Capítulo VI
Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante .
Deus sabe quantos trocadilhos o médico, na sua disposição sombria, ainda teria feito, não
o tivessem desconcertado o aspecto imperturbável de Joachim e a sua manifesta intenção de falar,
e de falar corajosamente.
– Senhor conselheiro – disse o jovem –, eu lhe queria dar parte de que resolvi viajar.
– Ora veja! Quer tornar-se viajante? Eu pensava que o senhor, uma vez curado, pretendia
ingressar nas fileiras.
– Não, senhor conselheiro, tenho de partir imediatamente, daqui a uns oito dias.
– Escute! Será que o entendo bem? O senhor quer ir-se, quer pôr-se em fuga? Sabe que
isso se chama deserção?
– Não, senhor conselheiro, eu não o considero assim. Preciso apresentar-me ao meu
regimento.
– Mesmo que eu lhe diga que dentro de meio ano sem falta poderei autorizá-lo a partir,
mas antes desse prazo, não?
Joachim ia assumindo atitude cada vez mais militar. Recolhendo o ventre, disse
laconicamente, em voz sufocada:
– Faz mais de um ano e meio que estou aqui, senhor conselheiro. Não posso esperar mais
tempo. No começo, o senhor me disse: “Três meses”. Depois, o meu tratamento foi
sucessivamente prolongado por outros três ou seis meses, e ainda não estou curado.
– A culpa é minha?
– Não, senhor conselheiro. Mas eu não posso esperar mais tempo. Não me é possível
aguardar aqui a cura completa, a não ser que eu queira perder o momento oportuno. Tenho de
partir logo. Necessito ainda de algum tempo para me equipar e para tomar diversas
providências...
– A sua família concorda com o seu procedimento?
– Minha mãe está de acordo. Já ficou tudo combinado. A 1.° de outubro entrarei no
Regimento 76, como aspirante.
– Enfrentando todos os riscos? – perguntou Behrens, fixando nele os olhos injetados...
– Sim, senhor conselheiro – respondeu Joachim, com os lábios trêmulos.
– Hum! Está bem, Ziemssen – disse o conselheiro, mudando de expressão. Relaxando a
sua posição, cedeu em toda a linha. – Está bem, Ziemssen. Mexa-se! Parta! Deus o acompanhe! Já
vejo que o senhor sabe o que quer. Uma coisa é certa, que as conseqüências são da sua conta e
não da minha, desde o momento em que o senhor toma a si a responsabilidade. Ajuda-te, e
ajudar-te-ei. O senhor parte por sua conta e risco; eu não garanto nada. Mas, afinal, tudo pode
sair bem. O senhor escolheu uma profissão que se exerce ao ar livre. É perfeitamente possível
que se dê bem com ela e consiga triunfar.
– Sim, senhor conselheiro.
– E esse jovem da classe dos civis? Será que o senhor deseja participar da romaria?
Essa pergunta dirigia-se a Hans Castorp. Achava-se este ali, tão pálido como há um ano
atrás, quando daquele exame do qual resultará o seu internamento; quedava-se no mesmo lugar
de então; e novamente se viam com absoluta nitidez as batidas do seu coração, que pulsava à flor
da pele.
– Para mim depende tudo da sua opinião, senhor conselheiro – respondeu.
– Da minha opinião? Bem! – E puxando-o pelo braço, Behrens aproximou-o de si.
Auscultou. Percutiu. Não ditou nada. A coisa foi rápida. Quando terminou, disse:
– O senhor pode partir.
Hans Castorp balbuciou:
– Quer dizer... Mas como? Estou curado?
– Sim, o senhor está curado. Daquele lugar à esquerda, em cima, já não vale a pena falar.
Sua temperatura não pode ter relação com ele. Não sei dizer de onde ela vem. Acho que não tem
grande importância. Quanto a mim, o senhor pode partir.
– Mas, senhor conselheiro... Permita-me a pergunta... O senhor está falando sério?
