OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
Expedição Moreira César
continuando...
Sobre o Alto do Mário
Os soldados, transposto o rio, acumularam-se junto à artilharia. Eram uma multidão alvorotada sem coisa alguma recordando a força militar, que se decompusera, restando, como elementos irredutíveis, homens atônitos e inúteis, e tendo agora, como preocupação exclusiva, evitarem o adversário que tão ansiosamente haviam procurado.
O cerro em que se reuniam estava próximo demais daquele, e passível, talvez, de algum
assalto, à noite. Era forçoso abandoná-lo. Sem ordem, arrastando os canhões, deslocaram-se
logo para o Alto do Mário, quatrocentos metros na frente. Ali improvisaram um quadrado
incorreto, de fileiras desunidas e bambas, envolvendo a oficialidade, os feridos, as
ambulâncias, o trem da artilharia e os cargueiros. Centralizava-o uma palhoça em ruínas — a
fazenda Velha; e dentro dela o comandante-em-chefe moribundo...
A expedição era agora aquilo: um bolo de homens, animais, fardas e espingardas, entupindo
uma dobra de montanha...
Tinha descido a noite — uma destas noites ardentíssimas mas vulgares no sertão, em que cada
estrela, fixa, sem cintilações, irradia como um foco de calor e os horizontes, sem nuvens,
iluminam-se, de minuto em minuto, como se refletissem relâmpagos de tempestades
longínquas...
Não se via o arraial. Alguns braseiros sem chamas, de madeiras ardendo sob o barro das
paredes e tetos; ou luzes esparsas de lanternas mortiças bruxuleando nas sombras, deslizando
vagarosamente, como em pesquisas lúgubres, indicavam-no embaixo, e traindo também a
vigília do inimigo. Tinham, porém, cessado os tiros e nem uma voz dali subia. Apenas na
difusão luminosa das estrelas desenhavam-se, dúbios, os perfis imponentes das igrejas. Nada
mais. A casaria compacta, as colinas circundantes, as montanhas remotas, desapareciam na
noite.
O acampamento em desordem contrastava a placidez ambiente. Constritos entre os
companheiros, cento e tantos feridos e estropiados por ali se agitavam ou se arrastavam,
torturados de dores e da sede, quase pisados pelos cavalos que espavoridos nitriam, titubeando
no atravancamento das carretas e fardos dos comboios. Não havia curá-los no escuro onde
fora temeridade incrível o rápido fulgurar de um fósforo. Além disto não bastava para tantos o
número reduzido de médicos, um dos quais — morto, extraviado ou preso — desaparecera à
tarde para nunca mais tornar.
O coronel Tamarindo
Faltava, ademais, um comando firme. O novo chefe não suportava as responsabilidades, que o
oprimiam. Maldizia talvez, mentalmente, o destino extravagante que o tornara herdeiro
forçado de uma catástrofe. Não deliberava. A um oficial, que ansiosamente o interpelara sobre
aquele transe, respondera com humorismo triste, rimando um dito popular do Norte:
" É tempo de murici cada um cuide de si..."
Foi a sua única ordem do dia. Sentado na caixa de um tambor, chupando longo cachimbo, com o estoicismo doente do próprio desalento, o coronel Tamarindo, respondendo de tal jeito, ou por monossílabos, a todas as consultas, abdicara a missão de remodelar a turba esmorecida e ao milagre de subdividi-la em novas unidades de combate.
Ali estavam, certo, homens de valor e uma oficialidade pronta ao sacrifício. O velho
comandante, porém, tivera a intuição de que um ajuntamento em tais conjunturas não
significa a soma das energias isoladas e avaliara todos os elementos que, nas coletividades
presas de emoções violentas, reduzem sempre as qualidades pessoais mais brilhantes.
Quedava impassível, alheio à ansiedade geral, passando de modo tácito o comando a toda a
gente. Assim, oficiais incansáveis davam por conta própria providências mais urgentes;
retificando o pretenso quadrado, em que se misturavam, a esmo, praças de todos os corpos;
organizando ambulâncias e dispondo padiolas; reanimando os ânimos; abatidos. Pelo espírito
de muitos passara mesmo o intento animador de um revide, um novo assalto logo ao
despontar da manhã, descendo a força toda, em arremetida violenta, sobre o fanáticos, depois
que os abalasse um bombardeio maior do que o realizado. E concertavam-se em planos
visando corrigir o revés com um lance de ousadia. Porque a vitória devia ser alcançada a
despeito dos maiores sacrifícios. Pensavam: nos quatro lados daquele quadrado mal feito
inscreviam-se os destinos de República. Era preciso vencer. Repugnava-os, revoltava-os,
humilhava-os angustiosamente aquela situação ridícula e grave, ali, no meio de canhões
modernos, sopesando armas primorosas, sentados sobre cunhetes repletos de cartuchos — e
encurralados por uma turba de matutos turbulentos...
A maioria, porém, considerava friamente as coisas. Não se iludia. Um rápido confronto entre
a tropa que chegara horas antes, entusiasta e confiante na vitória e a que ali estava, vencida,
patenteava-lhe uma solução única — a retirada.
Alvitre de retirada
Não havia alvitrar outro recurso, ou protraí-lo sequer.
Às onze horas, juntos os oficiais, adotaram-no, unânimes. Um capitão de infantaria foi
incumbido de cientificar da resolução o coronel Moreira César. Este impugnou-a logo,
dolorosamente surpreendido; a princípio calmo, apresentando os motivos inflexíveis do dever
militar e demonstrando que ainda havia elementos para uma tentativa qualquer, mais de dois
terços da tropa apta para o combate e munições suficientes; depois, num crescendo de cólera e
de angústia, se referiu à mácula que para sempre lhe sombrearia o nome. Finalmente
explodiu: não o sacrificassem àquela cobardia imensa...
Apesar disto manteve-se a resolução.
Protesto de Moreira César
Era completar a agonia do valente infeliz. Revoltado, deu a sua última ordem: fizessem uma
ata de tudo aquilo, deixando-lhe margem para um protesto, em que incluiria o abandono da
carreira militar.
A dolorosa reprimenda do chefe ferido por duas balas não moveu, contudo, a oficialidade
incólume.
Rodeavam-na, perfeitamente válidos ainda, centenares de soldados, oitocentos talvez;
dispunha de dois terços das munições e estava em posição dominante sobre o inimigo...
Mas a luta sertaneja começara, naquela noite, a tomar a feição misteriosa que conservaria até
o fim. Na maioria mestiços, feitos da mesma massa dos matutos que os soldados, abatidos
pelo contragolpe de inexplicável revés, em que baqueara o chefe reputado invencível, ficaram
sob a sugestão empolgante do maravilhoso, invadidos de terror sobrenatural, que
extravagantes comentários agravavam.
O jagunço, brutal e entroncado, diluía-se em duende intangível. Em geral os combatentes,
alguns feridos mesmo no recente ataque, não haviam conseguido ver um único; outros, os da
expedição anterior, acreditavam, atônitos e absortos ante o milagre estupendo, ter visto,
ressurretos, dois ou três cabecilhas que, afirmavam convictos, tinham sido mortos no
Cambaio; e para todos, para os mais incrédulos mesmo, começou a despontar algo de anormal
nos lutadores-fantasmas, quase invisíveis, ante os quais haviam embatido impotentes, mal os
lobrigando, esparsos e diminutos, rompendo temerosos dentre ruínas, e atravessando
incólumes os braseiros dos casebres em chamas.
É que grande parte dos soldados era do Norte, e criara-se ouvindo, em torno, de envolta com o
dos heróis dos contos infantis, o nome de Antônio Conselheiro. E a sua lenda extravagante, os
seus milagres, as suas façanhas de feiticeiro sem par, apareciam-lhes — então — verossímeis,
esmagadoramente, na contraprova tremenda daquela catástrofe.
Pelo meio da noite todas apreensões se avolumaram. As sentinelas cabeceavam nas fileiras
frouxas do quadrado, estremeceram, subitamente despertas, contendo gritos de alarma.
Um rumor indefinível avassalara a mudez ambiente e subia pelas encostas. Não era, porém,
um surdo tropear de assalto. Era pior. O inimigo, embaixo, no arraial invisível — rezava.
E aquela placabilidade extraordinária — ladainhas tristes, em que predominavam, ao invés de
brados varonis, vozes de mulheres, surgindo da ruinaria de um campo de combate — era,
naquela hora, formidável. Atuava pelo contraste. Pelo burburinho da soldadesca pasma, os
kyries estropiados e dolentes entravam, piores que intimações enérgicas. Diziam, de maneira
eloquente, que não havia reagir contra adversários por tal forma transfigurados pela fé
religiosa.
A retirada impunha-se.
Pela madrugada uma nova emocionante tornou-a urgentíssima. Falecera o coronel Moreira
César.
Retirada
Era o último empuxo no desânimo geral. Os aprestos da partida fizeram-se, então, no atropelo
de um tumulto indescritível. De sorte que, quando ao primeiro bruxulear da manhã uma força
constituída por praças de todos corpos abalou, fazendo a vanguarda, encalçada pelas
ambulâncias, cargueiros, fardos, feridos e padiolas, entre as quais a que levantava o corpo do
comandante malogrado, nada indicava naquele momento a séria operação de guerra que ia
realizar-se.
A retirada era a fuga. Avançando pelo espigão do morro no rumo da Favela e dali derivando
pelas vertentes opostas, por onde descia a estrada, a expedição espalhava-se longamente pelas
encostas, dispersando-se sem ordem, sem formaturas.
Neste dar as costas ao adversário que, desperto, embaixo, não a perturbara ainda, parecia
confiar apenas na celeridade do recuo, para se libertar. Não se dividira em escalões,
dispondo-se à defesa-ofensiva característica desses momentos críticos da guerra.
Precipitava-se, à toa, pelos caminhos fora. Não retirava, fugia. Apenas uma divisão de dois
Krupps, sob o mando de um subalterno de valor, e fortalecida por um contingente de
infantaria, permanecera firme por algum tempo no Alto do Mário, como uma barreira
anteposta à perseguição inevitável.
Vaia
Ao mover-se, afinal, esta fração abnegada foi rudemente investida O inimigo tinha na ocasião
o alento do ataque e a certeza na própria temibilidade. Acometeu ruidosamente, entre vivas
entusiásticos, por todos os lados, em arremetida envolvente. Embaixo começou a bater
desabaladamente o sino; a igreja nova explodia em descargas, e, adensada no largo, ou
correndo para o alto das colinas, toda a população de Canudos contemplava aquela cena,
dando ao trágico do lance a nota galhofeira e irritante de milhares de assovios estridentes,
longos, implacáveis...
Mais uma vez o drama temeroso da guerra sertaneja tinha o desenlace de uma pateada
lúgubre.
O desfecho foi rápido. A última divisão de artilharia replicou por momentos e depois, por sua
vez, abalou vagarosamente, pelo declive do espigão acima, retirando.
Era tarde. Adiante até onde alcançava o olhar, a expedição, esparsa e estendida pelos
caminhos, estava, de ponta a ponta, flanqueada pelos jagunços...
continua na página 205...
______________________
Leia também:
OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES - O Homem: V Uma missão abortada
Leia também:
OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES - O Homem: V Uma missão abortada
OS SERTÕES - Expedição Moreira César: V - Sobre o Alto do Mário
OS SERTÕES - Expedição Moreira César: VI - Debandada. Fuga
______________________
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário