terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Só ia vê-la de noite - g)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust


um amor de swann


III(g) 


     Só ia vê-la de noite, e nada sabia do emprego do seu tempo durante o dia, como nada sabia de seu passado, de modo que lhe faltava até esse insignificante dado inicial que, permitindo-nos imaginar o que não sabemos, nos dá desejos de o conhecer. Assim, não indagava consigo o que ela podia fazer nem qual fora a sua vida. Sorria apenas algumas vezes ao pensar que, anos antes, quando não a conhecia, lhe haviam falado de uma mulher que, se bem se lembrava, devia sem dúvida ser ela, como de uma cortesã, uma mulher sustentada, uma dessas mulheres a quem ele ainda atribuía, em vista de sua pouca convivência com elas, o caráter inteiriço, fundamentalmente perverso, com que por muito tempo as dotou a imaginação de certos romancistas. Considerava que basta muitas vezes tomar ao contrário as reputações que o mundo engendra para julgar exatamente uma pessoa, quando, a tal caráter, contrapunha o de Odette, bondosa, ingênua, idealista, quase tão incapaz de faltar com a verdade que, pedindo-lhe ele uma vez, para jantar a sós com ela, que escrevesse aos Verdurin alegando doença, vira-a no dia seguinte, quando a sra. Verdurin lhe perguntou se estava melhor, enrubescer, balbuciar, refletindo sem querer na fisionomia o desgosto e o suplício que lhe causava a mentira, e, enquanto multiplicava os detalhes fantasiosos sobre a pretensa indisposição da véspera, parecia pedir perdão, com os seus olhos súplices e a sua voz desolada, da falsidade de suas palavras.
     Certas tardes, no entanto, mas de raro em raro, ia ela à casa de Swann interromper as suas cismas ou aquele ensaio sobre Vermeer a que ele voltara a dedicar-se ultimamente. Vinham dizer-lhe que a sra. de Crécy o esperava na saleta. Swann ia ao seu encontro e, quando abria a porta, pelo rosto róseo de Odette, logo que o avistava — mudando a forma de sua boca, o mirar de seus olhos, o modelado de suas faces —, espalhava-se um sorriso. Ficando a sós, revia Swann aquele sorriso, outro que ela tivera na véspera, outro com que o acolher; em tal ou tal vez, aquele que lhe dera em resposta, no carro, quando, ao arranjar-lhe as catleias, lhe perguntara ele se aquilo não lhe era desagradável; e a vida de Odette, durante o resto do tempo, como ele não conhecia nada a seu respeito, lhe aparecia com o seu fundo neutro e sem cor, semelhante a essas folhas de estudo de Watteau, onde se veem aqui e ali, em todos os lugares, em todos os sentidos, desenhados a três cores sobre o papel pardo, inumeráveis sorrisos. Mas às vezes, enchendo um canto daquela vida que Swann via inteiramente vazia, embora o seu espírito lhe dissesse que não o era, simplesmente porque não a podia imaginar, algum amigo que, percebendo que eles se amavam, só se arriscaria a dizer coisas insignificantes a respeito dela, descrevia-lhe o vulto de Odette, que ele avistara naquela mesma manhã, subindo a pé a rua Abbattucci, com uma “visita” guarnecida de skunks, um chapéu à Rembrandt e um ramo de violetas no peito.[1] Este simples croqui abalava Swann porque o fazia aperceber-se de súbito de que Odette possuía uma vida que não era inteiramente dele; queria saber a quem procurava ela agradar com aquela toalete que ele não conhecia; resolvia perguntar-lhe aonde ia naquele momento, como se em toda a vida incolor — quase inexistente, porque lhe era invisível — da sua amante não houvesse senão uma coisa além de todos aqueles sorrisos a ele dirigidos: aquela saída de Odette, com um chapéu à Rembrandt e um ramo de violetas no peito.
     A não ser quando lhe pedia a frase de Vinteuil em vez da Valsa das rosas,[2] Swann nunca a fazia tocar as coisas de que ele gostava, e nem em música, nem em literatura, procurava corrigir o mau gosto de Odette. Bem sabia que ela não era inteligente. Ao dizer a Swann que gostaria de que lhe falasse dos grandes poetas, Odette imaginara que ia logo conhecer coplas heroicas e romanescas no gênero das do visconde de Borelli, ou coisa mais emocionante ainda.[3] Quanto a Vermeer de Delft, indagou se ele não sofrera por alguma mulher, se fora uma mulher que o inspirara, e, como Swann lhe confessasse que nada se sabia a respeito, Odette perdeu todo interesse pelo referido pintor. Costumava dizer: “A poesia? Sim, não duvido, não haveria nada de mais lindo se fosse verdade, se os poetas pensassem tudo o que dizem. Mas em geral não há ninguém mais interesseiro do que essa gente. Bem o sei, eu que tinha uma amiga que amava uma espécie de poeta. Nos seus versos ele só falava do amor, do céu, das estrelas. Ah!, muito lhe serviu a ela! O poeta devorou-lhe mais de trezentos mil francos”. Se então procurava Swann ensinar-lhe em que consistia a beleza artística, como se deviam admirar os versos ou os quadros, ao fim de um instante ela parava de escutar, dizendo: “Ah…, pois eu não imaginava que fosse assim”. E Swann notava nela tal decepção que preferia mentir, dizendo que tudo aquilo ainda não era nada, simples bagatela, que ele não tinha tempo de abordar o fundo, que havia outra coisa. Mas Odette indagava vivamente: “Outra coisa? O quê?… Dize-me então”. Mas ele não o dizia, sabendo o quanto aquilo lhe pareceria insignificante e diferente do que ela esperava, menos sensacional e menos tocante, e temendo também que Odette, desiludida da arte, também se desiludisse do amor.
     E com efeito, Swann lhe parecia intelectualmente inferior ao que havia imaginado. “Nunca perdes o sangue-frio, não consigo definir-te.” O que mais a espantava era a indiferença de Swann pelo dinheiro, a sua polidez para com todos, a sua delicadeza. E de fato, seguidamente acontece com pessoas de mais valor que Swann, com um sábio, com um artista, se é apreciado pelos que o cercam, que o sentimento que vem provar que a sua inteligência se impôs a eles não é a admiração por suas ideias, que lhes escapam, mas o respeito por sua bondade. Era também um sentimento de respeito que inspirava a Odette a situação que tinha Swann na alta sociedade, mas nunca desejou que ele procurasse introduzi-la naquele ambiente. Pensava talvez que Swann não o conseguiria e temia decerto que, só de falar nela, viesse ele a provocar terríveis revelações. A verdade é que o fizera prometer que nunca pronunciaria o seu nome. A razão por que não queria frequentar a sociedade, dissera-lhe certa vez, era uma briga que tivera um dia com uma amiga sua, a qual para vingar-se começara a falar mal dela. “Mas essa tua amiga não conhece todo mundo”, objetava Swann. “Sim, mas essas coisas se alastram como nódoa de azeite, e o mundo é tão perverso…”. Por um lado Swann não compreendeu muito bem a história, mas por outro lado sabia que estas proposições: “o mundo é tão perverso”, “uma calúnia é como nódoa de azeite” são tidas geralmente como verdadeiras; devia haver casos aos quais se aplicassem. E o caso de Odette seria um desses? Indagava-o consigo, mas não por muito tempo, pois também era sujeito a essa pesadez de espírito que se abatia sobre o seu pai quando se propunha um problema difícil. Aliás, esse mundo que causava tanto medo a Odette talvez não lhe inspirasse grandes desejos, pois se achava demasiado longe do mundo que conhecia para que o pudesse imaginar nitidamente. No entanto, tendo-se conservado verdadeiramente simples em alguns pontos (mantinha amizade, por exemplo, com uma costureirinha retirada do ofício e subia quase que diariamente a escada íngreme, escura e malcheirosa da casa de sua amiga), tinha sede de chique, mas não fazia disso a mesma ideia que as pessoas da alta sociedade. Para estas, o chique é uma emanação de algumas raras pessoas que o projetam num raio bastante amplo — e com maior ou menor força, segundo a distância a que se está da sua intimidade — sobre o círculo dos seus amigos ou dos amigos de seus amigos, cujos nomes formam uma espécie de repertório. As pessoas da alta sociedade o guardam de memória, e têm sobre essas matérias uma erudição de que tiram uma espécie de gosto e de tato peculiares, de modo que Swann, por exemplo, sem necessidade de apelar para a sua ciência mundana, quando lia no jornal os nomes das pessoas que se encontravam num jantar, podia dizer imediatamente a nuança de chique desse jantar, como um letrado, à simples leitura de uma frase, aprecia exatamente a qualidade literária de seu autor. Mas Odette era dessas pessoas (muito numerosas, embora não o creiam os da alta sociedade, e como as há em todas as classes sociais) que, como não possuem essas noções, imaginam um chique inteiramente diverso, que assume diferentes aspectos conforme o meio a que pertencem, mas tem como característica essencial — seja o chique com que sonhava Odette ou o chique ante o qual se inclinava a sra. Cottard — a de ser diretamente acessível a todos. O outro, o das pessoas da alta sociedade, também o é, mas demanda algum tempo. Dizia Odette de alguém:

— Só vai aos lugares chiques.

