A Montanha Mágica
Capítulo V
.
continuando...
Via-se, de resto, na expressão do Sr. Settembrini, que, apesar do seu silêncio, continuava a
atividade do seu espírito. Ainda se encontrava bem perto de Hans Castorp, tanto que este até se
viu forçado a reclinar o corpo um pouquinho para trás. Os olhos negros do italiano fitavam o
rosto do jovem com a fixidez cega de um homem absorto pelas suas ideias.
– O senhor sofre, engenheiro – prosseguiu. – Sofre como quem anda desnorteado. É o
que se pode ler na sua fisionomia. Mas também a sua conduta em face do sofrimento deveria ser
uma conduta europeia, e não a do Oriente, que povoa tão abundantemente esta região,
justamente por ser efeminado e ter uma inclinação para a enfermidade... A compaixão e a
paciência infinita – eis a maneira oriental de enfrentar o sofrimento. Não pode, não deve ser a
nossa, não convém ao senhor!... Acabamos de falar da minha correspondência... Veja, aqui... Ou
melhor, venha comigo! Aqui não se pode conversar... Vamos retirar-nos e entrar nesta salinha.
Quero fazer-lhe algumas confidencias que... Venha! – E dando meia-volta arrastou Hans Castorp
para fora do vestíbulo até a primeira saleta, a mais próxima do portão, mobiliada como sala de
leitura, e onde a essa hora não havia pensionistas. Sob a abóbada branca, nas paredes revestidas
de painéis claros, viam-se estantes de livros, uma mesa central, rodeada de cadeiras e coberta de
jornais fixos em pregadores, e escrivaninhas sob as arcadas das janelas. O Sr. Settembrini avançou
até uma dessas janelas, seguido de Hans Castorp. A porta permanecia aberta.
– Estes papéis – disse o italiano, tirando com mão pressurosa do bolso do paletó espesso
um fascículo contendo um envelope volumoso com diversos folhetos e uma carta, que fez
resvalar entre os dedos, para que Hans Castorp os pudesse ver –, estes papéis têm o cabeçalho
em francês: “Liga Internacional para a Organização do Progresso”. Recebo-os de Lugano, onde
existe uma seção filiada à liga. O senhor quer conhecer os seus princípios, os seus objetivos? Vou
indicá-los em duas palavras. A Liga para a Organização do Progresso deriva da doutrina
evolucionista de Darwin, concepção filosófica segundo a qual a vocação natural mais profunda da
humanidade é o seu próprio aperfeiçoamento. Por conseguinte, constitui dever de cada indivíduo
desejoso de corresponder a essa vocação natural colaborar ativamente para o progresso da
humanidade. Muitos acudiram ao chamado da liga. É considerável o número dos seus sócios na
França, Itália, Espanha, Turquia e até na Alemanha. Também eu tenho a honra de figurar como
tal nas listas da liga. Foi esboçado um amplo programa de reformas, baseado em princípios
científicos, um programa que abrange todas as possibilidades atuais de aperfeiçoamento do
organismo humano. Estuda-se o problema da saúde da nossa raça; são examinados todos os
métodos para combater a degenerescência, que é, sem dúvida, uma consequência inquietante da
progressiva industrialização. Além disso, promove a liga a fundação de universidades populares,
empenha-se na supressão da luta de classes, por meio de todos os melhoramentos sociais que
possam contribuir para esse fim, e preocupa-se com a abolição das lutas entre os povos e da
guerra, mediante o desenvolvimento do direito internacional. Como o senhor vê, os esforços da
liga são generosos e vastíssimos. Diversas revistas internacionais testemunham as suas atividades,
revistas mensais, redigidas em três ou quatro idiomas importantes e que relatam de forma vívida a
evolução progressista da humanidade civilizada. Foram fundados numerosos grupos locais nos
diferentes países, que devem realizar discussões noturnas e solenidades dominicais, com a
finalidade de esclarecer e de edificar o público no sentido do ideal do progresso humano. Mas
antes de tudo dedica-se a liga a ajudar, por meio da sua documentação, os partidos políticos
progressistas de todos os países... O senhor está seguindo as minhas palavras, engenheiro?
– Perfeitamente! – respondeu Hans Castorp com uma veemência precipitada. Ao proferir
essa palavra tinha a sensação de quem escorrega, mas ainda consegue, mal e mal, manter-se de pé.
O Sr. Settembrini pareceu satisfeito.
– Creio que lhe abri perspectivas novas e surpreendentes.
