sexta-feira, 4 de outubro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Expedição Moreira César: IV - Situação inquietadora

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1



Expedição Moreira César

IV - 

continuando...


Situação inquietadora  

     À frente do seu Estado-maior, na margem direita do rio, o chefe expedicionário observava este assalto. acerca do qual não podia certamente formular uma única hipótese. A tropa desaparecera toda nos mil latíbulos de Canudos. Lá dentro rolava ruidosamente a desordem, numa assonância golpeada de estampidos, de imprecações, de gritos estrídulos, vibrantes no surdo tropear das cargas. Grupos esparsos, seções em desalinho de soldados, magotes diminutos de jagunços, apareciam, por vezes, inopinadamente, no claro da praça; e desapareciam, logo, mal vistos entre o fumo, embrulhados, numa luta braço a braço...
     Nada mais. A situação era afinal inquietadora.
     Nada prenunciava desânimo entre os sertanejos. 
     Os atiradores da igreja nova permaneciam firmes, visando todos os pontos quase impunemente, porque a artilharia por fim evitava alvejá-la temendo quaisquer desvios de trajetória, que lançassem as balas entre os próprios companheiros encobertos; e, estalando em cheio no arruído da refrega, ouviam-se mais altas as pancadas repetidas do sino na igreja velha. 
     Além disto, a ação abrangia apenas a metade do arraial. 
     A outra, à direita, onde terminava a estrada de Jeremoabo, estava indene. 
     Menos compacta — era menos expugnável. Desenrolava-se numa lomba extensa, permitindo a defesa a cavaleiro do inimigo, e obrigando-o a escaladas penosíssimas. De sorte que, ainda quando a parte investida fosse conquistada, aquela restaria impondo talvez maiores fadigas. 
     Realmente, embora sem o torvelinho dos becos, as casas isoladas, em disposição recordando vagamente tabuleiros de xadrez, facultavam extraordinário cruzamento de fogos, permitindo a um atirador único apontar para os quadrantes sem abandonar uma esquina. Considerando aquele lado do arraial a situação aclarava-se. Era gravíssima. Ainda contando com o sucesso franco na parte combatida, os soldados triunfantes, mas exaustos, arremeteriam, inúteis, com aquela encosta separada da praça pelo fosso natural de uma sanga profunda. Compreendeu-o o coronel Moreira César. E ao chegarem a retaguarda, a polícia e o esquadrão de cavalaria, determinou que aquela seguisse à extrema direita, atacando o bairro ainda indene e completando a ação que se desdobrara toda na esquerda. A cavalaria, secundando-a, teve ordem de atacar pelo centro, entre as igrejas. 
     Uma carga de cavalaria em Canudos...
     Era uma excentricidade. A arma clássica das planícies rasas, cuja força é o arremesso do choque, surgindo de improviso no fim das disparadas velozes, ali constrita entre paredes, carregando, numa desfilada dentro de corredores...  
     O esquadrão — cavalos abombados, rengueando sobre as pernas bambas — largou em meio galope curto até à beira do rio, cujas águas respingavam chofradas de tiros; e não foi adiante. Os animais assustadiços refugavam. Dilacerados à espora, chibateados à espada, mal vadearam até o meio da corrente, e empinando, e curveteando, freios tomados nos dentes, em galões, cuspindo da sela os cavaleiros, volveram em desordem à posição primitiva. Por seu turno, a polícia, depois de transpor o rio com água pelos joelhos, numa curva a jusante, vacilava ao deparar o álveo resvaladio e fundo da sanga que naquele ponto corre de norte a sul, separando do resto do arraial o subúrbio que devia acometer.
     O movimento complementar quebrava-se assim aos primeiros passos. O chefe expedicionário deixou então o lugar em que permanecera, à meia encosta dos Pelados, entre a artilharia e o plaino das quixabeiras.

— Eu vou dar brio àquela gente...


Moreira César fora de combate

     E descia. A meio caminho, porém, refreou o cavalo. Inclinou-se, abandonando as rédeas, sob o arção dianteiro do selim. Fora atingido no ventre por uma bala.
     Rodeou-o logo o Estado-maior.

— Não foi nada; um ferimento leve, disse, tranquilizando os companheiros dedicados. Estava mortalmente ferido.

     Não descavalgou. Volvia amparado pelo tenente Ávila, para o lugar que deixara, quando foi novamente atingido por outro projétil. Estava fora de combate.
     Devia substituí-lo o coronel Tamarindo, a quem foi logo comunicado o desastroso incidente. Mas aquele nada podia deliberar recebendo o comando quando desanimava de salvar o seu próprio batalhão, na outra margem do rio.
     Era um homem simples, bom e jovial, avesso a bizarrear façanhas. Chegara aos sessenta anos candidato a uma reforma tranquila. Fora, ademais, incluído contra a vontade na empresa. E, ainda quando tivesse envergadura para aquela crise, não havia mais remediá-la.
     A polícia, investindo, copiara afinal o modo de agir dos outros assaltantes — varejando casas e ateando incêndios.
     Não se rastreava na desordem o mais leve traço de combinação tática; ou não se podia mesmo imaginá-la.
     Aquilo não era um assalto. Era um combater temerário contra barricada monstruosa, que se tornava cada vez mais impenetrável à medida que a arruinavam e carbonizavam, porque sob os escombros, que atravancavam as ruas, sob os tetos abatidos e entre os esteios fumegantes, deslizavam melhor, a salvo, ou tinham mais invioláveis esconderijos, os sertanejos emboscados.
     Além disto, despontava, inevitável, contratempo maior: a noite prestes a confundir os combatentes exaustos de cinco horas de peleja.


Recuo

     Mas antes que ela sobreviesse, começou o recuo. Apareceram sobre a ribanceira esquerda, esparsos, em grupos estonteadamente correndo, os primeiros contingentes repelidos. Em breve outros se lhes aliaram no mesmo desalinho, rompendo dos cunhais das igrejas e dentre os casebres marginais: soldados e oficiais de mistura, chamuscados e poentos, fardas em tiras, correndo, disparando ao acaso as espingardas, vociferando, alarmados, tontos, titubeantes, em fuga...
     Este refluxo que começara à esquerda propagou-se logo à extrema direita. De sorte que, rebatida às posições primitivas, toda a linha do combate rolou torcida e despedaçada a tiros pela borda do rio abaixo.
     Sem comando, cada um lutava a seu modo. Destacaram-se ainda diminutos grupos para queimarem as casas mais próximas ou travarem breves tiroteios. Outros, sem armas e feridos, principiaram a repassar o rio.
     Era o desenlace.
     Repentinamente, largando as últimas posições, os pelotões, de mistura, numa balbúrdia indefinível, sob a hipnose do pânico, enxurraram na corrente rasa das águas !
     Repelindo-se; apisoando os malferidos, que tombavam; afastando rudemente os extenuados trôpegos; derrubando-os, afogando-os, os primeiros grupos bateram contra a margem direita. Aí, ansiando por vingá-la, agarrando-se às gramíneas escassas, especando-se nas armas, filando-se às pernas dos felizes que conseguiam vencê-las, se embaralham outra vez em congérie ruidosa. Era um fervilhar de corpos transudando vozear estrídulo, e discordante, e longo, dando a ilusão de alguma enchente repentina, em que o Vaza-Barris, engrossado, saltasse, de improviso, fora do leito, borbulhando, acachoando, estrugindo...


Ao bater da Ave-Maria

     Naquele momento o sineiro da igreja velha interrompeu o alarma.
     Vinha caindo a noite. Dentro da claridade morta do crepúsculo soou, harmoniosamente, a primeira nota da Ave-Maria.
     Vinha caindo a noite. Dentro da claridade morta do crepúsculo soou, harmoniosamente, a primeira nota da Ave-Maria.

continua na página 201...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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