     E se Swann perguntava o que queria dizer com isso, ela retrucava um tanto desdenhosamente:

— Mas ora! Os lugares chiques! Se na tua idade é preciso que te ensinem o que são lugares chiques… Que sei eu! Por exemplo, a avenida da Imperatriz nos domingos de manhã, a margem do Lago às cinco horas, as quintas do Eden Teatro, as sextas do Hipódromo, os bailes…[4] 
— Mas que bailes? 
— Mas os bailes que dão em Paris, os bailes chiques, quero eu dizer. Sabes o Herbinger, aquele que trabalha com o agiota? Sim, deves conhecer, é um dos homens mais em moda de Paris, um rapaz alto, loiro, muito esnobe, tem sempre uma flor na lapela, uma risca atrás, e paletós claros; anda com aquela velhota que ele leva a todas as estreias. Pois bem! No outro dia ele deu um baile, havia lá tudo o que há de chique em Paris! Como eu gostaria de ter ido! Mas era preciso apresentar o convite à porta, e eu não pude conseguir nenhum. Bem, no fundo, prefiro mesmo não ter ido, havia tanta gente que eu não poderia ver nada. Era só para poder dizer que já estive no Herbinger. Tu sabes, a vaidade! De resto, podes acreditar, de cem pessoas que dizem que foram, metade não estava lá… Mas espanta-me que tu, um homem tão pschutt, não tenhas ido.[5] 

     Mas Swann não procurava absolutamente fazer com que Odette modificasse esse conceito do chique; considerando que o seu conceito não era mais verdadeiro, mas igualmente tolo e sem importância, não achava nenhum interesse em instruir a amante a esse respeito, tanto assim que, após alguns meses, ela só se interessava pelas relações de Swann quanto às entradas que ele poderia obter para o Hipódromo ou as estreias de teatro. Desejava que ele cultivasse relações tão úteis, mas inclinava-se a julgá-las muito pouco chiques, depois que vira passar na rua a marquesa de Villeparisis com vestido preto de lã e touca de fitas.

— Mas ela tem o ar de uma operária, de uma porteira, darling. Uma marquesa, aquilo! Eu não sou nenhuma marquesa, mas teriam de pagar-me muito bem para que eu saísse daquele jeito!

     Não compreendia que Swann morasse naquela casa do cais de Orléans que, sem ousar confessá-lo, achava indigna dele. 
     Tinha a pretensão de amar as “antiguidades” e tomara um ar extasiado para dizer que adorava passar um dia inteiro a “bibelotar”, a procurar bricabraque, coisas “antigas”. Embora timbrasse, como por uma questão de honra (e como se obedecesse a algum preceito de família) em nunca responder às interrogações nem “prestar contas” quanto ao emprego dos seus dias, falou uma vez a Swann de uma amiga que a convidara e em cuja casa era tudo “de época”. Mas Swann não conseguiu que ela lhe dissesse qual era a época. Contudo, depois de refletir, respondeu que era “medieval”. Queria dizer com isso que havia revestimentos de madeira nas paredes. Algum tempo depois tornou a falar-lhe da sua amiga e acrescentou, no tom hesitante e com o ar entendido de quem cita alguém com quem jantou na véspera e cujo nome nunca ouvira antes mas que os anfitriões pareciam considerar uma personagem tão famosa que é de esperar que o interlocutor saiba de quem se trata: “Ela tem uma sala de jantar do… século xviii!”. De resto, achava aquilo horrível, muito desnudado, como se a casa não estivesse acabada, as mulheres pareciam horríveis naquele ambiente e a moda não pegaria. Pela terceira vez enfim falou neste assunto e mostrou a Swann o endereço do homem que fabricara a sala de jantar e a quem desejava mandar chamar quando tivesse dinheiro, para ver se não poderia fazer-lhe, não uma igual, mas a que ela sonhava e que infelizmente as dimensões de seu pequeno apartamento não comportavam, com altos aparadores, móveis Renascença e lareiras como as do castelo de Blois. Naquele dia, deixou escapar diante de Swann o que pensava do seu apartamento do cais de Orléans: como ele houvesse criticado que a amiga de Odette desse, não para o estilo Luís XVI, pois, dizia ele, embora seja coisa que não se fabrique, bem pode ser encantador, mas para o falso antigo: “Não hás de querer que ela viva, como tu, no meio de móveis quebrados e tapetes gastos”, disse-lhe ela, pois o convencionalismo da burguesia mais uma vez dominava o diletantismo da cocote.
     Daqueles que gostavam de objetos de arte, apreciavam os versos, desprezavam os cálculos mesquinhos, sonhavam com honra e amor, fazia ela uma elite superior ao resto da humanidade. Não era necessário que tivessem realmente esses gostos, contanto que o proclamassem; de um homem que lhe confessara, à mesa, que gostava de flanar, de empoeirar os dedos nas velhas lojas, que nunca seria apreciado por este século comercial, pois não lhe preocupavam os seus interesses e pertencia por isso a outra época, dizia ela, na volta: “Um espírito adorável! Que sensibilidade! Eu não tinha notado!”, e sentia por aquele homem um imenso e repentino afeto. Mas aqueles que tinham esses mesmos gostos e nunca se referiam a isso, como era o caso de Swann, deixavam-na indiferente. Por certo era obrigada a confessar que Swann não ligava ao dinheiro, mas acrescentava com ar amuado: “Mas, quanto a ele, é outra coisa”; com efeito, o que lhe falava à imaginação não era a prática do desinteresse, mas seu vocabulário.
     Vendo que muitas vezes não podia realizar os sonhos de Odette, ao menos procurava fazer com que ela se sentisse bem na sua companhia, e não contrariava aquelas ideias vulgares, aquele mau gosto que ela possuía em todas as coisas, e que ele aliás amava como tudo que provinha dela, que o encantavam até, pois eram traços peculiares graças aos quais a essência daquela mulher se lhe tornava aparente e visível. Assim, quando tinha Odette um ar feliz porque devia ir à Reine Topaze,[6] ou quando o seu olhar se tornava sério, inquieto e voluntarioso, porque tinha medo de perder a festa das flores,[7]ou simplesmente a hora do chá, com mufins e toasts, no “Chá da Rua Royale”,[8] cuja frequentação achava indispensável para consagrar a reputação de elegância de uma mulher, Swann, arrebatados como ficamos nós com a naturalidade de uma criança ou a verdade de um retrato que só falta falar, de tal modo sentia a alma de sua amante aflorar-lhe ao rosto que não podia resistir à tentação de ir tocá-la com os lábios. “Ah!, com que então a pequena Odette quer que a levem à festa das flores, quer fazer-se admirar? Pois bem! Nós a levaremos, só temos de ceder a seus desejos.” Como era um pouco fraco de vista, Swann teve de resignar-se a usar óculos para trabalhar em casa e adotar em público o monóculo, que o desfigurava menos. Da primeira vez em que o viu com ele, Odette não pôde conter a alegria: “Acho que para um homem, não há o que dizer, é muito chique! Como ficas bem assim! Tens o ar de um verdadeiro gentleman. Só te falta um título!”, acrescentou, com uma nuança de pesar. Gostava que Odette fosse assim, da mesma forma que, se estivesse enamorado de uma bretã, estimaria mais vê-la de touca e ouvi-la dizer que acreditava em fantasmas. Até então, como muitos homens cujo gosto artístico se desenvolve independentemente da sensualidade, houvera uma estranha disparidade entre as satisfações que concedia a uma e outra coisa, gozando, na companhia de mulheres cada vez mais grosseiras, a sedução de obras mais e mais refinadas, levando, por exemplo, uma criadinha a um camarote reservado, para assistir à representação de uma peça decadente que ele tinha vontade de ouvir ou a uma exposição de pintura impressionista, e persuadido, aliás, de que uma mulher do mundo cultivado não compreenderia muito mais do que a criada, mas não saberia calar-se tão gentilmente. Pelo contrário, desde que amava Odette, era-lhe tão grato simpatizar com ela e aspirar a não ter mais que uma alma para ambos, que procurava gostar das coisas que ela preferia, e tanto mais profundamente se comprazia não só em imitar seus hábitos, mas em adotar suas opiniões, porquanto, como não tinham nenhuma raiz em sua própria inteligência, apenas lhe lembravam o seu amor, devido ao qual lhes dera preferência. Se ia duas vezes a Serge Panine,[9] se procurava ensejo de ouvir Olivier Métra dirigir uma orquestra, era pela doçura de ser iniciado em todas as concepções de Odette e sentir-se participante de todos os seus gostos. Esse encanto de o aproximar de Odette, que tinham as obras ou os lugares que ela amava, lhe parecia mais misterioso que o encanto intrínseco a coisas mais belas, mas que não lhe lembravam Odette. Tendo aliás deixado enfraquecerem as crenças intelectuais da sua juventude, e havendo o seu ceticismo de mundano penetrado até elas, sem que o soubesse, pensava (ou pelo menos o pensara tanto tempo que ainda o dizia) que os objetos do nosso gosto não possuem em si mesmos um valor absoluto, mas que tudo é questão de época, de classe, tudo consiste em modas, as mais vulgares das quais valem tanto como as que passam por mais distintas. E como achava que a importância que atribuía Odette ao arranjo de um convite para a vernissage não era em si mesma alguma coisa de mais ridículo que o prazer que ele sentia outrora em almoçar com o príncipe de Gales, tampouco pensava que a admiração que ela dedicava a Monte Carlo ou ao Righi fosse mais desarrazoada que o gosto que tinha ele pela Holanda, que ela imaginava feia, e por Versalhes, que ela achava triste. [10] Abstinha-se, assim, de ir a esses lugares, e sentia prazer em pensar que o fazia por ela, que apenas com ela queria sentir e amar as coisas deste mundo.
 
