em busca do tempo perdido
volume III
O Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Capítulo Segundo
Por outro lado, Albertine mantinha, reunidas a seu redor, todas as impressões de uma
série marítima que me era especialmente cara. Parece-me que poderia, nas duas faces da moça,
beijar toda a praia de Balbec.
- Se na verdade me permite que a beije, preferiria deixar isto para mais tarde e escolher
bem o momento. Apenas seria necessário que você então não se esquecesse da permissão.
Preciso de um "vale para um beijo", - Preciso assiná-lo?
- Mas, se eu o cobrasse logo, ainda assim teria outro mais tarde?
- Você me diverte com seus "vales"; vou lhe passar um de vez em quando.
- Diga-me outra coisa; você sabe, em Balbec, quando ainda não a conhecia, muitas vezes
você tinha um olhar duro, astucioso; pode me dizer em que pensava naqueles instantes?
- Ah, não tenho a menor lembrança.
- Olhe, para ajudá-la: um dia a sua amiga Gisele saltou de pés juntos sobre a cadeira em
que estava sentado um velho senhor. Tente lembrar-se do que estava pensando nesse momento.
- Gisele era com quem menos andávamos; ela pertencia ao pequeno grupo, se quiser, mas
não inteiramente. Devo ter pensado que ela era vulgar e bem mal-educada.
- Ah! É tudo?
Bem que eu gostaria, antes de beijá-la, poder invadi-la do mistério que ela possuía para
mim na praia antes que a conhecesse, reencontrar nela a região em que vivera antes; pelo
menos, no seu lugar, se não a conhecesse, podia insinuar todas as recordações de nossa vida
em Balbec, o rumor das ondas rebentando sob a minha janela, os gritos das crianças. Porém,
deixando meu olhar deslizar sobre o belo globo róseo de suas faces, cujas superfícies, docemente
encurvadas, vinham morrer aos pés das primeiras pregas de seus lindos cabelos negros, que
corriam em cadeias movimentadas, erguiam seus contrafortes escarpados e modelavam as
ondulações de seus vales, disse comigo:
"Enfim, não tendo conseguido em Balbec, vou saber o gosto da rosa desconhecida que
são as faces de Albertine. E, já que os círculos por que podemos fazer atravessar as coisas e os
seres, no transcurso da nossa existência, não são muito numerosos, talvez eu possa considerar a
minha como de certo modo cumprida quando, tendo feito sair de seu quadro longínquo o rosto
florido que havia escolhido entre todos, o tiver trazido para este novo plano onde por fim o
conhecerei através dos lábios." Dizia-me isto porque achava que havia um conhecimento pelos
lábios; dizia-me que ia conhecer o gosto dessa rosa carnal porque não havia imaginado que o
homem, criatura evidentemente menos rudimentar que o ouriço-do-mar ou mesmo a baleia, é no
entanto desprovido ainda de um certo número de órgãos essenciais e, principalmente, não possui
nenhum que sirva para o beijo. Supre esse órgão ausente por meio dos lábios, pelos quais chega
talvez a um resultado um pouco mais satisfatório do que se estivesse reduzido a acariciar a bem
amada com uma defesa de cornos. Porém os lábios, feitos para trazer ao paladar o sabor das
coisas que os tentam, devem contentar-se, sem compreender seu erro e sem confessar sua
decepção, em vagar na superfície e se chocar diante da cerca da face impenetrável e desejada.
Aliás, nesse momento, ao próprio contato da carne, os lábios, mesmo na hipótese de que se
tornassem mais hábeis e mais bem-dotados, sem dúvida não poderiam degustar com maior
intensidade o sabor que a natureza atualmente os impede de alcançar, pois, nessa zona desolada
em que não conseguem encontrar seu alimento, acham-se eles sozinhos, já que o olhar e, depois,
o olfato os abandonaram há muito. Primeiro, à medida que minha boca principiou a se aproximar
das faces que meus olhares lhe tinham proposto que beijasse, estes, desviando-se, viram faces
novas; o pescoço, examinado de mais perto e como que à lupa, mostrou nos sulcos da pele uma
robustez que modificou o caráter do rosto.
