainda não os denominamos e classificamos. Talvez reconhecesse, na simpatia que lhe apressava, um simples efeito - e uma confirmação entusiasta - do meu amor por Gilberte, pelo qual - e não pela minha veneração secundária por ele - seriam fatalmente dirigidos por meus atos a seguir. Não podia partilhar de suas previsões, pois não conseguira abstrair de mim mesmo o meu amor, fazê-lo pertencer à generalidade dos outros amores, calcular-lhe experimentalmente as consequências; estava desesperado. - Tive de deixar Gilberte por um instante; Françoise me chamava. Foi preciso acompanhá-la a um pequeno pavilhão com treliças verdes, bem parecido com os escritórios da alfândega municipal da velha Paris, e onde há pouco instalaram; o que na Inglaterra se chama lavabo e, na França, por uma anglomania mal informada, water-closet. As paredes úmidas e velhas da entrada, onde fiquei esperando Françoise, desprendiam um odor frio de coisa fechada que, dista logo das preocupações que acabavam de fazer nascerem mim as palavras contadas por Gilberte, invadiu-me de um prazer que não era o mesmo dos outros, os quais nos deixam mais instáveis, incapazes de retê-los ou possuí-los; pelo contrário, de um prazer consistente, ao qual podia me apoiar, delicioso, rico de uma verdade duradoura, certa e inexplicável. Teria querido, como antigamente em meus passeios pelos caminhos de Guermantes, tentar decifrar dessa impressão que me empolgara e ficar imóvel a interrogar aquela envelhecida que me propunha, não desfrutar o prazer que ela só me dava por acréscimo, mas a descida na realidade que ela não me revelava. Mas a encarregada pelo estabelecimento, velha senhora de faces excessivamente pintadas e de peruca castanha, pôs-se a falar comigo. Françoise achava-a "gente muito boa". Sua filha havia casado com o que Françoise denominava "rapaz de família", portanto, algum ser que ela julgava bem, mais diferente de um operário vindo de Saint-Simon o qual considerava de um homem "saído da lama do povo". Sem dúvida a zeladora, sofrera reveses da fortuna. Mas Françoise assegurava que ela era marquesa e pertencia à uma família de Saint-Ferréol. Essa marquesa me aconselhou que não ficasse ali ao ar fresco e me abriu um gabinete dizendo: "Não quer entrar? Este aqui é bem limpo e pra você será grátis." Talvez o fizesse apenas como as senhoritas do Gouache que quando íamos fazer uma encomenda, ofereciam-me um dos bombons que tinham em cima do balcão, sob uma tampa de vidro e que mamãe infelizmente me proibia, que eu aceitara também com menos inocência; como aquela velha florista que mamãe levava para nos encher as "jardineiras" e que me dava uma rosa revirando os olhos muito ternos. Em todo caso, se a "marquesa" gostava de rapazes, abrindo-lhes a porta daqueles cubos de pedra onde os homens estão acocorados como as Esfinges, e devia procurar em sua generosidade menos a esperança de corrompê-los; prazer que se experimenta em se mostrar inutilmente pródigo à pessoa querida; pois, nunca vi junto dela, outro visitante que não um velho guarda-florestal. 

Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Dormi Contigo...

Pablo Neruda

Dormi Contigo Junto Ao Mar Na Ilha
 

- narração de Mundo Dos Poemas




Dormi contigo toda a noite
junto ao mar, na ilha.
Eras doce e selvagem entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.

Os nossos sonos uniram-se
talvez muito tarde
no alto ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento agita,
em baixo como vermelhas raízes que se tocam.

0 teu sono separou-se
talvez do meu
e andava à minha procura
pelo mar escuro
como dantes,
quando ainda não existias,
quando sem te avistar
naveguei a teu lado
e os teus olhos buscavam
o que agora
— pão, vinho, amor e cólera —
te dou às mãos cheias,
porque tu és a taça
que esperava os dons da minha vida.

Dormi contigo
toda a noite enquanto
a terra escura gira
com os vivos e os mortos,
e ao acordar de repente
no meio da sombra
o meu braço cingia a tua cintura.
Nem a noite nem o sono
puderam separar-nos.

Dormi contigo
e, ao acordar, tua boca,
saída do teu sono,
trouxe-me o sabor da terra,
da água do mar, das algas,
do âmago da tua vida,
e recebi teu beijo,
molhado pela aurora,
como se me viesse
do mar que nos cerca.


"Os Versos do Capitão"



Marcel Proust - No Caminho de Swann (Combray, de longe - a)

em busca do tempo perdido

volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(a) 


   Combray, de longe, por dez léguas em redor, vista do trem, quando chegávamos na semana anterior à Páscoa, não era mais que uma igreja que resumia a cidade, representava-a, falava dela e por ela as distâncias, e, quando nos aproximávamos, mantinha aconchegados em torno de sua grande capa sombria, em pleno campo, contra o vento, como uma pastora a suas ovelhas, os lombos lanosos e cinzentos das casas reunidas que um resto de muralhas da Idade Média cingia aqui e ali num traço tão perfeitamente circular como uma cidadezinha em um quadro de primitivos. Para morar, Combray era um pouco triste, como eram tristes suas ruas, cujas casas, edificadas com as pedras escuras da região, precedidas de degraus exteriores e com seus telhados de beirais salientes que faziam sombra, eram tão escuras que, mal começava a declinar o dia, já era preciso erguer as cortinas nas “salas”; ruas de graves nomes de santos (vários dos quais se ligavam à história dos primeiros senhores de Combray), rua de Santo Hilário, rua de São Tiago, onde ficava a casa de minha tia, rua de Santa Hildegarda, para onde davam as grades, e rua do Espírito Santo, para onde se abria o portãozinho lateral de seu jardim; e essas ruas de Combray existem em um local tão recôndito de minha memória, pintado em cores tão diferentes das que agora revestem para mim o mundo, que na verdade me parecem todas, bem como a igreja que as dominava na praça, ainda mais irreais que as projeções da lanterna mágica; e em certos momentos me parece que poder atravessar ainda a rua de Santo Hilário, poder alugar um quarto na rua do Pássaro — a velha hospedaria do Pássaro Ferido, de cujos suspiros saía um cheiro de cozinha que, intermitente e cálido, ainda sobe por momentos em minha lembrança — seria entrar em contato com o Além de um modo mais maravilhosamente sobrenatural do que se me fosse dado conhecer a Golo e conversar com Geneviève de Brabant.[1] 
   A prima de meu avô — minha tia-avó — em cuja casa parávamos, era mãe dessa tia Léonie que desde a morte do marido, meu tio Octave, não quisera abandonar, primeiro Combray, depois em Combray, sua casa, depois seu quarto, depois seu leito e que não mais “descia”, sempre deitada, em um estado incerto de pesar, de debilidade física, de doença, de ideia fixa e de devoção.[2] Seu apartamento particular dava para a rua de São Tiago, que findava muito além, no Prado Grande (por oposição ao Prado Pequeno, verdejante no meio da cidade, entre três ruas), e que, uniforme e pardacenta com os três altos degraus de pedra diante de quase todas as portas, parecia um desfiladeiro talhado por um imagista medieval diretamente na pedra em que teria esculpido um presépio ou um calvário. Minha tia, na verdade, não habitava mais que duas peças contíguas, passando de tarde para uma, enquanto arejavam a outra. Eram desses quartos de província que — da mesma forma que em certas regiões há partes inteiras do ar e do mar iluminadas ou perfumadas por miríades de protozoários que nós não vemos — nos encantam com os mil odores que neles exalam as virtudes, a prudência, os hábitos, toda uma vida secreta, invisível, superabundante e moral que a atmosfera ali mantém em suspensão; odores naturais, sim, e cor de natureza como os dos campos próximos, mas já caseiros, humanos e confinados, a fina geleia industriosa e límpida de todos os frutos do ano que deixaram o pomar pelo armário; odores provenientes das estações, mas mobiliários e domésticos, a corrigir o picante da escarcha com a doçura do pão quente, ociosos e pontuais como um relógio de aldeia, vagabundos e ordeiros, descuidosos e previdentes, roupeiros, madrugadores, devotos, felizes de uma paz que só nos traz mais ansiedade e de um prosaísmo que é um grande reservatório de poesia para aquele que os atravessa sem ali ter vivido. Estava aquele ar saturado da fina flor de um silêncio tão nutritivo, tão suculento, que eu por ali só andava com uma espécie de gula, principalmente naquelas manhãs, ainda frias da semana da Páscoa, em que melhor os saboreava porque mal acabara de chegar a Combray; antes que entrasse para cumprimentar minha tia, faziam-me esperar um instante na primeira peça, onde o sol, ainda de inverno, viera aquecer-se diante do fogo, já aceso entre os dois ladrilhos e que pincelava toda a peça de um cheiro de fuligem, tornando-a como uma dessas grandes “bocas de forno” do campo, ou desses panos de chaminé de castelos, a cujo abrigo nos vem o desejo de que rebente lá fora a chuva, a neve, até mesmo alguma catástrofe diluviana para acrescentar ao conforto da reclusão a poesia do inverno; eu dava alguns passos, do genuflexório até as poltronas de veludo estampado, sempre revestidas de cabeceiras de crochê; e o fogo, que cozinhava como se fosse uma massa os apetitosos cheiros de que se achava coalhado o ar do quarto e que já tinham sido trabalhados e “levantados” pela frescura úmida e ensolarada da manhã, folhava-os, dourava-os, enrugava-os, tufava-os, fazendo deles um invisível e palpável bolo provinciano, uma imensa torta, na qual, depois de ligeiramente saboreados os aromas mais estalantes, mais finos, mais respeitáveis, mas também mais secos, do armário, da cômoda, do papel de remagem, eu voltava sempre, com inconfessada cobiça, a enviscar-me no odor medíocre, pegajoso, insípido, indigesto e acentuado da colcha de flores.
   No quarto próximo, ouvia minha tia falar sozinha a meia-voz. Sempre falava muito baixo, porque supunha ter dentro da cabeça alguma coisa de quebrado e flutuante, que ela poderia deslocar se falasse muito alto, mas nunca permanecia muito tempo, mesmo sozinha, sem dizer alguma coisa, porque julgava que isso era bom para a garganta e, impedindo que o sangue ali parasse, tornaria menos frequentes as sufocações e angústias de que sofria; e depois, na inércia absoluta em que vivia, emprestava a suas mínimas sensações uma importância extraordinária; dotava-as de tal motilidade que lhe era difícil guardá-las para si e, na falta de confidente a quem comunicá-las, anunciava-as a si mesma, em um perpétuo monólogo que era sua única forma de atividade. Infelizmente, tendo adquirido o hábito de pensar em voz alta, nem sempre reparava se havia alguém no quarto próximo, e eu a ouvia muitas vezes dizer a si mesma: “Tenho de me lembrar de que não dormi” (pois nunca dormir era sua grande pretensão, pretensão de que nossa linguagem guardava as marcas e o respeito: pela manhã. Françoise não ia “acordá-la”, mas “entrava” em seu quarto; quando minha tia desejava tirar uma sesta, diziam que ela queria “refletir” ou “repousar”; e quando lhe sucedia descuidar-se, na conversa, a ponto de dizer “o que me despertou” ou “sonhei que…”, ficava vermelha e corrigia-se em seguida).
   Passado um instante, eu entrava para beijá-la; Françoise lhe preparava o chá; ou, quando ela se achava nervosa e pedia sua tisana em vez do chá, era eu o encarregado de derramar do saco de farmácia em um pires a requerida quantidade de tília que se devia pôr em seguida na água fervendo. O dessecamento dos caules havia-os encurvado em uma caprichosa trama em cujo entrelaçamento se abriam as flores pálidas, como se um pintor as tivesse arranjado, colocando-as da maneira mais decorativa. As folhas, tendo perdido ou modificado o aspecto próprio, apresentavam o ar das coisas mais disparatadas, de uma asa transparente de mosca, do reverso branco de um selo, de uma pétala de rosa, mas que tivessem sido empilhadas, trituradas ou trançadas como na confecção de um ninho. Mil pequeninos detalhes inúteis — encantadora prodigalidade do farmacêutico —, que se teriam suprimido em um preparado de fábrica, davam-me, como um livro no qual a gente se maravilha de encontrar o nome de uma pessoa conhecida, o prazer de compreender que eram mesmo caules de verdadeiras tílias, como aquelas que eu via na avenida da Estação, e modificados justamente porque eram de verdade, e não cópias, e haviam envelhecido. E como cada nova característica não era mais que a metamorfose de uma característica anterior, eu reconhecia, nas bolinhas cinzentas, os botões verdes que não tinham vingado; mas, principalmente, o brilho róseo, lunar e suave com que se destacavam as flores na floresta frágil dos caules onde estavam suspensas como pequeninas rosas de ouro — sinal, como esse esplendor que ainda revela em um muro o local de um afresco apagado, da diferença entre as partes da planta que haviam tido “cores” e as que não as tiveram — mostrava-me que aquelas pétalas eram as mesmas que, antes de florirem o saco de farmácia, tinham balsamizado as noites de primavera. Aquela flama rósea de círio era ainda sua cor, mas meio apagada e adormecida nessa vida atenuada que era agora a sua e que é como o crepúsculo das flores. Em breve minha tia podia mergulhar, na fervente infusão de que saboreava o gosto de folha morta ou de flor fanada, uma madalena, da qual me oferecia um pedaço quando já estivesse bem amolecido. 
   Ao lado de seu leito havia uma grande cômoda amarela de limoeiro e uma mesa que acumulava as funções de botica e altar-mor, e onde, junto a uma imagem da Virgem e uma garrafa de Vichy-Célestins, encontravam-se livros de missa e receitas médicas, tudo o que era preciso para seguir da cama os ofícios religiosos e o regime, para não perder nem a hora da pepsina nem a das Vésperas. Do outro lado do leito estava a janela: assim tinha a rua à vista, e nela costumava ler da manhã à noite, por desfastio, à maneira dos príncipes persas, a crônica cotidiana mas imemorial de Combray, que comentava em seguida com Françoise.
   Não fazia cinco minutos que estava eu com minha tia quando ela me mandava embora, de medo que a fatigasse. Oferecia a meus lábios sua fronte pálida e fria, sobre a qual, àquela hora matutina, ainda não tinha arranjado a cabeleira postiça, e onde transpareciam os ossos como as pontas de uma coroa de espinhos ou as contas de um rosário, e dizia-me: “Anda, meu pobre filho, vai preparar-te para a missa; e se encontrares Françoise por aí dize-lhe que não se entretenha muito com você e suba em seguida para ver se não preciso de alguma coisa”. 
   Com efeito, Françoise, que estava a seu serviço havia anos e não suspeitava então que passaria um dia para o nosso, descuidava-se um pouco de minha tia durante os meses em que lá estávamos. Houve uma época em minha infância, antes que fôssemos a Combray, quando minha tia Léonie passava ainda o inverno em Paris, em casa de sua mãe, em que eu conhecia tão vagamente a Françoise que, no dia primeiro do ano, antes de entrarmos em casa de minha tia-avó, minha mãe metia-me na mão uma moeda de cinco francos, recomendando-me: “Trata de não te enganares de pessoa. Espera, para dar, que me ouças dizer: ‘Bom-dia, Françoise’; ao mesmo tempo eu te tocarei de leve no braço”. Apenas chegávamos à escura antecâmara de minha tia, percebíamos na sombra, sob as abas de uma touca ofuscante, tesa e frágil, como se fosse de açúcar em fio, os remoinhos concêntricos de um sorriso de antecipada gratidão. Era Françoise, imóvel e de pé no enquadramento da pequena porta do corredor, como uma imagem de santa em seu nicho. Depois que a gente se habituava um pouco àquelas trevas de capela, distinguia em seu rosto o amor desinteressado da humanidade, o comovido respeito às altas classes, exaltado nas melhores regiões de seu coração pela esperança dos presentes de boas-festas. Mamãe me beliscava o braço violentamente e dizia com voz forte: “Bom-dia, Françoise”. A este sinal, meus dedos se abriam e eu largava a moeda, que encontrava, para recebê-la, a mão confusa, mas estendida. Mas desde que íamos a Combray, a ninguém conhecia eu melhor do que a Françoise; éramos os seus favoritos, e tinha por nós, pelo menos nos primeiros anos, a par de tanta consideração como a minha tia, um gosto mais vivo, porque acrescentávamos, ao prestígio de fazer parte da família (e Françoise dedicava aos invisíveis elos que cria, entre os membros de uma família, a circulação de um mesmo sangue, tanto respeito como um trágico grego), o encanto de não sermos seus patrões habituais. Daí o júbilo com que nos recebia, lamentando que não fizesse melhor tempo no dia de nossa chegada, às vésperas da Páscoa, em que às vezes soprava um vento glacial, e quando mamãe lhe perguntava por sua filha e seus sobrinhos, se seu neto era um bom menino, o que pretendiam fazer dele, e se se parecia com a avó.
   E, quando não havia gente por perto, mamãe, que sabia que Françoise chorava ainda a seus pais, mortos, havia tantos anos, falava deles bondosamente, inquirindo mil detalhes.
   Adivinhava que Françoise não gostava do genro e que este lhe estragava o prazer que tinha em estar com a filha, com quem não podia falar com a mesma liberdade quando ele se achava presente. Assim, quando Françoise ia visitá-los, a algumas léguas de Combray, mamãe dizia-lhe, sorrindo: “Se Julien foi obrigado a sair e você tiver de ficar sozinha com Marguerite o dia inteiro, vai ser mesmo uma pena; mas não há de ser nada, bem, Françoise?”. E Françoise, a rir: “A senhora sabe de tudo, a senhora é pior que o raio x (dizia o xis com uma dificuldade afetada e um sorriso, para zombar de si mesma, uma ignorante, que se atrevia a empregar aquele termo científico) que mandaram buscar para a sra. Octave e que enxerga o que a gente tem no coração”,[3] e desaparecia, confusa de que se ocupassem dela, acaso para que não a vissem chorar; mamãe era a primeira pessoa que lhe dava aquela doce emoção de sentir que sua vida, suas ditas e pesares de camponesa podiam apresentar interesse, ser motivo de alegria ou de tristeza para uma outra que não ela própria.[4] Minha tia se resignava a privar-se um pouco de Françoise durante nossa estada, pois sabia o quanto minha mãe apreciava os serviços daquela criada tão inteligente e ativa, que se apresentava tão correta, como para ir à missa; desde as cinco da manhã, na cozinha, com sua touca cujas abas deslumbrantes e fixas pareciam de porcelana; que fazia tudo bem, trabalhando como um cavalo, estivesse com saúde ou não, mas sem barulho, sem que parecesse fazer nada, e a única das criadas de minha tia que, quando mamãe pedia água quente ou café puro, trazia-os realmente a ferver; era dessas criadas que desagradam à primeira vista a um estranho, talvez porque não se deem o trabalho de conquistá-lo nem se mostrem muito solícitas, pois sabem muito bem que não precisam dele, e que os de casa prefeririam deixar de recebê-lo a despedi-las; e que, por outro lado, são aquelas a quem mais se afeiçoam os patrões, que puseram à prova sua capacidade real e não se importam com esse agrado superficial, essa tagarelice servil que impressiona favoravelmente a um visitante, mas que muitas vezes encobre uma irremediável nulidade.