continua na página 166...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Só ia vê-la de noite - g)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] O termo “visita” refere-se a um casaco curto e skunks, à pele de gambá. No segundo volume, o herói descobrirá um “croqui” de Odette da mesma época e com o mesmo traje, descortinando ele próprio todo um período da vida dela que, muito provavelmente, escapava aos olhos de Swann. Será mais um exemplo da revelação súbita de “linhas invisíveis” que desenham cenários insuspeitados do “tempo perdido”. [n. e.]
[2] Composição de Olivier Métra, autor muito admirado por Odette. [n. e.]
[3] O poeta Borelli, três vezes agraciado pela Academia Francesa, aparece como sinônimo de poesia fácil e de exaltação gratuita já no primeiro “romance” inacabado de Proust, Jean Santeuil. [n. e.]
[4] A avenida da Imperatriz perde esse nome com a queda do Segundo Império e se transforma na avenida do Bois, posterior avenida Foch. O “lago” é justamente o do Bois de Boulogne. O teatro Eden, situado na rua Boudreau, perto da Ópera, era a sala de espetáculos mais luxuosa de Paris. Já o Hipódromo era um grande circo com pista oval, podendo receber até 10 mil espectadores. Os “lugares chiques” de Odette eram do interesse da Terceira República, lugares totalmente fora do Faubourg Saint-Germain, frequentado por Swann. [n. e.]
[5] Pschutt: neologismo que significa “chique”, “elegante”. [n. e.]
[6] Ópera-cômica de Victor Massé — o narrador citará uma série de obras de menor valor e hoje esquecidas, sublinhando o mau gosto artístico de Odette e seu apego às novidades. [n. e.]
[7] A festa das flores acontecia em junho na alameda das Acácias, no Bois de Boulogne. [n. e.]
[8] Elegante casa de chá à moda inglesa. [n. e.]
[9] Drama de Georges Ohnet envolvendo falsidade, casamento por interesse e assassinato redentor — mais adiante, a sra. Cottard externará sua admiração pela intensidade dramática desses ingredientes. [n. e.]
[10] Monte Carlo e Righi aparecem como referências ao turismo de luxo, a Holanda por sua tradição de pintores, e Versalhes pelo interesse de Swann pela corte de Luís xiv, já exemplificado por suas leituras das Memórias do duque de Saint-Simon, no início de “Combray”. [n. e.]

O Cortiço - XXI: João Romão, em chinelas e camisola

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


XXI
.

     Ao mesmo tempo, João Romão, em chinelas e camisola, passeava de um para outro lado no seu quarto novo. Um aposento largo e forrado de azul e branco com florinhas amarelas fingindo ouro; havia um tapete aos pés da cama, e sobre a peniqueira um despertador de níquel, e a mobília toda era já de casados, porque o esperto não estava para comprar móveis duas vezes. 
     Parecia muito preocupado; pensava em Bertoleza que, a essas horas, dormia lá embaixo num vão de escada, aos fundos do armazém, perto da comuna.
     Mas que diabo havia ele de fazer afinal daquela peste?...
     E coçava a cabeça, impaciente por descobrir um meio de ver-se livre dela. 
     É que nessa noite o Miranda lhe falara abertamente sobre o que ouvira de Botelho, e estava tudo decidido: Zulmira aceitava-o para marido e Dona Estela ia marcar o dia do casamento. O diabo era a Bertoleza!...
     E o vendeiro ia e vinha no quarto, sem achar uma boa solução para o problema. 
     Ora, que raio de dificuldade armara ele próprio para se coser!... Como poderia agora mandá-la passear, assim, de um momento para outro, se o demônio da crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda a gente na estalagem sabia disso?
     E sentia-se revoltado e impotente defronte daquele tranquilo obstáculo que lá estava embaixo, a dormir, fazendo-lhe em silêncio um mal horrível, perturbando-lhe estupidamente o curso da sua felicidade, retardando-lhe, talvez sem consciência, a chegada desse belo futuro conquistado à força de tamanhas privações e sacrifícios! 
     Que ferro!
     Mas, só com lembrar-se da sua união com aquela brasileirinha fina e aristocrática, um largo quadro de vitórias rasgava-se defronte da desensofrida avidez da sua vaidade. Em primeiro lugar fazia-se membro de uma família tradicionalmente orgulhosa, como era, dito por todos, a de Dona Estela; em segundo lugar aumentava consideravelmente os seus bens com o dote da noiva, que era rica; e em terceiro, afinal, caber-lhe-ia mais tarde tudo o que o Miranda possuía, realizando-se deste modo um velho sonho que o vendeiro afagava desde o nascimento da sua rivalidade com o vizinho. 
     E via-se já na brilhante posição que o esperava: uma vez de dentro, associava-se logo com o sogro e iria pouco a pouco, como quem não quer a coisa, o empurrando para o lado, até empolgar-lhe o lugar e fazer de si um verdadeiro chefe da colônia portuguesa no Brasil; depois, quando o barco estivesse navegando ao largo a todo o pano - Tome lá alguns pares de contos de réis e passe-me para cá o titulo de Visconde!
     Sim, sim, Visconde! Por que não? e mais tarde, com certeza, Conde! Eram favas contadas! 
     Ah! ele, posto nunca o dissera a ninguém, sustentava de si para si nos últimos anos o firme propósito de fazer-se um titular mais graduado que o Miranda. E, só depois de ter o titulo nas unhas, é que iria à Europa, de passeio, sustentando grandeza, metendo invejas, cercado de adulações, liberal, pródigo, brasileiro, atordoando o mundo velho com o seu ouro novo americano! 
     E a Bertoleza? gritava-lhe do interior uma voz impertinente.

- É exato! E a Bertoleza?... repetia o infeliz, sem interromper o seu vaivém ao comprido da alcova. Diabo! E não poder arredar logo da vida aquele ponto negro; apagá-lo rapidamente, como quem tira da pele uma nódoa de lama! Que raiva ter de reunir aos voos mais fulgurosos da sua ambição a ideia mesquinha e ridícula daquela inconfessável concubinagem! E não podia deixar de pensar no demônio da negra, porque a maldita ali estava perto, a rondá-lo ameaçadora e sombria; ali estava como o documento vivo das suas misérias, já passadas mas ainda palpitantes. Bertoleza devia ser esmagada, devia ser suprimida, porque era tudo que havia de mau na vida dele! Seria um crime conservá-la a seu lado! Ela era o torpe balcão da primitiva bodega; era o aladroado vintenzinho de manteiga em papel pardo; era o peixe trazido da praia e vendido à noite ao lado do fogareiro à porta da taberna; era o frege imundo e a lista cantada das comezainas à portuguesa; era o sono roncado num colchão fétido, cheio de bichos; ela era a sua cúmplice e era todo seu mal - devia, pois, extinguir-se! Devia ceder o lugar à pálida mocinha de mãos delicadas e cabelos perfumados, que era o bem, porque era o que ria e alegrava, porque era a vida nova, o romance solfejado ao piano, as flores nas jarras, as sedas e as rendas, o chá servido em porcelanas caras; era enfim a doce existência dos ricos, dos felizes e dos fortes, dos que herdaram sem trabalho ou dos que, a puro esforço, conseguiram acumular dinheiro, rompendo e subindo por entre o rebanho dos escrupulosos ou dos fracos. E o vendeiro tinha defronte dos olhos o namorado sorriso da filha do Miranda, sentia ainda a leve pressão do braço melindroso que se apoiara ao seu, algumas horas antes, em passeio pela praia de Botafogo; respirava ainda os perfumes da menina, suaves, escolhidos e penetrantes como palavras de amor; nos seus dedos grossos, curtos, ásperos e vermelhos, conservava a impressão da tépida carícia daquela mãozinha enluvada que, dentro em pouco, nos prazeres garantidos do matrimônio, afagar-lhe-ia as carnes e os cabelos.

     Mas, e a Bertoleza?...
     Sim! era preciso acabar com ela! despachá-la! sumi-la por uma vez! 
     Deu meia-noite no relógio do armazém. João Romão tomou uma vela e desceu aos fundos da casa, onde Bertoleza dormia. Aproximou-se dela, pé ante pé, como um criminoso que leva uma ideia homicida.
     A crioula estava imóvel sobre o enxergão, deitada de lado, com a cara escondida no braço direito, que ela dobrara por debaixo da cabeça. Aparecia-lhe uma parte do corpo nua. 
     João Romão contemplou-a por algum tempo, com asco. 
     E era aquilo, aquela miserável preta que ali dormia indiferentemente, o grande estorvo da sua ventura!... Parecia impossível!

- E se ela morresse?...

     Esta frase, que ele tivera, quando pensou pela primeira vez naquele obstáculo à sua felicidade, tornava-lhe agora ao espírito, porém já amadurecida e transformada nesta outra:

- E se eu a matasse?

     Mas logo um calafrio de pavor correu-lhe por todos os nervos. 
     Além disso, como?... Sim, como poderia despachá-la, sem deixar sinais comprometedores do crime?... Envenenando-a?... Dariam logo pela coisa!... Matá-la a tiro?... Pior! Levá-la a um passeio fora da cidade, bem longe e, no melhor da festa, atirá-la ao mar ou por um despenhadeiro, onde a morte fosse infalível?... Mas como arranjar tudo isso, se eles nunca passeavam juntos?... 
     Diabo!
     E o desgraçado ficou a pensar, abstrato, de castiçal na mão, sem despregar os olhos de cima de Bertoleza, que continuava imóvel, com o rosto escondido no braço.

- E se eu a esganasse aqui mesmo?...

     E deu, na ponta dos pés, alguns passos para frente, parando logo, sem deixar nunca de contemplá-la. Mas a crioula ergueu de improviso a cabeça e fitou-o com os olhos de quem não estava dormindo.

- Ah! fez ele. 
- Que é, seu João? 
- Nada. Vim só ver-te... Cheguei ainda não há muito... Como vais tu? Passou-te a dor do lado?...

     Ela meneou os ombros, sem responder ao certo. Houve um silêncio entre os dois. João Romão não sabia o que dizer e saiu afinal, escoltado pelo imperturbável olhar da crioula, que o intimava mesmo pelas costas.

- Teria desconfiado? pensou o miserável, subindo de novo para o quarto. Qual! Desconfiar de quê?...

     E meteu-se logo na cama, disposto a não pensar mais nisso e dormir incontinenti. Mas o seu pensamento continuou rebelde a parafusar sobre o mesmo assunto.

- É preciso despachá-la! É preciso despachá-la quanto antes, seja lá como for! Ela, até agora, não deu ainda sinal de si; não abriu o bico a respeito da questão; mas, Dona Estela está a marcar o dia do casamento; não levará muito tempo para isso... o Miranda naturalmente comunica a noticia aos amigos... o fato corre de boca em boca... chega aos ouvidos da crioula e esta, vendo-se abandonada, estoura! estoura com certeza! E agora o verás! Como deve ser bonito, hein?... Ir tão bem até aqui e esbarrar na oposição da negra!... E os comentários depois!... O que não dirão os invejosos lá da Praça?... “Ah, ah! ele tinha em casa uma amiga, uma preta imunda com quem vivia! Que tipo! Sempre há de mostrar que e gentinha de laia muito baixa!... E aqui a engazopar-nos com uns ares de capitalista que se trata à vela de libra! Olha o Carapicus pra que havia de dar. Sai sujo!” E, então, a família da menina, com medo de cair também na boca do mundo, volta atrás e dá o dito por não dito! Bem sei que ela está a par de tudo; isso, olé, se está! mas finge-se desentendida, porque conta, e com razão, que eu não serei tão parvo que espere o dia do casamento sem ter dado sumiço à negra! contam que a coisa correrá sem o menor escândalo! E eu, no entanto, tão besta que nada fiz! E a peste da crioula está ai senhora do terreiro como dantes, e não descubro meio de ver-me livre dela!... Ora já se viu como arranjei semelhante entalação?... Isto contado não se acredita!

     E pisava e repisava o caso, sem achar meio de dar-lhe saída! 
     Diabo!

- Ela há muito que devia estar longe de mim... fiz mal em não cuidar logo disso antes de mais nada!... Fui um pedaço d’asno! Se eu a tivesse despachado logo, quando ainda se não falava no meu casamento, ninguém desconfiaria da história: “Por que diabo iria o pobre homem dar cabo de uma mulher, com quem vivia na melhor paz e que era até, dentro de casa, o seu braço direito?...” Mas agora, depois de todas aquelas reformas de vida; depois da separação das camas, e principalmente depois que corresse a noticia do casamento, não faltaria decerto quem o acusasse, se a negra aparecesse morta de repente!

     Diabo! 
     Deram quatro horas, e o desgraçado nada de pregar olho; continuava a matutar sobre o assunto, virando-se de um para outro lado da sua larga e rangedora cama de casados. Só pelo abrir da aurora, conseguiu passar pelo sono; mas, logo às sete da manhã, teve de pôr-se a pé: o cortiço estava todo alvoroçado com um desastre.
     A Machona lavava à sua tina, ralhando e discutindo como sempre, quando dois trabalhadores, acompanhados de um ruidoso grupo de curiosos, trouxeram-lhe sobre uma tábua o cadáver ensanguentado do filho. Agostinho havia ido, segundo o costume, brincar à pedreira com outros dois rapazitos da estalagem; tinham, cabritando pelas arestas do precipício, subido a uma altura superior a duzentos metros do chão e, de repente, faltara-lhe o equilíbrio e o infeliz rolou de lá abaixo, partindo os ossos e atassalhando as carnes. 
     Todo ele, coitadinho, era uma só massa vermelha; as canelas quebradas no joelho, dobravam moles para debaixo das coxas; a cabeça, desarticulada, abrira no casco e despejava o pirão dos miolos; numa das mãos faltavam-lhe todos os dedos e no quadril esquerdo via-se-lhe sair uma ponta de osso ralado pela pedra.
     Foi um alarme no pátio quando ele chegou. 
     Cruzes! que desgraça! 
     Albino, que lavava ao lado da Machona, teve uma síncope; Nenen ficou que nem doida, porque ela queria muito àquele irmão; a das Dores imprecou contra os trabalhadores, que deixavam um filho alheio matar-se daquele modo em presença deles; a mãe, essa apenas soltou um bramido de monstro apunhalado no coração e caiu mesquinha junto do cadáver, a beijá-lo, vagindo como uma criança. 
     Não parecia a mesma!
     As mães dos outros dois rapazitos esperavam imóveis e lívidas pela volta dos filhos, e, mal estes chegaram à estalagem, cada uma se apoderou logo do seu e caiu-lhe em cima, a sová-los ambos que metia medo.

- Mira-te naquele espelho, tentação do diabo! exclamava uma delas, com o pequeno seguro entre as pernas a encher-lhe a bunda de chineladas. Não era aquele que devia ir, eras tu, peste! aquele, coitado! ao menos ajudava a mãe, ganhava dois mil-réis por mês regando as plantas do Comendador, e tu, coisa ruim, só serves para me dar consumições! Toma! Toma! Toma!

     E o chinelo cantava entre o berreiro feroz dos dois rapazes. 
     João Romão chegou ao terraço de sua casa, ainda em mangas de camisa, e de lá mesmo tomou conhecimento do que acontecera. Contra todos os seus hábitos impressionou-se com a morte de Agostinho; lamentou-a no íntimo, tomado de estranhas condolências.
     Pobre pequeno! tão novo... tão esperto... e cuja vida não prejudicava a ninguém, morrer assim, desastradamente!... ao passo que aquele diabo velho da Bertoleza continuava agarrado à existência, envenenando-lhe a felicidade, sem se decidir a despachar o beco! 
     E o demônio da crioula parecia mesmo não estar disposta a ir só com duas razões; apesar de triste e acabrunhada, mostrava-se forte e rija. Suas pernas curtas e lustrosas eram duas peças de ferro unidas pela culatra, das quais ela trazia um par de balas penduradas em saco contra o peito; as róseas lustrosas do seu cachaço lembravam grossos chouriços de sangue, e na sua carapinha compacta ainda não havia um fio branco. Aquilo, arre! tinha vida para o resto do século!

- Mas deixa estar, que eu te despacho bonito e asseado!... disse o vendeiro de si para si, voltando ao quarto para acabar de vestir-se.

     Enfiava o colete quando bateram pancadas familiares na porta do corredor.

- Então?! Ainda se está em val de lençóis?..

     Era a voz do Botelho. 
     O vendeiro foi abrir e fê-lo entrar ali mesmo para a alcova.

- Ponha-se a gosto. Como vai você? 
- Assim. Não tenho passado lá essas coisas...

     João Romão deu-lhe notícia da morte do Agostinho e declarou que estava com dor de cabeça. Não sabia que diabo tinha ele aquela noite, que não houve meio de pegar direito no sono.

- Calor... explicou o outro. E prosseguiu depois de uma pausa, acendendo um cigarro: Pois eu vinha cá falar-lhe... Você não repare, mas...

     João Romão supôs que o parasita ia pedir-lhe dinheiro e preparou-se para a defesa, queixando-se inopinadamente de que os negócios não lhe corriam bem; mas calou-se, porque o Botelho acrescentou com o olhar fito nas unhas:

- Não devia falar nisto... são coisas suas lá particulares, em que a gente não se mete, mas...

     O taberneiro compreendeu logo onde a visita queria chegar e aproximou-se dele, dizendo confidencialmente:

- Não! Ao contrário! fale com franqueza... Nada de receios... 
- É que... sim, você sabe que eu tenho tratado do seu casamento com a Zulmirinha... Lá em casa não se fala agora noutra coisa... até a própria Dona Estela já está muito bem disposta a seu favor... mas... 
- Desembuche, homem de Deus! 
- É que há um pontinho que é preciso pôr a limpo... Coisa insignificante, mas... 
- Mas, mas! você não desembuchará por uma vez?... Fale, que diabo!

     Um caixeiro do armazém apareceu à porta, prevenindo de que o almoço estava na mesa.

- Vamos comer, disse João Romão. Você já almoçou? 
- Ainda não, mas lá em casa contam comigo...

     O vendeiro mandou o seu empregado dizer lá defronte à família do Barão que seu Botelho não ia ao almoço. E, sem tomar o casaco, passou com a visita à sala de jantar. 
     O cheiro ativo dos móveis, polidos ainda de fresco, dava ao aposento um caráter insociável de lugar desabitado e por alugar. Os trastes, tão nus como as paredes, entristeciam com a sua fria nitidez de coisa nova.

- Mas vamos lá! Que temos então?... inquiriu o dono da casa, assentando-se à cabeceira da mesa, enquanto o outro, junto dele, tomava lugar à extremidade de um dos lados. 
- É que, respondeu o velho em tom de mistério, você tem cá em sua companhia uma... uma crioula, que... Eu não creio, note-se, mas... 
- Adiante! 
- É! Dizem que ela é coisa sua... Lá em casa rosnou!... O Miranda defende-o, afirma que não... Ah! aquilo é uma grande alma! mas Dona Estela, você sabe o que são as mulheres!... torce o nariz e... Em uma palavra: receio que esta história nos traga qualquer embaraço!...

     Calou-se, porque acabava de entrar um portuguesinho, trazendo uma travessa de carne ensopada com batatas. 
     João Romão não respondeu, mesmo depois que o pequeno saiu; ficou abstrato, a bater com a faca entre os dentes.

- Por que você a não manda embora?... arriscou o Botelho, despejando vinho no seu e no copo do companheiro.

     Ainda desta vez não obteve logo resposta; mas o outro tomando, afinal, uma resolução, declarou confidencialmente:

- Vou dizer-lhe toda coisa como ela é... e talvez que você até me possa auxiliar!...