– Se eu falo sério? Mas como? Que ideia é essa? Eu queria saber o que o senhor pensa de
mim. Por quem me toma? Por um dono de rendez-vous?
Era uma explosão de cólera. O azul das faces do médico intensificara-se, assumindo um
tom violeta, devido à congestão ardente. A crispação unilateral do lábio, sob o bigodinho,
acentuara-se violentamente, a ponto de descobrir os amarelados dentes de cima. Avançando
como um touro a cabeça com os olhos saltados, lacrimosos e estriados de sangue, berrou:
– Não admito isso! Antes de tudo fique sabendo que não sou dono de nada! Sou um
funcionário desta empresa! Sou médico! Sou exclusivamente médico; o senhor me compreende?
Não sou alcoviteiro, não sou nenhum Signor Amoroso da Via Toledo, na bela Nápoles; entendeu
me bem? Sou um servidor da humanidade sofredora! E se os senhores tiverem formado uma
opinião diferente a respeito da minha pessoa, podem ambos ir às favas ou ao diabo ou águas
abaixo, conforme a sua livre escolha! Boa viagem!
A passos longos e apressados saiu pela porta que dava para a antessala do gabinete de
radiografia, e fechou-a estrondosamente atrás de si.
Os primos olharam para o Dr. Krokowski em busca de um conselho. Mas este enterrou o
nariz na papelada, que o absorvia por completo. Vestiram-se às pressas. Enquanto subiam pela
escada, disse Hans Castorp:
– Foi terrível, aquilo. Você já o viu assim em outra ocasião?
– Assim, nunca. São aqueles seus ataques de loucura cesárea. A única coisa que se pode
fazer é aguentá-los sem perder a linha. Claro que ele estava nervoso por causa da história de
Polypraxios e da Nölting. Mas você viu... – continuou Joachim, e era visível que o prazer de ter
lutado com êxito lhe enchia o coração e lhe oprimia o peito – você viu como ele cedeu terreno e
capitulou, quando percebeu que eu não estava brincando? Basta que a gente se mostre enérgico e
não se deixe atemorizar. Agora recebi uma espécie de autorização... O próprio Behrens disse que,
provavelmente, conseguirei triunfar... Daqui a oito dias partiremos... Em três semanas, já me
apresentarei ao meu regimento – terminou, corrigindo-se a si próprio e limitando à sua própria
pessoa esses projetos que lhe faziam a voz vibrar de alegria.
Hans Castorp permaneceu calado. Não comentou a “autorização” de Joachim, nem
tampouco a sua própria, da qual igualmente poderia ter falado. Preparou-se para o repouso.
Introduziu o termômetro na boca. Com umas poucas manobras velozes e precisas, cheias de arte
aperfeiçoada, envolveu-se nos seus dois cobertores de lã de camelo, em conformidade com
aquela prática sagrada da qual ninguém tinha ideia na planície. Depois, deixou-se ficar estendido,
imóvel, transformado num rolo simétrico, sobre a excelente espreguiçadeira, no meio da umidade
fria da tarde de princípios de outono.
As nuvens carregadas de chuva deslizavam muito baixo. A bandeira do estabelecimento
achava-se arriada. Restos de neve encontravam-se nos galhos molhados do abeto. Do alpendre
do andar térreo, donde, fazia mais de um ano, ressoara pela primeira vez a voz do Sr. Albin, o
murmúrio de conversas abafadas subia até os ouvidos do jovem que cumpria o seu serviço,
enquanto seus dedos e seu rosto rapidamente se tornavam frios, úmidos e enregelados. Hans
Castorp estava acostumado a isso e aceitava com gratidão o estilo de vida ali de cima, que havia
muito era para ele o único imaginável e lhe outorgava a bênção de ficar deitado ao abrigo de tudo
e de poder entregar-se a toda sorte de pensamentos.
Era coisa resolvida. Joachim partiria. Radamanto dera-lhe alta – não rite, não como
curado, mas em todo caso dera-lhe alta, com uma meia aprovação, em virtude da sua atitude
firme. O primo viajaria no trem de bitola estreita, desceria à “baixada”, até Landquart, até
Romanshorn, para depois transpor o vasto e profundo lago, sobre o qual cavalgara o cavaleiro da
lenda; e finalmente, regressaria, atravessando a Alemanha inteira. Viveria lá embaixo, no ambiente
da planície, rodeado de pessoas que ignoravam por completo como se devia viver, que nada
sabiam do termômetro, nem da arte de se envolver nos cobertores, do saco de peles, dos três
passeios cotidianos, de... Era difícil, difícil esgotar tudo quanto desconheciam lá embaixo. Mas a
ideia de que Joachim, depois de ter passado mais de um ano e meio ali em cima, viveria doravante
entre os ignorantões – essa ideia que só dizia respeito a Joachim, e apenas vaga, hipoteticamente,
a ele, Hans Castorp, perturbou-o de tal forma que fechou os olhos e fez com a mão um gesto de
defesa. – Impossível, impossível! – murmurou.
Uma vez que era impossível, continuaria ele a viver ali em cima sozinho, sem Joachim?
Sim. Por quanto tempo? Até que Behrens lhe desse alta como curado, e isso seriamente, não
como acabava de fazê-lo. Mas, em primeiro lugar era esse momento de tal forma indeterminado,
que para fixá-lo só se podia repetir aquele gesto vago que Joachim esboçara em certa ocasião; e,
em segundo lugar, era duvidoso que o impossível de agora se tornasse mais possível no futuro. O
contrário parecia mais provável. Era preciso reconhecer lealmente que nesse momento em que o
impossível talvez ainda não fosse tão impossível como o seria mais tarde, uma mão estava sendo
estendida para segurá-lo; pelo fato da partida “em falso” de Joachim, eram-lhe oferecidos um
bastão e um guia para conduzi-lo à planície, para onde ele, pela sua própria força, jamais
encontraria o caminho. A pedagogia humanística, se ficasse sabendo dessa oportunidade, quanto
não o exortaria a que agarrasse o bastão e aceitasse o guia! Ora, o Sr. Settembrini representava
coisas e potências interessantes, sem dúvida, mas não exclusivas e absolutas; e o mesmo ocorria
com Joachim. O primo era militar. Partia, quase na hora do projetado regresso de Marusja, a
moça dos seios opulentos, que, como sabemos, devia voltar a 1.° de outubro. Ao civil Hans
Castorp, porém, a partida afigurava-se impossível precisamente porque ele tinha de esperar por
Clávdia Chauchat, de cuja volta, por enquanto, nem sequer se falava. “Eu não o considero
assim”, dissera o primo, quando Radamanto usara o termo “deserção”, que, com referência a
Joachim, evidentemente não passava de um disparate e de um exagero do médico agastado. Mas
ao civil apresentavam-se as coisas sob um aspecto diferente. No seu caso – ah, indubitavelmente
era assim, e fora na intenção de desenvolver essa ideia decisiva do complexo dos seus
sentimentos que se estendera na espreguiçadeira, apesar do frio úmido – no seu caso seria mesmo
desertar se ele aproveitasse a ocasião e partisse mais ou menos “em falso” para a planície; fugiria
então das responsabilidades que se desdobravam diante dele, devido à visão daquela forma
sublime que se chamava Homo Dei; desatenderia os deveres que lhe impunha o seu “reino”,
deveres laboriosos e excitantes, que ultrapassavam as suas forças inatas e todavia o enchiam de
uma felicidade aventurosa, quando se consagrava a eles no seu compartimento de sacada ou
naquele lugar florido de azul.
Hans Castorp tirou o termômetro da boca, com tamanha violência como só lhe
acontecera numa única ocasião: quando o usara pela primeira vez, logo depois de ter adquirido da
Superiora o delgado instrumento. Examinou-o com a mesma curiosidade de então. O mercúrio
subira consideravelmente. Mostrava 37,8 – quase 9.