continua na página 49...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (Combray, de longe - a)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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[1] Mistura proustiana de referências reais e fictícias. As ruas de Santo Hilário, do Espírito Santo, do Pássaro e a hospedaria do Pássaro Ferido encontravam-se na cidadezinha de Illiers; a rua de Santa Hildegarda é de sua invenção. [n. e.]
[2] A reclusão da tia antecipa metaforicamente a daquele que vai se dedicar à busca do tempo perdido. Em um texto de juventude, Proust já destacava o fascínio despertado pela figura de Noé e sua condição privilegiada de observar o mundo a partir de sua arca. [n. e.]
[3] Anacronismo, pois o raio x só seria descoberto por Röntgen no ano de 1895. [n. e.]
[4] Essa característica da mãe transmite-se ao herói, que votará sua simpatia e sua ironia afetuosa a detalhes de seres e coisas aparentemente insignificantes. [n. e.]

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A Montanha Mágica - Digressão sobre o sentido do tempo

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo IV

Digressão sobre o sentido do tempo 

   Quando voltaram ao quarto de Hans Castorp, depois do almoço, já se encontrava ali, numa cadeira, o embrulho dos cobertores; e nesse dia o jovem serviu-se deles pela primeira vez. Joachim, mais experiente na arte de se agasalhar, que todos exerciam ali em cima e os recém-chegados tinham de aprender, mostrou-lhe como fazê-lo. Os cobertores deviam ser estendidos, um após outro, sobre a espreguiçadeira, de maneira que um bom pedaço deles sobrasse no lugar dos pés. A seguir, a gente sentava-se na cadeira e começava a envolver-se no cobertor superior, primeiro de um lado em todo o comprimento, até as axilas, depois na parte de baixo, por cima dos pés, o que requeria que a pessoa se soerguesse, se inclinasse para a frente e apanhasse as camadas da extremidade dobrada, e por fim do outro lado, sendo importante ajustar cuidadosamente a ponta dupla às bordas da cadeira, a fim de se conseguir um máximo de lisura e regularidade. Em seguida, procedia-se da mesma forma com o cobertor de baixo, que era um pouco mais difícil de manejar, Hans Castorp, como noviço desajeitado, não cessava de gemer, enquanto, ora curvado, ora reclinado, treinava os movimentos que Joachim lhe ensinara.

– Só mesmo alguns veteranos – disse o primo – sabem jogar simultaneamente os dois cobertores por cima do corpo, com apenas três manobras precisas. É uma habilidade rara e invejada, que exige não somente anos de prática mas também um talento natural. – Essas últimas palavras fizeram com que Hans Castorp estourasse de riso, deixando-se cair para trás, sobre as costas doloridas. Joachim, que no primeiro instante não compreendera o que havia nisso de cômico, olhou-o com um ar incerto, e depois também desatou a rir.

– Feito! – disse quando Hans Castorp, exausto de toda essa ginástica, arrumado em forma de cilindro, e como que sem membros, estava estendido na espreguiçadeira, com o rolo elástico por baixo da nuca. -mesmo que fizesse uns vinte graus abaixo de zero, nada lhe poderia acontecer agora. – Com isso desapareceu atrás da divisão de vidro, para se agasalhar a si próprio. 