– Sim, senhor, confesso que é a primeira vez que ouço falar dessas... dessas atividades.
– Que pena! – exclamou Settembrini em voz abafada. – Que pena que ninguém lhe tenha
falado delas antes. Mas talvez ainda não seja tarde. Olhe estes folhetos... O senhor deseja saber
do que eles tratam? Pois então escute! Esta primavera foi convocada em Barcelona uma solene
assembleia geral da liga. Como sabe, essa cidade ufana-se de manter relações particulares com a
ideia progressista. O congresso realizou-se durante uma semana, com banquetes e solenidades de
toda espécie. Meu Deus! Eu tencionava seguir para lá, tinha o mais ardente desejo de participar
das deliberações. Mas esse patife do conselheiro proibiu a viagem, ameaçando-me de morte. Que
quer o senhor? Eu receei a morte e não fui. Estava desesperado, como pode imaginar, por causa
da peça que me pregou a minha saúde precária. Não há nada mais doloroso do que ver como a
nossa parte orgânica, a parte animal do nosso ser, nos impede de servir à razão. Tanto mais viva é
a satisfação que me causa esta carta que recebi da secretaria da liga em Lugano. O senhor está
curioso de saber o seu conteúdo? Não duvido. Vou lhe dar algumas informações rápidas... A Liga
para a Organização do Progresso, consciente do fato de que a sua tarefa consiste em promover a
felicidade dos homens, ou, em outros termos, em lutar contra o sofrimento humano por meio de
um adequado trabalho social, e com o fim de exterminá-lo por completo; considerando, ademais,
que essa tarefa suprema só pode ser executada com o auxílio da ciência sociológica, cujo objetivo
final é o Estado perfeito – a liga, pois, resolveu, em Barcelona, a publicação de uma obra em
numerosos volumes que levará o título Sociologia dos males, e na qual serão estudados, de uma
forma sistemática e completa, os males humanos, segundo as suas categorias e espécies. O senhor
vai objetar: que adiantam categorias, espécies e sistemas? Respondo-lhe: a ordem e a classificação
formam o começo do domínio, e o inimigo mais perigoso é o inimigo desconhecido. É
necessário arrancar o gênero humano dos estados primitivos do medo e da apatia passiva e
conduzi-lo rumo à fase da atividade consciente do seu objetivo. É mister ensinar-lhe que
desaparecem os efeitos cujas causas primeiro reconhecemos e depois abolimos, e que quase todos
os males do indivíduo são enfermidades do organismo social. Muito bem! É esta a intenção da
“patologia sociológica”. Em aproximadamente vinte volumes de tipo enciclopédico, serão
enumerados e tratados todos os males imagináveis dos homens, desde os males mais pessoais e
mais íntimos até os grandes conflitos coletivos, os males que têm a sua origem nas inimizades de
classes e nos entrechoques internacionais; numa palavra, a obra mostrará os elementos químicos
que, em múltipla mistura e combinação, compõem todos os sofrimentos humanos, e, tomando
por diretriz a dignidade e a felicidade dos homens, indicará para cada caso os remédios e as
medidas que lhe parecem apropriados para eliminar a causa do mal. Destacados especialistas
dentre os sábios europeus, médicos, economistas e psicólogos, repartirão entre si a redação dessa
enciclopédia dos sofrimentos, e a secretaria central em Lugano será o estuário para onde
confluirão os rios de artigos. Vejo que seus olhos me perguntam qual será o papel que
desempenharei em tudo isso. Deixe que eu termine! Nesta grande obra também não devem ser
omitidas as belas-letras, na medida em que estas tiverem por assunto o sofrimento humano. Por
isso foi previsto um volume especial que, para consolo e instrução dos que sofrem, deve conter
uma compilação e uma breve análise de todas as obras-primas da literatura universal que se
refiram ao respectivo conflito. E precisamente essa é a tarefa da qual foi incumbido, na carta que
o senhor vê aqui, este seu humilde criado.
– Não diga, Sr. Settembrini! Permita que o felicite de todo o coração! É uma incumbência
formidável e que, como creio, vem a talho de foice para o senhor. Não me surpreende nem um
pouquinho que a liga tenha pensado no senhor. Como não deve estar satisfeito, agora que pode
contribuir para o extermínio do sofrimento humano!
– É um trabalho enorme – disse o Sr. Settembrini, pensativo –, que requer muito tino e
muita leitura. Tanto mais – acrescentou, enquanto o seu olhar parecia perder-se na multiplicidade
de suas tarefas –, tanto mais que as belas-letras quase sempre têm por assunto o sofrimento, e até
obras-primas de segunda ou terceira categoria se preocupam de alguma forma com ele. Não faz
mal ou, antes, tanto melhor! Por vasta que seja a tarefa, em todo caso é das que é possível
executar neste lugar maldito, ainda que eu espere não ser obrigado a terminá-la aqui. O mesmo
não se pode dizer – continuou, aproximando-se novamente de Hans Castorp e baixando a voz
até quase cochichar –, o mesmo não se pode dizer dos deveres que a natureza impõe ao senhor,
engenheiro. Eis o ponto a que eu tencionava chegar, e nesse sentido desejava exortá-lo. O senhor
sabe quanto admiro a sua profissão; mas, como é uma profissão prática e não uma profissão
literária, o senhor não pode exercê-la aqui, bem ao contrário da minha. Só na planície pode ser
europeu, só ali pode combater o sofrimento ativamente, à sua maneira, só ali pode promover o
progresso e aproveitar o tempo. Falei-lhe da tarefa que me coube, apenas para lhe recordar isso,
para chamá-lo à razão, para corrigir os seus conceitos que, aparentemente, começam a perturbar
se sob a influência da atmosfera. Insisto com o senhor: vele pela sua dignidade! Seja orgulhoso e
não se perca no ambiente estranho! Evite este atoleiro, esta ilha de Circe. O senhor não é
bastante Ulisses para habitá-la impunemente. Acabará andando de quatro patas. Já está a ponto
de se apoiar nas extremidades dianteiras. Daqui a pouco começará a grunhir. Cuidado!
Ao proferir em voz abafada as suas exortações, o humanista sacudira a cabeça com
insistência. A seguir, permaneceu calado, com os olhos baixos e o cenho carregado. Era
impossível responder-lhe com brincadeiras ou evasivas, como era costume de Hans Castorp, e
como, por um instante, pensou fazer novamente. Também ele baixara as pálpebras. Por fim,
encolhendo os ombros, disse, também em voz baixa:
– Que devo fazer?
– O que eu lhe disse.
– Isso significa: partir?
O Sr. Settembrini ficou calado.
– Quer o senhor dizer que eu devo regressar para casa?
– É o que lhe aconselhei logo na primeira noite, engenheiro.
– Sim, senhor, e naquela ocasião eu tinha plena liberdade de fazê-lo, embora achasse
pouco razoável fugir daqui, só porque o ar das alturas me incomodava um pouco. Mas, desde
então, a situação mudou bastante. Nesse ínterim houve o exame médico, depois do qual o Dr.
Behrens me disse claramente que não valia a pena regressar, pois dentro de pouco tempo me
veria obrigado a voltar para cá e, se continuasse a viver daquele jeito na planície, me arriscaria a
que dentro de pouco tempo todo o lóbulo do pulmão fosse por água abaixo.
– Eu sei. Agora o senhor tem seu passaporte no bolso.
– Sim. O senhor diz isso ironicamente... com aquela ironia justa, perfeitamente
compreensível, que é um meio clássico e correto de eloquência... Está vendo como gravei na
memória as suas próprias palavras? Mas pode o senhor assumir a responsabilidade de me dar o
conselho de regressar, apesar dessa fotografia e do resultado da radioscopia e do diagnóstico do
Dr. Behrens?
Settembrini hesitou um momento. Depois, endireitou-se, abriu os olhos, fixou-os em
Hans Castorp, firmes e negros, e replicou com uma ênfase que não deixava de encerrar um quê
de teatral e de exagerado:
– Sim, engenheiro, assumo esta responsabilidade.
Mas também Hans Castorp entesara a sua postura. Mantinha os tacões juntos e encarava
o Sr. Settembrini. Desta vez tratava-se de um duelo. Hans Castorp não arredava pé. Existiam
influências próximas a fortificá-lo. De um lado havia um pedagogo, e do outro, lá fora, uma
mulher de olhos rasgados. Hans Castorp nem sequer se desculpou pelo que diria; não
acrescentou: “Não leve a mal as minhas palavras!” Limitou-se a retrucar:
– Nesse caso, o senhor é mais prudente quando se trata de si próprio do que em relação a
outros. O senhor não viajou para o congresso da liga em Barcelona, contra a proibição do
médico. Tinha medo da morte e ficou aqui.