     Olhou para os lados, chegou mais a sua cadeira para junto da de Botelho e acrescentou em voz baixa:
 
- Esta mulher meteu-se comigo, quando eu principiava minha vida... Então, confesso... precisava de alguém nos casos dela, que me ajudasse... e ajudou-me muito, não nego! Devo-lhe isso! não! ajudar-me ajudou! mas... 
- E depois? 
- Depois, ela foi ficando para ai; foi ficando... e agora... 
- Agora é um trambolho que lhe pode escangalhar a igrejinha! É o que é! 
- Sim, que dúvida! pode ser um obstáculo sério ao meu casamento! Mas, que diabo! eu também, você compreende, não a posso pôr na rua, assim, sem mais aquelas!... Seria ingratidão, não lhe parece?... 
- Ela já sabe em que pé está o negócio?... 
- Deve desconfiar de alguma coisa, que não é tola!... Eu, cá por mim, não lhe toquei em nada... 
- E você ainda faz vida com ela? 
- Qual! há muito tempo que nem sombras disso... 
- Pois, então, meu amigo, é arranjar-lhe uma quitanda em outro bairro; dar-lhe algum dinheiro e... Boa viagem! O dente que já não presta arranca-se fora.

     João Romão ia responder, mas Bertoleza assomou à entrada da sala. Vinha tão transformada e tão lívida que só com a sua presença intimidou profundamente os dois. A indignação tirava-lhe faíscas dos olhos e os lábios tremiam-lhe de raiva. Logo que falou veio-lhe espuma aos cantos da boca.

- Você está muito enganado, seu João, se cuida que se casa e me atira a toa! exclamou ela. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e sair ano, a puxar pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde pela manhãzinha até pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua, como galinha podre?! Não! Não há de ser assim, seu João! 
- Mas, filha de Deus, quem te disse que eu quero atirar-te à toa?... perguntou o capitalista. 
- Eu escutei o que você conversava, seu João! A mim não me cegam assim só! Você é fino, mas eu também sou! Você está armando casamento com a menina de seu Miranda! 
- Sim, estou. Um dia havia de cuidar de meu casamento!... Não hei de ficar solteiro toda a vida, que não nasci para padengo. Mas também não te sacudo na rua, como disseste; ao contrário agora mesmo tratava aqui com o seu Botelho de arranjar-te uma quitanda e... 
- Não! Com quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer! Preciso de um descanso! Para isso mourejei junto de você enquanto Deus Nosso Senhor me deu força e saúde! 
- Mas afinal que diabo queres tu?! 
- Ora essa! Quero ficar a seu lado! Quero desfrutar o que nós dois ganhamos juntos! quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho! quero o meu regalo, como você quer o seu! 
- Mas não vês que isso é um disparate?... Tu não te conheces?... Eu te estimo, filha; mas por ti farei o que for bem entendido e não loucuras! Descansa que nada te há de faltar!... Tinha graça, com efeito, que ficássemos vivendo juntos! Não sei como não me propões casamento! 
- Ah! agora não me enxergo! agora eu não presto para nada! Porém, quando você precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu corpo e aguentar a sua casa com o meu trabalho! Então a negra servia pra um tudo; agora não presta pra mais nada, e atira-se com ela no monturo do cisco! Não! assim também Deus não manda! Pois se aos cães velhos não se enxotam, por que me hão de pôr fora desta casa, em que meti muito suor do meu rosto?... Quer casar, espere então que eu feche primeiro os olhos; não seja ingrato!

     João Romão perdeu por fim a paciência e retirou-se da sala, atirando à amante uma palavrada porca.

- Não vale a pena encanzinar-se... segredou-lhe o Botelho, acompanhando-o até a alcova, onde o vendeiro enterrou com toda a força o chapéu na cabeça e enfiou o paletó com a mão fechada em murro. 
- Arre! Não a posso aturar nem mais um instante! Que vá para o diabo que a carregue! em casa é que não me fica! 
- Calma, homem de Deus! Calma! 
- Se não quiser ir por bem, ira por mal! Sou eu quem o diz!

     E o vendeiro esfuziou pela escada, levando atrás de si o velhote, que mal podia acompanhá-lo na carreira. Já na esquina da rua parou e, fitando no outro o seu olhar flamejante, perguntou-lhe:

- Você viu?! 
- É... resmungou o parasita, de cabeça baixa, sem interromper os passos.

     E seguiram em silêncio, andando agora mais devagar; ambos preocupados. 
     No fim de uma boa pausa, Botelho perguntou se Bertoleza era escrava quando João Romão tomou conta dela.
     Esta pergunta trouxe uma inspiração ao vendeiro. Ia pensando em metê-la como idiota no Hospício de Pedro II, mas acudia-lhe agora coisa muito melhor: entregá-la ao seu senhor, restituí-la legalmente à escravidão. 
Não seria difícil... considerou ele; era só procurar o dono da escrava, dizer-lhe onde esta se achava refugiada e aquele ir logo buscá-la com a polícia. 
E respondeu ao Botelho:

- Era e é! 
- Ah! Ela é escrava? De quem? 
- De um tal Freitas de Melo. O primeiro nome não sei. Gente de fora. Em casa tenho as notas. 
- Ora! então a coisa é simples!... Mande-a p’ro dono! 
- E se ela não quiser ir?... 
- Como não?! A polícia a obrigará! É boa! 
- Ela há de querer comprar a liberdade... 
- Pois que a compre, se o dono consentir!... Você com isso nada mais tem que ver! E se ela voltar à sua procura, despache-a logo; se insistir, vá então à autoridade e queixe-se! Ah, meu caro, estas coisas, para serem bem feitas, fazem-se assim ou não se fazem! Olhe que aquele modo com que ela lhe falou há pouco é o bastante para você ver que semelhante estupor não lhe convém dentro de casa nem mais um instante! Digo-lhe até: já não só pelo fato do casamento, mas por tudo! Não seja mole! 
     
     João Romão escutava, caminhando calado, sem mais vislumbres de agitação. Tinham chegado à praia. 

- Você quer encarregar-se disto? propôs ele ao companheiro, parando ambos à espera do bonde; se quiser pode tratar, que lhe darei uma gratificação menos má... 
- De quanto?... 
- Cem mil-réis! 
- Não! dobre! 
- Terás os duzentos! 
- Está dito! Eu cá, pra tudo que for pôr cobro a relaxamento de negro, estou sempre pronto! 
- Pois então logo mais à tarde lhe darei, ao certo, o nome do dono, o lugar em que ele residia quando ela veio para mim e o mais que encontrar a respeito. 
- E o resto fica a meu cuidado! Pode dá-la por despachada!
  
Continua página 124...
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Leia também:

O Cortiço - XXI: João Romão, em chinelas e camisola
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   Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
   Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
   Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
   A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
   Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
   Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Não estava no Prévost - f)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust


um amor de swann


III(f) 


     Não estava no Prévost; resolveu procurá-la nos demais restaurantes dos bulevares. Para ganhar tempo, enquanto visitava uns, mandou aos outros o seu cocheiro Rémi (o doge Loredano de Rizzo) que foi em seguida esperar — nada tendo encontrado por si mesmo — no ponto que lhe designara. O carro não vinha e Swann imaginava o próximo instante ao mesmo tempo como aquele em que Rémi lhe diria: “A senhora está ali”, e como o instante em que Rémi lhe diria: “A senhora não estava em nenhum dos cafés”. E, assim, o fim da sua noite se apresentava uno e ao mesmo tempo duplo, precedido pelo encontro de Odette, que aboliria a sua angústia, ou pela forçada renúncia a encontrá-la e a resignação em voltar para casa sem a ter visto.
     Voltou o cocheiro, mas, no momento em que parou diante de Swann, este não lhe disse: “Encontrou a senhora?”, e sim: “Lembre-se amanhã de encomendar lenha, creio que a provisão já está acabando”. Decerto considerava que, se Rémi tivesse encontrado Odette num café onde se achava à sua espera, o fim da noite nefasta estava já anulado porque se iniciava a realização do fim de noite feliz e que portanto não havia pressa em atingir uma felicidade capturada e em lugar seguro, que não mais escaparia. Mas também o fazia por força de inércia; tinha na alma a falta de agilidade que certas pessoas têm no corpo, essas que, no momento de evitar um golpe, de afastar uma chama da roupa, executar um movimento urgente, dão tempo ao tempo, começam por ficar um segundo na posição em que antes se achavam, como para ter um ponto de apoio e tomar impulso. E sem dúvida, se o cocheiro o tivesse interrompido dizendo-lhe: “A senhora está em tal parte”, ele responderia: “Ah!, é verdade… Eu o tinha encarregado de procurá-la… Quem diria?”, e continuaria a falar da provisão de lenha, para lhe ocultar a emoção que sentira e conceder-se tempo de romper com a inquietação e entregar-se à ventura.
     Mas o cocheiro veio dizer-lhe que não a encontrara em parte alguma, e deu a sua opinião, como velho criado:

— Creio que o melhor é voltar para casa.

     Mas a indiferença que Swann facilmente afetava quando Rémi em nada podia alterar a resposta que lhe trazia decaiu agora que o via induzi-lo a renunciar a sua esperança e a sua busca.

— Absolutamente! — exclamou. — Precisamos encontrar essa senhora. É muito importante. Ela ficaria muito aborrecida — trata-se de um negócio — e até ofendida se não me encontrasse.
— Não vejo como essa senhora poderia ficar ofendida — respondeu Rémi —, pois foi ela quem partiu sem esperar pelo senhor, foi ela quem disse que ia ao Prévost e lá não estava. 

     Aliás, começavam a apagar as luzes em toda parte. Sob as árvores dos bulevares, em misteriosa escuridão, erravam os mais raros transeuntes apenas discerníveis. Às vezes, a sombra de uma mulher que se aproximava de Swann, murmurando-lhe uma frase ao ouvido, pedindo-lhe que a levasse consigo, fazia-o estremecer. Ele roçava ansiosamente por todos aqueles corpos obscuros, como se pelo reino das sombras, entre os fantasmas dos mortos, estivesse à procura de Eurídice.[1]  
     De todos os modos de produção do amor, de todos os agentes de disseminação do mal sagrado, um dos mais eficazes é esse grande torvelinho de agitação que às vezes sopra sobre nós. Então a sorte está lançada, e a criatura com quem nesse momento nos comprazemos será a criatura amada. Nem mesmo é necessário que até então nos tenha agradado mais que as outras, ou tanto como as outras. O que era preciso é que nossa inclinação por ela se tornasse exclusiva. E essa condição se realiza quando — no instante em que ela nos faltou — sentimos em nós não o desejo de buscar os prazeres que seu convívio nos proporciona, mas uma necessidade angustiosa, que tem por objeto essa mesma criatura, uma necessidade absurda, que as leis deste mundo tornam impossível de satisfazer e difícil de curar — a necessidade insensata e dolorosa de possuí-la.
     Swann fez-se conduzir aos últimos restaurantes; calma, só a tivera ao encarar a hipótese da felicidade; agora já não ocultava a agitação, o valor que dava àquele encontro e prometeu, em caso de sucesso, uma recompensa ao cocheiro, como se, inspirando-lhe o mesmo desejo que tinha de encontrá-la, pudesse fazer com que Odette, no caso em que já estivesse deitada, se encontrasse no entanto nalgum restaurante do bulevar. Foi até a Maison Dorée, entrou duas vezes no Tortoni, e saía sem havê-la encontrado, do Café Inglês, com ar carrancudo e a grandes passadas, em busca do carro que o esperava na esquina do bulevar dos Italianos, quando topou com uma pessoa que vinha em sentido contrário: era Odette; explicou-lhe ela mais tarde que, não tendo encontrado lugar no Prévost, fora cear na Maison Dorée, num recanto onde ele não a tinha encontrado, e que agora se dirigia para o seu carro.[2]
     Tão inesperado fora para Odette aquele encontro que teve um sobressalto. Quanto a Swann, correra Paris, não porque julgasse possível encontrá-la, mas porque lhe era demasiado cruel renunciar a isso. Mas essa alegria, que sua razão não cessara de julgar irrealizável naquela noite, tanto mais real lhe parecia agora, pois, não havendo ele colaborado com a previsão das verossimilhanças, ela lhe permanecia exterior; não tinha necessidade de tirar de seu espírito, para lhe fornecer — dela mesma é que emanava, ela mesma é que protelava para ele — aquela verdade que irradiava a ponto de dissipar como um sonho o isolamento que ele temera, e sobre a qual apoiava, descansava, sem pensar, o seu feliz encantamento. Assim um viajante, chegado por um belo tempo à margem do Mediterrâneo, incerto da existência dos países que acaba de percorrer, deixa, de preferência a olhar, que a vista se ofusque com os raios que emite para ele o azul luminoso e resistente das águas.
     Subiu no carro de que ela dispunha e disse a seu cocheiro que os seguisse.
     Tinha ela na mão um buquê de catleias e Swann viu, sob o véu de renda que lhe cobria os cabelos, flores dessa mesma orquídea presas a uma egrete de penas de cisne. Trazia sob a mantilha um amplo vestido de veludo negro que, num arrepanhado oblíquo, punha a descoberto o largo triângulo de uma saia de seda branca e deixava ver o mesmo forro de seda branca na abertura do corpinho decotado, onde estavam postas outras catleias. Mal se refizera do susto que Swann lhe causara, quando um obstáculo fez o cavalo desviar-se. Foram violentamente sacudidos, ela lançou um grito e quedou toda palpitante, sem respiração.

— Não é nada, não tenha medo — disse ele.
 
     E segurava-a pelo ombro, apoiando-a contra si para sustê-la; depois disse-lhe:

— Antes de tudo, não me fale, só responda por gestos para não se sufocar ainda mais. Não lhe incomoda que eu endireite as flores do seu decote que se desarranjaram com o choque? Tenho medo que as perca, desejaria introduzi-las mais um pouco. 

     Odette, que não estava habituada a que os homens fizessem tantos rodeios com ela, respondeu a sorrir:

— Não, não me incomoda, absolutamente.

     Mas ele, intimidado com a resposta, e talvez também porque parecera sincero ao valer-se daquele pretexto, ou começando já a crer que o fora, exclamou: 

— Oh!, não, não fale, vai sufocar-se mais, pode responder-me por gestos, eu compreenderei. Sinceramente, não a incomodo? Olhe, há um pouco… penso que foi pólen que se espalhou, permite que o espane com a mão? Não bato muito forte, não estou sendo um pouco brutal? Está sentindo cócegas? Mas é que eu não queria tocar o veludo para não o amarrotar. Mas, veja, na verdade era preciso prendê-las, senão cairiam; e assim, eu mesmo empurrando-as um pouco… Falando sério, não lhe estou sendo desagradável? E se as cheirasse, para ver se é verdade que não têm perfume? Eu nunca o senti. Posso, mesmo?