As últimas aplicações da fotografia que deitam aos pés de uma catedral todas as casas
que nos tinham parecido muitas vezes, de perto, quase tão altas como as torres, fazem manobrar
sucessivamente, como um regimento, por fileiras, em ordem dispersa, em massas cerradas, os
mesmos monumentos, aproximam uma da outra as duas colunas da Piazzetta há pouco tão
distantes, afastam a próxima Santa Maria della Salute e, num fundo pálido e degradado,
conseguem fazer caber um horizonte imenso sob o arco de uma ponte, no vão de uma janela,
entre as folhas de uma árvore situada no primeiro plano e de tom mais vigoroso, dão
sucessivamente por moldura, a uma mesma igreja, as arcadas de todas as outras -, não vejo
senão isto que possa, assim como o beijo, fazer surgir, daquilo que julgamos algo de aspecto
definido, as cem outras coisas que ela também é, visto cada uma estar em relação a uma
perspectiva não menos legítima. Em suma, assim como em Balbec, Albertine muitas vezes me
parecera diferente, agora, como se, ao acelerar prodigiosamente a rapidez das mudanças de
coloração que nos oferece uma pessoa em nossos diversos encontros com ela, eu quisesse fazê-las caber todas em poucos segundos para recriar experimentalmente o fenômeno que diversifica a
individualidade de uma criatura e extrair umas das outras, como de um estojo, todas as
possibilidades que ela encerra, naquele curto trajeto de meus lábios às suas faces foram dez
Albertines que vi; essa única moça, como uma deusa de várias cabeças, quando eu tentava
aproximar-me da que vira por último, dava lugar a uma outra. Pelo menos, aquela cabeça,
enquanto eu não a tocara, eu a estava enxergando, e um leve perfume vinha dela até mim. Mas
infelizmente pois para o beijo, as nossas narinas são tão mal colocadas como nossos lábios, e
mal feitas -, de repente meus olhos deixaram de ver, e por sua vez o nariz, esmagando-se, não
percebeu mais qualquer aroma; e, sem conhecer mais, por isso, o gosto do rosa desejado,
compreendi, por esses indícios detestáveis, que estava afinal beijando as faces de Albertine.
Seria porque representávamos (configurada pela revolução de um sólido) a cena inversa
da de Balbec, porque eu estava deitado e ela erguida; capaz de esquivar-se a um ataque brutal e
de manejar prazer a seu gosto, que ela me deixou agora tomar com tanta facilidade o que havia
recusado antes com um ar tão severo? (Sem dúvida, desse ar de antigamente, a expressão de
volúpia que seu rosto assumia hoje à aproximação de meus lábios só diferia por um desvio
infinitesimal de linhas, mas no qual pode caber toda a distância que há entre o gesto de um
homem que liquida com um ferido e o de um que o socorre, entre um retrato sublime e um
horroroso.) Sem saber que tinha de fazer as honras e mostrar-me grato pela sua mudança de
atitude a algum benfeitor involuntário que, nos últimos meses, em Paris ou em Balbec, trabalhara
por mim, pensei que o modo como estávamos colocados fosse o motivo principal daquela
mudança. No entanto, foi outro motivo o que me forneceu Albertine; exatamente este:
- Ah, é que naquela ocasião, em Balbec, eu não o conhecia; podia julgar que você tivesse
más intenções.
Essa explicação me deixou perplexo. Sem dúvida, Albertine falara sinceramente. Uma
mulher tem tamanha dificuldade em reconhecer nos movimentos de seus membros, nas
sensações experimentadas pelo seu corpo, durante uma conversa íntima com um camarada, a
falta desconhecida em que receava que um estranho premeditasse fazê-la cair!
Em todo caso, fossem quais fossem as modificações ocorridas desde algum tempo em sua
vida e que talvez explicassem que cedesse tão facilmente, ao meu desejo momentâneo e
puramente físico, aquilo que em Balbec recusara horrorizada ao meu amor, uma outra bem mais
espantosa se produziu em Albertine, naquela mesma tarde, logo que suas carícias me trouxeram
a satisfação que ela bem deve ter notado e que eu temia viesse a causar-lhe o pequeno
movimento de repulsa e pudor ofendido que Gilberte havia tido em caso semelhante, por detrás
do bosque de loureiros, nos Champs-Élysées. Ocorreu exatamente o contrário. No momento em
que a deitara na minha cama e começara a acariciá-la, Albertine já tomara um aspecto que não
lhe conhecia, de boa vontade dócil, de simplicidade quase pueril. Apagando nela todas as
preocupações, todas as presunções habituais, o momento que precede o prazer, semelhante
nisso ao que se segue à morte, restituíra-lhe aos traços rejuvenescidos como que a inocência dos
primeiros anos. E, sem dúvida, toda criatura cujo talento é subitamente posto em jogo torna-se
modesta, aplicada e encantadora; sobretudo se, pelo talento, sabe nos dar um grande prazer, ela
própria se sente feliz com isso, quer dá-lo o mais completo possível. Mas, nessa nova expressão
do rosto de Albertine, havia, mais que desinteresse, consciência e generosidade profissionais,
uma espécie de devotamento convencional e repentino; e era mais além da própria infância, era à
juventude de sua raça que ela havia regressado. Bem diversa de mim, que desejara unicamente
um apaziguamento físico enfim obtido. Albertine parecia achar que teria havido de sua parte certa
grosseria em julgar que esse prazer material não fosse acompanhado de um sentimento moral e
rematasse alguma coisa. Ela, tão apressada há pouco, agora, sem dúvida por achar que os beijos
importam em amor e que o amor está acima de qualquer outro dever, dizia, quando lhe recordava
o seu jantar:
- Mas, ora, isto não quer dizer nada, tenho tempo de sobra.
Parecia constrangida em erguer-se imediatamente, depois de tudo o que acabara de fazer,
constrangida pelo decoro, como Françoise quando julgara, sem ter sede, dever aceitar com
satisfação decente o copo de vinho que Jupien lhe oferecera, não se atrevendo a sair logo depois
de ter bebido o último gole, mesmo que a chamasse algum dever imperioso. Albertine e esta era
talvez, com uma outra que mais tarde se verá, uma das razões que, sem eu saber, me haviam
feito desejá-la era uma dessas encarnações da camponesinha francesa cujo modelo está em
pedra em Saint-André-des-Champs. De Françoise, que no entanto deveria tornar-se em breve sua
inimiga mortal, reconheci nela a cortesia para com o hóspede e o estranho, a decência, o respeito
pela cama.
Françoise, que, após a morte da minha tia, julgava poder falar apenas num tom
compungido, teria achado chocante, nos meses que precederam o casamento da filha, que esta,
passeando com o noivo, não lhe desse o braço. Albertine, imobilizada junto a mim, dizia-me:
- Você tem lindos cabelos, olhos muito bonitos; você é gentil.
Como lhe dissesse, ao observar-lhe que já era tarde:
- Não acredita em mim? ela me respondeu, o que talvez fosse verdade, mas somente
desde dois minutos e durante algumas horas:
- Sempre acredito em você.
Falou-me de mim, da minha família, do meu ambiente social. Disse:
- Oh, sei que seus pais conhecem pessoas importantes. Você é amigo de Robert Forestier
e Suzanne Delage. -
No primeiro minuto, esses nomes não me disseram absolutamente nada. Mas de súbito
me lembrei que de fato brincara com Robert Forestier nos Champs-Élysées, e que depois jamais
voltara a vê-lo. Quanto a Suzanne Delage, era a sobrinha-neta da Sra. Blandais, e eu deveria uma
vez ter ido a uma aula de dança em casa de seus pais, onde chegaria mesmo a ter um papel
numa comédia de salão. Mas o medo de rir feito um louco e de botar sangue pelo nariz me
impediram de comparecer, de modo que nunca mais voltara a vê-la. Quando muito, julgara ter
compreendido outrora que a governanta de pluma dos Swann tinha estado em casa de seus pais,
mas talvez se tratasse apenas de uma irmã dessa governanta, ou de uma amiga. Garanti a
Albertine que Robert Forestier e Suzanne Delage tinham pouco a ver com a minha vida.
- É possível, mas suas mães são amigas; isto permite situar você. Várias vezes cruzo com
Suzanne Delage na Avenida de Messiney ela é muito chique. -
Nossas mães só se conheciam na imaginação da Sra. Bontemps que, tendo sabido que
outrora eu brincara com Robert Forestier, ao qual, parece, recitava versos, concluíra daí que
éramos ligados por relações de família. Ela jamais deixava, segundo me disseram, passar o nome
de mamãe sem exclamar:
- Ah, sim, é o ambiente dos Delages, dos Forestiers, etc. -, dando a meus pais um ponto a
favor que eles não mereciam.
Aliás, as noções sociais de Albertine eram de uma total estupidez. Julgava os Simonnets
com dois “nn” inferiores não apenas aos Simonets com um “n” só, mas a todas as outras pessoas
possíveis. Que alguém tenha o mesmo nome que a gente, sem ser da nossa família, é um grande
motivo para desdenhá-lo. Certamente, existem exceções.
Pode acontecer que dois Simonnets (apresentados um ao outro numa dessas reuniões
onde se tem necessidade de falar de qualquer coisa e onde, aliás, sentimo-nos cheios de
disposições otimistas, por exemplo no cortejo de um enterro que vai para o cemitério), vendo que
se chamam do mesmo modo, procurem, com benevolência recíproca, e sem resultado, saber se
têm algum parentesco. Mas isto é só uma exceção. Muitos homens são pouco honrados, mas nós
ignoramos ou não nos preocupamos com tal. Mas, se a homonímia faz com que nos remetam
cartas a eles destinadas, ou vice-versa, começamos a desconfiar, muitas vezes justificadamente,
do quanto eles valem. Receamos confusões, prevenimo-las com um esgar de nojo se nos falam
deles. Lendo no jornal o nosso nome, que eles trazem, parece-nos que o usurparam. Os pecados
dos outros membros do corpo social nos são indiferentes. Descarregamo-los mais pesadamente
sobre nossos homônimos. O ódio que sentimos pelos outros Simonnets é tão mais intenso por
não ser individual, mas por transmitir-se hereditariamente. Ao cabo de duas gerações, a gente se
lembra apenas da careta insultante que os avós tinham para com os outros Simonnets; ignoramos
a sua causa; não ficaríamos espantados ao saber que aquilo principiou com um assassinato. Até
o dia frequente em que, entre uma Simonnet e um Simonnet que absolutamente não têm qualquer
parentesco, tudo isso acaba em casamento.
Não só Albertine me falou de Robert Forestier e de Suzanne Delage, mas
espontaneamente, por um dever de confidência, criado pela aproximação dos corpos, ao menos
no começo, durante uma primeira fase e antes que tenha engendrado uma duplicidade especial e
o segredo para com o mesmo ser, Albertine me contou, sobre sua família e um tio de Andrée, uma
história da qual se recusara, em Balbec, a me dizer uma só palavra, mas achava que não devia
mais ter segredos comigo. Agora, mesmo que sua melhor amiga lhe tivesse dito algo contra mim,
ela se sentiria no dever de contar-me. Insisti para que voltasse para casa; Albertine acabou
saindo, mas tão confusa, por mim, devido à minha grosseria, que quase ria para me desculpar,
como uma dama a cuja casa comparecemos de paletó, que nos aceita assim, mas sem que isso
lhe seja indiferente.
- Está rindo? - disse-lhe.
- Não rio, estou sorrindo - respondeu com ternura. - Quando irei revê-lo? - acrescentou,
como se não admitisse que aquilo que acabáramos de fazer, visto que de costume é o
coroamento, não fosse ao menos o prelúdio de uma grande amizade, de uma amizade
preexistente e que devíamos descobrir, confessar, e que só ela poderia explicar aquilo a que nos
entregáramos.
- Já que me autoriza a tanto, quando puder, mandarei buscá-la.
Não tive coragem de lhe dizer que queria subordinar tudo à possibilidade de ver a Sra. de
Stermaria.
- Ai de mim! Será de improviso, nunca sei por antecipação - disse-lhe. - Seria possível
mandar buscá-la na tarde em que eu estiver livre?
