quinta-feira, 31 de julho de 2025

Massa e Poder - Malta e Religião: A Transformação das Maltas

Elias Canetti

MALTA E RELIGIÃO

      A Transformação das Maltas

     Todas as formas da malta, conforme descritas aqui, tendem a transformar-se umas nas outras. Constante como é em sua repetição, e por mais idêntica que seja a cada reaparecimento, a malta tem sempre algo de fluido em seu transcurso isolado e único.
      Já o atingimento da meta que almeja tem por consequência uma modificação inevitável em sua constituição. A caçada conjunta que obteve algum resultado conduz a uma partilha. À exceção dos casos “puros”, nos quais se trata unicamente de massacrar o inimigo, as vitórias degeneram em saque. — A lamentação termina com a remoção do morto; tão logo tenha sido colocado onde se quer, tão logo as pessoas sintam-se mais ou menos seguras em relação a ele, a excitação da malta arrefece, e seus integrantes se dispersam. Contudo, isso não esgota verdadeiramente o relacionamento com o morto. Supõe-se que ele siga vivendo em alguma parte, e, para obter auxílio ou conselho, é possível que voltem a mencioná-lo entre os vivos. Evocando seu morto, a malta de lamentação reconstitui-se, por assim dizer, mas o objetivo de sua conduta é agora oposto ao original. De alguma forma, o morto, antes removido, é trazido de volta para junto dos seus. — A dança dos búfalos dos mandans culmina com a chegada dos búfalos. Uma vez bem-sucedida, a malta de multiplicação transforma-se numa festa de partilha.
     Toda forma de malta tem, como se vê, um negativo no qual ela se transforma. Mas, paralelamente a essa passagem para o negativo, que parece natural, há ainda um movimento de natureza bastante diversa: a transformação umas nas outras de maltas distintas.
      Lembremos um tal caso, recordando aquela lenda dos arandas versando sobre seus antepassados. Um vigoroso canguru é pisoteado por muitos homens até a morte. Nesse ato, vitimado por seus companheiros, morre o próprio caçador, que é por eles enterrado solenemente: a malta de caça transforma-se aí em malta de lamentação. — Já se falou aqui em detalhes sobre o sentido da comunhão, onde a malta de caça transforma-se em malta de multiplicação. — Uma outra transformação pode ser encontrada no início das guerras: um homem é morto, e os membros de sua tribo lamentam sua morte; em seguida, porém, reúnem-se num grupo e partem para vingar tal morte no inimigo. A malta de lamentação converte-se aí em malta de guerra.
     A transformação das maltas é um processo notável. Ela ocorre por toda parte e deixa-se investigar nas mais diferentes esferas da atividade humana. Sem o seu conhecimento preciso, tornam-se absolutamente incompreensíveis os acontecimentos sociais, sejam de que natureza forem.
     Algumas dessas transformações foram retiradas de contextos mais amplos e estabelecidas. Adquiriram seu sentido particular e tornaram-se um ritual. Tais transformações realizam-se continuamente, e sempre de maneira idêntica. Elas constituem o verdadeiro conteúdo, o cerne de toda crença significativa. A dinâmica das maltas, e a maneira particular pela qual elas se interpenetram, explica a ascensão das religiões universais.
     A seguir, contemplar-se-ão algumas poucas formações sociais ou religiosas segundo as maltas que nelas predominam. Verificar-se-á, então, que existem religiões de caça e de guerra, de multiplicação e de lamentação. A despeito de seus parcos resultados, a caça encontra-se no centro da vida social dos leles, no Congo Belga. Os jivaros do Equador vivem exclusivamente para a guerra. Os índios pueblos, no Sul dos Estados Unidos, distinguem-se pela atrofia entre eles das atividades de caça e de guerra, e por uma espantosa repressão da lamentação: sua vida volta-se inteiramente para a multiplicação pacífica.
     Para a compreensão das religiões de lamentação, que em tempos históricos recobriram e reuniram a terra, voltar-nos-emos para o cristianismo e para uma variação do islamismo. Uma descrição do muharram dos xiitas deverá confirmar a posição central que a lamentação ocupa nesse tipo de crença. O derradeiro capítulo deste segmento será dedicado à descida do fogo sagrado da Páscoa na igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém. Trata-se da festa da ressurreição, na qual desemboca a lamentação cristã, sua justificativa e seu significado.

continua página 191...
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante 
.

     Deus sabe quantos trocadilhos o médico, na sua disposição sombria, ainda teria feito, não o tivessem desconcertado o aspecto imperturbável de Joachim e a sua manifesta intenção de falar, e de falar corajosamente. 

– Senhor conselheiro – disse o jovem –, eu lhe queria dar parte de que resolvi viajar. 
– Ora veja! Quer tornar-se viajante? Eu pensava que o senhor, uma vez curado, pretendia ingressar nas fileiras. 
– Não, senhor conselheiro, tenho de partir imediatamente, daqui a uns oito dias. 
– Escute! Será que o entendo bem? O senhor quer ir-se, quer pôr-se em fuga? Sabe que isso se chama deserção? 
– Não, senhor conselheiro, eu não o considero assim. Preciso apresentar-me ao meu regimento. 
– Mesmo que eu lhe diga que dentro de meio ano sem falta poderei autorizá-lo a partir, mas antes desse prazo, não? 

     Joachim ia assumindo atitude cada vez mais militar. Recolhendo o ventre, disse laconicamente, em voz sufocada: 

– Faz mais de um ano e meio que estou aqui, senhor conselheiro. Não posso esperar mais tempo. No começo, o senhor me disse: “Três meses”. Depois, o meu tratamento foi sucessivamente prolongado por outros três ou seis meses, e ainda não estou curado. 
– A culpa é minha? 
– Não, senhor conselheiro. Mas eu não posso esperar mais tempo. Não me é possível aguardar aqui a cura completa, a não ser que eu queira perder o momento oportuno. Tenho de partir logo. Necessito ainda de algum tempo para me equipar e para tomar diversas providências... 
– A sua família concorda com o seu procedimento? 
– Minha mãe está de acordo. Já ficou tudo combinado. A 1.° de outubro entrarei no Regimento 76, como aspirante. 
– Enfrentando todos os riscos? – perguntou Behrens, fixando nele os olhos injetados... 
– Sim, senhor conselheiro – respondeu Joachim, com os lábios trêmulos. 
– Hum! Está bem, Ziemssen – disse o conselheiro, mudando de expressão. Relaxando a sua posição, cedeu em toda a linha. – Está bem, Ziemssen. Mexa-se! Parta! Deus o acompanhe! Já vejo que o senhor sabe o que quer. Uma coisa é certa, que as conseqüências são da sua conta e não da minha, desde o momento em que o senhor toma a si a responsabilidade. Ajuda-te, e ajudar-te-ei. O senhor parte por sua conta e risco; eu não garanto nada. Mas, afinal, tudo pode sair bem. O senhor escolheu uma profissão que se exerce ao ar livre. É perfeitamente possível que se dê bem com ela e consiga triunfar. 
– Sim, senhor conselheiro. 
– E esse jovem da classe dos civis? Será que o senhor deseja participar da romaria? 

     Essa pergunta dirigia-se a Hans Castorp. Achava-se este ali, tão pálido como há um ano atrás, quando daquele exame do qual resultará o seu internamento; quedava-se no mesmo lugar de então; e novamente se viam com absoluta nitidez as batidas do seu coração, que pulsava à flor da pele.

– Para mim depende tudo da sua opinião, senhor conselheiro – respondeu. 
– Da minha opinião? Bem! – E puxando-o pelo braço, Behrens aproximou-o de si. Auscultou. Percutiu. Não ditou nada. A coisa foi rápida. Quando terminou, disse: 
– O senhor pode partir. 