   Essa coisa dos vinte graus abaixo de zero parecia bastante duvidosa a Hans Castorp, que se ressentia muito do frio. Repetidas vezes, calafrios lhe passaram pelo corpo, enquanto contemplava, através das arcadas de madeira, a umidade que lá fora caía, pingando, garoando, e dando a impressão de estar a ponto de se transformar, de um momento para outro, em nova nevada. Era, porém, estranho que, não obstante o tempo úmido, ele continuasse com o rosto seco e ardente, como se se achasse num quarto superaquecido. Ademais, sentia-se ridiculamente cansado em virtude dos exercícios realizados para envolver-se nos cobertores. Com efeito, o Ocean steamships tremia-lhe nas mãos quando o aproximava dos olhos. Era evidente que a sua saúde não era lá muito boa – “totalmente anêmico”, dissera o Dr. Behrens –, e por isso incomodava-se tanto com o frio. Mas essas sensações desagradáveis eram compensadas pela grande comodidade da sua posição, pelas qualidades insondáveis e quase misteriosas dessa espreguiçadeira, que Hans Castorp já descobrira, entusiasmado, quando da estréia, e que voltavam a comprovar-se de modo sumamente ameno. Fosse devido ao tipo das almofadas, à inclinação conveniente do encosto, à altura e largura acertadas dos braços, ou talvez à consistência apropriada do rolo atrás da nuca – em todo caso era impossível imaginar um método mais humano para garantir o bem-estar de membros em repouso do que os serviços dessa cadeira perfeita. E grande satisfação invadia a alma de Hans Castorp, ao pensar nas duas horas vazias, cheias de paz assegurada, que tinha à sua frente, essas horas sagradas que o regulamento da casa destinava ao repouso principal, e que ele, apesar de ser um simples visitante, aprovava como uma instituição inteiramente adequada ao seu caráter. Pois Hans Castorp era paciente por natureza, e bem capaz de passar muito tempo sem nada fazer. Conforme nos recordamos, adorava esse lazer que nenhuma atividade atordoadora ousa obliterar, consumir, afugentar. Às quatro horas iria tomar o chá da tarde, com bolo e confeitos; depois haveria um novo repouso na espreguiçadeira; às sete, vinha o jantar, que, como todas as refeições, ofereceria algumas sensações e certos aspectos curiosos, dignos de serem aguardados com prazer; depois, alguns olhares no interior da caixa estereoscópica, no caleidoscópio em forma de luneta, e no tambor cinematográfico... Hans Castorp já sabia de cor o programa do dia, ainda que fosse exagero dizer que já se “aclimatara” perfeitamente. 
   No fundo constitui fenômeno esquisito esse processo de aclimatação num lugar estranho, a adaptação – por mais laboriosa que seja – e a mudança de hábitos à qual as pessoas se submetem só para variar e na intenção firme de abandoná-la imediatamente ou pouco depois de completada, a fim de voltarem ao estado anterior. Intercala-se tal processo como uma espécie de interrupção ou entreato, no curso principal da vida, e isso para fins de “restabelecimento”, quer dizer, para exercitar, renovar e revolucionar o organismo que corria perigo, e já estava a ponto de se amimalhar, de enlanguescer e de entibiar, na desarticulada monotonia da existência rotineira. Mas, qual é a origem desse langor, dessa tibieza, nos casos de continuidade por demais extensa e ininterrupta de uma rotina? Trata-se menos do cansaço e do desgaste físico e espiritual, que causam as exigências da vida – para eles, o simples descanso bastaria como remédio reconstituinte –, do que de algo psíquico: é a consciência do tempo que ameaça perder-se na uniformidade constante, e que liga laços tão estreitos de parentesco e afinidade à própria sensação de vida, que não se pode debilitar uma sem que a outra sofra e definhe também. Com respeito à natureza do tédio encontram-se freqüentemente conceitos errôneos. Crê-se em geral que a novidade e o caráter interessante do conteúdo “fazem passar” o tempo, quer dizer, abreviam-no, ao passo que a monotonia e a vacuidade lhe estorvam e retardam o fluxo. Isto não é verdade, senão com certas restrições. Pode ser que a vacuidade e a monotonia alarguem e tornem “tediosos” o momento