- Em breve será bem possível, pois terei uma entrada independente da de minha tia. Mas
neste momento é impraticável. Em todo caso, virei ao ocaso amanhã ou depois de amanhã, à
tarde. Só me receba se puder.
Chegando à porta, espantada porque eu não a havia precedido, estendeu-me o rosto,
achando que não havia necessidade alguma de um grosseiro desejo físico para que agora nos
beijássemos. Como as curtas relações que tínhamos tido juntos eram pouco dessas a que às
vezes conduzem uma intimidade absoluta e uma escolha de coração, Albertine julgara dever
improvisar e acrescentar momentaneamente, aos beijos que havíamos trocado na cama, o
sentimento de que esses beijos teriam sido o emblema para um cavaleiro e sua dama, tais como
os podia conceber um jogral gótico.
Quando me deixou a jovem picarda, que o imagista de Saint-André-des-Champs teria
podido esculpir em seu pórtico, Françoise me trouxe uma carta que me encheu de alegria, pois
era da Sra. de Stermaria, que aceitava jantar comigo na quarta-feira. Da Sra. de Stermaria, ou
seja, para mim, mais que da Sra. de Stermaria real, daquela em que eu havia pensado o dia
inteiro antes da chegada de Albertine. É esse o terrível engano do amor, que nos faz brincar com
uma mulher não do mundo exterior, mas com uma boneca no interior do nosso cérebro, a única,
aliás, que podemos ter sempre à nossa disposição, a única que possuiremos, que o arbítrio da
lembrança, quase tão absoluto como o da imaginação, pode também ter feito diferente da mulher
real como da Balbec real fora para mim a Balbec sonhada; criação fictícia à qual, pouco a pouco,
para nosso sofrimento, forçaremos a mulher real a se assemelhar.
Albertine me atrasara tanto que a comédia acabava de terminar, quando cheguei à casa da
Sra. de Villeparisis; e, pouco interessado em ir de encontro à onda de convidados que se escoava
comentando a grande novidade, a separação, que diziam ser já coisa liquidada, entre o duque e a
duquesa de Guermantes, e esperando o momento de poder saudar a dona da casa, estava
sentado numa poltrona vazia no segundo salão quando, do primeiro, onde sem dúvida estivera
sentada na primeira fila, vi sair, majestosa, ampla e alta, num longo vestido de cetim amarelo, ao
qual estavam aplicadas em relevo imensas papoulas negras, a duquesa. Sua vista já não me
perturbava. Certo dia, pondo as mãos na minha testa (como era seu hábito quando receava me
fazer mal), e dizendo-me:
"Não continues com tuas saídas para encontrar a Sra. de Guermantes, és o motivo de
troça da casa. Além disso, vê como a tua avó está passando mal, na verdade tem coisas mais
sérias a fazer do que te postares no caminho de uma mulher que zomba de ti", de um só golpe,
como um hipnotizador que nos faz regressar de um país longínquo onde imaginávamos estar, e
nos reabre os olhos, ou como o médico que, apelando para nosso sentimento do dever da
realidade, cura-nos do mal imaginário que alimentávamos minha mão me havia despertado de um
sonho longo demais. O dia seguinte fora dedicado a dar um último adeus a esse mal a que eu
renunciava; tinha cantado, chorando, durante horas inteiras, o "Adeus" de Schubert:
- Adeus, vozes estranhas Te chamam para longe, celeste irmã dos Anjos.
E depois, tudo acabado. Terminei com minhas saídas matutinas, e tão facilmente, que
extraí então o prognóstico, que mais tarde veremos ter sido falso, de que me habituaria com
facilidade, no decurso da existência, a deixar de ver uma mulher. E, quando, logo depois,
Françoise me contou que Jupien, desejoso de aumentar seus negócios, procurava uma loja no
bairro, querendo eu encontrar-lhe uma (também feliz da vida, a flanar pela rua que já do meu leito
ouvia gritar luminosamente como uma praia, de ver, sob a cortina de ferro erguida das leiterias, as
pequenas leiteiras de alvas mangas), pude recomeçar minhas saídas. De resto, com maior
liberdade; pois tinha consciência de não mais fazê-las com a finalidade de ver a Sra. de
Guermantes: como uma mulher, que toma infinitas precauções quando tem um amante e que,
desde o dia em que rompeu com ele, deixa suas cartas ao acaso, com o risco de revelar ao
marido o segredo de uma falta com que deixou de se assustar ao mesmo tempo que cessou de
cometê-la.
O que me dava pena era saber que quase todas as casas eram habitadas por gente infeliz.
Aqui, a mulher chorava sem parar porque o marido a enganava. Ali, dava-se o contrário. Além,
uma mãe trabalhadora, moída de pancadas por um filho bêbado, procurava ocultar seus
sofrimentos aos olhos dos vizinhos. Uma metade inteira da humanidade chorava. E, quando a
conheci, vi que era tão exasperante que me perguntei se o marido ou a mulher é que tinham
razão, e seriam adúlteros apenas porque a genuína felicidade lhes fora recusada e se mostravam
leais e gentis para com qualquer pessoa que não fosse a esposa ou o marido. Em breve, já não
tinha sequer a desculpa de ser útil a Jupien para continuar minhas romarias matinais. Pois soube
se que o marceneiro do nosso pátio, cuja oficina era separada da loja de Jupien somente por um
tabique delgado, ia ser despedido pelo gerente porque dava marteladas muito barulhentas. Jupien
não podia esperar nada melhor, as oficinas possuíam um subsolo, onde ele poderia guardar os
trabalhos de madeira, e que se comunicava com a nossa adega. Jupien colocaria ali o seu carvão,
arrancaria o tabique e disporia de uma loja única e ampla. Além disso, como achasse muito
elevado o aluguel que o Sr. de Guermantes cobrava, deixava que visitassem o local para que,
desanimado por não encontrar locatário, o duque se resignasse a lhe fazer um abatimento, e
então Françoise, tendo reparado que, mesmo após a hora das visitas, o porteiro deixava
encostada a porta da loja a alugar, logo farejou um ardil do porteiro para atrair a noiva do lacaio
dos Guermantes (ali estes achariam um recanto de amor) e a seguir surpreendê-los.
Fosse como fosse, embora não tendo mais de procurar uma loja para Jupien, continuei a
sair antes do almoço. Muitas vezes, nessas saídas, encontrei o Sr. de Norpois.
Ocorria que, conversando com um colega, ele me lançava um olhar que, depois de me
examinar da cabeça aos pés, se desviava para seu interlocutor sem sequer me sorrir nem saudar,
como se absolutamente não me conhecesse. Pois entre esses diplomatas importantes, olhar de
uma certa maneira não tem por finalidade nos fazer saber que nos viram, e sim que não nos viram
e que têm a falar assuntos sérios com o colega. Menos discreta comigo era uma mulher alta, com
quem cruzara seguidamente perto de casa. Pois, embora não a conhecesse, ela se virava para
mim, esperava-me inutilmente diante das vitrines, sorria-me como se fosse me beijar, fazia o
gesto de se entregar. Retomava o ar glacial para comigo se encontrava algum conhecido seu.
Desde há muito, nessas andanças matinais, conforme o que eu tivesse a fazer, mesmo que fosse
para comprar o jornal mais insignificante, escolhia o caminho mais direto, sem lastimar se estava
fora do percurso habitual dos passeios da duquesa e se ao contrário, dele fazia parte, sem
escrúpulos e sem dissimulação porque já não me parecia o caminho proibido onde eu arrancaria a
uma ingrata o favor de vê-la a seu pesar. Mas eu não imaginara que a minha cura, dando-me
relativamente à Sra. de Guermantes uma atitude normal, ao mesmo tempo realizaria a mesma
obra no tocante a ela e tornaria possível uma amabilidade e uma amizade que já não me
importavam mais. Até então os esforços do mundo inteiro reunidos para me aproximarem dela
teriam sido em vão diante da má sorte que lança um amor infeliz. Fadas mais poderosas que os
homens decretaram que, em tais casos, nada poderá servir até o dia em que tivermos dito
sinceramente em nosso coração as palavras:
"Já não amo."