O jovem jogou para longe os cobertores, levantou-se de um salto, deu alguns passos
rápidos através do quarto, em direção à porta do corredor. Depois voltou à cadeira. Achando-se
novamente na posição horizontal, chamou em voz baixa a Joachim e informou-se da temperatura
do primo.
– Não tirei – respondeu este.
– Bem, eu tenho tempus – disse Hans Castorp, servindo-se da expressão da Srª. Stöhr.
Joachim, atrás da divisão de vidro, permaneceu silencioso.
Mais tarde nada disse tampouco, nem nesse dia nem nos seguintes. Não fez perguntas a
respeito dos projetos e das decisões de Hans Castorp, que, dada a brevidade do prazo, tinham de
se revelar naturalmente, por atos ou pela ausência de atos. E foi a segunda alternativa que se deu.
Hans Castorp parecia ter aderido ao quietismo, segundo o qual agir significava ofender a Deus,
que se reserva o privilégio de fazê-lo. Em todo caso limitara-se sua atividade, nesses últimos dias,
a uma visita a Behrens, da qual Joachim sabia, e cujo resultado lhe era fácil imaginar. O primo
havia declarado que se permitia recordar as numerosas advertências antigas que o conselheiro lhe
fizera no sentido de que esperasse a cura completa, para que não tivesse necessidade de voltar, e
atribuir-lhes maior importância do que às palavras veementes, pronunciadas num minuto de
exaspero. Tinha 37,8 e não se podia considerar como formalmente autorizado a partir. A não ser
que aquilo que o conselheiro proferira naquela ocasião devesse ser interpretado como uma
expulsão – medida que ele, Hans Castorp, não achava merecer –, desejava comunicar a sua
decisão, à qual chegara pelo caminho do raciocínio calmo e em desacordo consciente com
Joachim: permaneceria por enquanto ali e aguardaria sua desintoxicação total. A isso, o médico
respondera aproximadamente: “Muito bem” e “Vamos pôr uma pedra no que se passou!” e “Isso
é falar razoavelmente. Eu vi logo que o senhor tem mais talento para ser um bom paciente do
que aquele desertor, aquele ferrabrás”. E outras coisas nesse gênero.
Fora esse, segundo as conjeturas mais ou menos exatas de Joachim, o curso da entrevista.
Por isso não disse nada. Apenas verificou em silêncio que Hans Castorp não imitava as medidas
que ele mesmo tomava para preparar a viagem. Por outro lado, o bom Joachim andava mais que
atarefado com os seus próprios problemas. Realmente não lhe era possível preocupar-se com a
sorte e o futuro domicílio do primo. Uma tempestade agitava-lhe o peito, como facilmente se
pode compreender. Ainda bem que tinha deixado de tomar a temperatura pretendendo que o
termômetro se quebrara, caindo no chão; se a houvesse tomado, teria talvez obtido resultados
perturbadores, sobreexcitado como estava, possuído de alegria e de impaciência, que ora lhe
abrasavam as faces com um ardor sombrio, ora as faziam empalidecer. Já não era capaz de
permanecer deitado. Durante todo o dia, Hans Castorp ouvia-o percorrer o aposento a passos
largos, e eram precisamente as horas, quatro vezes por dia, em que no Berghof predominava a
posição horizontal... Um ano e meio! E agora voltaria à planície, estaria em casa, apresentar-se-ia
realmente ao regimento, se bem que para isso tivesse apenas meia autorização. Não era
brinquedo, absolutamente! Hans Castorp tinha plena compreensão dos sentimentos do primo
que ali caminhava, irrequieto. Dezoito meses, todo o ciclo de um ano e mais a metade de outro –
Joachim passara-os nessas alturas, criando raízes profundas nesse solo, seguindo os trilhos do
regime que aqui vigorava, desse plano inalterável da vida de sanatório, que observara durante sete
vezes setenta dias, em todas as estações – e agora regressaria aos seus, viveria no “estrangeiro”,
entre os ignorantes! Quantas dificuldades de aclimatação não o esperariam lá embaixo? E seria de
admirar que não somente houvesse alegria na grande excitação de Joachim, senão também um
quê de angústia, de mágoa causada pela despedida de tantas coisas muitíssimo costumeiras? Sem
falar de Marusja...