e a hora; porém, as grandes quantidades de tempo são por elas abreviadas e aceleradas, a ponto de se tornarem um quase nada. Um conteúdo rico e interessante é, por outro lado, capaz de abreviar a hora e até mesmo o dia; mas, considerado sob o ponto de vista do conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tempo, de maneira que os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo vento e se vão voando. O que se chama tédio é, portanto, na realidade, antes uma brevidade mórbida do tempo, provocada pela monotonia: em casos de igualdade contínua, os grandes lapsos de tempo chegam a encolher-se a tal ponto, que causam ao coração um susto mortal; quando um dia é como todos, todos são como um só; passada numa uniformidade perfeita, a mais longa vida seria sentida como brevíssima e decorreria num abrir e fechar de olhos. O hábito representa a modorra, ou ao menos o enfraquecimento, do senso de tempo, e o fato de os anos de infância serem vividos mais vagarosamente, ao passo que a vida posterior se desenrola e foge cada vez mais depressa – esse fato também se baseia no hábito. Sabemos perfeitamente que a intercalação de mudanças de hábitos, ou de hábitos novos, constitui o único meio para manter a nossa vida, para refrescar a nossa sensação de tempo, para obter um rejuvenescimento, um reforço, um retardamento da nossa experiência do tempo, e com isso, a renovação da nossa sensação de vida em geral. Tal é a finalidade da mudança de lugar e de clima, da viagem de recreio, e nisso reside o que há de salutar na variação e no episódico. Os primeiros dias num ambiente novo têm um curso juvenil, quer dizer, vigoroso e amplo. Isto se aplica a uns seis ou oito dias. Depois, na medida em que a pessoa se “aclimata”, começa a sentir uma progressiva abreviação: quem se apega à vida, ou melhor, quem gostaria de fazê-lo, talvez note com horror como os dias voltam a tornar-se leves e começam a deslizar voando; e a última semana – de quatro, por exemplo – é de uma rapidez e fugacidade inquietante. Verdade é que a vitalização do nosso senso de tempo produz efeitos além do interlúdio, fazendo-se valer ainda quando a pessoa já voltou à rotina; os primeiros dias que passamos em casa, depois da variação, se nos afiguram também novos, amplos e juvenis; mas esses são somente uns poucos, já que a gente se reacostuma mais rapidamente à rotina do que à sua suspensão. E o senso de tempo de quem já está fatigado, em virtude da idade, ou nunca o possuiu desenvolvido em alto grau – o que é sinal de pouca força vital –, volta a adormecer muito depressa, e já ao cabo de vinte e quatro horas é como se tal pessoa jamais se tivesse afastado do seu ambiente habitual, e a viagem não passasse do sonho de uma noite.  
   Inserimos aqui essas observações porque o jovem Hans Castorp tinha em mente ideias análogas, quando, depois de alguns dias, disse ao primo, fixando nele os olhos estriados de sangue:

– É mesmo curioso como o tempo, no começo, parece longo a quem se encontra num lugar estranho. Quer dizer... Absolutamente não me aborreço; nada disso! Ao contrário, posso afirmar que me divirto esplendidamente. Mas quando olho para trás – em retrospectiva, sabe? – tenho a impressão de estar aqui há não sei quanto tempo já. E de agora até aquele momento em que cheguei a Davos-Dorf e não compreendi que já estava no fim da minha viagem e você me disse: “Pode descer” – lembra-se ainda? –, isto me parece toda uma eternidade. Essas coisas nada têm a ver com medidas e raciocínios. São puramente questão de sentimentos. Claro que seria tolice dizer: “Tenho a impressão de estar aqui há dois meses”; isto seria um absurdo. Só posso dizer: “Há muito tempo já”.

– Pois é – disse Joachim, com o termômetro na boca. – Eu também me aproveito disso. De certo modo, posso me segurar em você, desde que está aqui. – E Hans Castorp riu-se de que o primo dissesse isso assim tão simplesmente, sem acrescentar nenhuma explicação.  

continua pág 068...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Digressão sobre o sentido do tempo
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.