Ficara querendo mal a Saint-Loup por não me ter levado à casa de sua tia. Porém, tanto
quanto qualquer pessoa, ele não era capaz de quebrar um encanto. Enquanto amava a Sra. de
Guermantes, as provas de gentileza que recebia de outrem, os cumprimentos, tudo isso não fazia
sofrer, não só porque não vinham dela, mas porque ela não saberia deles. Ora, mesmo que ela
soubesse, isso não teria sido de nenhuma utilidade. Até nos detalhes de uma afeição, uma
ausência, a recusa de um jantar, um rigor involuntário, inconsciente, servem mais que todos os
cosmos e as roupas mais belas. Haveria arrivistas, se se ensinasse neste setor a arte de ser
arrivista.
No momento em que ela atravessava o salão onde eu estava sentado, com o pensamento
cheio da lembrança de amigos que eu não conhecia e que ela ia talvez reencontrar dali a pouco
em um outro sarau, a Sra. de Guermantes me viu na poltrona, verdadeiro indiferente que tentava
apenas ser amável, quando, enquanto amava, tanto e tão inutilmente havia tentado assumir um ar
de indiferença; ela esquinou, veio até mim e, recobrando o sorriso da noite da ópera e que o
sentimento penoso de ser amada por alguém a quem não amava não mais podia apagar:
- Não, não se incomode; permita-me que me sente por um instante a seu lado? -disse-me,
juntando graciosamente a sua saia imensa que sem isto teria ocupado toda a poltrona.
Mais alta que eu, e aumentada ainda de todo o volume de seu vestido, era eu quase
roçado por seu admirável braço despido em torno ao qual uma penugem imperceptível e
inumerável fazia fumegar, perpetuamente, como que um vapor dourado, e pelos cachos louros
dos cabelos que me enviavam o seu aroma. Não dispondo de espaço, ela não podia virar-se
facilmente para mim e, obrigada a olhar para diante mais que para o meu lado, assumia uma
expressão doce e sonhadora, como num retrato.
- Tem notícias de Robert? - indagou.
A Sra. de Villeparisis passou nesse momento.
- Muito bem! O senhor chega numa bela hora, pelo muito que o vemos...
E notando que eu falava com sua sobrinha, talvez imaginando que éramos mais ligados do
que pensava:
- Mas não quero atrapalhar a sua conversa com Oriane - acrescentou (pois os bons ofícios
da alcoviteira fazem parte dos deveres de uma dona de casa). - Não quer vir jantar quarta-feira
com ela?
Era o dia em que eu devia jantar com a Sra. de Stermaria. Recusei:
- E sábado?
Voltando minha mãe no sábado ou no domingo, seria pouco gentil não ficar para jantar
todas as noites com ela; portanto, recusei de novo.
- Ah, o senhor não é um homem fácil de se ter em casa.
- Por que nunca vai me visitar? - perguntou a Sra. de Guermantes quando a Sra. de
Villeparisis se afastou para felicitar os artistas e enviar à diva um buquê de rosas, cujo único valor
estava na mão que o oferecia, pois só custara vinte francos. (Aliás, era este o seu prêmio máximo
quando só cantara uma vez. As que prestavam seu concurso em todas as matinês e vesperais
recebiam rosas pintadas pela marquesa.) - É aborrecido vê-lo apenas na casa dos outros. Já que
não quer jantar comigo na casa de minha tia, por que não vir jantar em minha casa?
Algumas pessoas que se haviam demorado o mais possível, sob qualquer pretexto, e que
por fim saíam, vendo a duquesa sentada a conversar com um rapaz, num móvel tão estreito que
nele só cabiam duas pessoas, pensaram que tinham sido mal informados, que era o duque e não
a duquesa quem pedia a separação, e por minha causa; e apressaram-se a espalhar a novidade.
Eu estava em melhores condições que ninguém para conhecer a falsidade daquilo. Mas
surpreendia-me que, nesses períodos difíceis em que se realiza uma separação, ainda não
consumada, a duquesa, em vez de se isolar, convidasse justamente alguém que conhecia tão
pouco. Tive a suspeita de que o duque fora o único a não querer que ela me recebesse e que,
agora que a abandonava, já não via obstáculos a que ela se cercasse de pessoas que lhe
agradavam.
continua na página 167...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Por outro lado)
Volume 4
Volume 5
Volume 7