Mas a alegria preponderava. O coração e a boca do bom Joachim estavam transbordantes
dela. Ocupava-se só de si próprio, desinteressando-se do futuro do primo. Dizia que tudo seria
novo e viçoso – a vida, ele mesmo, o tempo, cada dia, cada hora. Voltaria a desfrutar um tempo
valioso, anos de juventude que decorreriam lentamente e pesariam na balança. Falava da mãe, a
tia de Hans Castorp, que tinha os mesmos olhos meigos e negros de Joachim; da mãe que não
vira durante todo esse tempo passado nas montanhas, porque ela, esperando a volta do filho, do
mesmo modo que este, de mês em mês, de semestre em semestre, nunca se resolvera a visitá-lo.
Falava, com um sorriso entusiástico, do juramento à bandeira que prestaria dentro em breve: a
cerimônia solene era realizada em presença da bandeira, e jurava-se sobre o próprio estandarte. –
Não diga! – admirou-se Hans Castorp. – Seriamente? Sobre um pau e um pedaço de pano?
– Que costumes românticos! – observou o civil.
– Costumes que merecem a qualificação
de sentimentais e fanáticos.
A isso, Joachim limitou-se a sacudir a cabeça, cheio de orgulho e de felicidade.
Absorvia-se nos preparativos. Pagou a última conta na “administração”. Dias antes do
prazo que se fixara a si mesmo, começou a arrumar as malas. Emalou as roupas de verão e as de
inverno. Mandou o criado costurar dentro de uma capa de aniagem o saco de peles e os
cobertores de lã de camelo; talvez lhe pudessem ser úteis por ocasião das grandes manobras. Pôs
se a dizer “adeus” a todo mundo. Fez uma visita de despedida a Naphta e Settembrini – sozinho,
pois o primo não o acompanhou, dessa vez, nem tampouco perguntou pelo que o italiano
observara quanto à partida iminente de Joachim e à “não-partida” de Hans Castorp. Para este,
pouco importava saber se Settembrini dissera “Vejam só!” ou “Sim, sim, sim!”, ou talvez um e
outro, ou se ainda acrescentara “Poveretto!”
Chegou então a véspera da viagem, o dia em que Joachim percorreu pela última vez todas
as fases do programa diário, cada refeição, cada repouso, cada passeio, e também se despediu dos
médicos e da Superiora. E surgiu a própria manhã do dia da partida. Com os olhos ardentes e as
mãos frias, Joachim apareceu na hora do café. Não dormira a noite toda. Mal engoliu um bocado,
e quando a anã anunciou que a bagagem já se achava amarrada no carro, levantou-se de um pulo,
a fim de dizer adeus aos companheiros de mesa. A Srª. Stöhr verteu lágrimas, durante a
despedida, as lágrimas fáceis e insípidas peculiares às pessoas incultas; mas, por trás das costas de
Joachim, fez à professora uma careta, encolhendo os ombros e meneando a mão espalmada para
manifestar, de uma forma sumamente ordinária, as suas dúvidas quanto à propriedade da partida
do jovem e ao seu futuro bem-estar. Hans Castorp reparou nesse gesto, enquanto, já de pé,
esvaziava a sua xícara, para seguir o primo. Restava ainda distribuir as gorjetas e retribuir, no
vestíbulo, os cumprimentos oficiais de um emissário da “administração”. Como sempre, alguns
pensionistas estavam presentes para assistir ao bota-fora: a Srª. Iltis, com o “esterilete”, a Levi, a
moça da pele de marfim, o excêntrico Professor Popov, em companhia da noiva. Abanaram os
lenços, quando o coche, refreado nas rodas traseiras, desceu pela rampa. Joachim recebera um
ramalhete de rosas. Usava chapéu, ao contrário de Hans Castorp.
A manhã era magnífica, o primeiro dia de sol depois de muitos nublados. O Schiahorn, as
Grüne Türme, o cimo do Dorfberg, destacavam-se do azul como símbolos inabaláveis, e os olhos
de Joachim repousavam sobre eles. – É mesmo uma lástima – observou Hans Castorp – que o
tempo tenha melhorado tanto, precisamente no momento da partida. Parece que há nisso uma
certa maldade, uma vez que a impressão final desfavorável facilita a separação. – Ao que Joachim
replicou que não precisava de nada que lhe tornasse a separação mais fácil, e que esse tempo era
ótimo para o seu preparo militar. Assim se daria muito bem lá embaixo. Afora essas poucas
palavras, não falaram muito. Dada a situação de cada um deles em particular e a que existia entre
eles, realmente não sobrava assunto para grandes conversas. Além disso, o porteiro coxo achava
se sentado à sua frente, ao lado do cocheiro.
Eretos, sacudidos sobre o estofamento duro do carro, haviam deixado atrás o regato e os
trilhos de bitola estreita. Seguiram então a estrada espaçadamente ladeada de habitações e paralela
ao leito da via-férrea. Finalmente, pararam na praça pedregosa, em frente à estação de Davos
Dorf, que não era muito mais que um telheiro. Hans Castorp assustou-se ao reconhecer tudo
isso. Desde a sua chegada, que se realizara de tardezinha, fazia mais de treze meses, não voltara a
ver a estação. – Foi aqui que cheguei – constatou desnecessariamente, e Joachim limitou-se a
responder: – Pois é... – enquanto pagava o cocheiro.
O enérgico porteiro coxo dedicou-se à compra da passagem e ao despacho das bagagens.
Os primos achavam-se lado a lado sobre a plataforma, diante do trenzinho, junto do pequeno
compartimento forrado de cinzento, onde Joachim pusera o sobretudo, o cobertor de viagem
enrolado e as rosas, para reservar o seu lugar. – Bem, agora pode ir prestar o seu romântico
juramento – disse Hans Castorp, e Joachim tornou: – Sem falta! – E que mais? Encarregou o
outro de transmitir as últimas saudações, lembranças aos de baixo, lembranças aos de cima.
Depois, Hans Castorp limitou-se a desenhar com a bengala no asfalto. Quando soou o sinal
prevenindo os passageiros da iminência da partida, sobressaltou-se. Olhou Joachim, e este o
olhou por sua vez. Apertaram-se as mãos. Hans Castorp esboçou um sorriso indeciso, ao passo
que os olhos do primo mostravam-se sérios, tristes e insistentes. – Hans! – disse então... Grande
Deus! Onde, em todo o vasto mundo, já se viu uma coisa tão chocante? Joachim acabava de
tratar Hans Castorp pelo primeiro nome, não por “você” ou “rapaz”, como sempre havia feito;
desconsiderando todos os seus princípios de rigidez e de reserva, abandonando-se a uma
exuberância escandalosa, pronunciara o nome de batismo do primo. – Hans – repetiu, enquanto
lhe apertava a mão com uma pressa angustiada. Hans Castorp notou que a nuca de Joachim,
exausto pela insônia, pelo nervosismo da viagem e pelo abalo da despedida, tremia como fazia a
sua própria, quando estava “reinando”. – Hans – disse Joachim, instantemente —, não deixe de
seguir-me em breve! – Com isso saltou para o estribo. Fechou-se a porta. Ouviu-se um apito. Os
carros entrechocaram-se. A pequena locomotiva pôs-se em movimento. O trem estava partindo.
O viajante abanou o chapéu pela janela. O outro, que ficava atrás, respondeu com a mão. Com o
coração profundamente emocionado permaneceu ainda por muito tempo ali, sozinho. Depois,
regressou devagar pelo caminho que Joachim, havia mais de um ano, lhe tinha mostrado.
continua pág 277...
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Leia também:
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.