     Hans Castorp balbuciou:

– Quer dizer... Mas como? Estou curado? 
– Sim, o senhor está curado. Daquele lugar à esquerda, em cima, já não vale a pena falar. Sua temperatura não pode ter relação com ele. Não sei dizer de onde ela vem. Acho que não tem grande importância. Quanto a mim, o senhor pode partir. 
– Mas, senhor conselheiro... Permita-me a pergunta... O senhor está falando sério? 
– Se eu falo sério? Mas como? Que ideia é essa? Eu queria saber o que o senhor pensa de mim. Por quem me toma? Por um dono de rendez-vous

     Era uma explosão de cólera. O azul das faces do médico intensificara-se, assumindo um tom violeta, devido à congestão ardente. A crispação unilateral do lábio, sob o bigodinho, acentuara-se violentamente, a ponto de descobrir os amarelados dentes de cima. Avançando como um touro a cabeça com os olhos saltados, lacrimosos e estriados de sangue, berrou: 

– Não admito isso! Antes de tudo fique sabendo que não sou dono de nada! Sou um funcionário desta empresa! Sou médico! Sou exclusivamente médico; o senhor me compreende? Não sou alcoviteiro, não sou nenhum Signor Amoroso da Via Toledo, na bela Nápoles; entendeu me bem? Sou um servidor da humanidade sofredora! E se os senhores tiverem formado uma opinião diferente a respeito da minha pessoa, podem ambos ir às favas ou ao diabo ou águas abaixo, conforme a sua livre escolha! Boa viagem!

     A passos longos e apressados saiu pela porta que dava para a antessala do gabinete de radiografia, e fechou-a estrondosamente atrás de si.
     Os primos olharam para o Dr. Krokowski em busca de um conselho. Mas este enterrou o nariz na papelada, que o absorvia por completo. Vestiram-se às pressas. Enquanto subiam pela escada, disse Hans Castorp:

– Foi terrível, aquilo. Você já o viu assim em outra ocasião? 
– Assim, nunca. São aqueles seus ataques de loucura cesárea. A única coisa que se pode fazer é aguentá-los sem perder a linha. Claro que ele estava nervoso por causa da história de Polypraxios e da Nölting. Mas você viu... – continuou Joachim, e era visível que o prazer de ter lutado com êxito lhe enchia o coração e lhe oprimia o peito – você viu como ele cedeu terreno e capitulou, quando percebeu que eu não estava brincando? Basta que a gente se mostre enérgico e não se deixe atemorizar. Agora recebi uma espécie de autorização... O próprio Behrens disse que, provavelmente, conseguirei triunfar... Daqui a oito dias partiremos... Em três semanas, já me apresentarei ao meu regimento – terminou, corrigindo-se a si próprio e limitando à sua própria pessoa esses projetos que lhe faziam a voz vibrar de alegria. 

     Hans Castorp permaneceu calado. Não comentou a “autorização” de Joachim, nem tampouco a sua própria, da qual igualmente poderia ter falado. Preparou-se para o repouso. Introduziu o termômetro na boca. Com umas poucas manobras velozes e precisas, cheias de arte aperfeiçoada, envolveu-se nos seus dois cobertores de lã de camelo, em conformidade com aquela prática sagrada da qual ninguém tinha ideia na planície. Depois, deixou-se ficar estendido, imóvel, transformado num rolo simétrico, sobre a excelente espreguiçadeira, no meio da umidade fria da tarde de princípios de outono.
     As nuvens carregadas de chuva deslizavam muito baixo. A bandeira do estabelecimento achava-se arriada. Restos de neve encontravam-se nos galhos molhados do abeto. Do alpendre do andar térreo, donde, fazia mais de um ano, ressoara pela primeira vez a voz do Sr. Albin, o murmúrio de conversas abafadas subia até os ouvidos do jovem que cumpria o seu serviço, enquanto seus dedos e seu rosto rapidamente se tornavam frios, úmidos e enregelados. Hans Castorp estava acostumado a isso e aceitava com gratidão o estilo de vida ali de cima, que havia muito era para ele o único imaginável e lhe outorgava a bênção de ficar deitado ao abrigo de tudo e de poder entregar-se a toda sorte de pensamentos.
     Era coisa resolvida. Joachim partiria. Radamanto dera-lhe alta – não rite, não como curado, mas em todo caso dera-lhe alta, com uma meia aprovação, em virtude da sua atitude firme. O primo viajaria no trem de bitola estreita, desceria à “baixada”, até Landquart, até Romanshorn, para depois transpor o vasto e profundo lago, sobre o qual cavalgara o cavaleiro da lenda; e finalmente, regressaria, atravessando a Alemanha inteira. Viveria lá embaixo, no ambiente da planície, rodeado de pessoas que ignoravam por completo como se devia viver, que nada sabiam do termômetro, nem da arte de se envolver nos cobertores, do saco de peles, dos três passeios cotidianos, de... Era difícil, difícil esgotar tudo quanto desconheciam lá embaixo. Mas a ideia de que Joachim, depois de ter passado mais de um ano e meio ali em cima, viveria doravante entre os ignorantões – essa ideia que só dizia respeito a Joachim, e apenas vaga, hipoteticamente, a ele, Hans Castorp, perturbou-o de tal forma que fechou os olhos e fez com a mão um gesto de defesa. – Impossível, impossível! – murmurou.
     Uma vez que era impossível, continuaria ele a viver ali em cima sozinho, sem Joachim? Sim. Por quanto tempo? Até que Behrens lhe desse alta como curado, e isso seriamente, não como acabava de fazê-lo. Mas, em primeiro lugar era esse momento de tal forma indeterminado, que para fixá-lo só se podia repetir aquele gesto vago que Joachim esboçara em certa ocasião; e, em segundo lugar, era duvidoso que o impossível de agora se tornasse mais possível no futuro. O contrário parecia mais provável. Era preciso reconhecer lealmente que nesse momento em que o impossível talvez ainda não fosse tão impossível como o seria mais tarde, uma mão estava sendo estendida para segurá-lo; pelo fato da partida “em falso” de Joachim, eram-lhe oferecidos um bastão e um guia para conduzi-lo à planície, para onde ele, pela sua própria força, jamais encontraria o caminho. A pedagogia humanística, se ficasse sabendo dessa oportunidade, quanto não o exortaria a que agarrasse o bastão e aceitasse o guia! Ora, o Sr. Settembrini representava coisas e potências interessantes, sem dúvida, mas não exclusivas e absolutas; e o mesmo ocorria com Joachim. O primo era militar. Partia, quase na hora do projetado regresso de Marusja, a moça dos seios opulentos, que, como sabemos, devia voltar a 1.° de outubro. Ao civil Hans Castorp, porém, a partida afigurava-se impossível precisamente porque ele tinha de esperar por Clávdia Chauchat, de cuja volta, por enquanto, nem sequer se falava. “Eu não o considero assim”, dissera o primo, quando Radamanto usara o termo “deserção”, que, com referência a Joachim, evidentemente não passava de um disparate e de um exagero do médico agastado. Mas ao civil apresentavam-se as coisas sob um aspecto diferente. No seu caso – ah, indubitavelmente era assim, e fora na intenção de desenvolver essa ideia decisiva do complexo dos seus sentimentos que se estendera na espreguiçadeira, apesar do frio úmido – no seu caso seria mesmo desertar se ele aproveitasse a ocasião e partisse mais ou menos “em falso” para a planície; fugiria então das responsabilidades que se desdobravam diante dele, devido à visão daquela forma sublime que se chamava Homo Dei; desatenderia os deveres que lhe impunha o seu “reino”, deveres laboriosos e excitantes, que ultrapassavam as suas forças inatas e todavia o enchiam de uma felicidade aventurosa, quando se consagrava a eles no seu compartimento de sacada ou naquele lugar florido de azul.
     Hans Castorp tirou o termômetro da boca, com tamanha violência como só lhe acontecera numa única ocasião: quando o usara pela primeira vez, logo depois de ter adquirido da Superiora o delgado instrumento. Examinou-o com a mesma curiosidade de então. O mercúrio subira consideravelmente. Mostrava 37,8 – quase 9.
     O jovem jogou para longe os cobertores, levantou-se de um salto, deu alguns passos rápidos através do quarto, em direção à porta do corredor. Depois voltou à cadeira. Achando-se novamente na posição horizontal, chamou em voz baixa a Joachim e informou-se da temperatura do primo. 

– Não tirei – respondeu este.
– Bem, eu tenho tempus – disse Hans Castorp, servindo-se da expressão da Srª. Stöhr. Joachim, atrás da divisão de vidro, permaneceu silencioso.

     Mais tarde nada disse tampouco, nem nesse dia nem nos seguintes. Não fez perguntas a respeito dos projetos e das decisões de Hans Castorp, que, dada a brevidade do prazo, tinham de se revelar naturalmente, por atos ou pela ausência de atos. E foi a segunda alternativa que se deu. Hans Castorp parecia ter aderido ao quietismo, segundo o qual agir significava ofender a Deus, que se reserva o privilégio de fazê-lo. Em todo caso limitara-se sua atividade, nesses últimos dias, a uma visita a Behrens, da qual Joachim sabia, e cujo resultado lhe era fácil imaginar. O primo havia declarado que se permitia recordar as numerosas advertências antigas que o conselheiro lhe fizera no sentido de que esperasse a cura completa, para que não tivesse necessidade de voltar, e atribuir-lhes maior importância do que às palavras veementes, pronunciadas num minuto de exaspero. Tinha 37,8 e não se podia considerar como formalmente autorizado a partir. A não ser que aquilo que o conselheiro proferira naquela ocasião devesse ser interpretado como uma expulsão – medida que ele, Hans Castorp, não achava merecer –, desejava comunicar a sua decisão, à qual chegara pelo caminho do raciocínio calmo e em desacordo consciente com Joachim: permaneceria por enquanto ali e aguardaria sua desintoxicação total. A isso, o médico respondera aproximadamente: “Muito bem” e “Vamos pôr uma pedra no que se passou!” e “Isso é falar razoavelmente. Eu vi logo que o senhor tem mais talento para ser um bom paciente do que aquele desertor, aquele ferrabrás”. E outras coisas nesse gênero.
     Fora esse, segundo as conjeturas mais ou menos exatas de Joachim, o curso da entrevista. Por isso não disse nada. Apenas verificou em silêncio que Hans Castorp não imitava as medidas que ele mesmo tomava para preparar a viagem. Por outro lado, o bom Joachim andava mais que atarefado com os seus próprios problemas. Realmente não lhe era possível preocupar-se com a sorte e o futuro domicílio do primo. Uma tempestade agitava-lhe o peito, como facilmente se pode compreender. Ainda bem que tinha deixado de tomar a temperatura pretendendo que o termômetro se quebrara, caindo no chão; se a houvesse tomado, teria talvez obtido resultados perturbadores, sobreexcitado como estava, possuído de alegria e de impaciência, que ora lhe abrasavam as faces com um ardor sombrio, ora as faziam empalidecer. Já não era capaz de permanecer deitado. Durante todo o dia, Hans Castorp ouvia-o percorrer o aposento a passos largos, e eram precisamente as horas, quatro vezes por dia, em que no Berghof predominava a posição horizontal... Um ano e meio! E agora voltaria à planície, estaria em casa, apresentar-se-ia realmente ao regimento, se bem que para isso tivesse apenas meia autorização. Não era brinquedo, absolutamente! Hans Castorp tinha plena compreensão dos sentimentos do primo que ali caminhava, irrequieto. Dezoito meses, todo o ciclo de um ano e mais a metade de outro – Joachim passara-os nessas alturas, criando raízes profundas nesse solo, seguindo os trilhos do regime que aqui vigorava, desse plano inalterável da vida de sanatório, que observara durante sete vezes setenta dias, em todas as estações – e agora regressaria aos seus, viveria no “estrangeiro”, entre os ignorantes! Quantas dificuldades de aclimatação não o esperariam lá embaixo? E seria de admirar que não somente houvesse alegria na grande excitação de Joachim, senão também um quê de angústia, de mágoa causada pela despedida de tantas coisas muitíssimo costumeiras? Sem falar de Marusja...
     Mas a alegria preponderava. O coração e a boca do bom Joachim estavam transbordantes dela. Ocupava-se só de si próprio, desinteressando-se do futuro do primo. Dizia que tudo seria novo e viçoso – a vida, ele mesmo, o tempo, cada dia, cada hora. Voltaria a desfrutar um tempo valioso, anos de juventude que decorreriam lentamente e pesariam na balança. Falava da mãe, a tia de Hans Castorp, que tinha os mesmos olhos meigos e negros de Joachim; da mãe que não vira durante todo esse tempo passado nas montanhas, porque ela, esperando a volta do filho, do mesmo modo que este, de mês em mês, de semestre em semestre, nunca se resolvera a visitá-lo. Falava, com um sorriso entusiástico, do juramento à bandeira que prestaria dentro em breve: a cerimônia solene era realizada em presença da bandeira, e jurava-se sobre o próprio estandarte. – Não diga! – admirou-se Hans Castorp. – Seriamente? Sobre um pau e um pedaço de pano?

– Que costumes românticos! – observou o civil. 
– Costumes que merecem a qualificação de sentimentais e fanáticos. 

     A isso, Joachim limitou-se a sacudir a cabeça, cheio de orgulho e de felicidade.
     Absorvia-se nos preparativos. Pagou a última conta na “administração”. Dias antes do prazo que se fixara a si mesmo, começou a arrumar as malas. Emalou as roupas de verão e as de inverno. Mandou o criado costurar dentro de uma capa de aniagem o saco de peles e os cobertores de lã de camelo; talvez lhe pudessem ser úteis por ocasião das grandes manobras. Pôs se a dizer “adeus” a todo mundo. Fez uma visita de despedida a Naphta e Settembrini – sozinho, pois o primo não o acompanhou, dessa vez, nem tampouco perguntou pelo que o italiano observara quanto à partida iminente de Joachim e à “não-partida” de Hans Castorp. Para este, pouco importava saber se Settembrini dissera “Vejam só!” ou “Sim, sim, sim!”, ou talvez um e outro, ou se ainda acrescentara “Poveretto!”
     Chegou então a véspera da viagem, o dia em que Joachim percorreu pela última vez todas as fases do programa diário, cada refeição, cada repouso, cada passeio, e também se despediu dos médicos e da Superiora. E surgiu a própria manhã do dia da partida. Com os olhos ardentes e as mãos frias, Joachim apareceu na hora do café. Não dormira a noite toda. Mal engoliu um bocado, e quando a anã anunciou que a bagagem já se achava amarrada no carro, levantou-se de um pulo, a fim de dizer adeus aos companheiros de mesa. A Srª. Stöhr verteu lágrimas, durante a despedida, as lágrimas fáceis e insípidas peculiares às pessoas incultas; mas, por trás das costas de Joachim, fez à professora uma careta, encolhendo os ombros e meneando a mão espalmada para manifestar, de uma forma sumamente ordinária, as suas dúvidas quanto à propriedade da partida do jovem e ao seu futuro bem-estar. Hans Castorp reparou nesse gesto, enquanto, já de pé, esvaziava a sua xícara, para seguir o primo. Restava ainda distribuir as gorjetas e retribuir, no vestíbulo, os cumprimentos oficiais de um emissário da “administração”. Como sempre, alguns pensionistas estavam presentes para assistir ao bota-fora: a Srª. Iltis, com o “esterilete”, a Levi, a moça da pele de marfim, o excêntrico Professor Popov, em companhia da noiva. Abanaram os lenços, quando o coche, refreado nas rodas traseiras, desceu pela rampa. Joachim recebera um ramalhete de rosas. Usava chapéu, ao contrário de Hans Castorp.
     A manhã era magnífica, o primeiro dia de sol depois de muitos nublados. O Schiahorn, as Grüne Türme, o cimo do Dorfberg, destacavam-se do azul como símbolos inabaláveis, e os olhos de Joachim repousavam sobre eles. – É mesmo uma lástima – observou Hans Castorp – que o tempo tenha melhorado tanto, precisamente no momento da partida. Parece que há nisso uma certa maldade, uma vez que a impressão final desfavorável facilita a separação. – Ao que Joachim replicou que não precisava de nada que lhe tornasse a separação mais fácil, e que esse tempo era ótimo para o seu preparo militar. Assim se daria muito bem lá embaixo. Afora essas poucas palavras, não falaram muito. Dada a situação de cada um deles em particular e a que existia entre eles, realmente não sobrava assunto para grandes conversas. Além disso, o porteiro coxo achava se sentado à sua frente, ao lado do cocheiro.
     Eretos, sacudidos sobre o estofamento duro do carro, haviam deixado atrás o regato e os trilhos de bitola estreita. Seguiram então a estrada espaçadamente ladeada de habitações e paralela ao leito da via-férrea. Finalmente, pararam na praça pedregosa, em frente à estação de Davos Dorf, que não era muito mais que um telheiro. Hans Castorp assustou-se ao reconhecer tudo isso. Desde a sua chegada, que se realizara de tardezinha, fazia mais de treze meses, não voltara a ver a estação. – Foi aqui que cheguei – constatou desnecessariamente, e Joachim limitou-se a responder: – Pois é... – enquanto pagava o cocheiro.
     O enérgico porteiro coxo dedicou-se à compra da passagem e ao despacho das bagagens. Os primos achavam-se lado a lado sobre a plataforma, diante do trenzinho, junto do pequeno compartimento forrado de cinzento, onde Joachim pusera o sobretudo, o cobertor de viagem enrolado e as rosas, para reservar o seu lugar. – Bem, agora pode ir prestar o seu romântico juramento – disse Hans Castorp, e Joachim tornou: – Sem falta! – E que mais? Encarregou o outro de transmitir as últimas saudações, lembranças aos de baixo, lembranças aos de cima. Depois, Hans Castorp limitou-se a desenhar com a bengala no asfalto. Quando soou o sinal prevenindo os passageiros da iminência da partida, sobressaltou-se. Olhou Joachim, e este o olhou por sua vez. Apertaram-se as mãos. Hans Castorp esboçou um sorriso indeciso, ao passo que os olhos do primo mostravam-se sérios, tristes e insistentes. – Hans! – disse então... Grande Deus! Onde, em todo o vasto mundo, já se viu uma coisa tão chocante? Joachim acabava de tratar Hans Castorp pelo primeiro nome, não por “você” ou “rapaz”, como sempre havia feito; desconsiderando todos os seus princípios de rigidez e de reserva, abandonando-se a uma exuberância escandalosa, pronunciara o nome de batismo do primo. – Hans – repetiu, enquanto lhe apertava a mão com uma pressa angustiada. Hans Castorp notou que a nuca de Joachim, exausto pela insônia, pelo nervosismo da viagem e pelo abalo da despedida, tremia como fazia a sua própria, quando estava “reinando”. – Hans – disse Joachim, instantemente —, não deixe de seguir-me em breve! – Com isso saltou para o estribo. Fechou-se a porta. Ouviu-se um apito. Os carros entrechocaram-se. A pequena locomotiva pôs-se em movimento. O trem estava partindo. O viajante abanou o chapéu pela janela. O outro, que ficava atrás, respondeu com a mão. Com o coração profundamente emocionado permaneceu ainda por muito tempo ali, sozinho. Depois, regressou devagar pelo caminho que Joachim, havia mais de um ano, lhe tinha mostrado.