     Sorrindo, ela ergueu levemente os ombros, como quem diz: “Não seja tolo, bem vê que isso me agrada”. 
     Swann deslizava a outra mão ao longo da face de Odette; ela olhava-o fixamente, com esse ar lânguido e grave que têm as mulheres do mestre florentino com as quais lhe achara semelhança; à flor das pálpebras, brilhantes, rasgados e finos como os daquelas, seus olhos pareciam prestes a destacar-se como duas lágrimas. Ela pendia o pescoço, como o vemos fazerem todas elas, tanto nas cenas pagãs como nos quadros religiosos. E, numa atitude que decerto lhe era habitual, que sabia adequada a tais momentos e que timbrava em não esquecer, ela parecia ter necessidade de todas as suas forças para reter seu rosto, como se uma força invisível o atraísse para Swann. E foi Swann quem, antes que Odette o deixasse tombar, como sem querer, sobre os lábios dele, o reteve um instante, a alguma distância entre ambas as mãos. Queria Swann deixar a seu pensamento o tempo de acorrer, de reconhecer o sonho que tão longamente acariciara e de assistir a sua realização, como uma parenta a quem se chama para compartilhar do sucesso de uma criança a quem ela muito amou. Talvez Swann também fitasse naquele rosto de uma Odette ainda não possuída, e nem mesmo beijada, que via pela última vez, esse olhar com que desejaríamos levar, na hora da partida, uma paisagem que vamos deixar para sempre. 
     Mas era tão tímido com ela que, tendo-a afinal possuído naquela noite, começando por arranjar as suas catleias — ou por medo de parecer que mentira retrospectivamente, ou por falta de audácia para formular uma exigência maior que aquela (e que podia renovar, pois não incomodara Odette da primeira vez) —, nos dias seguintes ele sempre usou do mesmo pretexto. Se ela trazia catleias no peito, Swann dizia: “Que pena! Esta noite as catleias não precisam ser arranjadas; não saíram do lugar, como na outra noite; mas parece-me que esta não está muito direita. Posso ver se elas não cheiram como as outras?”. Ou, então, se ela não as tinha: “Oh!, nada de catleias esta noite? Impossível dedicar-me a meus arranjos”. De sorte que, durante algum tempo, não se modificou a ordem que ele seguira na primeira noite, começando por contatos de dedos e de lábios no colo de Odette, e assim iniciavam sempre as carícias; e muito mais tarde, quando o arranjo ou simulacro de arranjo das catleias já tombara em desuso, a metáfora “fazer catleia”, tornada uma simples expressão que empregavam sem pensar quando queriam referir-se ao ato da posse física (no qual aliás não se possui nada), sobreviveu na sua linguagem, onde ela o comemorava, àquele uso esquecido. E talvez aquela maneira particular de dizer “fazer amor” não significasse exatamente a mesma coisa que seus sinônimos. Por muito farto que se esteja de mulheres, considerando a posse das mais diferentes como sempre a mesma e de antemão conhecida, quando se trata de mulheres muito difíceis — ou que assim julgamos — converte-se a posse em prazer novo, e cremo-nos então obrigados a imaginar que resultou de algum episódio imprevisto de nossas relações com elas, como o arranjo das catleias no caso de Swann. Esperava, a tremer, naquela noite (mas Odette, pensava ele consigo, jamais saberia do seu ardil, se conseguisse enganá-la), que a posse daquela mulher saísse dentre as largas pétalas malvas das catleias; e o prazer que já experimentava e que Odette talvez só tolerasse, pensava, porque não o tinha reconhecido, parecia-lhe, por causa disso — como pareceu ao primeiro homem que o desfrutou entre as flores do paraíso terrestre —, um prazer que não existira até então, que ele procurava criar, um prazer — assim como o nome especial que lhe deu guardou-lhe a marca — inteiramente particular e novo. 
     Agora, todas as noites, quando a levava até em casa, tinha de entrar e muitas vezes ela saía de robe para acompanhá-lo até o carro e beijava-o na frente do cocheiro, dizendo: “Que é que tem? Que me importam os outros?”. Nas noites em que não ia à casa dos Verdurin (coisa mais frequente desde que podia vê-la de outro modo), nas noites cada vez mais raras em que ele ia a alguma reunião mundana, Odette lhe pedia que viesse a sua casa antes de recolher-se, a qualquer hora que fosse. Era primavera, uma primavera seca e gelada. Ao sair da reunião, subia ele a sua vitória, estendia uma coberta sobre as pernas, respondia aos amigos que saíam ao mesmo tempo e o convidavam para ir com eles que não seguia para o mesmo lado, e o cocheiro, sabendo o seu destino, arrancava a trote largo. Os outros se espantavam e, de fato, Swann já não era o mesmo. Não mais recebiam cartas suas em que pedisse para ser apresentado a alguma mulher. Não prestava mais atenção a nenhuma, abstinha-se de ir aos lugares onde se encontravam. Num restaurante, no campo, mantinha uma atitude contrária àquela pela qual, ainda ontem, seria reconhecido e que parecia constituir a sua atitude definitiva. De tal modo uma paixão é, para nós, como um caráter momentâneo e diferente, que substituiu o outro, abolindo os sinais até então invariáveis com que se expressava! Em compensação, o invariável agora era que, onde quer que se achasse, Swann nunca deixava de ir ter com Odette. O trajeto que o separava dela, esse era o que inevitavelmente percorria, e que era como que a própria vertente, irresistível e rápida, da sua vida. A falar verdade, demorando-se às vezes nalguma reunião mundana, preferiria ir diretamente para casa, sem fazer aquele longo desvio e só ver Odette no dia seguinte; mas o próprio fato de sair da sua comodidade a uma hora tão anormal para ir vê-la, de adivinhar que os amigos diziam ao deixá-lo: “Sempre tem que fazer, há decerto alguma mulher que o obriga a ir à sua casa a qualquer hora”, fazia-o sentir que levava a vida dos homens que têm um caso de amor na existência, e que o sacrifício que fazem de sua tranquilidade e de seus interesses a um voluptuoso capricho lhes dá um encantamento interior. Depois, sem que se desse conta, a certeza de que Odette o esperava, de que não estava em outra parte com terceiros, de que ele não se recolheria sem vê-la, neutralizava aquela angústia esquecida mas sempre prestes a renascer que experimentara na noite em que Odette já se havia retirado dos Verdurin, angústia tão apaziguada agora que bem se poderia chamar de felicidade. Talvez a essa angústia devia Swann a importância que Odette tomara para ele. As criaturas nos são de ordinário tão indiferentes que, quando atribuímos a uma delas grandes possibilidades de dor e de alegria, já nos parece pertencer a um outro universo, e cercar-se de poesia, fazendo de nossa vida como que uma vasta e fremente extensão, onde estará mais ou menos próxima de nós. Swann não podia deixar de inquietar-se quando indagava consigo o que Odette se tornaria para ele nos anos vindouros. Às vezes, ao ver, da sua vitória, naquelas belas noites frias, a lua brilhante que expandia a sua claridade entre seus olhos e as ruas desertas, pensava naquela outra face clara e levemente rósea como a da lua, que um dia lhe surgira na alma e desde então projetava sobre o mundo a misteriosa luz dentro da qual ele o contemplava. Se chegava depois da hora em que Odette mandava os criados se recolherem, em vez de chamar ao portão do jardim, ia primeiro à rua paralela para onde dava, entre outras janelas iguais, mas escuras, a janela, a única iluminada, do quarto de Odette, no andar térreo. Batia à vidraça, e ela, prevenida, ia esperá-lo do outro lado, à porta de entrada. Achava aberta sobre o piano alguma das músicas prediletas de Odette: a Valsa das rosas ou Pobre louco de Tagliafico (que, segundo o seu testamento, deviam executar durante o seu enterro),[3] e pedia-lhe para tocar em vez delas a pequena frase da sonata de Vinteuil, embora Odette tocasse muito mal, mas a visão mais bela que nos fica de uma obra é muitas vezes a que se elevou acima dos sons falsos arrancados por dedos inábeis a um piano desafinado. Para Swann, a pequena frase continuava associada ao amor que tinha a Odette. Bem sentia que aquele amor era alguma coisa que não correspondia a nada de exterior, de verificável por outro que não ele; reconhecia que as qualidades de Odette não justificavam que encarecesse tanto os momentos passados em sua companhia. E muitas vezes, quando lhe predominava no espírito a inteligência positiva, desejava ele não mais sacrificar tantos interesses intelectuais e sociais àquele prazer imaginário. Mas a pequena frase, logo que a ouvia, sabia libertar no seu íntimo o espaço a ela necessário, modificando assim as proporções da alma de Swann; ficava-lhe reservada uma margem para um prazer que tampouco correspondia a nenhum objeto exterior e que no entanto, em vez de ser puramente individual como o do amor, impunha-se a Swann como uma realidade superior às coisas concretas. A sede de um desconhecido encanto despertava-a nele aquela frase, mas não lhe trazia nada de preciso para aplacá-la. De sorte que as partes da alma de Swann em que a frase apagara o cuidado dos interesses materiais, as considerações humanas e válidas para todos, tinham ficado vagas e em branco, e ele era livre de ali inscrever o nome de Odette. Depois, ao que a afeição de Odette pudesse ter de um pouco estreito e decepcionante, vinha a frase acrescentar, amalgamar a sua essência misteriosa. A julgar pela fisionomia de Swann enquanto escutava a frase, dir-se-ia que estava ele absorvendo um anestésico que lhe dava maior amplitude à respiração. E o prazer que lhe dava a música e que em breve ia criar nele uma verdadeira necessidade, assemelhava-se com efeito, em tais momentos, ao prazer que sentiria ao experimentar perfumes, ao entrar em contato com um mundo para o qual não fomos feitos, que nos parece sem forma porque nossos olhos não o percebem, sem significado porque escapa à nossa inteligência, e nós só o atingimos por um único sentido. Que grande repouso, que misteriosa renovação para Swann — ele cujos olhos, embora delicados amadores de pintura, cujo espírito, embora fino observador de costumes, carregavam para sempre a marca indelével da secura de sua vida — sentir-se assim transformado numa criatura estranha à humanidade, desprovida de faculdades lógicas, quase um fantástico licorne, uma criatura quimérica que percebia o mundo apenas pelo ouvido. E como na pequena frase, entretanto, procurava um sentido a que sua inteligência não podia descer, que estranha embriaguez sentia em despojar o mais íntimo de sua alma de todos os recursos do raciocínio e fazê-la passar sozinha pelo filtro obscuro do som! Começava a dar-se conta de tudo o que havia de doloroso, talvez mesmo de secretamente intranquilo no fundo da doçura da frase, mas não sofria. Que importa que ela lhe dissesse que o amor é frágil, se o seu era tão forte? Entretinha-se com a tristeza que ela expandia, sentia-a passar sobre si, mas como uma carícia que tornava mais profundo e suave o sentimento que tinha de sua felicidade. Fazia Odette tocá-la dez, vinte vezes, exigindo ao mesmo tempo que não cessasse de beijá-lo. Cada beijo chama um outro beijo. Ah!, nos primeiros tempos do amor, nascem tão naturalmente os beijos! Acorrem, apertando-se uns contra os outros; e ter-se-ia tanta dificuldade em contar os beijos dados numa hora como as flores de um campo no mês de maio. Então ela fazia menção de parar, dizendo: “Como queres que eu toque, se me seguras? Não posso fazer tudo ao mesmo tempo. Trata ao menos de saber o que queres: que eu toque ou te faça carinhos?”. Ele incomodava-se e ela explodia num riso que se transformava e retombava sobre ele numa chuva de beijos. Ou então olhava-o com um ar sério e ele revia um rosto digno de figurar na Vida de Moisés de Botticelli, onde o situava, dando ao pescoço de Odette a inclinação necessária; e depois de a ter pintado assim a têmpera, no século XV, sobre a parede da Capela Sistina, a ideia de que ela no entanto continuava ali, perto do piano, no momento atual, prestes a ser beijada e possuída, a ideia de sua materialidade e sua vida vinha embriagá-lo com tal força que, com o olhar extraviado, as mandíbulas estendidas como para devorar, precipitava-se sobre aquela virgem de Botticelli e punha-se a beliscar-lhe as faces.[4] Depois, quando a deixava, não sem ter voltado para beijá-la ainda, porque havia esquecido de levar na lembrança alguma particularidade de seu odor ou de seus traços, regressava na vitória, abençoando Odette por lhe permitir aquelas visitas cotidianas, que decerto não deviam constituir grande alegria para ela, mas que, preservando-o do ciúme — tirando-lhe o ensejo de sofrer novamente do mal que se declarara na noite em que não a tinha encontrado nos Verdurin —, o auxiliariam a chegar, sem mais crises como aquela primeira que fora tão dolorosa e permaneceria a única, ao fim daquelas horas singulares da sua vida, horas quase encantadas, à feição daquelas em que atravessava Paris ao luar. E observando, na volta, que o astro se achava deslocado em relação a ele, quase nos confins do horizonte, sentindo que o seu amor também obedecia a leis imutáveis e naturais, perguntava a si mesmo se aquele período em que entrara ainda duraria muito tempo, se em breve o seu pensamento não iria ver a querida face ocupando apenas uma posição longínqua e diminuída, e prestes a deixar de expandir o seu encanto. Pois desde que se enamorara, Swann achava encanto nas coisas, como nos tempos de adolescente, em que se julgava artista; mas agora não era o mesmo encanto, este era só Odette que o conferia às coisas. Sentia renascerem dentro de si as inspirações da juventude que uma vida frívola dissipara, mas traziam todas o reflexo, a marca de um ser particular; e nas longas horas que sentia agora um delicado prazer em passar em casa, a sós com sua alma em convalescença, Swann pouco a pouco voltava a ser o que era, mas com uma outra alma. 

continua na página 161...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Não estava no Prévost - f)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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[1] Comparação a Orfeu, que vai aos Infernos em busca da amada Eurídice. Importante notar que ele não conseguirá trazer a amada de volta. [n. e.]
[2] Ou seja: na versão de Odette, ela estava em um lugar em que ele podia muito bem tê-la encontrado — a Maison Dorée, restaurante de onde partira aquela primeira carta dela para ele. A graça das referências espaciais fica por conta do suposto lugar de origem de Odette, o Café Prévost: é o único dos quatro estabelecimentos nomeados que não ficava na mesma esquina. Porque, tanto a Maison Dorée quanto o Café Inglês e o Café Tortoni ficavam um de frente para o outro, na esquina do bulevar dos Italianos com as ruas Lafitte, Taitbout e Marivaux. O ponto de fuga desse triângulo era o Café Prévost, que ficava na rua de Clichy. [n. e.]
[3] A Valsa das rosas era composição de Olivier Métra, diretor dos bailes do Châtelet (1867), da orquestra das Folies Bergère (1872) e dos bailes da Opéra (1878). Tagliafico era barítono, empresário e compositor italiano. [n. e.]
[4] Charles Swann é o eterno idólatra da vida, aquele que nunca conseguirá levar a sério a arte. [n. e.]

domingo, 29 de dezembro de 2024

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Oitavo - Desforra / IV — A autoridade readquire os seus direitos

Victor Hugo - Os Miseráveis

A autoridade readquire os seus direitos
Primeira Parte - Fantine

Livro Oitavo — Desforra


IV —  A autoridade readquire os seus direitos

     Fantine não tornara a ver Javert desde o dia em que o maire a livrara dele. O seu cérebro enfermo não compreendeu coisa alguma, apenas do que não duvidou foi de que ele a ia buscar. Não pôde suportar a horrorosa aparição, sentiu-se expirar, ocultou o rosto com ambas as mãos e gritou com a maior aflição:

— Salve-me, senhor Madelaine! 

     Jean Valjean (doravante não o denominaremos de outro modo) levantara-se. Ouvindo a exclamação de Fantine voltou-se para ela e disse-lhe com a maior doçura e tranquilidade:

— Não tenha receio. Não foi por sua causa que ele veio aqui. — Depois, dirigindo-se a Javert: — Já sei o que me quer. 

     Javert retorquiu: 

— Vamos, depressa! 

     Estas palavras foram acompanhadas com uma inflexão em que havia qualquer coisa de bravio e frenético. Não há ortografia que pudesse transmitir o acento com que elas foram pronunciadas. Não foram palavras humanas, foi um rugido. 
     Não fez como era costume, não entrou em matéria, não exibiu o mandado de prisão. Para ele, Jean Valjean era uma espécie de inimigo misterioso e insubjugável, um lutador tenebroso a que ele se abraçara havia cinco anos sem que nunca tivesse podido derrubá-lo. Esta prisão não era um começo, mas um fim. Limitou-se, pois, a dizer: «Vamos, depressa!»  
     Falando deste modo, não deu um passo, lançou a Jean Valjean esse olhar que ele deitava como um arpão, e com o qual costumava puxar para si os miseráveis de quem queria apossar-se. Era o mesmo olhar que Fantine, dois meses antes, sentira penetrar-lhe até à medula dos ossos. Ao grito de Javert, Fantine abrira novamente os olhos. Mas o maire estava ao pé dela, o que poderia recear?
     Javert avançou até ao meio do quarto e gritou:

— Então, avias-te?!

     A desgraçada olhou em roda de si. Não estava ali mais ninguém além da religiosa e do maire. A quem poderia dirigir-se aquele abjecto tratamento de tu? Não podia ser senão a ela. A pobrezinha estremeceu. Em seguida, viu uma coisa inaudita e tal como nunca lhe aparecera nos mais negros delírios da febre. Viu o espião Javert lançar a mão à gola da sobrecasaca do maire e este curvar a cabeça. Pareceu-lhe que se acabava o mundo.  
     Javert, com efeito, segurou Jean Valjean pela gola da sobrecasaca.

— Senhor maire! — gritou Fantine. 

     Javert desatou a rir, mas com o tal riso que lhe descobria as gengivas.

— Já não há aqui nenhum maire

     Jean Valjean não tentou livrar-se da mão que o segurava e disse:

— Javert...

     Javert interrompeu-o:

— Chama-me senhor inspector! 
— Desejava dizer-lhe uma palavra em particular, senhor inspector. 
— Fala alto, fala alto! — respondeu Javert. — Comigo não se fala em particular. 

     Jean Valjean continuou, baixando a voz:

— É uma súplica que tenho a fazer-lhe... 
— Já te disse que fales alto. 
— Mas o que eu tenho a dizer-lhe só deve ser ouvido pelo senhor. 
— Que me importa a mim isso? Não tenho que ouvir!

     Jean Valjean voltou-se para ele e disse-lhe rapidamente em voz baixa:

— Conceda-me três dias! Três dias para ir buscar a filha desta infeliz mulher! Pagarei o que for preciso! Acompanhar-me-á, se quiser.
— Estás a brincar?! — exclamou Javert. — Não te julgava tão estúpido! Pedes-me três dias para te safares! Dizes então que são para ires buscar a filha desta meretriz! Não pega!

     Fantine estremeceu.

— A minha filha! — exclamou ela. — Ir buscar a minha filha! Então não está aqui?! Diga-me, minha irmã, onde está Cosette? Senhor Madelaine, senhor maire, quero a minha filha! 

     Javert bateu com o pé no chão.

— Temos outra! Vê se te calas! Que diabo de terra esta em que os forçados são magistrados e as meretrizes tratadas como fidalgas! Mas tudo isto vai acabar e já não era sem tempo! — Olhou em seguida fixamente para Fantine e acrescentou, segurando melhor Jean Valjean, agarrando-lhe desta vez, além da gola, na gravata e na camisa. — Já te disse que não há aqui nem senhor Madelaine, nem senhor maire. O que aqui há é um  ladrão, um salteador, um grilheta chamado Jean Valjean, o qual já me não escapa! 
 
     Fantine ergueu-se convulsivamente, apoiou-se nos magros e hirtos braços, olhou para Jean Valjean, para Javert, para a religiosa, e abriu a boca como que para falar, mas apenas lhe saiu da garganta uma espécie de suspiro sufocado, os dentes bateram uns nos outros, estendeu os braços aflitivamente, abrindo de um modo convulsivo as mãos, e procurando apoio em volta de si, como alguém prestes a afogar-se, caiu inopinadamente sobre o travesseiro.
     A cabeça bateu no encosto do leito e pendeu-lhe em seguida sobre o peito, com a boca aberta, os olhos igualmente abertos, mas sem brilho.
     Estava morta.
     Jean Valjean pôs a sua mão na mão com que Javert o segurava, abriu-a como teria aberto a de uma criança e disse-lhe:

— O senhor matou esta mulher! 
— Acabemos com isto! — exclamou Javert furioso. — Não estou aqui para ouvir satisfações. Deixemo-nos de histórias, a escolta está lá em baixo; ou avias-te ou mando-te amarrar.

     No canto do quarto havia um leito velho de ferro, em mau estado, e que servia às irmãs para repousar quando velavam junto das doentes. Jean Valjean dirigiu-se ao leito, deslocou-lhe num abrir e fechar de olhos, a cabeceira já desengonçada, coisa facílima para músculos como os seus, empunhou a barra mais grossa e encarou Javert. Este recuou até à porta. 
     Jean Valjean, com a barra de ferro na mão, dirigiu-se vagarosamente para a cama de Fantine. Quando ali chegou, voltou-se para Javert e disse-lhe com uma voz que mal se ouviu: 

— Não o aconselho a que me inquiete neste momento.

     Javert lembrou-se de ir chamar a escolta, mas Jean Valjean podia aproveitar essa curta ausência para se evadir. Deixou-se pois estar onde estava, pegou na bengala pela ponteira e encostou-se à ombreira da porta, sem afastar os olhos de Jean Valjean. 
     Este apoiou o cotovelo na maçaneta da cabeceira do leito, descansou a cabeça sobre a mão e pôs-se a contemplar Fantine, hirta e imóvel. Conservou-se assim, absorto, mudo e não pensando evidentemente em mais coisa alguma desta vida. Na sua fisionomia e atitude não se distinguia mais do que extrema piedade. 
     Depois de alguns instantes de meditação, inclinou-se para Fantine e falou-lhe em voz baixa. 
     Que lhe disse ele? O que poderia dizer aquele homem réprobo, àquela mulher morta? Que palavras foram as suas? Ninguém na terra as ouviu. Ouvi-las-ia a defunta? Há ilusões tocantes, que são, talvez, realidades sublimes. O que é fora de dúvida, é que a irmã Simplícia única testemunha desta cena, contou muitas vezes que vira distintamente, no momento em que Jean Valjean falara ao ouvido de Fantine, esboçar-se-lhe nos lábios e nas pupilas vagas e cheias do espanto sepulcral, o mais inefável sorriso.
     Jean Valjean tomou nas suas mãos a cabeça de Fantine e acomodou-a sobre o travesseiro como qualquer mãe faria a um filho: depois atou-lhe o cordão da camisa e aconchegou-lhe os cabelos para dentro da touca. Feito isto, fechou-lhe os olhos.
     O rosto de Fantine pareceu naquele momento extremamente iluminado. A morte é a entrada na luz suprema.
     A mão de Fantine pendia para fora da cama, Jean Valjean ajoelhou diante daquela mão, levantou-a timidamente e beijou-a. Em seguida ergueu-se e voltou-se para Javert, dizendo:

— Agora estou às suas ordens.

continua na página 230...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Os Miseráveis: Fantine, Livro Oitavo - IV — A autoridade readquire os seus direitos
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira