sábado, 31 de agosto de 2024

Ensaio - precisamos recomeçar: 06

primeiro dia

baitasar

o que mais escutamos nesse dia de reencontros, Precisamos recomeçar, eu sei, todos sabemos, os olhos na minha volta sabem, nos reconhecemos na escola, talvez já seja suficiente, talvez não, como cartões postais minguados, retratos distraídos de um pesadelo, ainda distantes uns dos outros, lembro que chorei prantos ocultos, quase morto, escapando em um barco anônimo, deixando para trás fotografias, livros, chinelos e cuecas

flutuava sobre as ruas, esquinas sumiram, Abaixa a cabeça! Cuidado com os fios, a dor da separação, muitos pedidos de socorro, nenhum aviso, Rompeu o dique! Saiam das suas casas!

canalhas derrubam árvores, velhacos anunciam promessas infames e continuam com suas histórias de mentiras e privilégios, várzeas aterradas, portas e comportas de ferro mal cuidadas, arrombadas, estradas arrancadas, outros enganadores se juntam e se anunciam diferentes, sinto a perturbação entre nós, até quando teremos medo das marias que anunciam um outro mundo possível, mais amoroso e cuidado, tenho pena dos achatados e perdidos na ânsia de sobreviver com suas salvaguardas e regalias, hesitantes em uma outra vida possível, então, seguem acreditando em mais mentiras, dia após dia, e nas ruas empilhadas com suas casas vazias e frias

a escola talvez rejunte nas pessoas os desejos

Como recomeçar, nos perguntamos, Precisamos parar de anunciar mentiras que sabemos que são mentiras bem cuidadas e protegidas pela ganância, respondo, silêncio, a conversa parece que não vai no rumo do esquecimento que muitos ainda querem, olho meu colega nos olhos, quase sussurro, E o muro, pergunto, O que tem o muro, pergunta sussurrando o cuidador de mentiras desatento, Vão continuar querendo derrubar o muro em nome do futuro, pergunto, mais silêncio, tenho medo desse silêncio complacente e arrogante ou ignorante, mas prefiro enfrentá-lo a ficar de joelhos, Um vexame... você não acha, insisto, Que vexame, pergunta murmurando, Pense, respondo

vou para um lugar estratégico, despercebido dos olhares, mas em prontidão permanente, todos aqui somos vítimas, não podemos ir embora e esquecer, estamos desenganados, condenados a carregar por muito tempo o medo das águas cobrindo nossas vidas

recebemos as boas-vindas, conversamos sobre esse retorno, as muitas coisas que nos aconteceram, um lugar que perdemos para as águas embarradas, encharcando até o topo com o aroma fedorento dos escombros, hesitamos, incertos no futuro, muitos não retornaram, outros não retornarão

E quando as águas voltarem... estaremos preparados, é a pergunta que todos se fazem

sinto meus olhos vermelhos, lagrimando, gostamos desta escola acolhedora, destes lugares em que crescemos, muitos nasceram nestas casas desmanteladas, o tempo das parteiras

estamos nos derramando sem enganação, precisamos da escola em pé, não é um faz-de-conta, olho para os lados, ninguém desatento ou hostil, gostamos destas paredes e das vidas acolhedoras, os abraços, os jogos, as brincadeiras, a cantoria da gincana, a festa junina, o dia das mães, o dia dos pais, a festa de natal, a páscoa, aprender e ensinar, educar nos educando, deve ser por isso que retornamos

construí relações amigáveis com alunos e alunas, colegas, funcionários e funcionárias, gosto de estar aqui, não tenho problemas com a garotada, e os que surgem não me assustam, pelo contrário, me fazem repensar meus caminhos

tiro o boné, coço a cabeça, olhos à volta novamente, sem dúvida não estamos alegres, estamos diferentes

Estamos de volta!, anuncia a diretora

gritos e assobios ensurdecem no ginásio, também dou minha contribuição, lanço o boné para o alto junto com todos os outros

corro e pulo, junto o boné caído no chão

sim, vamos conseguir ficar alegres, logo ali, mais na frente, e quem sabe, esses dias intermináveis não venham se repetir, o futuro dirá, por enquanto seguimos desconfiados, aquela incessante dança das águas derramadas sobre nós escreveu uma nova história nas páginas e nas vidas da cidade

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Ensaio - precisamos recomeçar: 06

Conto: Perdoando Deus

Clarice Lispector 


"eu me imaginava mais forte. porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava... enquanto eu inventar Deus, Ele não existe."

na voz de Aracy Balabanian






      Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via.

      Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

     E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

      Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admito e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado podia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

      Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

      ...mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.

      É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.


Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Na noite anterior

O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

     Na noite anterior tinham ido ao cinema, cada um por sua conta e em assentos separados, como iam pelo menos duas vezes por mês desde que o imigrante italiano senhor Galileo Daconte instalou um salão a céu aberto nas ruínas de um convento do século XVII. Viram uma fita baseada num livro que tinha estado na moda o ano anterior, e que o doutor Urbino tinha lido com o coração desolado pela barbárie da guerra: Nada de novo na frente ocidental. Reuniram-se depois no laboratório, e ela o achou disperso e nostálgico, e pensou que era por causa das cenas brutais dos feridos moribundos na lama. Tratando de distraí-lo convidou-o a jogar xadrez, e ele tinha aceito para lhe fazer gosto, mas jogava desatento, com as pedras brancas, é claro, até que descobriu antes dela que ia ser derrotado em quatro jogadas mais, e se rendeu sem glória. O médico compreendeu então que o contendor da partida final tinha sido ela e não o general Jerônimo Argote, como havia suposto. Murmurou assombrado:

— Era uma partida magistral!

     Ela insistiu que o mérito não era seu, e sim que Jeremiah de Saint-Amour, já extraviado pelas brumas da morte, movimentava as peças sem amor. Quando interrompeu a partida, por volta das onze e um quarto, pois já tinha acabado a música dos bailes públicos, ele lhe pediu que o deixasse só. Queria escrever uma carta ao doutor Juvenal Urbino, que considerava o homem mais respeitável que havia conhecido, e além disso um amigo da alma, como gostava de dizer, ainda que a única afinidade de ambos fosse o vício do xadrez entendido como um diálogo da razão e não como uma ciência. Então ele soube que Jeremiah de Saint-Amour tinha chegado ao término da agonia, e que só lhe restava o tempo de vida necessário para escrever a carta. O médico não podia acreditar.

 — Mas então você sabia! — exclamou.

      Não só sabia, confirmou ela, como o havia ajudado a carregar o fardo da agonia com o mesmo amor com que o havia ajudado a descobrir a ventura Porque isso tinham sido seus últimos onze meses: uma cruel agonia.

 — Seu dever era revelá-lo — disse o médico.

 — Eu não podia fazer-lhe essa desfeita — disse ela, escandalizada: — eu o queria com todas as forças.

     O doutor Urbino, que acreditava ter ouvido tudo, jamais ouvira nada igual, e dito de forma tão simples. Olhou-a de frente com os cinco sentidos para gravá-la na memória como era naquele instante: parecia um ídolo fluvial, impávida dentro do vestido preto, com os olhos de cobra e a rosa na orelha. Muito tempo atrás, numa praia solitária do Haiti onde ambos jaziam nus depois do amor, Jeremiah de Saint Amour tinha suspirado sem pensar: "Nunca hei de ser velho." Ela o interpretou como um propósito heroico de lutar contra os estragos do tempo, mas ele foi mais explícito: tinha a determinação irrevogável de acabar com a vida aos sessenta anos.
     De fato os havia completado a 23 de janeiro desse ano, e então tinha marcado como prazo último a véspera de Pentecostes, que era a festa maior da cidade consagrada ao culto do Espírito Santo. Não havia nenhum detalhe da noite anterior que ela não tivesse conhecido de antemão, e falavam disso com frequência, descendo juntos a torrente irreparável dos dias que já nem ele nem ela podiam deter. Jeremiah de Saint-Amour amava a vida com uma paixão sem sentido, amava o mar e o amor, amava seu cachorro e ela, e à medida que a data se aproximava ia sucumbindo ao desespero, como se sua morte não tivesse sido uma decisão própria e sim um destino inexorável.

— Ontem à noite, quando o deixei só, já não era deste mundo — disse ela.

     Tinha querido levar consigo o cão, mas ele o contemplou cochilando perto das muletas e o acariciou com a ponta dos dedos. Disse: "Sinto, mas Mister Woodrow Wilson vai comigo." Pediu a ela que o amarrasse pela pata ao catre enquanto ele escrevia, e ela o fez com um nó falso para que pudesse se soltar. Aquele tinha sido seu único ato de deslealdade, e se justificava pelo desejo de continuar recordando o amo nos olhos hibernais do seu cachorro. Mas o doutor Urbino a interrompeu para contar que o cachorro não tinha se soltado. Ela disse: "Então foi porque não quis." E se alegrou, porque preferia continuar evocando o amante morto como ele lhe pedira na noite anterior, quando interrompeu a carta começada e a olhou pela última vez.

— Lembre de mim como uma rosa — lhe disse.

      Tinha chegado a sua casa pouco depois da meia-noite. Estendeu-se na cama fumando, vestida, acendendo um cigarro na guimba do outro para lhe dar tempo de acabar a carta que ela sabia longa e difícil, e pouco antes das três, quando os cães começaram a uivar, pôs no fogão a água para o café, vestiu-se de luto fechado e cortou no pátio a primeira rosa da madrugada. O doutor Urbino já tinha percebido há algum tempo quanto ia repudiar a lembrança daquela mulher sem redenção, e acreditava conhecer o motivo: só uma pessoa sem princípios podia ser tão indulgente com a dor.
     Ela lhe deu mais argumentos até o final da visita. Não iria ao enterro, pois assim o prometera ao amante, embora o doutor Urbino julgasse entender o contrário num trecho da carta. Não ia derramar uma lágrima, não ia esbanjar o resto de seus anos se cozinhando em fogo lento no caldo de larvas da memória, não ia sepultar-se em vida a costurar sua mortalha dentro de quatro paredes, como era tão bem visto que o fizessem as viúvas nativas. Pensava vender a casa de Jeremiah de Saint-Amour, que desde agora era sua com tudo que continha, tal como disposto na carta, e continuaria vivendo como sempre e sem se queixar de nada neste morredouro de pobres onde tinha sido feliz.
     Aquela frase perseguiu o doutor Juvenal Urbino no caminho de regresso a sua casa: "Este morredouro de pobres." Não era uma qualificação gratuita. Pois a cidade, a sua, continuava a mesma à margem do tempo: a mesma cidade ardente e árida de seus terrores noturnos e dos prazeres solitários da puberdade, onde se oxidavam as flores e se corrompia o sal, e à qual não acontecera nada em quatro séculos, exceto o envelhecer devagar entre louros murchos e pântanos podres. No inverno, uns aguaceiros instantâneos e arrasadores faziam transbordar as latrinas e convertiam as ruas em lodaçais nauseabundos. No verão, um pó invisível, áspero como greda de giz, se enfiava até pelas frinchas mais protegidas da imaginação, alvoroçado por uns ventos loucos que destelhavam casas e carregavam as crianças pelos ares. Aos sábados, o pobrerio mulato abandonava em tumulto os barracos de papelão e latão das margens dos pântanos, com seus bichos de casa e seus pertences de comer e beber, e se apoderava num assalto de júbilo das praias pedregosas do setor colonial. Alguns, entre os mais velhos, ostentavam até poucos anos atrás a marca real dos escravos, gravada a ferro em brasa no peito. Durante o fim da semana dançavam sem clemência, se embebedavam à morte com álcoois de alambiques caseiros, faziam livres amores pelas moitas de icaqueiro, e à meia-noite do domingo desbaratavam seus próprios fandangos com rixas sangrentas de todos contra todos. Era a mesma multidão impetuosa que o resto da semana se infiltrava nas praças e ruelas dos bairros antigos, com tendinhas de tudo que fosse possível comprar e vender, e infundiam à cidade morta um frenesi de feira humana cheirando a peixe frito: uma vida nova.
      A independência do domínio espanhol, e a seguir a abolição da escravatura, precipitaram o estado de decadência honrada em que nasceu e cresceu o doutor Juvenal Urbino. As grandes famílias de outrora afundavam em silêncio dentro de suas fortalezas desguarnecidas. Nos altos e baixos das ruas empedradas que tão eficazes tinham sido em guerras e desembarques de bucaneiros, as ervas se despenhavam dos balcões e abriam gretas mesmo nos muros de cal e cantaria das mansões mais bem conservadas, e o único sinal de vida às duas da tarde eram os lânguidos exercícios de piano na penumbra da sesta. Por dentro, nos frescos quartos de dormir saturados de incenso, as mulheres se guardavam do sol como de um contágio indigno, e mesmo nas missas de madrugada tapavam a cara com a mantilha. Seus amores eram lentos e difíceis, perturbados amiúde por presságios sinistros, e a vida lhes parecia interminável. Ao anoitecer, no instante opressivo da passagem para as sombras, subia dos pântanos um turbilhão de pernilongos carniceiros, e uma branda exalação de merda humana, cálida e triste, revolvia no fundo da alma a certeza da morte.
     Pois a vida própria da cidade colonial, que o jovem Juvenal Urbino costumava idealizar em suas melancolias de Paris, era então uma ilusão da memória. Seu comércio tinha sido o mais próspero do Caribe no século XVIII, sobretudo graças ao privilégio ingrato de ser o maior mercado de escravos africanos nas Américas. Era além disso a residência habitual dos vice-reis do Novo Reino de Granada, que preferiam governar daqui, frente ao oceano do mundo, e não na capital distante e gelada cujo chuvisco de séculos lhes transtornava o sentido da realidade. Várias vezes por ano se concentravam na baía as frotas de galeões carregados com as riquezas de Potosí, de Quito, de Vera-cruz, e a cidade vivia então aqueles que foram seus anos de glória. Na sexta-feira 8 de junho de 1708 às quatro da tarde, o galeão San José, que acabava de zarpar para Cádiz com um carregamento de pedras e metais preciosos avaliados em quinhentos bilhões de pesos da época, foi afundado por uma esquadra inglesa diante da entrada do porto, e dois longos séculos depois ainda não tinha sido resgatado. Aquela fortuna jacente em fundos de corais, com o cadáver do comandante flutuando adernado no posto de mando, costumava ser evocada pelos historiadores como o emblema da cidade afogada nas recordações.
      Do outro lado da baía, no bairro residencial de Mangueira, a casa do doutor Juvenal Urbino se situava em outro tempo. Era grande e fresca, de um andar só, e com um pórtico de colunas dóricas na varanda da frente, da qual se dominava a água parada de miasmas e escombros de naufrágios da baía. O chão estava forrado de pedras axadrezadas, brancas e pretas, da porta de entrada até a cozinha, e isto se atribuíra mais de uma vez à paixão dominante do doutor Urbino, sem lembrar que se tratava de uma fraqueza comum aos mestres-de-obras catalães que tinham construído no princípio deste século aquele bairro de ricos de fresca data. A sala era ampla, de tetos muito altos como a casa inteira, com seis janelas de sacada sobre a rua, e se separava da sala de jantar por uma porta envidraçada, enorme e historiada, com ramagens de vides e cachos de uva e donzelas seduzidas por flautas de faunos numa floresta de bronze. Os móveis de recepção, até o relógio de pêndulo da sala, que mais parecia uma sentinela viva, eram todos originais ingleses de fins do século XIX, e os lustres eram de pingentes de cristal de rocha, e havia em todos os cantos jarrões e floreiros de Sèvres e estatuetas de idílios pagãos em alabastro. Mas aquela coerência europeia se acabava no resto da casa, onde as cadeiras de braços de vime se confundiam com cadeiras de balanço vienenses e tamboretes de couro de artesãos locais. Nos quartos de dormir havia, além das camas, esplêndidas redes de São Jacinto com o nome do dono bordado em letras góticas com fios de seda e franjas coloridas nas varandas. O espaço concebido em suas origens para as ceias de cerimônia, ao lado da sala de jantar, foi aproveitado para uma pequena sala de música onde se realizavam concertos íntimos quando vinham intérpretes notáveis. Os ladrilhos tinham sido cobertos com os tapetes turcos comprados na Exposição Universal de Paris para apurar o silêncio do ambiente, havia uma ortofônica de modelo recente junto a uma estante com discos bem arrumados, e num canto, coberto com um pano de Manila, ficava o piano que o doutor Urbino não tocava há muitos anos. Toda a casa refletia o bom senso e as preocupações de uma mulher com os pés bem plantados na terra.
     No entanto, nenhum outro lugar revelava a solenidade meticulosa da biblioteca, que foi o santuário do doutor Urbino antes que a velhice o derrubasse. Ali, em redor da escrivaninha de nogueira do pai, e das poltronas de couro almofadado, fez forrar as paredes e até as janelas com estantes envidraçadas, e colocou numa ordem quase demente três mil livros idênticos encadernados em pele de bezerro e com suas iniciais douradas na lombada. Ao contrário dos outros aposentos, que estavam à mercê das comoções e dos maus cheiros provenientes do porto, a biblioteca teve sempre o recolhimento e o odor de uma abadia. Nascidos e criados debaixo da superstição caribe de abrir portas e janelas para convocar uma fresca que não existia na realidade, o doutor Urbino e sua esposa sentiram a princípio o coração oprimido pela clausura. Mas acabaram convencidos das vantagens do método romano contra o calor, que consistia em manter as casas fechadas no torpor de agosto para que não entrasse o sopro ardente da rua, e abri-las de par em par aos ventos da noite. A sua foi desde então a mais fresca no sol bravo da Mangueira, e era uma ventura fazer a sesta na penumbra dos quartos, e sentar à tarde no pórtico para ver passar os cargueiros de Nova Orleans, pesados e cinzentos, e os navios fluviais de roda de madeira com as luzes acesas ao entardecer, que iam purificando com uma esteira de música o monturo estanque da baía. Era também a mais protegida de dezembro a março, quando os alíseos do norte destroçavam telhados e passavam a noite dando voltas como lobos famintos ao redor da casa em busca de uma fresta para se introduzirem. Ninguém jamais imaginou que um casamento fincado sobre tais alicerces pudesse ter algum motivo para não ser feliz.

continua na página 019...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Na noite anterior
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

Histórias da Meia-Noite: As bodas de Luís Duarte (III)

As bodas de Luís Duarte

Machado de Assis

Conto

As bodas de Luís Duarte

(III)

     A menina Luísa, que era alegre por natureza, alegrou a situação, conversando com as outras moças, uma das quais, a convite seu, foi tocar alguma coisa ao piano. Calisto Valadares suspeitava que houvesse uma omissão nas Escrituras, e vinha a ser que entre as pragas do Egito devia ter figurado o piano. Imagine o leitor com que cara viu ele sair uma das moças do seu lugar e dirigir-se ao fatal instrumento. Soltou um longo suspiro e começou a contemplar as duas gravuras compradas na véspera.

— Que magnífico é isto! exclamou ele diante do Sardanapalo, quadro que ele achava detestável.  

— Foi papai quem escolheu, disse Rodrigo, e foi essa a primeira palavra que pronunciou desde que entrou na sala. 

— Pois, senhor, tem bom gosto, continuou Calisto; não sei se conhecem o assunto do quadro...

— O assunto é Sardanapalo, disse afoitamente Rodrigo.

— Bem sei, retrucou Calisto, estimando que a conversa pegasse; mas eu pergunto se...

     Não pôde acabar; soaram os primeiros compassos.
     Eduardo, que na sua qualidade de poeta devia amar a música, aproximou-se do piano e inclinou-se sobre ele na posição melancólica de um homem que conversa com as musas. Quanto ao irmão, não tendo podido evitar a cascata de notas, foi sentar-se ao pé de Vilela, com quem travou conversa, começando por perguntar que horas eram no relógio dele. Era tocar na tecla mais preciosa do ex-chefe de seção. 

— É já tarde, disse este com voz fraca; olhe, seis horas.  

— Não podem tardar muito.

— Eu sei! A cerimônia é longa, e talvez não achem o padre... Os casamentos deviam fazer-se em casa e de noite.  

— É a minha opinião. 

     A moça terminou o que estava tocando; Calisto suspirou. Eduardo, que estava encostado ao piano, cumprimentou a executante com entusiasmo.

— Por que não toca mais alguma coisa? disse ele.

— É verdade, Mariquinhas, toca alguma coisa da Sonâmbula, disse Luísa obrigando a amiga a sentar-se.

— Sim! a Son... 

     Eduardo não pôde acabar; viu em frente os dois olhos repreensivos do irmão e fez uma careta. Interromper uma frase e fazer uma careta podia ser indício de um calo. Todos assim pensaram, exceto Vilela, que, julgando os outros por si, ficou convencido de que algum grito agudo do estômago tinha interrompido a voz de Eduardo. E, como acontece às vezes, a dor alheia despertou a própria, de maneira que o estômago de Vilela formulou um verdadeiro ultimatum ao qual o homem cedeu, aproveitando a intimidade que tinha na casa e indo ao interior sob pretexto de dar exercício às pernas.
     Foi uma felicidade.
     A mesa, que já tinha em cima de si alguns acepipes convidativos, apareceu como uma verdadeira fonte de Moisés aos olhos do ex-chefe de seção. Dois pastelinhos e uma croquette foram os parlamentares que Vilela mandou ao estômago rebelado e com os quais aquela víscera se conformou.
     No entanto D. Mariquinhas fazia maravilhas ao piano; Eduardo encostado à janela parecia meditar um suicídio, ao passo que o irmão brincando com a corrente do relógio ouvia umas confidências de D. Margarida a respeito do mau serviço dos escravos. Quanto a Rodrigo, passeava de um lado para outro, dizendo de vez em quando em voz alta:

— Já tardam!

     Eram seis horas e um quarto; nada de carros; algumas pessoas já estavam impacientes. Às seis e vinte minutos ouviu-se um rumor de rodas; Rodrigo correu à janela: era um tílburi. Às seis e vinte e cinco minutos todos supuseram ouvir o rumor dos carros. 

— É agora, exclamou uma voz.

     Não era nada. Pareceu-lhes ouvir por um efeito (desculpem a audácia com que eu caso este substantivo a este adjetivo) por um efeito de miragem auricular.  
     Às seis horas e trinta e oito minutos apareceram os carros. Grande alvoroço na sala, as senhoras correram às janelas. Os homens olharam uns para os outros como conjurados que medem as suas forças para uma grande empresa. Toda a comitiva entrou. As escravas da casa, que espreitavam do corredor a entrada dos noivos, causaram uma verdadeira surpresa à sinhá moça deitando-lhe sobre a cabeça um dilúvio de folhas de rosa. Cumprimentos e beijos, houve tudo quanto se faz em tais ocasiões.
     O Sr. José Lemos estava contentíssimo, mas caiu-lhe água na fervura quando soube que o Tenente Porfírio não tinha chegado.

— É preciso mandá-lo chamar.

— A esta hora! murmurou Calisto Valadares.

— Sem o Porfírio não há festa completa, disse o Sr. José Lemos confidencialmente ao Dr. Valença.  

— Papai, disse Rodrigo, eu creio que ele não vem.

— É impossível! 

— São quase sete horas.

— E o jantar já nos espera, acrescentou D. Beatriz. 

     O voto de D. Beatriz pesava muito no ânimo de José Lemos; por isso não insistiu. Não houve remédio senão sacrificar o tenente. 
     Mas o tenente era o homem das situações difíceis, o salvador dos lances arriscados. Mal acabava D. Beatriz de falar, e José Lemos de assentir mentalmente à opinião da mulher, ouviu-se na escada a voz do Tenente Porfírio. O dono da casa soltou um suspiro de alívio e satisfação. Entrou na sala o longamente esperado conviva.
     Pertencia o tenente a essa classe feliz de homens que não têm idade; uns lhe davam 30 anos, outros 35 e outros 40; alguns chegavam até os 45, e tanto esses como os outros podiam ter igualmente razão. A todas as hipóteses se prestavam a cara e as suíças castanhas do tenente. Era ele magro e de estatura meã; vestia com certa graça, e, comparado com um boneco não havia grande diferença. A única coisa que destoava um pouco era o modo de pisar; o Tenente Porfírio pisava para fora a tal ponto, que da ponta do pé esquerdo à ponta do pé direito, quase se podia traçar uma linha reta. Mas como tudo tem compensação, usava ele sapatos rasos de verniz, mostrando um fino par de meias de fio-de-escócia mais lisas que a superfície de uma bola de bilhar.  
     Entrou com a graça que lhe era peculiar. Para cumprimentar os noivos arredondou o braço direito, pôs a mão atrás das costas segurando o chapéu, e curvou profundamente o busto, ficando em posição que fazia lembrar (de longe!) os antigos lampiões das nossas ruas.
     Porfírio tinha sido tenente do exército, e dera baixa, com o que andou perfeitamente, porque entrou no comércio de trastes e já possuía algum pecúlio. Não era bonito, mas algumas senhoras afirmavam que apesar disso era mais perigoso que uma lata de nitroglicerina. Naturalmente não devia essa qualidade à graça da linguagem, pois falava sibilando muito a letra s; dizia sempre: Asss minhasss botasss...
     Quando Porfírio acabou os cumprimentos, disse-lhe o dono da casa:

— Já sei que hoje temos coisa boa!

— Qual! respondeu ele com uma modéstia exemplar; quem ousará levantar a voz diante de ilustrações? 

     Porfírio disse estas palavras pondo os quatro dedos da mão esquerda no bolso do colete, gesto que ele praticava por não saber onde havia de pôr aquele fatal braço, obstáculo dos atores novéis.

— Mas por que veio tarde? perguntou D. Beatriz. 

— Condene-me, minha senhora, mas poupe-me a vergonha de explicar uma demora que não tem atenuante no código da amizade e da polidez. 

     José Lemos sorriu olhando para todos e como se destas palavras do tenente lhe resultasse alguma glória para ele. Mas Justiniano Vilela que, apesar dos pastelinhos, sentia-se impelido para mesa, exclamou velhacamente: 

— Felizmente chegou à hora de jantar! 

— É verdade; vamos para a mesa, disse José Lemos dando o braço a D. Margarida e a D. Virgínia. Seguiram-se os mais em procissão. 

continua na página 44...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: As bodas de Luís Duarte (III)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.

10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873

Café, Jazz, Sax... bom dia

ah esses livros


uma luz suave
filtra pela janela
minhas cores
sentimentos
sou uma aquarela.
a xícara quente
o jazz
aquele livro
o universo vasto da vida 
respira.
as histórias entrelaçam
vidas
dançam no ar
a melodia não cessa
toca a luz que me filtra.

Moby Dick: 20 - Tudo em atividade

Moby Dick

Herman Melville


20 - TUDO EM ATIVIDADE

     Passaram-se um ou dois dias e havia grande atividade a bordo do Pequod. Não só eram remendadas as velas antigas como chegavam novas velas, junto com peças de lona e rolos de cordame; em suma, tudo indicava que os preparativos do navio estavam chegando ao fim. O Capitão Peleg quase nunca vinha a bordo, mas sentava-se no wigwam, de onde observava os marinheiros; Bildad fazia as compras e cuidava das provisões nos armazéns; e os homens, ocupados com o porão e os apetrechos, varavam a noite trabalhando.
     No dia seguinte à assinatura do contrato por Queequeg, comunicaram em todas as estalagens onde os homens da tripulação se encontravam hospedados que as suas arcas deveriam estar a bordo antes do anoitecer, porque o navio poderia sair a qualquer momento. Queequeg e eu levamos nossa bagagem, mas estávamos resolvidos a dormir em terra até o fim. Mas parece que nesses casos sempre avisam com muita antecedência, e o navio demorou ainda alguns dias antes de partir. Não era de admirar: havia muita coisa a ser feita, e mais ainda a ser pensada antes que o Pequod pudesse ser considerado pronto para partir.
      Todo mundo sabe que uma multidão de objetos – camas, panelas, facas e garfos, pás e pinças, guardanapos, quebra-nozes, e não sei o que mais – é indispensável numa casa. O mesmo sucede com a pesca de baleias, que necessita do equivalente à manutenção de uma casa durante três anos no mar, longe de mercearias, verdureiros, doutores, padeiros e banqueiros. Embora isto também se aplique aos navios mercantes, não é de forma alguma na mesma proporção que para os baleeiros. Além de a viagem de pesca de baleias ser muito longa, e apesar dos numerosos objetos específicos para a pesca e da impossibilidade de substituí-los nos portos distantes, é preciso lembrar que, dentre todos os navios, os baleeiros são os mais expostos a acidentes de todo tipo, especialmente à destruição e perda dos objetos dos quais depende o êxito da viagem. Por isso é necessário levar botes de reserva, vergas de reserva, linhas e arpões de reserva, quase tudo de reserva, exceto um Capitão e um navio de reserva.
      Ao tempo de nossa chegada na ilha, a carga mais pesada do Pequod já tinha sido embarcada, como a carne, o pão, a água, o combustível, os arcos de ferro e as aduelas. Mas, como disse antes, durante algum tempo diferentes coisas, tanto grandes quanto pequenas, foram levadas a bordo.
     Dentre as pessoas que mais levaram e carregaram coisas estava a irmã do Capitão Bildad, uma velha senhora enxuta, que tinha um espírito determinado e infatigável, além de um bom coração, e que estava decidida, no que dependesse dela, a não deixar faltar nada no Pequod depois que partisse para o mar. Primeiro ela veio a bordo com um pote de picles para a despensa; depois veio com um feixe de penas, que colocou sobre a mesa do imediato; uma terceira vez apareceu com uma peça de flanela para o caso de alguma dor nas costas. Nenhuma mulher jamais recebeu um nome mais acertado do que Charity [Caridade] – Tia Charity, como todos a chamavam. Como uma irmã de caridade, a caridosa Tia Charity se alvoroçava, pronta para dar uma mão e empenhar todo o seu coração em algo que pudesse trazer segurança, conforto e consolo aos que embarcassem no navio de seu querido irmão Bildad, e no qual ela investira os seus poucos dólares economizados.
     Foi surpreendente ver essa Quacre de bom coração subir a bordo, como fez no último dia, com uma longa concha de óleo numa mão e um arpão ainda mais longo na outra. Não ficou atrás nem de Bildad e nem do capitão Peleg. Bildad carregava uma lista longa de objetos que eram necessários a cada chegada e riscava seus nomes à medida que iam sendo embarcados. De vez em quando, Peleg saía depressa de seu covil de ossos de baleia, e gritava com os homens das escotilhas, gritava com os homens do topo do mastro, e voltava gritando para o wigwam.
      Durante esses dias de preparativos, Queequeg e eu visitamos o navio diversas vezes, e em todas as vezes perguntei sobre o Capitão Ahab, como estava e quando voltaria ao navio. Respondiam a essas perguntas dizendo que ele estava melhorando, que qualquer dia viria a bordo; enquanto isso, os dois Capitães, Peleg e Bildad, podiam ajudar com o que fosse necessário à preparação do navio para a viagem. Se tivesse sido honesto comigo mesmo, teria percebido que no fundo do coração eu não estava gostando da idéia de me comprometer com uma viagem tão longa sem nunca ter visto o homem que era o tirano absoluto do navio antes de partir. Quando um homem suspeita de que há algo de errado, acontece de ele, às vezes, no caso de já se encontrar envolvido, lutar insensivelmente para esconder essas suspeitas até de si próprio. Foi o que aconteceu comigo. Não disse nada, tentei não pensar em nada.
     Afinal, comunicaram que o navio partiria no dia seguinte, sem hora marcada. Portanto, nesse dia, Queequeg e eu nos levantamos mais cedo.

Moby Dick: 20 - Tudo em atividade
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Conto: Come, meu filho

Clarice Lispector 

Devaneios

na voz de Nelson de Freitas


"a alimentação também representa uma forma de amar (amor) na infância, mas também ao longo da vida. a comida é afeto e nutrição, e têm os pombos que acreditam que é tudo plano com um domo em cima..."







     O mundo parece chato mas eu sei que não é. Sabe por que parece chato? Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. Eu sei que o mundo é redondo porque disseram, mas só ia parecer redondo se a gente olhasse e às vezes o céu estivesse lá embaixo. Eu sei que é redondo, mas para mim é chato, mas Ronaldo só sabe que o mundo é redondo, para ele não parece chato.

- Porque eu estive em muitos países e vi que nos Estados Unidos o céu também é em cima, por isso o mundo parecia todo reto para mim. Mas Ronaldo nunca saiu do Brasil e pode pensar que só aqui é que o céu é lá em cima, que nos outros lugares não é chato, que só é chato no Brasil, que nos outros lugares que ele não viu vai arredondando. Quando dizem para ele, é só acreditar, pra ele nada precisa parecer. Você prefere prato fundo ou prato chato, mamãe?

- Chat... raso, quer dizer.

- Eu também. No fundo, parece que cabe mais, mas é só para o fundo, no chato cabe para os lados e a gente vê logo tudo o que tem. Pepino não parece inreal?

- Irreal.

- Por que você acha?

- Se diz assim.

- Não, por que é que você também achou que pepino parece inreal? Eu também. A gente olha e vê um pouco do outro lado, é cheio de desenho bem igual, é frio na boca, faz barulho de um pouco de vidro quando se mastiga. Você não acha que pepino parece inventado?

- Parece.

- Onde foi inventado feijão com arroz?

- Aqui.

- Ou no árabe, igual que Pedrinho disse de outra coisa?

- Aqui.

- Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor. Para você carne tem gosto de carne?

- Às vezes.

- Duvido! Só quero ver: da carne pendurada no açougue?!

- Não.

- E nem da carne que a gente fala. Não tem gosto de quando você diz que carne tem vitamina.

- Não fala tanto, come.

- Mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?

- Adivinhou. Come, Paulinho.

- Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece.  


Histórias da Meia-Noite: As bodas de Luís Duarte (II)

As bodas de Luís Duarte

Machado de Assis

Conto

As bodas de Luís Duarte

(II)

     Os primeiros foram os Vilelas, família composta de Justiniano Vilela, chefe de seção aposentado, D. Margarida, sua esposa, e D. Augusta, sobrinha de ambos.
     A cabeça de Justiniano Vilela, — se se pode chamar cabeça a uma jaca metida numa gravata de cinco voltas, — era um exemplo da prodigalidade da natureza quando quer fazer cabeças grandes. Afirmavam, porém, algumas pessoas que o talento não correspondia ao tamanho, posto que tivesse corrido algum tempo o boato contrário. Não sei de que talento falavam essas pessoas; e a palavra pode ter várias aplicações. O certo é que um talento teve Justiniano Vilela, foi a escolha da mulher, senhora que, apesar dos seus quarenta e seis anos bem puxados, ainda merecia, no entender de José Lemos, dez minutos de atenção.
     Trajava Justiniano Vilela como é de uso em tais reuniões; e a única coisa verdadeiramente digna de nota eram os seus sapatos ingleses de apertar no peito do pé por meio de cordões. Ora, como o marido de D. Margarida, tinha horror às calças compridas, aconteceu que apenas se sentou deixou patente a alvura de um fino e imaculado par de meias.
     Além do ordenado com que foi aposentado, tinha Justiniano Vilela uma casa e dois molecotes, e com isso ia vivendo menos mal. Não gostava de política; mas tinha opiniões assentadas a respeito dos negócios públicos. Jogava o solo e o gamão todos os dias, alternadamente; gabava as coisas do seu tempo; e tomava rapé com o dedo polegar e o dedo médio.
     Outros convidados foram chegando, mas em pequena quantidade, porque à cerimônia e ao jantar só devia assistir um pequeno número de pessoas íntimas.
     Às quatro horas e meia chegou o padrinho, Dr. Valença, e a madrinha, sua irmã viúva D. Virgínia. José Lemos correu a abraçar o Dr. Valença; mas este que era homem formalista e cerimonioso, repeliu brandamente o amigo, dizendo-lhe ao ouvido que naquele dia toda a gravidade era pouca. Depois, com uma serenidade que só ele possuía, entrou o Dr. Valença e foi cumprimentar a dona da casa e as outras senhoras.
     Era ele homem de seus cinquenta anos, nem gordo nem magro, mas dotado de um largo peito e um largo abdômen que lhe davam maior gravidade ao rosto e às maneiras. O abdome é a expressão mais positiva da gravidade humana; um homem magro tem necessariamente os movimentos rápidos; ao passo que para ser completamente grave precisa ter os movimentos tardos e medidos. Um homem verdadeiramente grave não pode gastar menos de dois minutos em tirar o lenço e assoar-se. O Dr. Valença gastava três quando estava com defluxo e quatro no estado normal. Era um homem gravíssimo.
     Insisto neste ponto porque é a maior prova da inteligência do Dr. Valença. Compreendeu este advogado, logo que saiu da academia, que a primeira condição para merecer a consideração dos outros era ser grave; e indagando o que era gravidade pareceu-lhe que não era nem o peso da reflexão, nem a seriedade do espírito, mas unicamente certo mistério do corpo, como lhe chama La Rochefoucauld; o qual mistério, acrescentará o leitor, é como a bandeira dos neutros em tempo de guerra: salva do exame a carga que cobre.
     Podia-se dar uma boa gratificação a quem descobrisse uma ruga na casaca do Dr. Valença. O colete tinha apenas três botões e abria-se até ao pescoço em forma de coração. Um elegante claque completava a toilette do Dr. Valença. Não era ele bonito de feições no sentido afeminado que alguns dão à beleza masculina; mas não deixava de ter certa correção nas linhas do rosto, o qual se cobria de um véu de serenidade que lhe ficava a matar.
     Depois da entrada dos padrinhos, José Lemos perguntou pelo noivo, e o Dr. Valença respondeu que não sabia dele. Eram já cinco horas. Os convidados, que cuidavam ter chegado tarde para a cerimônia, ficaram desagradavelmente surpreendidos com a demora, e Justiniano Vilela confessou ao ouvido da mulher que estava arrependido de não ter comido alguma coisa antes. Era justamente o que estava fazendo o jovem Rodrigo Lemos, desde que percebeu que o jantar viria lá para as sete horas.
     A irmã do Dr. Valença de quem não falei detidamente por ser uma das figuras insignificantes que jamais produziu a raça de Eva, apenas entrou manifestou logo o desejo de ir ver a noiva, e D. Beatriz saiu com ela da sala, deixando plena liberdade ao marido que encetava uma conversação com a interessante esposa do Sr. Vilela.

— Os noivos de hoje não se apressam, disse filosoficamente Justiniano; quando eu me casei fui o primeiro que apareceu em casa da noiva.

     A esta observação, toda filha do estômago implacável do ex-chefe de seção, o Dr. Valença respondeu dizendo:

— Compreendo a demora e a comoção de aparecer diante da noiva. 

     Todos sorriram ouvindo esta defesa do noivo ausente e a conversa tomou certa animação.
     Justamente, no momento em que Vilela discutia com o Dr. Valença as vantagens do tempo antigo sobre o tempo atual, e as moças conversavam entre si do último corte dos vestidos, entrou na sala a noiva, escoltada pela mãe e pela madrinha, vindo logo na retaguarda a interessante Luísa, acompanhada do jovem Antonico.
     Eu não seria narrador exato nem de bom gosto se não dissesse que houve na sala um murmúrio de admiração.
     Carlota estava efetivamente deslumbrante com o seu vestido branco, e a sua grinalda de flores de laranjeira, e o seu finíssimo véu, sem outra joia mais que os seus olhos negros, verdadeiros diamantes da melhor água.
     José Lemos interrompeu a conversa em que estava com a esposa de Justiniano, e contemplou a filha. Foi a noiva apresentada aos convidados, e conduzida para o sofá, onde se sentou entre a madrinha e o padrinho. Este, pondo o claque em pé sobre a perna, e sobre o claque a mão apertada numa luva de três mil e quinhentos, disse à afilhada palavras de louvor que a moça ouviu corando e sorrindo, aliança amável de vaidade e modéstia.
     Ouviram-se passos na escada, e já o Sr. José Lemos esperava ver entrar o futuro genro, quando assomou à porta o grupo dos irmãos Valadares.
     Destes dois irmãos, o mais velho, que se chamava Calisto, era um homem amarelo, nariz aquilino, cabelos castanhos e olhos redondos. Chamava-se o mais moço Eduardo, e só diferençava do irmão na cor, que era vermelha. Eram ambos empregados numa Companhia, e estavam na flor dos quarenta para cima. Outra diferença havia: era que Eduardo cultivava a poesia quando as cifras lho permitiam, ao passo que o irmão era inimigo de tudo o que cheirava a literatura.
     Passava o tempo, e nem o noivo, nem o tenente Porfírio davam sinais de si. O noivo era essencial para o casamento, e o tenente para o jantar. Eram cinco e meia quando apareceu finalmente Luís Duarte. Houve um Gloria in excelsis Deo no interior de todos os convidados.
     Luís Duarte apareceu à porta da sala, e daí mesmo fez uma cortesia geral, cheia de graça e tão cerimoniosa que o padrinho lha invejou. Era um rapaz de vinte e cinco anos, tez mui alva, bigode louro e sem barba nenhuma. Trazia o cabelo apartado no centro da cabeça. Os lábios eram tão rubros que um dos Valadares disse ao ouvido do outro: parece que os tingiu. Em suma, Luís Duarte era uma figura capaz de agradar a uma moça de vinte anos, e eu não teria grande repugnância em chamar-lhe um Adônis, se ele realmente o fosse. Mas não era. Dada a hora, saíram os noivos, os pais e os padrinhos, e foram à igreja, que ficava perto; os outros convidados ficaram em casa, fazendo as honras dela a menina Luísa e o jovem Rodrigo, a quem o pai foi chamar, e que apareceu logo trajado no rigor da moda.

— É um par de pombos, disse a Sra. D. Margarida Vilela, apenas saiu a comitiva.

— É verdade! disseram em coro os dois irmãos Valadares e Justiniano Vilela. 

continua na página 41...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: As bodas de Luís Duarte (II)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.

10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873

Café, Jazz e um bom livro... Bom dia

Café, Sax e Liberdade



o aroma dança
no embalo suave da música
a esperança
nas páginas sussurrando sonhos
mergulho nas palavras
risonho.
as notas flutuam
se parecem com nuvens leves
os acordes me beijando
atrevidos
os seus encantos
o tempo desacelera
me liberto.




Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: O doutor Juvenal Urbino

O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

     O doutor Juvenal Urbino tinha uma rotina fácil de seguir, desde que haviam ficado para trás os anos tempestuosos dos primeiros embates, e conseguiu uma respeitabilidade um prestígio que não tinham igual na província. Levantava-se com os primeiros galos, e a essa hora começava a tomar seus remédios secretos: brometo de potássio para levantar o ânimo, salicilatos para as dores dos ossos em tempo de chuva, gotas de cravagem de centeio para as vertigens, beladona para o bom dormir. Tomava alguma coisa a cada hora, sempre às escondidas, porque em sua longa vida de médico e mestre foi sempre contrário a receitar paliativos para a velhice: achava mais fácil suportar as dores alheias que as próprias. No bolso levava sempre um cristal de cânfora que aspirava fundo quando não tinha ninguém olhando, para se livrar do medo de tantos remédios misturados.
      Permanecia uma hora no seu gabinete, preparando a aula de clínica geral que ministrou na Escola de Medicina todos os dias de segunda a sábado, às oito em ponto, até a véspera de sua morte. Era também um leitor atento das novidades literárias que lhe mandava pelo correio seu livreiro de Paris, ou das que lhe despachava de Barcelona seu livreiro local, embora não acompanhasse a literatura da língua castelhana com tanta atenção quanto a francesa. De qualquer forma nunca as lia pela manhã e sim depois da sesta durante uma hora, e à noite antes de dormir. Ao deixar o gabinete fazia quinze minutos de exercícios respiratórios no banheiro, defronte da janela aberta, respirando sempre para o lado em que cantavam os galos, que era onde estava o ar novo. Depois tomava banho, cuidava da barba e engomava o bigode num ambiente saturado de água-de-colônia da legítima de Farina Gegenüber, e se vestia de linho branco, com colete e chapéu mole, e botinas de cordovão. Aos oitenta e um anos conservava o jeito despreocupado e o espírito festivo de quando voltou de Paris, pouco depois da epidemia grande do cólera morbo, e o cabelo bem penteado com o repartido no meio continuava igual ao da juventude, salvo pela cor metálica. Tomava café em família, mas com um regime pessoal: uma infusão de flores de absinto maior, para o bem-estar do estômago, e uma cabeça de alho cujos dentes descascava e comia um por um, mastigando-os com método em fatias de pão caseiro, para prevenir os sufocos do coração. Só em raras ocasiões não tinha depois da aula algum compromisso relacionado com suas iniciativas cívicas, ou com suas milícias católicas, ou com suas promoções artísticas e sociais.
     Almoçava quase sempre em casa, fazia uma sesta de dez minutos sentado na varanda do quintal, ouvindo em sonhos as canções das criadas debaixo da copa das mangueiras, ouvindo os pregões da rua, o fragor de motores com o fedor de óleos da baía, cujos eflúvios esvoaçavam por dentro da casa nas tardes de calor como um anjo condenado à podridão. Depois lia durante uma hora os livros recentes, em especial romances e estudos históricos, e dava lições de francês e de canto ao louro doméstico que há anos era uma atração local. Às quatro saía para visitar os doentes, depois de tomar uma grande caneca de limonada com gelo. Apesar da idade, resistia à ideia de receber os pacientes no consultório, continuando a atendê-los nas respectivas casas, como sempre tinha feito, desde os tempos em que a cidade era tão doméstica que se podia ir a pé a qualquer lugar.
     Desde que voltara da Europa pela primeira vez andava no landô familiar com dois alazões dourados, mas quando este se tornou imprestável trocou-o por uma vitória de um cavalo só, e continuou a usá-la sempre com certo desdém pela moda, nessa época em que as carruagens começavam a desaparecer do mundo e as únicas que ainda perduravam na cidade só serviam para levar turistas a passeio e coroas ao cemitério. Embora se negasse a aposentadoria, estava consciente de que só o chamavam para atender a casos perdidos, mas considerava que isso também era uma forma de especialização. Era capaz de saber o que tinha um doente só pelo seu aspecto, e cada vez desconfiava mais dos medicamentos comerciais e via com alarme a vulgarização da cirurgia. Dizia: "O bisturi é a prova maior do fracasso da medicina." Achava que dentro de um critério estrito todo remédio era veneno, e que setenta por cento dos alimentos correntes apressavam a morte. "De qualquer maneira", costumava dizer em classe, "a pouca medicina que se sabe só a sabem alguns médicos." De seus entusiasmos juvenis tinha passado a uma posição que ele mesmo definia como um humanismo fatalista: "Cada qual é dono de sua própria morte, e a única coisa que podemos fazer, chegada a hora, é ajudá-lo a morrer sem medo nem dor." Mas a despeito dessas ideias extremadas, que já eram parte do folclore médico local, seus antigos alunos continuavam a consultá-lo mesmo quando já eram profissionais estabelecidos, pois reconheciam nele o que então se chamava olho clínico. De todo modo foi sempre um médico caro e excludente, e sua clientela se concentrava nas casas fidalgas do bairro dos Vice-Reis.
     Tinha um dia-a-dia tão metódico que a esposa sabia onde lhe mandar um recado se surgisse algo urgente no transcorrer da tarde. Quando moço passava algum tempo no Café da Paróquia antes de voltar para casa, e assim aperfeiçoou seu xadrez com os cúmplices do sogro e com alguns refugiados do Caribe. Mas a partir dos albores do novo século não voltou ao Café da Paróquia e tratou de organizar torneios nacionais patrocinados pelo Clube Social. Foi por essa época que chegou Jeremiah de Saint-Amour, já com os joelhos mortos e ainda sem o ofício de fotógrafo de crianças, e antes de três meses era conhecido de quem quer que soubesse movimentar um bispo num tabuleiro, porque ninguém conseguira ganhar-lhe uma partida. Para o doutor Juvenal Urbino foi um encontro milagroso, num momento em que o xadrez se transformara para ele numa paixão indomável e já não lhe restavam muitos adversários para saciá-la.
      Graças a ele, Jeremiah de Saint-Amour pôde ser o que foi entre nós. O doutor Urbino se converteu em seu protetor incondicional, em seu fiador de tudo, sem se dar sequer trabalho de averiguar quem era, nem o que fazia, nem de que guerras sem glória vinha naquele estado de invalidez e descalabro. Acabou por emprestar lhe o dinheiro para que montasse o estúdio de fotógrafo, que Jeremiah de Saint Amour pagou com um rigor de pobre soberbo, até o último vintém, a partir do instante em que retratou o primeiro menino assustado pelo relâmpago de magnésio.
     A causa de tudo foi o xadrez. A princípio jogavam às sete da noite, depois do jantar, com justas vantagens para o médico em razão da superioridade notória do adversário, mas cada vez com menos vantagens, até que emparelharam. Mais tarde, quando o senhor Galileo Daconte abriu a primeira sala de cinema, Jeremiah de Saint-Amour foi um dos seus clientes mais assíduos, e as partidas de xadrez se reduziram às noites em que não se estreava nenhuma fita. Nessa altura se havia tornado tão amigo do médico que este o acompanhava ao cinema, mas sempre sem a esposa, em parte porque ela não tinha paciência para seguir o fio dos enredos difíceis, e em parte porque sempre lhe pareceu, por puro olfato, que Jeremiah de Saint-Amour não era uma boa companhia para ninguém.
     Seu dia diferente era o domingo. Assistia à missa solene na catedral, e depois voltava para casa e ali ficava descansando e lendo na varanda do quintal. Poucas vezes saía para ver um doente em dia de guarda, a menos que fosse de extrema urgência, e há muitos anos não aceitava nenhum compromisso social que não fosse quase obrigatório. Naquele dia de Pentecostes, por uma coincidência excepcional, haviam concorrido dois acontecimentos raros: a morte de um amigo e as bodas de prata de um discípulo eminente. Mesmo assim, em vez de regressar a casa sem rodeios, como previra depois de atestar a morte de Jeremiah de Saint-Amour, se deixou arrastar pela curiosidade.
      Logo que subiu no carro fez uma recapitulação rápida da carta póstuma, e ordenou ao cocheiro que o levasse a um endereço difícil no antigo bairro dos escravos. Aquela determinação era tão estranha a seus hábitos que o cocheiro quis ter certeza de que não havia algum erro. Não havia: o endereço era claro, e quem o escrevera tinha motivos de sobra para conhecê-lo muito bem. O doutor Urbino voltou então à primeira folha, e mergulhou outra vez naquele manancial de revelações indesejáveis que teriam podido mudar-lhe a vida, mesmo na sua idade, se tivesse conseguido convencer a si mesmo de que não eram os delírios de um desenganado.
     O humor do céu tinha começado a se descompor desde muito cedo, e estava nublado e fresco, mas não havia riscos de chuva antes do meio-dia. Tratando de encontrar um caminho mais curto, o cocheiro se meteu pelas ladeiras empedradas da cidade colonial, e teve que parar muitas vezes para que o cavalo não se espantasse com a desordem dos colégios e congregações religiosas que voltavam da liturgia do Pentecostes. Havia grinaldas de papel nas ruas, músicas e flores, e moças com sombrinhas coloridas e véus de musselina que viam passar a festa dos balcões. Na Praça da Catedral, onde se distinguia a estátua do Libertador entre as palmeiras africanas e as novas luminárias de globos, havia um engarrafamento de automóveis à saída da missa e não restava um lugar disponível no venerável e barulhento Café da Paróquia. O único carro de cavalos era o do doutor Urbino, e se diferenciava dos muito poucos que restavam na cidade porque mantinha sempre o brilho da capota de charão e tinha as ferragens de bronze, para que o salitre não as comesse, e as rodas e varais pintados de vermelho com frisos dourados, como nas noites de gala da Ópera de Vieña. Além disso, enquanto mesmo as famílias mais cheias de si se conformavam com cocheiros que ostentassem uma camisa limpa, ele continuava exigindo do seu a libré de veludo soturno e a cartola de domador de circo, coisas que eram não só anacrônicas como representavam uma falta de misericórdia na canícula do Caribe.
      Apesar do seu amor quase maníaco pela cidade, e de conhecê-la melhor do que ninguém, o doutor Juvenal Urbino tinha tido muito poucas vezes motivo como o daquele domingo para se aventurar sem hesitações pela mixórdia do antigo bairro dos escravos. O cocheiro teve que dar muitas voltas e perguntar várias vezes para encontrar o endereço. O doutor Urbino reconheceu de perto a inércia dos pântanos, seu silêncio fatídico, suas ventosidades de afogado que em tantas madrugadas de insônia subiam até seu quarto de envolta com a fragrância dos jasmins do quintal, e que ele sentia passar como um vento de ontem que nada tinha a ver com sua vida. Mas aquela pestilência tantas vezes idealizada pela saudade se converteu numa realidade insuportável quando o carro começou a dar saltos pelo lodaçal das ruas onde os urubus disputavam entre si os restos do matadouro arrastados pelo mar em retirada. Ao contrário da cidade vice-real, cujas casas eram de alvenaria, ali eram feitas de madeiras desbotadas e telhados de zinco, assentados em sua maioria sobre estacas para não serem atingidas pelas cheias das cloacas a céu aberto herdadas dos espanhóis. Tudo tinha um aspecto miserável e desamparado, mas das tavernas sórdidas saía o trovão de música da pândega sem Deus nem lei do Pentecostes dos pobres. Quando afinal encontraram o endereço, o carro ia perseguido por maltas de meninos nus que troçavam dos atavios teatrais do cocheiro, e que este tinha que espantar a chicote. O doutor Urbino, preparado para uma visita confidencial, compreendeu tarde demais que não havia candura mais perigosa do que a da sua idade.
      O exterior da casa sem número não tinha nada que a distinguisse das menos felizes, salvo a janela com cortinas de renda e um portão desmontado de alguma igreja antiga. O cocheiro fez soar a aldraba; e só quando comprovou que estava no endereço correto ajudou o médico a descer do carro. O portão fora aberto sem barulho, e na penumbra interior estava uma mulher madura, vestida de preto absoluto e com uma rosa vermelha na orelha. Apesar dos seus anos, que não eram menos de quarenta, continuava sendo uma mulata altiva, de olhos dourados e cruéis, e o cabelo ajustado à forma do crânio como um capacete de palha de aço. O doutor Urbino não a reconheceu, embora a tivesse visto várias vezes entre as nebulosas das partidas de xadrez no estúdio do fotógrafo, e em alguma ocasião lhe havia receitado uns envelopes de quinina para as febres terças. Estendeu-lhe a mão, e ela a tomou entre as suas, menos para cumprimentá-lo do que para ajudá-lo a entrar. A sala tinha o clima e o murmúrio invisível de uma floresta, e estava atulhada de móveis e objetos primorosos, cada um em seu lugar natural. O doutor Urbino se lembrou sem amargura da botica de um antiquário de Paris, numa segunda feira de outono do século anterior, no número 26 da rua de Montmartre. A mulher se sentou diante dele e lhe falou num castelhano difícil.

 — Esta é sua casa, doutor — disse. — Não o esperava tão cedo.

     O doutor Urbino se sentiu denunciado. Observou-a com o coração, observou seu luto intenso, a dignidade da sua angústia, e então compreendeu que aquela era uma visita inútil, porque ela sabia melhor do que ele tudo quanto estava dito e justificado na carta póstuma de Jeremiah de Saint-Amour. Assim era. Ela o havia acompanhado até muito poucas horas antes da morte, como o havia acompanhado durante meia vida com uma devoção e uma ternura submissa que se pareciam demais com o amor, e sem que ninguém o soubesse nesta sonolenta capital de província onde eram do domínio público até os segredos de estado. Tinham se conhecido numa hospedaria de viandantes de Port-au-Prince, onde ela nascera e ele havia passado seus primeiros tempos de fugitivo, e o acompanhara até aqui um ano depois para uma visita breve, embora ambos soubessem sem discutir o assunto que vinha para todo o sempre. Ela se ocupava em manter a limpeza e a ordem do laboratório uma vez por semana, mas nem os vizinhos que mais maliciavam tudo confundiram as aparências com a verdade, porque supunham como todo o mundo que a invalidez de Jeremiah de Saint-Amour não era só de andar. O próprio doutor Urbino o supunha por razões médicas bem fundadas, e jamais teria acreditado que tivesse uma mulher caso ele mesmo não o houvesse revelado na carta. Fosse como fosse, lhe dava trabalho entender que dois adultos livres e sem passado, à margem dos preconceitos de uma sociedade fechada em si mesma, tivessem escolhido o risco dos amores proibidos. Ela lhe explicou: "Era seu gosto." Além disso, a clandestinidade compartilhada com um homem que nunca tinha sido seu por completo, e na qual mais de uma vez conheceram a explosão instantânea da felicidade, não lhe pareceu uma condição indesejável. Ao contrário: a vida lhe havia demonstrado que talvez fosse exemplar.

continua na página 014...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: O doutor Juvenal Urbino
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (12.2) - Ter-se-ia dito

Cem Anos de SOLIDÃO

Gabriel Garcia Márquez


(12.2)

para jomí garcía ascot
e maría luisa elío

continuando...

    Ter-se-ia dito que na cansada mansão dos Buendía havia paz e felicidade rotineira para muito tempo, se a intempestiva morte de Amaranta não tivesse promovido um novo escândalo. Foi um acontecimento inesperado. Embora estivesse velha e afastada de todos, ainda parecia firme e reta e com a saúde de ferro que sempre tivera. Ninguém mais soube do seu pensamento, desde a tarde em que recusou definitivamente o Coronel Gerineldo Márquez e se trancou no quarto chorando. Quando saiu, tinha esgotado todas as suas lágrimas. Não foi vista chorando com a subida ao céu de Remedios, a bela, nem com o extermínio dos Aurelianos, nem com a morte do Coronel Aureliano Buendía, que era a pessoa a quem mais amara neste mundo, embora só o pudesse demonstrar quando encontraram o cadáver debaixo do castanheiro. Ela ajudou a levantar o corpo. Vestiu-o com os seus enfeites de guerreiro, barbeou-o, penteou-o, e engomou-lhe o bigode melhor do que ele mesmo o fazia nos seus anos de glória. Ninguém pensou que houvesse amor naquele ato, porque estavam acostumados com a familiaridade de Amaranta para com os ritos da morte. Fernanda se escandalizava com o fato de ela não entender as relações do catolicismo com a vida, mas unicamente as suas relações com a morte, como se não fosse uma religião mas um prospecto de convencionalismos funerários. Amaranta estava perdida por demais no labirinto das suas lembranças para entender aquelas sutilezas apologéticas. Tinha chegado à velhice com todas as suas saudades vivas. Quando escutava as valsas de Pietro Crespi sentia a mesma vontade de chorar que tivera na adolescência, como se o tempo e as suas punições não tivessem servido para nada. Os rolos de música que ela mesma jogara no lixo, com o pretexto de que estavam apodrecendo com a umidade, continuavam girando e percutindo os marteletes na sua memória. Tinha tentado afogá-los na paixão pantanosa que se permitira com o seu sobrinho Aureliano José e tinha tentado se refugiar na proteção serena e viril do Coronel Gerineldo Márquez, mas não conseguira derrotá-los nem com o ato mais desesperado da sua velhice, quando banhava o pequeno José Arcadio, três anos antes de que o mandassem para o seminário, e o acariciava não como faria uma avó com um neto, mas como teria feito uma mulher com um homem, como se contava que faziam as matronas francesas, e como ela quisera fazer com Pietro Crespi, aos doze, aos quatorze anos, quando o vira com a sua malha de balé e a varinha mágica com que marcava o compasso do metrônomo. Ás vezes lhe doía ter deixado com a sua passagem aquele riacho de miséria e às vezes sentia tanta raiva que espetava os dedos nas agulhas, porém mais lhe doía e com mais raiva ficava e mais lhe amargava o fragrante e bichado goiabal de amor que ia arrastando até a morte [1] . Do mesmo jeito como o Coronel Aureliano Buendía pensava na guerra sem o poder evitar, Amaranta pensava em Rebeca. Mas enquanto seu irmão tinha conseguido esterilizar as lembranças, ela só tinha conseguido avivá-las. A única coisa que rogou a Deus durante muitos anos foi que não lhe impingisse o castigo de morrer antes de Rebeca. Cada vez que passava pela sua casa e notava os progressos da destruição, se satisfazia com a ideia de que Deus a estava ouvindo. Uma tarde, quando costurava na varanda, teve a certeza de que estaria sentada nesse lugar, nessa mesma posição e sob essa mesma luz quando lhe trouxessem a notícia da morte de Rebeca. Sentou-se para esperá-la como quem espera uma carta e a verdade é que em certa época arrancava botões para tornar a pregá-los de modo a que a ociosidade não tornasse mais longa e angustiosa a espera. Ninguém se deu conta em casa de que Amaranta tecera naquela época uma linda mortalha para Rebeca. Mais tarde, quando Aureliano Triste contou que a havia visto transformada numa imagem de assombração, com a pele enrugada e umas poucas fibras amareladas no crânio, Amaranta não se surpreendeu, porque o espectro descrito era igual ao que ela imaginava há muito tempo. Tinha decidido restaurar o cadáver de Rebeca, dissimular com parafina os estragos do rosto e fazer-lhe uma peruca com o cabelo dos santos. Fabricaria um cadáver formoso com a mortalha de linho e um ataúde forrado de veludo com camadas de púrpura e o poria à disposição dos vermes em funerais esplêndidos. Elaborou o plano com tanto ódio que estremeceu com a ideia de que agiria da mesma maneira se fosse por amor, mas não se deixou aturdir pela confusão, e sim continuou aperfeiçoando os detalhes tão minuciosamente que chegou a ser mais do que uma especialista, uma virtuose nos ritos da morte. A única coisa que não levou em conta no seu plano macabro foi que, apesar das súplicas a Deus, ela podia morrer primeiro que Rebeca. E assim aconteceu, realmente. No instante final, porém, Amaranta não se sentiu frustrada, mas pelo contrário libertada de toda a amargura, porque a morte lhe concedera o privilégio de se anunciar com vários anos de antecedência. Viu-a num meio-dia ardente, costurando com ela na varanda, pouco depois de Meme ir para o colégio. Reconheceu-a imediatamente e não havia nada de pavoroso na morte porque era uma mulher vestida de azul, com o cabelo comprido, de aspecto um pouco antiquado e uma certa semelhança com Pilar Ternera na época em que ajudava nos serviços de cozinha. Várias vezes Fernanda esteve presente e não a viu, apesar de ser tão real, tão humana, que numa ocasião pediu a Amaranta o favor de enfiar-lhe a linha na agulha. A morte não lhe disse quando ela ia morrer nem se a sua hora estava marcada para antes da de Rebeca, mas sim lhe ordenou que começasse a tecer a sua própria mortalha no próximo seis de abril. Autorizou-a a fazê-la tão complicada e primorosa quanto quisesse, mas tão honradamente como fizera a de Rebeca, e lhe avisou que haveria de morrer sem dor nem medo nem amargura, ao anoitecer do dia em que a terminasse. Tentando perder a maior quantidade de tempo possível, Amaranta encomendou as meadas de linho e ela mesma teceu a fazenda. Fê-lo com tanto cuidado que somente este trabalho levou quatro anos. Em seguida, iniciou o bordado. À medida que se aproximava o fim irremediável, ia compreendendo que só um milagre permitiria que prolongasse o trabalho para além da morte de Rebeca; mas a própria concentração lhe proporcionou a calma que lhe faltava para aceitar a ideia de uma frustração. Foi então que entendeu o círculo vicioso dos peixinhos de ouro do Coronel Aureliano Buendía.
     O mundo se reduziu à superfície da sua pele e o interior ficou a salvo de toda a amargura. Doeu-lhe não ter tido aquela revelação muitos anos antes, quando ainda seria possível purificar as lembranças e reconstruir o Universo sob uma luz nova e evocar sem estremecer o cheiro de alfazema de Pietro Crespi ao entardecer e resgatar Rebeca do seu ambiente de miséria, não por ódio nem por amor, mas pela compreensão sem limite da solidão. O ódio que percebeu certa noite nas palavras de Meme não a comoveu porque a ofendesse, mas porque se sentiu repetida em outra adolescência que parecia tão limpa como devia ter parecido a sua e que, entretanto, já estava viciada pelo rancor. Mas na época já era tão profunda a conformidade com o seu destino que nem sequer a inquietou a certeza de que estavam fechadas todas as possibilidades de retificação. O seu único objetivo foi terminar a mortalha. Em vez de retardá-la com preciosismos inúteis, como fizera a princípio, apressou o trabalho. Uma semana antes, calculou que daria o último ponto na noite de quatro de fevereiro e, sem revelar o motivo, sugeriu a Meme que antecipasse um concerto de clavicórdio que tinha previsto para o dia seguinte, mas ela não lhe fez caso. Amaranta procurou então uma maneira de se atrasar quarenta e oito horas e até pensou que a morte a estava satisfazendo, porque na noite de quatro de fevereiro uma tempestade desarranjou a rede elétrica. Mas no dia seguinte, às oito da manhã, deu o último ponto no trabalho mais primoroso que mulher alguma terminara jamais e anunciou sem o menor dramatismo que morreria ao entardecer. Preveniu não só a família como toda a população, porque Amaranta se metera na cabeça que poderia reparar toda uma vida de mesquinharia com um último favor ao mundo, e pensou que nenhum era melhor do que levar cartas aos mortos.
      A notícia de que Amaranta Buendía zarpava ao crepúsculo, levando o correio da morte, foi divulgada em Macondo antes do meio-dia e, às três da tarde, já havia na sala um caixote cheio de cartas. Os que não quiseram escrever deram a Amaranta recados verbais que ela anotou numa caderneta, com o nome e a data de morte do destinatário.
      “Não se preocupe”, tranquilizava os remetentes. “A primeira coisa que farei ao chegar será perguntar por ele, e então darei o seu recado.” Parecia uma farsa. Amaranta não revelava nenhuma perturbação, nem o mais leve sinal de dor e até parecia um pouco rejuvenescida pelo dever cumprido. Estava tão ereta e esbelta como sempre. Não fossem as maçãs do rosto endurecidas e a falta de alguns dentes, pareceria muito menos velha do que era na realidade. Ela mesma ordenou que se pusessem as cartas numa caixa lacrada e indicou a maneira como deveria ser colocada no túmulo para preservá-la melhor da umidade. De manhã tinha chamado um carpinteiro que lhe tomou as medidas para o ataúde, de pé, na sala, como se fossem para um vestido. Despertou-se-lhe um tal dinamismo nas últimas horas, que Fernanda pensou que estivesse zombando de todos. Úrsula, com a experiência de que os Buendía morriam sem doença, não pôs em dúvida que Amaranta tivesse tido o presságio da morte, mas em todo caso atormentou-a o temor de que na azáfama das cartas e na ansiedade de que chegassem logo, os ofuscados remetentes não a fossem enterrar viva. De modo que se empenhou em esvaziar a casa, brigando aos gritos com os intrusos e, às quatro da tarde, tinha conseguido. A essa hora, Amaranta acabava de repartir as suas coisas entre os pobres e só tinha deixado sobre o severo ataúde de tábuas sem lixar a muda de roupa e os chinelos simples de pelúcia que haveria de calçar na morte. Não passou por alto essa precaução, ao recordar que quando o Coronel Aureliano Buendía morreu tinham tido que comprar um par de sapatos novos, porque só lhe restavam as pantufas que usava na oficina. Pouco antes das cinco, Aureliano Segundo veio buscar Meme para o concerto e se surpreendeu de que a casa estivesse preparada para o funeral. Se alguém parecia vivo a essa hora era a serena Amaranta, a quem o tempo chegara até para tirar os calos. Aureliano Segundo e Meme se despediram dela com adeuses de brincadeira e lhe prometeram que no sábado seguinte dariam uma festa de ressurreição. Atraído pelas vozes públicas de que Amaranta Buendía estava recebendo cartas para os mortos, o Padre Antonio Isabel chegou às cinco com o viático e teve que esperar mais de quinze minutos para que a moribunda saísse do banho. Quando a viu aparecer com uma camisola de morim e o cabelo solto nas costas, o decrépito pároco pensou que fosse uma brincadeira e despachou o coroinha. Pensou, entretanto, em aproveitar a ocasião para confessar Amaranta depois de quase vinte anos de reticência. Amaranta respondeu, simplesmente, que não precisava de assistência espiritual de nenhuma espécie porque tinha a consciência limpa. Fernanda se escandalizou. Sem se importar que a ouvissem, perguntou em voz alta que pecado terrível teria cometido Amaranta para preferir uma morte sacrílega à vergonha de uma confissão. Então Amaranta se deitou e obrigou Úrsula a dar testemunho público da sua virgindade.

 — Que ninguém tenha ilusões — gritou, para que a ouvisse Fernanda. — Amaranta Buendía se vai desde mundo como veio.

      Não voltou a se levantar. Recostada em almofadões, como se na verdade estivesse doente, teceu as suas longas tranças e enrolou-as sobre as orelhas, exatamente como a morte lhe dissera que deveria estar no ataúde. Em seguida pediu a Úrsula um espelho e pela primeira vez em mais de quarenta anos viu o seu rosto devastado pela idade e pelo martírio e se surpreendeu do quanto se parecia com a imagem mental que tinha de si mesma. Úrsula compreendeu pelo silêncio da alcova que tinha começado a escurecer.

 — Despeça-se de Fernanda — suplicou a ela. — Um minuto de reconciliação tem mais mérito do que toda uma vida de amizade.

 — Já não vale a pena — respondeu Amaranta.

      Meme não pôde deixar de pensar nela quando acenderam as luzes do improvisado cenário e começou a segunda parte do programa. Na metade da peça alguém lhe deu a notícia no ouvido e o ato foi suspenso. Quando chegou em casa, Aureliano Segundo teve que abrir caminho aos empurrões por entre a multidão para ver o cadáver da velha donzela, feia e de má cor, com a venda negra na mão e envolta na mortalha primorosa. Estava exposto na sala junto ao caixote do correio. Úrsula não voltou a se levantar depois das nove noites de Amaranta. Santa Sofía de la Piedad tomou conta dela. Levava-lhe a comida no quarto e a água da bilha para que se lavasse e a mantinha a par de quanto se passava em Macondo. Aureliano Segundo a visitava com frequência e lhe levava roupas que ela punha perto da cama, junto com as coisas mais indispensáveis para o viver diário, de modo que em pouco tempo tinha construído para si um mundo ao alcance da mão. Conseguiu despertar um grande afeto na pequena Amaranta Úrsula, que era idêntica a ela, e a quem ensinou a ler. A sua lucidez, a habilidade para se bastar a si mesma faziam pensar que estava naturalmente vencida pelo peso dos cem anos mas, embora fosse evidente que andava mal da vista, ninguém suspeitou que estivesse completamente cega. Dispunha então de tanto tempo e de tanto silêncio interior para vigiar a vida da casa que foi ela a primeira a perceber a calada angústia de Meme.

 — Venha cá — disse a ela. — Agora que estamos sozinhas, confesse a esta pobre velha o que há contigo.

continua página 175...
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Cem Anos de Solidão (12.2) - Ter-se-ia dito
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[1]  Tendo sido impossível encontrar uma expressão equivalente em português ao excelente “achado” literário de Gabriel García Márquez, feito sobre um emprego regional (Antilhas, Colômbia e El Salvador) do guayaba, preferimos manter a imagem, acrescida desta nota: a goiaba é uma fruta que bicha com muita frequência e sem apresentar marcas externas que sirvam de aviso à pessoa que come. A partir dai, da conotação afetiva de frustração que se desenvolveu no seu significado, a palavra passou a ser empregada em sentido figurado, nas regiões da América Hispânica que assinalamos, com a denotação de mentira, embuste. Gabriel García Márquez vai aproveitar a expressividade do uso linguístico popular recriando-o analiticamente, através, principalmente, da adjetivação contrastante fragante y agusanado — não só o desequilíbrio entre a caracterização eticamente positiva fragante e a eticamente negativa agusanado entra na conta da expressividade; também a própria escolha das palavras na série sinonímica vem a intensificar o desequilíbrio, já que fragrante é um termo que pertence à tradição do clichê literário (“nobre”, portanto), enquanto que agusanado é o termo normal da linguagem agrícola sem idealização estética. A hipérbole guayabal intensifica grotescamente a ironia da adjetivação. (N. T.)