Até certo ponto estava desfeita, indubitavelmente, a pose do Sr. Settembrini. Esboçando
um sorriso um tanto forçado, respondeu ele:
–
Sei apreciar uma resposta incisiva, mesmo que a sua lógica não se distancie muito
do sofisma. Repugna-me entrar naquela odiosa competição que está na moda aqui; do contrário
lhe responderia que ando muito mais doente do que o senhor. Desgraçadamente estou, sem
exagero, tão enfermo que mantenho apenas artificialmente, na intenção de me iludir a mim
mesmo, a esperança de abandonar este lugar e voltar ao mundo lá de baixo. No momento em que
se tornar evidente a indecência dessa atitude, virarei as costas a este estabelecimento e ocuparei,
para o resto dos meus dias, um quarto numa casa particular em qualquer lugar do vale. Será triste,
mas, como a esfera do meu trabalho é a mais livre e a mais espiritual de todas, isso não me
impedirá de servir até o meu último suspiro a causa da humanidade e de fazer frente ao espírito
da doença. Já chamei a atenção do senhor para a diferença que nesse ponto existe entre nós. Meu
caro engenheiro, o senhor não é um homem capaz de defender aqui o que há de melhor na sua
natureza. Verifico isso desde o nosso primeiro encontro. O senhor me objeta que não fui a
Barcelona. Submeti-me à proibição do médico para não me destruir antes do tempo. Mas fiz isso
com as mais enérgicas reservas, sob o mais altivo e doloroso protesto do meu espírito contra a
pressão do meu corpo miserável. Será que esse protesto está vivo também no senhor, quando se
sujeita aos preceitos das potências daqui? Não serão apenas o corpo e a sua tendência nefasta
aquilo que o faz obedecer com demasiada espontaneidade?...
– Que tem o senhor contra o corpo? – interrompeu-o rapidamente Hans Castorp,
fixando no italiano os olhos arregalados, cuja esclerótica estava estriada de veias vermelhas. Sua
audácia entontecia-o visivelmente. “De que falo?”, pensou. “É incrível como isso vai longe. Mas,
uma vez que me pus em pé de guerra contra ele, vou fazer o possível para não lhe deixar a última
palavra. Naturalmente ele acabará triunfando; não faz mal, porque sempre tirarei disso algum
proveito. Vou provocá-lo.” E completou a sua objeção, dizendo: – O senhor não é humanista? Como pode falar mal do corpo?
Settembrini sorriu, dessa vez sem esforço, seguro de si.
– “Que tem o senhor contra a análise?” – citou, com a cabeça inclinada em direção do
ombro. – “Não gosta da análise?” O senhor sempre me encontrará disposto a responder às suas
perguntas, engenheiro – continuou com uma reverência, esboçando com a mão um gesto de
saudação que descia até o soalho –, sobretudo quando os seus argumentos dão prova de espírito.
O senhor riposta com elegância... Humanista? Claro que o sou. O senhor nunca me apanhará
manifestando tendências ascéticas. Digo “sim” ao corpo, honro-o e sinto amor por ele, assim
como faço em face da forma, da beleza, da liberdade, da alegria e do gozo, assim como tomo o
partido das coisas mundanas, dos interesses da vida, contra a aversão sentimental ao mundo;
represento o Classicismo contra o Romantismo. Acho que a minha posição é inequívoca. Mas
existe um poder, um princípio ao qual dedico a minha mais fervorosa aprovação, meu supremo
respeito e amor, e esse poder, esse princípio é o espírito. Por mais que eu abomine ver como
alguns procuram opor ao corpo qualquer fantasmagoria suspeita que chamam de “alma”, não
ignoro que, dentro da antítese de corpo e espírito, o primeiro representa o princípio mau e
diabólico; pois o corpo é natureza, e a natureza – repito que se trata da sua oposição ao espírito, à
razão – é má; mística e má! “O senhor é humanista!” Indiscutivelmente sou humanista, por ser
amigo do homem, como o era Prometeu, um enamorado da humanidade e da sua nobreza. Mas
essa nobreza acha-se encerrada no espírito, na razão, e por isso será inútil o senhor me acusar de
obscurantismo cristão...
Hans Castorp defendeu-se com um gesto.
– ... será absolutamente inútil o senhor me acusar disso – insistiu Settembrini – só porque
um belo dia o humanismo no seu nobre orgulho chegou a se dar conta da humilhação, da
ignomínia que reside no fato de o espírito estar ligado ao corpo, à natureza. Sabe o senhor que
nos foi transmitido um dito do grande Plotino, segundo o qual “ele sentia vergonha de ter um
corpo”? – perguntou Settembrini, de uma forma que tão seriamente exigia uma resposta, que
Hans Castorp se viu obrigado a confessar que ouvia isso pela primeira vez. – Quem nos
transmitiu essas palavras foi Porfírio. É uma sentença absurda, se assim quiser. Mas o absurdo é a
honestidade espiritual, e no fundo não há nada mais nobre do que a objeção do absurdo, nos
casos em que o espírito procura manter a sua dignidade em face da natureza e recusa abdicar em
favor dela... O senhor ouviu falar do terremoto de Lisboa?
– Não, houve um terremoto? Aqui não leio jornais.
– O senhor me entendeu mal. Seja dito de passagem que é lastimável – e característico
deste lugar – que o senhor se descuide aqui da leitura da imprensa. Mas o senhor não me
compreendeu bem. O fenômeno natural a que aludi não é recente; passou-se faz
aproximadamente cento e cinqüenta anos...
– Ah, sim! Espere um pouco. É verdade. Li que Goethe recebeu a notícia em Weimar, no
seu quarto, à noite, e disse ao criado...
– Ora, não era disso que queria falar – interrompeu-o Settembrini, fechando os olhos e
agitando no ar a mãozinha trigueira. – O senhor aliás confunde as catástrofes. Pensa no
terremoto de Messina. Eu me refiro ao abalo sísmico que sofreu Lisboa em 1755.
– Perdão.
– Bem, Voltaire revoltou-se contra ele.
– Quer dizer... Mas como? Ele se revoltou?
– Pois é, rebelou-se. Não admitiu aquele fado ou fato brutal. Negou-se a abdicar perante
ele. Protestou em nome do espírito e da razão contra esse escandaloso excesso da natureza que
vitimou três quartas partes de uma florescente cidade e milhares de vidas humanas... O senhor
fica pasmado? Sorri? Que pasme, mas, quanto ao sorriso, tomo a liberdade de censurá-lo. A
atitude de Voltaire era a de um autêntico descendente daqueles antigos gauleses que atiravam as
suas flechas contra o céu. Olhe, engenheiro, aí vê o senhor a hostilidade do espírito em face da
natureza, a orgulhosa desconfiança com que a encara, a maneira nobre pela qual se obstina no
direito de criticar a ela e a seu poder maligno e insensato. Pois a natureza é o poder, e aceitar o
poder, conformar-se com ele – repare bem: conformar-se intimamente com ele, é servil! E com
isso o senhor chega àquele humanismo que absolutamente não se deixa cair em nenhuma
contradição e que não se torna culpado de nenhuma recaída na hipocrisia cristã, ao decidir-se a
ver no corpo o princípio mau e antagônico. A contradição que o senhor pensa encontrar é, no
fundo, sempre a mesma. “Que tem o senhor contra a análise?” Nada... quando ela se empenha
em instruir, em libertar, em promover o progresso; Tudo... quando traz consigo o asqueroso olor
faisandé do túmulo. E o mesmo se dá com o corpo. É preciso honrá-lo e defendê-lo onde se trata
da sua emancipação e da sua beleza, da liberdade dos sentidos, da felicidade, do prazer. É mister
desprezá-lo, cada vez que se opuser, como princípio da gravidade e da inércia, ao movimento
rumo à luz. Convém detestá-lo quando chega a representar o princípio da doença e da morte,
quando o seu espírito específico se torna o espírito da perversidade, o espírito da decomposição,
da volúpia e da vergonha...
Essas últimas palavras, Settembrini as proferira muito perto de Hans Castorp, falando
quase sem voz e com muita velocidade, como para terminar depressa. Chegou socorro a Hans
Castorp: Joachim, com dois cartões-postais na mão, entrou na sala de leitura. Ficou interrompido
o discurso do literato, e a habilidade com que a sua fisionomia passou a assumir uma expressão
leve e mundana não deixou de impressionar o seu aluno -se é que podemos chamar assim a Hans
Castorp.
– Olá, tenente! O senhor deve ter andado à procura do seu primo. Desculpe!
Entabulamos uma conversa – e se não me engano, tivemos até uma pequena discussão. Ele não é
nada mau como argumentador, o senhor seu primo, um adversário bastante perigoso num
debate, quando dá importância ao assunto.
continua pág 163...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Enciclopédia (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
[1] Personagens de Wilhelm Busch (1832-1908), autor de obras infantis muito divulgadas na Alemanha. No Brasil, são conhecidos como ]uca e Chico, na tradução de Olavo Bilac. (N. do E.)