continua pág 277...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

sábado, 19 de julho de 2025

Cinema Cult : A Tabacaria

A Tabacaria


"Franz é um rapaz de 17 anos que chega a Viena para trabalhar como aprendiz. Ali, ele conhece Sigmund Freud, um cliente frequente. Com o passar do tempo, apesar de origens muito distintas, os dois desenvolvem uma amizade única. Quando Franz se apaixona perdidamente pela dançarina Anezka, ele busca os conselhos de seu amigo Sigmund, que, apesar de ser um renomado psicanalista, admite que o feminino é um grande mistério, têm uma grande potência."


A Tabacaria (Der Trafikant)




"O romance Der Trafikant, escrito pelo austríaco Robert Seethaler em 2012, tornou-se um best seller. Vendeu mais de 500 mil exemplares na sua edição original em alemão. Conta uma história envolvente, sobre o amadurecimento forçado de um rapaz inocente, diante do horror que toma conta da Áustria, quando os nazistas assaltam o poder. Para desenvolver as múltiplas camadas do seu jovem protagonista, o autor inventou uma alegoria engenhosa e provocativa: construiu uma amizade entre ele e ninguém menos do que Sigmund Freud, talvez uma das mais proeminentes personalidades do seu país. Tal relacionamento é fictício, mas plausível. Suficiente para sustentar uma narrativa envolvente e sensível, que revela os traços de todos os personagens enquanto eles sofrem com os desmandos do autoritarismo."


DIREÇÃO: 
Nikolaus Leytner

ELENCO: 
Alexander E. Fennon - Gestapo Recepti 
Angelika Strahser - Mrs. Veithammer
Anton Algrang - 
Barbara Spitz - Mrs. Buccleton
Bruno Ganz - Sigmund Freud
Bruno Thost - 
Carl Achleitner - Priest
Christoph Bittenauer - Jahrmarkusrufer
David Altman - Truck driver
Elfriede Irrall - Martha Freud
Erni Mangold - Lady with Fur Hat
Erol Nowak - 
Fritz Egger - Preininger
Gerhard Liebmann Heinzi -
Gerti Drassl - Doctor's Wife 
Gottfried Breitfuss - Engineer 
Haymon Maria Buttinger -  
Hermann Scheidleder - Fat Man 
Jasmin Barbara Mairhofer - Cabaret Waitress 
Johannes Krisch - Otto Trsnjek 
Karoline Eichhorn - Anna Freud 
Lukas Lobis - 
Manuel Celeda
Martin Oberhauser - Ober Kaffeehaus 
Martin Thaler - 
Michael Fitz - Roter Egon 
Rainer Doppler - 
Rainer Wöss - Mr. Rosshuber 
Regina Fritsch - Margarete Huchel 
Robert Seethaler - 
Sabine Herget - Mrs. Rosshuber 
Simon Morzé - Franz Huchel 
Thomas Mraz - Conferencier 
Tobias Ofenbauer - 
Tom Hanslmaier - Offizier 
Victoria Nikolaevskaja 
Vicky Nikolaevskaja - Freundin 

PAÍS/ANO DE PRODUÇÃO: 
Austria, Alemanha/2018

CLASSIFICAÇÃO: 16 anos

A Tabacaria

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante 
.

     Dessa forma veio o mês de agosto e, logo no seu princípio, o primeiro aniversário da chegada do nosso herói. Felizmente, a data passou despercebida. Ainda bem que foi assim. Hans Castorp pressentira-a com certo mal-estar. E isso era a regra ali em cima. Ninguém gostava do dia da chegada. Os veteranos e mesmo os pensionistas com apenas um ano de permanência não costumavam comemorá-lo. Se bem que normalmente se aproveitasse qualquer pretexto para festividades e bebedeiras alegres, se bem que o número dos acentos gerais e importantes que marcavam o ritmo e a pulsação do ano fosse aumentado por muitíssimos outros de natureza privada e irregular, se bem que aniversários natalícios, exames médicos, iminências de partidas, quer autorizadas, quer “em falso”, dessem motivos para comezainas no restaurante e para festins regados a champanha, essa data habitualmente era relegada ao silêncio. Os pensionistas passavam por cima dela ou esqueciam-na realmente. Em todo caso, podiam-se fiar em que os outros tampouco a recordariam com muita precisão. Sem dúvida, era costume prestar atenção às subdivisões do tempo; observava-se o calendário, a sucessão, a volta de determinado dia. Mas medir e contar aquele tempo que para uma certa pessoa se associava ao espaço ali de cima – isto é, o tempo particular e individual – cabia a principiantes e a pacientes de curto prazo; os mais traquejados preferiam a imensidão, a eternidade despercebida, o dia que era sempre o mesmo, e cada um tinha suficiente delicadeza para supor nos demais o desejo que ele próprio alimentava. Dizer a um enfermo: “Hoje faz três anos que o senhor está aqui”, seria julgado inábil e brutal. Era coisa que não acontecia. A própria Srª. Stöhr, por maiores que fossem os seus defeitos, demonstrava nesse ponto bastante tato e polidez, de maneira que nunca cometeria tamanha gafe. Sua enfermidade, o estado febril de seu corpo, estavam ligados, inegavelmente, a uma crassa ignorância. Havia só poucos dias, ela falara à mesa da “afetação” dos ápices dos seus pulmões, e durante uma conversa sobre assuntos históricos, declarara que as datas dos grandes feitos da história eram para ela uma espécie de “anel de Polícrates”, deixando estupefatos os comensais. Era, porém, inimaginável que fosse recordar, em fevereiro, ao jovem Ziemssen a data do seu jubileu, ainda que talvez se lembrasse dela; pois a sua infortunada cabeça estava naturalmente cheia de datas e coisas inúteis, e a Srª. Stöhr gostava de fazer as contas dos outros. Mas a tradição impedia-a de falar.
     E o mesmo se deu no aniversário da chegada de Hans Castorp. No curso da refeição, a desgraçada procurara uma vez piscar-lhe o olho de modo significativo; mas como a fisionomia do jovem não desse nenhum sinal de compreensão, apressara-se a bater em retirada. Também Joachim deixará de manifestar-se, e todavia não esquecera a data em que fora à estação de Davos Dorf para receber o primo visitante. Mas Joachim, por natureza pouco inclinado a conversar – muito menos do que Hans Castorp se mostrava ali em cima, sem falar de certos humanistas e disputadores da sua roda —, Joachim exibia nos últimos tempos uma taciturnidade singular e surpreendente. Só se expressava em monossílabos, embora o seu semblante revelasse um violento trabalho interior. Era evidente que a estação de Davos-Dorf despertava nele outras ideias que não as de chegada e de recepção... Mantinha intensa correspondência com a planície. Dentro dele, decisões iam amadurecendo. Os preparativos que fazia aproximavam-se do fim.
     O mês de julho fora quente e cheio de sol. Mas com o princípio do novo mês irrompeu uma onda de mau tempo, com uma umidade brumosa e com chuvas mescladas de neve, seguidas de uma nevada incontestável. Esse tempo estendeu-se, interrompido por alguns esplêndidos dias de verão, além dos fins de agosto, até pleno setembro. No começo, os quartos continuavam conservando o calor do período estival precedente; registravam-se dez graus no seu interior, o que passava por temperatura agradável. Mas aos poucos aumentava o frio, e o aspecto da neve que caía sobre o vale causou viva satisfação, porque só ele – a queda de temperatura não teria bastado – decidiu a “administração” a acender o aquecimento central, em primeiro lugar na sala de refeições e depois também nos quartos; e quem, após ter cumprido o dever do repouso, se desembaraçasse dos seus dois cobertores e, abandonando a sacada, entrasse no aposento, podia tocar com as mãos úmidas e enregeladas os radiadores reanimados, cuja emanação seca intensificava o ardor das faces.
     Era isso o inverno? Os sentidos dificilmente se esquivavam a essa impressão, e todos lamentavam “terem sido roubados do verão”, posto que eles mesmos, ajudados por circunstâncias artificiais e naturais, por um pródigo consumo de tempo, o tivessem escamoteado a si próprios. A razão argumentava que ainda viriam uns belos dias de outono, talvez até toda uma série deles, e de tamanho esplendor cálido que não seria excessiva honra atribuir-lhes o nome de verão – uma vez que se fizesse abstração da órbita do sol já menos oblíqua e do fato de anoitecer mais cedo. Mas o efeito que a paisagem hibernal exercia sobre a alma era mais forte do que esse tipo de consolo.. Os enfermos colocavam-se junto à porta cerrada da loggia e contemplavam com repugnância o torvelinho que se abatia lá fora. Pelo menos era essa a atitude de Joachim, que disse numa voz oprimida: 

– Será que aquilo vai recomeçar agora?

     Hans Castorp respondeu do fundo do quarto: 

– Seria um pouco prematuro. Só pode ser passageiro, apesar da aparência terrivelmente definitiva. Se o inverno consiste na escuridão, na neve, no frio e nos radiadores quentes, temos outra vez inverno; não há como negar. E quando considero que o inverno apenas acaba de terminar e mal passou o degelo – em todo caso nos parece que recém-saídos da primavera; não acha também? –, bem, então tomo um susto, francamente! Essas ideias são perigosas para o nosso otimismo. Vou lhe explicar por quê. Quero dizer que o mundo normalmente está organizado de maneira a corresponder às necessidades do homem e a estimular-lhe a alegria de viver; isso se deve admitir. Não vou ao ponto de dizer que a ordem natural das coisas, por exemplo, o tamanho da Terra, o tempo que ela precisa para dar uma volta em torno de si mesma e em torno do Sol, o ciclo das estações, o ritmo cósmico, se o quer chamar assim – que tudo isso obedeça às nossas necessidades; tal afirmação seria muito pretensiosa e simplista; seria pura ideologia, como dizem os filósofos. Mas o caso é que as nossas necessidades e os fatos básicos e gerais da natureza estão, graças a Deus, de acordo uns com os outros. Digo: “Graças a Deus!” porque aí temos realmente um motivo para dar graças a Ele. Na planície, quando vem o verão ou o inverno, já passou tanto tempo desde o verão ou o inverno anterior, que a estação que chega nos é outra vez nova e bem-vinda, e disso deriva a alegria de viver. Mas aqui em cima essa ordem e esse acordo têm sido perturbados, primeiro porque no fundo não há verdadeiras estações, como você mesmo me disse certa vez, mas somente dias de inverno e dias de verão pêle-mêle, numa completa mixórdia, e segundo porque aquilo que decorre para nós aqui não é tempo, de maneira que o inverno, quando chega, não é novo, mas sim o mesmo que o passado. Daí se explica o mau humor com que você está olhando pela janela. 
– Muito obrigado – disse Joachim. – E agora que você me explicou o fato, parece-me tão satisfeito que até se conforma com a coisa em si, apesar de que ela... Não senhor! – exclamou Joachim. – Basta! Isso é uma porcaria! Tudo é uma enorme e nojenta porcaria! E se você, pela sua conta... Eu... – A passo apressado saiu do quarto, fechando furiosamente a porta atrás de si e, se não enganavam todos os sinais, havia lágrimas nos seus belos e brandos olhos.

     O outro ficou atrás, consternado. Não tomara muito a sério certas decisões do primo, enquanto este se limitara a ameaças feitas em altos brados. Agora, porém, que alguma força operava silenciosamente no interior de Joachim e o primo se comportava como acabava de fazer, Hans Castorp aterrorizou-se, porque compreendia que esse militar era bastante homem para passar a agir. E o jovem ficou pálido de medo, medo que sentia por ambos, pelo outro e por si próprio. “Fort possible qu'il aille mourir”, pensou, e como isso indubitavelmente fosse uma sabedoria de terceira mão, mesclou-se com ela ainda a tortura de uma velha e jamais tranquilizadora suspeita, enquanto continuava a cismar: “Será possível que ele me vá deixar sozinho aqui em cima, a mim que somente subi para visitá-lo?” E daí chegou a acrescentar: “Mas isso seria maluco e horroroso, a tal ponto que sinto como meu rosto se gela e meu coração lateja desordenadamente. Pois se eu ficar sozinho nestas alturas – e é isso o que farei, se ele partir; que o acompanhe absolutamente não entra em questão! —, nesse caso (agora o meu coração parou por completo!), nesse caso é para sempre, é para todos os tempos, porque eu sozinho nunca na vida reencontrarei o caminho que conduz à planície...”
     Tais foram as temerosas reflexões de Hans Castorp. Aquela mesma tarde devia trazer-lhe certeza sobre o curso do porvir. Joachim declarou as suas intenções. Foram lançados os dados. Caiu o golpe decisivo.
     Depois do chá desceram ao bem-iluminado subterrâneo para apresentar-se ao exame mensal. Era em princípios de setembro. Ao entrarem na atmosfera seca do consultório encontraram o Dr. Krokowski sentado no seu lugar diante da escrivaninha, ao passo que o conselheiro, com as faces muito azuladas, e com os braços cruzados, encostava-se à parede. Com o estetoscópio, que segurava numa das mãos, ia dando leves golpes no seu ombro. Bocejou em direção ao teto. – Bom dia, meus filhos – disse em voz fatigada. No decorrer da cena que se seguiu, continuou manifestando uma disposição bastante lânguida, cheia de melancolia e de renúncia geral. Provavelmente acabava de fumar. Mas tivera também alguns desgostos autênticos, dos quais os primos já tinham ouvido falar, incidentes de sanatório, de um gênero suficientemente conhecido. Tratava-se de uma jovem, de nome Ammy Nölting, que se internara no Berghof pela primeira vez no outono do ano retrasado e recebera alta nove meses depois, em agosto; mas já em setembro reaparecera, porque não “se sentira bem” em casa; em fevereiro, fora novamente mandada para a planície, com pulmões onde já não se percebia o menor ruído estranho; mas em meados de julho voltara a ocupar o seu lugar à mesa da Srª. Iltis. Haviam surpreendido a dita Ammy, à uma hora da madrugada, em companhia de um enfermo chamado Polypraxios, o mesmo grego que na noite do carnaval causara sensação pela elegância das suas pernas, um jovem químico, cujo pai possuía uma fábrica de tintas no Pireu. Polypraxios fora apanhado no quarto de Ammy, por uma amiga loucamente enciumada, que ali chegara pelo mesmo caminho que ele, isto é, pelas sacadas, e, dilacerada de mágoa e de raiva diante do quadro que se lhe oferecera, fizera uma gritaria medonha, alarmando todo mundo e dando origem a um escândalo extraordinário. Behrens vira-se obrigado a despedir os três, o ateniense, a Nölting e a amiga, que, de tanta paixão, não se importara com a própria honra. Acabava de discutir o chocante assunto com o assistente a cuja clientela particular haviam pertencido tanto Ammy como a amiga. Ainda durante o exame dos primos prosseguiu preocupando-se com o caso, num tom sombrio e resignado; era um perito tão consumado na arte da auscultação que sabia explorar o interior de um enfermo enquanto falava de outra coisa, e ainda ditava ao assistente os fenômenos verificados. 

– Pois é, gentlemen, sempre essa maldita libido! – disse. – Claro que os senhores se divertem com a história. Pouco se lhes dá... Vesicular... Mas um diretor de sanatório fica com nojo dessas coisas; podem... Maciez... podem me acreditar. Que culpa tenho eu de que a tísica ande frequentemente acompanhada de extrema concupiscência? Respiração levemente rude... Não fui eu quem arranjou o mundo dessa maneira. Mas antes que a gente se dê conta disso, acha-se no papel de um dono de rendez-vous. Diminuição do murmúrio, abaixo da axila esquerda... Temos a análise, proporcionamos oportunidades para desabafarem. Que adianta? Quanto mais se abrem esses piratas, mais assanhados se tornam. Eu recomendo as matemáticas... Aqui melhorou; desapareceram os roncos... A ocupação com as matemáticas, digo eu, é o melhor remédio que existe contra a lascívia. O Promotor Paravant, que muito sofria da tentação, meteu-se a estudá-las. Anda às voltas com a quadratura do círculo e sente-se bastante aliviado. Mas a maioria é por demais estúpida e preguiçosa para isso; quê Deus lhes perdoe!... Vesicular... Olhe, eu sei perfeitamente que a mocidade aqui em cima facilmente toma um mau caminho e se deprava por completo. Antigamente fiz algumas tentativas de intervir nesses casos de devassidão. Mas aconteceu que qualquer irmão ou noivo me perguntava à queima-roupa o que eu tinha com isso. Desde então limito-me a ser um simples médico e nada mais. Ligeiro estertor à direita, na parte superior...

     Estava terminado o exame de Joachim. O Dr. Behrens enfiou o estetoscópio no bolso do avental e esfregou os olhos com a manzorra esquerda, como costumava fazer, quando “se ausentava” ou se sentia melancólico. Quase maquinalmente, entre bocejos mal-humorados, recitou a sua lição: 

– Pois então, Ziemssen, ânimo! É verdade que nem tudo corre exatamente como o exige o manual de fisiologia. Aqui e ali anda ainda encrencado, e o senhor, por enquanto não liquidou a sua conta com Gaffky. Pelo contrário, comparado com a última vez, até subiu um grau na escala. Desta vez são seis. Mas não chore por causa disso! Quando chegou aqui, estava mais doente do que hoje; isso lhe dou por escrito. E se o senhor ficar conosco ainda uns cinco ou seis menses... Não acha que menses soa melhor do que meses? Eu tenciono só dizer menses, daqui em diante... 
– Senhor conselheiro... – começou Joachim. Estava de pé, com o torso desnudo, numa atitude tesa. Tinha o peito saliente, os calcanhares unidos e as mesmas manchas terrosas no rosto que tivera em certa ocasião, quando Hans Castorp pela primeira vez notara que esse era o modo como empalidecia a tez bronzeada. 
– Se o senhor – prosseguiu Behrens, sem se importar com a interrupção – continuar aqui cumprindo religiosamente os deveres do regime, durante meio ano, pouco mais ou menos, será um homem curado e poderá tomar Constantinopla de assalto. Terá bastante fortaleza para conquistar todas as fortalezas que quiser...

continua pág 272...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Massa e Poder - A Malta: As Formações Humanas dos Arandas

Elias Canetti

A MALTA

      As Formações Humanas dos Arandas

     Ambas as lendas tratando de antepassados que acabamos de conhecer foram extraídas do livro de Spencer e Gillen sobre a tribo dos arandas (chamados por eles de “arunta”). A maior parte dessa famosa obra é dedicada à descrição de suas festas e cerimônias. Dificilmente se poderia ter uma ideia exagerada da multiplicidade destas. Particularmente notável é a riqueza de formações que os participantes constroem no decorrer dessas cerimônias. Trata-se, em parte, de formações que conhecemos muito bem, porque conservaram seu significado até os nossos dias; em parte, porém, são cerimônias que nos desconcertam por sua estranheza. O que se segue é uma enumeração sumária das principais dentre elas.
     Em todas as atividades secretas, que se processam em silêncio, a fila indiana figura com frequência. Os homens partem em fila indiana para buscar suas churingas sagradas, escondidas em cavernas ou em outros lugares. Caminham, talvez, uma hora até atingirem sua meta; os jovens que participam dessas expedições são proibidos de fazer perguntas. Quando o velho que os comanda deseja explicar-lhes alguma coisa — certas formações na paisagem relacionadas às lendas dos antepassados —, ele se serve da mímica.
      Nas cerimônias propriamente ditas, atua em geral um número bastante reduzido de protagonistas, os quais, caracterizados como antepassados de um totem, os representam. Na maioria das vezes, esse número é de dois ou três; com frequência, reduz-se a apenas um. Os jovens formam um círculo, dançam em torno deles e emitem determinados gritos. Esse girar em círculo constitui uma formação bastante frequente, sendo constantemente mencionado.
     Em outra ocasião, durante as cerimônias do engwura — o acontecimento mais importante e solene na vida da tribo —, os jovens deitam-se no chão, enfileirados sobre uma elevação pequena e alongada do terreno, ali jazendo mudos por um certo número de horas. Esse deitar-se em fileira repete-se com frequência, tendo chegado, em certa ocasião, a estender-se por oito horas: das nove da noite às cinco da manhã.
     Assaz impressionante é uma outra formação, bastante mais densa. Os homens juntam-se num denso amontoado — os velhos no centro, os jovens à borda. Essa formação semelhante a um disco, na qual todos os participantes se comprimem uns contra os outros, põe-se a girar numa dança por duas horas inteiras, cantando sem cessar. A seguir, dispostos ainda da mesma maneira, sentam-se todos, de forma que o amontoado permanece tão compacto quanto antes, quando estavam todos de pé; os homens, então, seguem cantando, por mais umas duas horas, talvez.
     Por vezes, os homens postam-se de pé em duas fileiras, uma defronte da outra, e cantam. — Para a cerimônia decisiva, que põe fim à parte ritual do engwura, os jovens formam-se num quadrado e, acompanhados dos velhos, partem para o outro lado do rio, onde as mulheres e crianças os esperam.
     Essa cerimônia é bastante rica em detalhes, mas, no âmbito de nossa enumeração, centrada unicamente nas formações, há que se mencionar sobretudo um amontoado no chão, formado a partir da reunião de todos os homens. Três velhos, carregando juntos uma imagem sagrada que representa o saco que continha as crianças dos tempos primitivos, são os primeiros a cair, cobrindo com seus corpos a imagem, a qual, na realidade, mulheres e crianças não podem ver. A seguir, todos os demais homens — isto é, principalmente os jovens, a cuja iniciação tal cerimônia se presta — precipitam-se sobre os três velhos, jazendo todos juntos no chão, num amontoado desordenado. Não se vê mais coisa alguma; do amontoado salientam-se somente as cabeças dos três velhos. Permanecem todos deitados por alguns minutos, quando, então, todos tentam levantar-se e desembaraçar-se. A formação de tais amontoados no chão ocorre também em outras situações; essa é, porém, a ocasião mais grandiosa e importante mencionada pelos observadores.
     Nas provas de fogo, os jovens deitam-se sobre galhos ardentes, mas, naturalmente, não uns sobre os outros. As provas de fogo transcorrem de maneiras bastante variadas. Uma das mais frequentes realiza-se como se segue: os jovens vão-se para o outro lado do rio, onde, divididas em dois grupos, as mulheres os aguardam; lá, elas avançam sobre eles e os cobrem de uma chuva de galhos ardentes. Em outra oportunidade, a longa fileira de jovens posta-se defronte à fileira de mulheres e crianças; as mulheres dançam, e os homens lançam vigorosamente ramos em brasa por sobre suas cabeças.
     Por ocasião de uma cerimônia de circuncisão, seis homens, deitados no chão, formam juntos uma mesa. O noviço deita-se sobre eles e é operado. O “deitar-se sobre o noviço”, pertencente a essa mesma cerimônia, já foi mencionado no capítulo anterior.
     Se se procura por algo como um sentido nessas formações, talvez se possa dizer o seguinte:
     A fila indiana expressa a peregrinação. Seu significado na tradição da tribo é enorme. Diz-se frequentemente que os antepassados peregrinaram sobre a terra. É como se, um atrás do outro, cada um dos jovens tivesse de seguir as pegadas dos antepassados. A natureza de seu movimento e o silêncio encerram o respeito perante os caminhos e metas sagradas.
     O girar ou o dançar em círculo figura como um amuralhamento das representações que se desenrolam em seu centro. Elas são protegidas de tudo quanto é estranho e exterior ao círculo. São aplaudidas, rendem-se homenagens a elas e toma-se posse de tais representações.
     O deitar-se em fileira poderia constituir uma representação da morte. Nessa disposição, os noviços permanecem totalmente mudos, e, por muitas horas, nada se mexe. Súbito, então, eles se levantam de um salto e estão novamente vivos.
     As duas fieiras, dispostas uma defronte da outra a m de que interajam, exprimem a divisão em duas maltas hostis, sendo possível que o sexo oposto substitua aí a malta inimiga. O quadrado parece ele próprio uma formação para a proteção de todos os flancos; ele pressupõe que se esteja caminhando em ambiente hostil. Conhecemo-lo bastante bem em nossa história mais recente.
     Restam, então, as formações verdadeiramente mais densas: o disco dançante, repleto de homens, e o amontoado emaranhado no chão. O disco, precisamente em seu movimento, constitui o exemplo extremo de uma massa rítmica — uma massa tão densa e fechada quanto possível, na qual não há lugar para mais nada, a não ser para aqueles que a ela pertencem.
     O amontoado no chão está a proteger um precioso segredo. Ele indica que se quer encobrir e reter alguma coisa com toda a força. Num tal amontoado, acolhe-se inclusive um moribundo, prestando-lhe assim, pouco antes da morte, uma última homenagem. Ele é muito precioso para sua gente, e, tendo-o ao centro, esse amontoado lembra aquele dos mortos.

continua página 191...
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Leia também:

Massa e Poder - A Malta: As Formações Humanas dos Arandas
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (10a) - Mas o príncipe não morreu

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

10.

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.     Mas o príncipe não morreu antes do casamento, aquele seu pressentimento, confiado a Evguénii Pávlovítch, de que morreria talvez até mesmo à noite, durante o sono, não se tendo realizado. Continuou dormindo pouco e assim mesmo com pesadelos; mas, de dia, no meio de gente, era amável e parecia sem preocupações, só se perdendo em cismas quando estava sozinho.
     O casamento fora apressado, já tendo sido fixado, devendo se realizar uma semana depois daquela visita de Evguénii Pávlovitch. Tal pressa embaraçaria seus melhores amigos, caso os tivesse, de salvar o “pobre maluco”.
     Ao que constava, o General Epantchín e senhora tinham sido, parcialmente, os responsáveis pela visita de Evguénii Pávlovitch. Mas, se na imensa bondade de seus corações, neles podiam desejar salvar o pobre lunático da ruína, era difícil ir além desse fraco esforço, a sua posição e mesmo a sua inclinação sendo incompatíveis com qualquer ação mais pronunciada.
     Já mencionamos aqui que muitos dos que formavam a roda do príncipe se opuseram a ele. Vera Liébedieva só teve o recurso de se fechar na solidão do cômodo que habitava, onde, por entre lágrimas, deixou o príncipe sem sua habitual assistência.
     Kólia estava nessa ocasião ocupado com os funerais do pai, pois o velho general viera morrer de um segundo ataque que lhe sobreveio oito dias após o primeiro. O príncipe, com a mais fervorosa simpatia, se associou ao luto da família, passando nos primeiros dias várias horas ao lado de Nina Aleksándrovna. Assistiu ao funeral e ao serviço na igreja. A muita gente não passou despercebido que a chegada e a saída dele, da igreja, dera lugar a sussurros entre a assistência que lá estava.
     Também nas ruas e no jardim, ao passar, mencionavam-lhe o nome, apontando-o, passando ele indiferente aos sussurros entre os quais se distinguia o nome de Nastássia Filíppovna. Cuidaram até que ela tivesse ido aos funerais, mas não a encontraram. Outra pessoa que primou pela ausência foi a viúva do capitão, impedida de tal desplante por Liébediev.
     A cerimônia do sepultamento causou aflitiva e forte impressão no príncipe que, em resposta a algumas perguntas de Liébediev, confessou que era a primeira vez que assistia a um funeral ortodoxo, apenas guardando vaga lembrança de um outro, na sua infância, na igreja da sua aldeia.

- Sim, nem parece que a pessoa que está no caixão seja a mesma que elegemos presidente ainda no outro dia, não é, príncipe? Por quem está o senhor procurando? 
- Oh! Ninguém. Pareceu-me... 
- Rogójin? 
- Por quê? Ele veio? 
- Sim, está lá dentro, na igreja. 
- Tive a impressão de haver visto os olhos dele. - Míchkin estava confuso. - Mas por que veio? Foi convidado? 
- Nem pensaram nele. Ora, não o conhecem, sequer! Veja que multidão! Há gente de toda espécie! Mas o senhor parece estar espantado? Agora dei para encontrar sempre Rogójin. Na semana passada o encontrei quatro vezes em Pávlovsk.  
- Pois eu, desde aquela vez.., nunca mais o vi - declarou o príncipe.

     O príncipe lá consigo concluíra, já que Nastássia Filíppovna, nem sequer uma só vez, desde aquela noite, lhe dissera ter visto Rogójin. que este se andava retraindo, de propósito. Todo aquele dia esteve o príncipe perdido em raciocínio, ao passo que Nastássia Filíppovna, tanto nesse dia como de noite, estivera excepcionalmente vivaz.
     Kólia, que havia feito as pazes com o príncipe antes da morte do pai, sugerira que devia escolher Keller e Burdóvskii para seus padrinhos (pois o casamento ia ser realizado com urgência e portanto precisava tê-los à mão). Garantira o bom comportamento de Keller e a sua provável serventia, não havendo sido necessário se referir a Burdóvskii, sabidamente uma pessoa quieta e sempre às ordens.
     Nina Aleksándrovna e Liébediev chegaram a fazer ver ao príncipe que, já que o casamento era coisa determinada, não precisava ser em Pávlovsk, em uma estação de verão, tão à vista. Sugeriram que isso se realizasse em casa, e, melhor ainda, em Petersburgo. Foi só então que o príncipe viu claramente o rumo que suas apreensões estavam tomando. Deu como resposta que não admitia comentários, e que esse era o desejo de Nastássia Filíppovna.
     Um dia depois da escolha, foi Keller chamado para falar ao prIncipe, sendo então informado que seria o seu “padrinho”. Ficou parado à entrada, e, mal avistou Míchkin, levantou a mão direita, com o dedo polegar afastado dos outros, e jurou, como fazendo um voto: - Não beberei mais!
     Depois se aproximou do príncipe, apertou-lhe calorosamente a mão, sacudindo-a e anunciou que, na verdade, quando ouvira falar nesse casamento, tomara atitude hostil imediata, desancando-o pelos bilhares, pois se antecipara ao príncipe na escolha, diariamente, com a impaciência de um amigo, desejando para ele, no altar, toda de branco, pelo menos uma princesa de Rohan! Mas agora via com os seus próprios olhos que Míchkin procurara e acertara pelo menos doze vezes mais do que todos os amigos juntos! Pois não se importara com pompa, riqueza ou conceito público, só se importando com a verdade! Que as simpatias das pessoas exalçadas eram demasiado bem conhecidas e que o príncipe era demasiado sublime por sua educação para não ser uma pessoa exalçada, falando de um modo geral.

- Mas a ralé, a gentalha, julga diferentemente; na cidade, nas casas, nas reuniões, nas vilas, nos banhos públicos, nas tavernas e nos bilhares não se fala de outra coisa, senão do próximo acontecimento. Já me chegou aos ouvidos, por exemplo, que estão preparando uma serenata ao jeito de vaia, debaixo da sua janela, e isso, a bem dizer, na noite do casamento. Se o senhor vier a precisar da pistola de um homem honesto, estou pronto a trocar uma dúzia de tiros, como cavalheiro, na madrugada seguinte às núpcias.

     Aconselhou também, como aviso prévio, já que na certa viria toda onda de almas imundas aglomerar-se diante da igreja, a se ter preparada a mangueira de jorrar água, diante da calçada. Mas Liébediev se opôs, temendo que o jorro da mangueira lhe derrubasse a casa.

- Este Liébediev está intrigando contra o senhor. príncipe, lá isso é que está. Queria pô-lo sob tutela quanto à sua liberdade e ao seu dinheiro, as duas coisas que distinguem cada um de nós de um quadrúpede! Ouvi, ouvi em boas fontes! É a santa verdade!

     Míchkin então se lembrou já lhe ter sido rosnada uma coisa assim, a que naturalmente não prestara atenção. Agora, desta vez, também simplesmente se riu e esqueceu de novo. Mas não havia dúvida que, de fato, Liébediev andara, por este tempo, muito ocupado. Os projetos deste homem nasciam de inspirações e, através do ardor com que se metia a ombro, se tornavam demasiado complexos desenvolvendo- se para lá de ramificações desde muito já afastadas do original ponto de partida. Essa a razão por que se atrapalhava em suas empresas.
     Quando, quase às vésperas do casamento, se dirigiu ao príncipe para expressar seu arrependimento (era um hábito dele vir expressar arrependimento àqueles contra os quais estivera intrigando, principalmente não tendo obtido êxito), declarou que nascera para ser um Talleyrand e não sabia como se tornar, um simples Liébediev. E então desvendara todo o seu jogo que escandalizou profundamente o príncipe. 
     Segundo a sua história, começara por procurar a ajuda de certas pessoas de importância, com cujo apoio pensou contar em caso de necessidade. Começara por procurar Iván Fiódorovitch. O general, embora perplexo, acreditou na boa-vontade do homem para com o príncipe, mas declarou que por mais que desejasse não lhe era possível agir nesse caso. Lizavéta Prokófievna não o quis ver nem escutar. Evguénii Pávlovitch e o Príncipe Chtch... simplesmente o despediram. 
     Mas Líébediev não era homem para perder assim a energia! E foi aconselhar-se com um advogado sagaz, um velho de experiência. seu amigo e até mesmo protetor. Dera-lhe este a opinião de que a coisa só era possível se testemunhas idôneas atestassem o desarranjo mental e a indubitável insanidade; e, ainda mais, pessoas de importância apoiando estas.
     Liébediev, nem com isso se desencorajou e teceu meios e modos de um médico, também homem de valor, já idoso, com uma condecoração, a cruz de Sant’Ana, e que estava em Pávlovsk, vir ver o príncipe, por assim dizer por acaso, para ver e apalpar o terreno, travando relações com ele e depois, não oficialmente, mas como amigo, dizer o que julgava dele. 
     O príncipe recordava-se da visita desse médico. Recordava-se que, certa noite. Liébediev o amolara a respeito de não o achar bom; mas, vendo que o príncipe categoricamente recusara uma visita médica, Liébediev aparecera, assim por acaso, com o doutor, pretextando que tinham ambos vindo da casa de Ippolít Tieriéntiev, o qual vinha de piorar, que o doutor, ali, tinha muita coisa a dizer a Míchkin a respeito do doente. O príncipe louvara Liébediev e recebera o médico cordialmente.
     Puseram-se logo a discorrer sobre Ippolít. O doutor pediu ao príncipe que lhe fizesse um relato da cena do suicídio, bem minuciosa: e o príncipe quase o distraiu com a descrição e a explicação do acidente. Falaram, também, do clima de Petersburgo, das aflições de Míchkin, da Suíça e do Dr. Schneider. A discussão do sistema do Dr. Schneider e as histórias do príncipe a respeito dele interessaram tanto o médico que ficou duas horas e até fumou os excelentes cigarros do príncipe, enquanto Liébediev fora atrás de um licor que pouco depois Vera trouxe. E que o doutor, que era um homem casado e pai de família, se derramou em tais elogios a Vera que a acabaram indignando.
     Separaram-se como amigos.
     Tendo deixado o príncipe, o doutor disse a Liébediev que se uma pessoa como aquela devia ser posta sob vigilância, quem estaria apta a vigiá-la? E como resposta à trágica descrição de Liébediev quanto ao próximo acontecimento, o doutor abanara a cabeça, dissimulada e astutamente, observando que, mesmo excluindo o fato de que “não há ninguém com quem um homem não se possa casar”, a fascinante senhora, além de ser incomparavelmente bela, o que só bastava para atrair um homem rico, também- assim, pelo menos, tinha ouvido - possuía uma fortuna, advinda de Tótskii e de Rogójin, em pérolas, diamantes, xales e móveis. Por conseguinte, a escolha do príncipe, longe de ser uma forma peculiar, ou melhor evidente de loucura, era, antes, um testemunho da perspicácia de sua sabedoria mundana e da sua prudente previdência, levando, portanto, à conclusão inteiramente oposta, a favor, com efeito, do príncipe...
     Esta opinião impressionara de tal forma Liébediev que não prosseguiu, tendo chegado a dizer a Míchkin: - E agora, não verá o senhor, em mim mais do que devoção e inteireza, pronto até a derramar meu sangue pelo senhor. Vim especialmente para lhe falar como estou falando.
     Ippolít também distraiu o espírito do príncipe durante aqueles dias, em que foi chamado à casa dele várias vezes. A família estava vivendo em uma pequena casa não longe. Os menores, a irmã com o irmão de Ippolít, sentiam-se radiantes em Pávlovsk porque pelo menos aí podiam fugir do doente, escapando para o jardim.
     A pobre viúva do capitão fora abandonada à sua mercê, sendo sua vítima de agora. O príncipe era obrigado a intervir e a pacificá-los todos os dias; e o doente ainda o apelidava de sua enfermeira menoscabando-o por tomar o papel de pacificador. Passaram a ter grande ressentimento por Kólia. visto este estar espaçando suas visitas, tendo, primeiramente, passado junto do pai moribundo e depois com a mãe viúva. Por fim fez Ippolít do casamento do príncipe com Nastássia Filíppovna o mote de escárnio, ofendendo tantas vezes, com isso, o príncipe, que este acabou se zangando, a ponto de deixar de visitá-lo. Mas logo daí a dois dias a viúva do capitão trotou para casa do príncipe, de manhãzinha, e implorou com lágrimas que fosse vê-lo, do contrário “aquele indivíduo seria a causa da morte dela”. Inventou até que o doente tinha um segredo para contar.
     Míchkin foi.
     Ippolít preparara tudo; chorou, e depois das lágrimas, naturalmente, ainda ficou mais estúpido e insolente do que antes, embora tivesse receado demonstrar o seu despeito. Estava tão mal que pelos indícios o fim estava perto. Não tinha segredo nenhum a dizer-lhe, e sim, apenas, algumas petições. E, sem ar, ou, para melhor dizer, com emoção (possivelmente envergonhado), avisou o príncipe “que se acautelasse contra Rogójín”. “É um homem que nunca largará de mão uma coisa. Ele não é como o senhor, ou eu, príncipe; se quiser uma coisa, nada o demoverá.”
     O príncipe começou a interrogá-lo mais minuciosamente, tentando colher fatos, fosse como fosse. Mas fatos não havia e só sentimentos e impressões de Ippolít que para sua intensa satisfação conseguiu o que queria: sobressaltar o príncipe, de modo cabal. A princípio, o príncipe não quis responder a certas insinuações de Ippolít, apenas sorrindo ao seu conselho de “ir para o estrangeiro; que havia padres russos por toda parte, que se poderia casar por lá”. terminando com esta sugestão:

- É por causa de Agláia Ivánovna que eu receio, o senhor sabe. Rogójin sabe quanto o senhor a ama. É um caso de amor por amor. O senhor lhe roubou Nastássia Filíppovna! Ele então matará Agláia Ivánovna; e muito embora ela não seja sua, o senhor ficará sentido, pois não é?

     Conseguiu o seu fim; o príncipe deixou-o, partindo completamente zonzo.
 
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (10a) - Mas o príncipe não morreu
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