sábado, 5 de outubro de 2024

Histórias da Meia-Noite: Ponto de vista (XII)

Ponto de vista

Machado de Assis

Conto

PONTO DE VISTA

 

Capítulo XII
D. RAQUEL A D. LUÍSA

Corte, 20 de janeiro  


     Faz um calor insuportável; mas como eu abri a janela que dá para o jardim, estou a ver o céu “todo recamado de estrelas” como dizem os poetas, e o espetáculo compensa o calor. Que noite, minha Luísa! Gosto imensamente destes grandes silêncios, porque então ouço-me a mim mesma, e vivo mais em cinco minutos de solidão do que em vinte horas de bulício.
     A Mariquinhas Rocha esteve esta noite cá em casa com o marido. Ambos parecem felizes, ela ainda mais do que ele, o que se me afigura completa inversão das leis naturais.
     Não se admira de me ouvir falar em “leis naturais”? A ideia não é minha, é do próprio enteado, o Dr. Alberto. Conversamos os dois a respeito das boas e santas qualidades de Mariquinhas, e eu dizia o que ela foi sempre desde criança.

— Criança é ainda ela, observou ele sorrindo. Não posso chamar madrasta a uma criatura que parece antes minha irmã mais moça.

— Na idade, sim, tornei eu; mas na circunspecção e na compostura é positivamente mais velha que o senhor. 

     Ele sorriu, mas de um sorriso amarelo, e continuou: 

— Meu pai é feliz; minha madrasta parece ainda mais feliz que meu pai. Não é isto uma inversão das leis naturais?

     Critique se lhe parece, a opinião do filho; mas aproveito a ocasião para dizer que na sua última carta há duas linhas em que parece ter um resto de suspeita. Mande-me dizer como quer que a convença de que ele é para mim uma criatura igual a tantas outras? 
     Ande, confesse que é cruel comigo, e disponha-se a um sermão na primeira ocasião em que estivermos juntas. 
     Sabe quem eu vi hoje? Dou-lhe um doce se adivinhar. O Garcia, aquele Garcia que a nam... Não, não, paremos aqui. 

RAQUEL  

continua na página 98...
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873 

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