sábado, 30 de novembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (II - Combray, E no entanto pensei - p)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(p) 

continuando...

     E no entanto pensei depois que se o sr. Vinteuil pudesse assistir àquela cena, ainda talvez não perdesse a fé no bom coração da filha, no que não estaria de todo enganado. Certamente, tão completa era a aparência do mal no procedimento da srta. Vinteuil, que seria difícil vê-lo realizado com tamanha perfeição a não ser em uma natureza sádica; é antes à luz das ribaltas dos teatros do bulevar, que à luz da lâmpada de uma verdadeira casa de campo, que se pode ver uma filha fazer sua amiga cuspir no retrato de um pai que só viveu para ela; e só o sadismo é que pode dar um fundamento, na vida, à estética do melodrama. Na realidade, fora dos casos de sadismo, talvez pudesse uma moça cometer faltas tão atrozes como as da srta. Vinteuil para com a memória e as vontades de seu pai morto; mas não as resumiria expressamente em um ato de um simbolismo tão rudimentar e ingênuo; e o que houvesse de criminoso em seu procedimento se apresentaria de um modo mais velado para os outros e para si mesma, visto que ela própria não reconheceria estar praticando o mal. Mas, além das aparências, e pelo menos no princípio, o mal não deve ter sido exclusivo no coração da srta. Vinteuil. Uma sádica como ela é um artista do mal, coisa que uma criatura inteiramente má não poderia ser, pois o mal não seria exterior a ela, antes lhe pareceria muito natural, não chegando mesmo a se distinguir de sua pessoa; e a virtude, a memória dos mortos, a ternura filial, como não lhes guardava culto, não sentiria nenhum prazer sacrílego em profaná-las. Os sádicos da espécie da srta. Vinteuil são uns seres tão puramente sentimentais, tão naturalmente virtuosos que até o prazer sensual lhes parece uma coisa má, um privilégio dos maus. E quando se permitem entregar-se um momento a ele, é na pele dos maus que procuram entrar e fazer com que entre seu cúmplice, a fim de que possam ter por um instante a ilusão de se haverem evadido de sua alma escrupulosa e terna para o mundo inumano do prazer. E eu compreendia quanto ela o desejava, ao ver como lhe era impossível consegui-lo. No próprio momento em que desejava ser tão diferente do pai, o que ela me fazia lembrar eram as maneiras de pensar e de dizer do velho professor de piano. O que profanava, o que utilizava para seus prazeres e que se interpunha entre esses prazeres e sua pessoa, impedindo-a de gozá-los diretamente, era, muito mais que a fotografia do pai, aquela parecença que havia entre os dois, aqueles olhos azuis da mãe de Vinteuil, que os transmitira à filha como uma joia de família, aqueles gestos de amabilidade que vinham colocar entre ela e seu vício uma fraseologia e uma mentalidade inadequadas, as quais faziam com que considerasse a prática daquele vício como uma coisa não muito diversa dos inúmeros deveres de cortesia a que habitualmente se consagrava. Não era o mal que lhe dava ideia do prazer, que lhe parecia agradável; era o prazer que lhe parecia maligno. E como cada vez que se entregava ao prazer vinha ele acompanhado daqueles maus pensamentos que durante o resto do tempo estavam ausentes de sua alma virtuosa, ela acabava por achar no prazer alguma coisa de diabólico, por identificá-lo com o Mal. Talvez sentisse a filha de Vinteuil que sua amiga não era má, que não falava com sinceridade quando proferia aquelas blasfêmias. Pelo menos tinha o prazer de beijar em seu rosto sorrisos e olhares, talvez fingidos, mas análogos, em sua expressão viciosa e baixa, aos que teria, não uma criatura de bondade e paciência, mas uma criatura de crueldade e prazer. Podia imaginar por um momento que estava jogando de verdade os jogos que, com uma cúmplice tão desnaturada, poderia jogar uma criatura que tivesse realmente aqueles sentimentos tão bárbaros para com a memória de seu próprio pai. Não teria acaso pensado que o mal fosse um estado tão raro, tão extraordinário, tão isolante e para onde era tão grato emigrar, se soubesse discernir em si mesma, como em todos os outros, essa indiferença pelos sofrimentos que nós mesmos causamos e que, por mais diversos nomes que lhe deem, é a forma terrível e permanente da crueldade.
     Se era simples ir para o lado de Méséglise, ir para o lado de Guermantes já era outra coisa, pois o passeio era longo e queríamos estar seguros do tempo que faria. Quando parecia começar uma série de belos dias; quando Françoise, desesperada de que não tombasse uma gota d’água para as “pobres colheitas” e não vendo mais que umas raras nuvens brancas a nadarem na superfície calma e azul do céu, exclamava, gemendo: “Parece-me que não se vê nada mais que uns esqualos que brincam, mostrando lá em cima o seu nariz. Bem se importam em mandar chuva para os pobres lavradores! E depois, quando o trigo tiver brotado, dê-lhe chuva, dê-lhe chuva, sem mais saber onde cai do que se fosse sobre o mar”; quando meu pai recebia invariavelmente as mesmas respostas favoráveis do jardineiro e do barômetro, então diziam, ao jantar: “Amanhã, se fizer o mesmo tempo, iremos para o lado de Guermantes”. Saíamos logo depois do almoço pelo portãozinho do jardim e íamos parar na rua de Perchamps, estreita e formando um agudo cotovelo, cheia de gramíneas entre as quais duas ou três vespas passavam o dia herborizando, rua tão estranha como seu nome, de que me pareciam derivar suas particularidades curiosas e sua personalidade rebarbativa e que em vão procuraríamos na Combray de hoje, porque no lugar que ocupava se ergue atualmente a escola. Mas minha imaginação (como esses arquitetos da escola de Viollet-le-Duc,[1] que, julgando encontrar em um coro Renascença e em um altar do século XVII vestígios de um coro romano, repõem todo o edifício no estado em que devia achar-se no século XII) não deixa de pé uma só pedra da nova construção, e abre e “restitui” a rua de Perchamps. Para essas reconstituições, ela dispõe aliás de dados mais precisos do que aqueles que têm em geral os restauradores: algumas imagens conservadas em minha memória, as últimas talvez que ainda existam atualmente e destinadas em breve a sumir-se, do que era Combray no tempo de minha infância; e como foi a própria Combray que as delineou em mim antes de desaparecer, têm toda a emoção, se é que se pode comparar um obscuro retrato a essas efígies gloriosas de que minha avó gostava de me dar reproduções, dessas gravuras antigas da Ceia ou desse quadro de Gentile Bellini, nos quais se veem, em um estado que não mais existe hoje em dia, a obra-prima de Leonardo e o pórtico de São Marcos.[2] 
     Passávamos pela rua do Pássaro, por diante da velha hospedaria do Pássaro Ferido, em cujo grande pátio entraram algumas vezes no século xvii as carruagens das duquesas de Montpensier, de Guermantes e de Montmorency quando tinham de vir a Combray por motivo de alguma questão com seus rendeiros ou para receber homenagem.[3] Alcançava-se o passeio entre cujas árvores aparecia a torre de Santo Hilário. E eu desejaria poder ficar ali sentado toda a tarde a ler e ouvindo os sinos; pois fazia um tempo tão lindo e tranquilo que o soar das horas dir-se-ia que não quebrava a calma do dia, mas desembaraçava-o do que ele continha, e que o campanário, com a indolente e zelosa exatidão de quem não tivesse mais nada que fazer, acabava apenas (para espremer e deixar cair as poucas gotas de ouro que o calor ali fora lenta e naturalmente acumulando) de calcar, no momento justo, a plenitude do silêncio.  
     O maior encanto do lado de Guermantes era que tínhamos quase sempre a nosso lado o curso do Vivonne. Nós o atravessávamos a primeira vez, dez minutos depois de sair de casa, por um passadiço chamado a Ponte Velha. Logo na manhã seguinte a nossa chegada, no dia da Páscoa, após o sermão, se fazia bom tempo, eu corria até lá para ver, naquela desordem de manhã de festa em que alguns preparativos suntuosos fazem parecer mais sórdidos os utensílios caseiros extraviados no meio deles, o rio que já passeava de azul-celeste, entre as terras ainda negras e nuas, acompanhado apenas de um bando de cucos chegados muito cedo e de algumas primaveras adiantadas, enquanto aqui e ali uma violeta de bico azul pendia sua haste ao peso da gota de aroma que tinha em seu cartucho. A Ponte Velha ia dar em um caminho de sirga que naquele lugar era tapetado no verão pelas folhas azuis de uma aveleira, debaixo da qual um pescador de chapéu de palha deitara raízes. Em Combray, onde eu sabia que personalidade de ferreiro ou de entregador de armazém se ocultava sob o uniforme do sacristão ou a sobrepeliz do menino de coro, aquele pescador era a única pessoa cuja identidade jamais descobri. Devia conhecer meus pais, pois erguia o chapéu quando passávamos; eu queria então perguntar seu nome, mas faziam-me sinal que me calasse para não espantar o peixe. Seguíamos pelo caminho de sirga que dominava a corrente, de um barranco de vários pés de altura; do outro lado, a margem era baixa e se estendia em vastos prados até a aldeia e a estação distante. Por ali se achavam dispersos, meio afundados na relva, os restos do castelo dos antigos condes de Combray, o qual na Idade Média tinha o rio como defesa, deste lado, contra os ataques dos senhores de Guermantes e dos abades de Martinville. Não era mais que alguns fragmentos de torres corcovando a planície e que mal apareciam, algumas ameias de onde outrora o besteiro arremessava pedras, de onde o vigia espreitava Novepont, Clairefontaine, Martinville-le-Sec, Baileau-l’Exempt, todas elas terras vassalas de Guermantes, entre as quais Combray se achava encravada, e tudo hoje rente com o chão, à mercê dos meninos da escola de padres que ali vinham estudar ou fazer recreio; passado quase confundido com a terra, deitado à beira-rio como um passeante que toma a fresca, mas que me dava muito que cismar, fazendo-me acrescentar à aldeia de hoje, dentro desse nome de Combray, uma cidade muito diversa, e detendo-me os pensamentos em sua face incompreensível e antiga que ele meio ocultava entre os “botões de ouro”. Muito numerosos eram eles naquele lugar que haviam escolhido para seus jogos sobre a relva, sozinhos, aos pares, em bandos, amarelos como uma gema de ovo, e tanto mais brilhantes, parecia-me, porque, não podendo eu derivar para nenhuma veleidade de degustação o prazer que me dava sua vista, acumulava-o todo em sua superfície dourada, até que se tornasse assaz possante para produzir inútil beleza; e isto desde minha mais tenra infância, quando do caminho de sirga estendia os braços para eles, sem que ainda pudesse pronunciar direito seu lindo nome de Príncipes de conto de fadas francês, vindos talvez há muitos séculos da Ásia, mas agora radicados para sempre na aldeia, contentes com o modesto horizonte, amando o sol e a margem do rio, fiéis à acanhada vista da estação, mas ainda conservando, como algumas de nossas velhas telas pintadas, em sua simplicidade popular, um poético esplendor de Oriente.
     Divertia-me em olhar os garrafões que os garotos metiam no Vivonne para apanhar peixinhos, e que, cheios da água do rio, em que estão por sua vez encerrados, ao mesmo tempo “continente” de flancos transparentes como uma água endurecida, e “conteúdo” mergulhado em um maior continente de cristal líquido e correntio, evocavam a imagem da frescura de maneira mais deliciosa e irritante do que o poderiam fazer em mesa posta, só a mostrando em fuga naquela perpétua aliteração entre a água sem consistência onde as mãos não podiam captá-la e o vidro sem fluidez onde o gosto não podia prová-la. Prometia a mim mesmo voltar ali mais tarde, com caniços de pesca; conseguia que tirassem um pouco do pão da merenda; lançava no rio algumas bolinhas de miolo que pareciam o suficiente para provocar ali um fenômeno de supersaturação, pois a água se solidificava em seguida em torno delas, em cachos ovoides de girinos inanidos, que sem dúvida mantivera até aquele momento em dissolução, invisíveis, já quase em via de se cristalizar.
     Em breve o curso do Vivonne começava a obstruir-se de plantas aquáticas. Primeiro havia algumas isoladas, como aquele nenúfar ao qual a correnteza, em que desastradamente se atravessara, tão pouco repouso lhe consentia que, como um barco acionado mecanicamente, só abordava uma das margens para regressar à outra de onde viera, refazendo eternamente a dupla travessia. Impelido para a margem, seu pedúnculo se desenrolava, alongava-se, atingindo o extremo limite de sua tensão, até a riba onde a correnteza volvia a colhê-lo, e então a verde cordagem se enrolava sobre si mesma, e trazia de novo a pobre planta ao que com a maior razão se podia denominar seu ponto de partida, porquanto ela não se demorava ali um só segundo sem outra vez partir para mais uma repetição da mesma manobra. Eu tornava a encontrá-la de passeio em passeio, sempre na mesma situação, fazendo pensar em certos neurastênicos, em cujo número meu avô incluía a tia Léonie, que nos oferecem, sem mudança, no curso dos anos, o espetáculo dos hábitos esquisitos, de que cada vez eles se julgam prestes a libertar-se e que conservam sempre; colhidos na engrenagem de suas indisposições e manias, os esforços em que inutilmente se debatem para delas sair só servem para assegurar o funcionamento de sua dietética estranha, inelutável e funesta. Tal era aquele nenúfar, também semelhante a um desses infelizes cuja singular tortura, que se repete indefinidamente por toda a eternidade, provocava a curiosidade de Dante e cujas particularidades e causas ele desejaria ouvir mais longamente da boca do próprio supliciado, se Virgílio, afastando-se a largos passos, não o obrigasse a alcançá-lo depressa, como eu a meus pais.[4]
     Mais adiante, porém, a corrente amortece, e atravessa uma propriedade de acesso livre ao público, graças a seu dono, que ali se divertira em trabalhos de horticultura aquática, fazendo florir, nos pequenos banhados que forma o Vivonne, verdadeiros jardins de ninfeias. Como as margens tinham muito arvoredo naquele ponto, as sombras das árvores davam à água um fundo habitualmente de um verde sombrio, mas que às vezes, ao voltarmos por certas tardes resserenadas depois da tempestade, eu vi de um azul claro e cru, tirante para violeta, de uma aparência de interior e gosto nipônico. Aqui e ali, à superfície, enrubescia como um morango uma flor de ninfeia de coração escarlate, branco nas bordas. Além, as flores, mais numerosas, eram mais pálidas, menos lisas, mais granulosas, mais crespas, e dispostas pelo acaso em meadas tão graciosas que se julgava estar vendo irem à deriva, como após o melancólico esfolhamento de uma festa galante, rosas de espuma em guirlandas desfeitas. Um recanto, mais adiante, parecia reservado às espécies comuns que mostravam o branco e o róseo dos goivos, lavados como porcelana com um zelo doméstico, enquanto um pouco mais além apertados uns contra os outros em uma verdadeira platibanda flutuante, dir-se-iam amores-perfeitos dos jardins que tivessem vindo pousar como borboletas suas asas azuladas e frias sobre a transparente obliquidade daquele canteiro d’água; daquele canteiro celeste também: pois oferecia às flores um solo de uma cor mais preciosa, mais impressionante que a cor das próprias flores, ou fizesse no princípio da tarde fulgurar sob as ninfeias o caleidoscópio de uma felicidade atenta, silenciosa e móvel, ou se enchesse, ao anoitecer, do róseo e da cisma do poente, mudando incessantemente para ficar sempre de acordo, em torno das corolas de tons mais fixos, com o que há de mais profundo, de mais fugitivo, de mais misterioso — com o que há de infinito — no instante, e parecia fazê-las florir em pleno céu.
     Ao sair daquele parque, o Vivonne punha-se a correr de novo. Quantas vezes não vi, e não desejei imitar, quando tivesse a liberdade de viver a meu gosto, a um remador que, largando o remo, se deitava de costas, com os pés mais altos que a cabeça, ao fundo do barco, e, deixando-o flutuar à mercê das águas, não podendo ver senão o céu que deslizava lentamente acima dele, trazia na face o antegozo da felicidade e da paz.
     Sentávamo-nos entre os íris, à beira d’água. No céu de feriado flanava longamente uma nuvem ociosa. Por vezes, opressa de tédio, uma carpa erguia a cabeça fora d’água, em uma aspiração ansiosa. Era a hora da merenda. Antes de regressar, ficávamos por muito tempo a comer frutas, pão e chocolate, sobre a relva por onde nos chegavam, horizontais, enfraquecidos, mas ainda densos e metálicos, os sons do sino de Santo Hilário, que não se tinham misturado ao ar que há tanto tempo vinham atravessando e, sarjados pela palpitação sucessiva de todas as suas linhas sonoras, vibravam roçando as flores, a nossos pés.
     Às vezes, à margem do rio e entre árvores, encontrávamos uma dessas casas chamadas de recreio, isolada, perdida, que nada via do mundo a não ser a corrente onde banhava os pés. Uma mulher jovem, cujo rosto pensativo e véus elegantes não eram da região, e que sem dúvida ali viera “enterrar-se”, segundo a expressão popular, para saborear o amargo prazer de sentir que seu nome, e sobretudo o nome daquele de quem não conseguira guardar o coração, era desconhecido de todos, enquadrava-se na janela que não a deixava ver mais nada além do barco atracado junto à porta. Erguia distraidamente os olhos a ouvir por detrás das árvores da margem a voz dos passantes, que, antes mesmo de lhes ver o rosto, podia estar certa de que jamais haviam conhecido nem conheceriam o infiel, que nada em seu passado lhe guardava a marca e nada em seu futuro teria ocasião de recebê-la. Sentia-se que, em sua renúncia, deixara voluntariamente os lugares onde ao menos poderia avistar o amado, por estes que nunca o tinham visto. E eu a via, voltando de um passeio em caminhos por onde ela bem sabia que nunca haveria de passar o ausente, descalçar de suas mãos resignadas umas longas luvas de graça inútil.[5]

continua na página 115...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, E no entanto pensei - p)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Arquiteto e restaurador francês, especialista em Idade Média. Seu método de restauração será criticado pelas personagens Swann e Albertine e pelo próprio Proust, em sua correspondência particular. O escritor Anatole France também o criticaria no livro Pierre Nozière. Proust, entretanto, utiliza em vários momentos seu Dictionnaire raisonné de l’architecture française du XIe e XVIe siècle. [n. e.]
[2] Alusão à gravura da Ceia de Leonardo da Vinci, executada por Morghen, e ao quadro Procissão na praça de São Marcos, de Bellini. Proust deve a alusão a John Ruskin, que observara que apenas essas duas obras guardavam o estado perdido da fachada da catedral de São Marcos (cf. Guide to the principal pictures in the Academy of Fine Arts at Venice e Le repos de Saint Marc). [n. e.]
[3] O nome fictício da duquesa de Guermantes aparece entre dois nomes reais, o da duquesa de Montpensier (1627-93), sobrinha do rei Luís xiv, condutora da Fronda, e o da duquesa de Montmorency (1601-66). [n. e.]
[4] Referência aos cantos XXIX e XXX do “Inferno”, na Divina comédia, de Dante. [n. e.]
[5] Proust parece aludir a Juliette Joinville d’Artois, que se retirara em Mirougrain, perto da cidade de Illiers, e publicou em seguida suas memórias com o título À travers le coeur, no ano de 1887. [n. e.]  

A Hora da Estrela - Saiu da casa da cartomante

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


continuando...

     Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo — crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro. Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o primeiro esgar da noite que, sim, sim, era funda e faustosa. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras — desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria.
     Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora é já, chegou a minha vez!
     E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a — e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho.
     Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro fugisse, que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota, pois o carro era de alto luxo. Sua queda não era nada, pensou ela, apenas um empurrão. Batera com a cabeça na quina da calçada e ficara caída, a cara mansamente voltada para a sarjeta. E da cabeça um fio de sangue inesperadamente vermelho e rico. O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito.

(Eu ainda poderia voltar atrás em retorno aos minutos passados e recomeçar com alegria no ponto em que Macabéa estava de pé na calçada — mas não depende de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro a olhasse. É que fui longe demais e já não posso mais retroceder. Ainda bem que pelo menos não falei e nem falarei em morte e sim apenas um atropelamento.)

     Ficou inerme no canto da rua, talvez descansando das emoções, e viu entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra esperança humana. Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci. 

(A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A verdade é irreconhecível. Portanto não existe? Não, para os homens não existe.)

     Voltando ao capim. Para tal exígua criatura chamada Macabéa a grande natureza se dava apenas em forma de capim de sarjeta — se lhe fosse dado o mar grosso ou picos altos de montanhas, sua alma, ainda mais virgem que o corpo, se alucinaria e explodir-se-lhe-ia o organismo, braços pra cá, intestino para lá, cabeça rolando redonda e oca a seus pés — como se desmonta um manequim de cera. 
     Prestou de repente um pouco de atenção para si mesma. O que estava acontecendo era um surdo terremoto? Tinha-se aberto em fendas a terra de Alagoas. Fixava, só por fixar, o capim. Capim na grande Cidade do Rio de Janeiro. À toa. Quem sabe se Macabéa já teria alguma vez sentido que também ela era à-toa na cidade inconquistável. O Destino havia escolhido para ela um beco no escuro e uma sarjeta. Ela sofria? Acho que sim. Como uma galinha de pescoço mal cortado que corre espavorida pingando sangue. Só que a galinha foge — como se foge da dor — em cacarejos apavorados. E Macabéa lutava muda. 
     Vou fazer o possível para que ela não morra. Mas que vontade de adormecê-la e de eu mesmo ir para a cama dormir.
      Então começou levemente a garoar. Olímpico tinha razão: ela só sabia mesmo era chover. Os finos fios de água gelada aos poucos empapavam-lhe a roupa e isso não era confortável.
     Pergunto: toda história que já se escreveu no mundo é história de aflições? 
     Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe de onde e haviam se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim como antes pessoas nada haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam, o que lhe dava uma existência. 

(Mas quem sou eu para censurar os culpados? O pior é que preciso perdoá-los. É necessário chegar a tal nada que indiferentemente se ame ou não se ame o criminoso que nos mata. Mas não estou seguro de mim mesmo: preciso perguntar, embora não saiba a quem, se devo mesmo amar aquele que me trucida e perguntar quem de vós me trucida. E minha vida, mais forte do que eu, responde que quer porque quer vingança e responde que devo lutar como quem se afoga, mesmo que eu morra depois. Se assim é, que assim seja). 

     Macabéa por acaso vai morrer? Como posso saber? E nem as pessoas ali presentes sabiam. Embora por via das dúvidas algum vizinho tivesse pousado junto do corpo uma vela acesa. O luxo da rica flama parecia cantar glória.

(Escrevo sobre o mínimo parco enfeitando-o com púrpura, jóias e esplendor. É assim que se escreve? Não, não é acumulando e sim desnudando. Mas tenho medo da nudez, pois ela é a palavra final.)   

     Enquanto isso, Macabéa no chão parecia se tornar cada vez mais uma Macabéa, como se chegasse a si mesma.
     Este é um melodrama? O que sei é que melodrama era o ápice de sua vida, todas as vidas são uma arte e a dela tendia para o grande choro insopitável como chuva e raios.
     Apareceu portanto um homem magro de paletó puído tocando violino na esquina. Devo explicar que este homem eu o vi uma vez ao anoitecer quando eu era menino em Recife e o som espichado e agudo sublinhava com uma linha dourada o mistério da rua escura. Junto do homem esquálido havia uma latinha de zinco onde barulhavam secas as moedas dos que o ouviam com gratidão por ele lhes planger a vida. Só agora entendo e só agora brotou-se-me o sentido secreto: o violino é um aviso. Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino do homem e pedirei música, música, música.

continua pág 85...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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Leia também:

A Hora da Estrela - Saiu da casa da cartomante

domingo, 24 de novembro de 2024

Domingooouuu uma bossa nova

Tom Jobim


Assim como viver
Me vejo a teu lado
o alicerce
Sem ter amor não é viver
Te amo?
Não há você sem mim
o sentido diferente
Não lembro
E eu não existo sem você
os frutos todos os dias
Parece dezembro
Vai ser engraçado
De um ano dourado
Se tens um novo amor
Quando existe alguém
que tem saudade de alguém
E esse outro alguém não entender
Deixe esse novo amor chegar
E eu não existo sem você





01. 00:00:00 Wave, 1967
02. 00:02:52 Insensatez, 1961 com Vinícius de Moraes
03. 00:05:44 Águas de Março, 1972
04. 00:08:15 Triste, 1967
05. 00:10:18 Piano na Mangueira, 1992 com Chico Buarque
06. 00:12:21 Dindi, 1959 com Aloysio de Oliveira
07. 00:16:59 Inútil Paisagem, 1963 com Aloysio de Oliveira
08. 00:20:39 Chega de Saudade, 1958 com Vinícius de Moraes
09. 00:24:57 Só Tinha de Ser Com Você, 1964 com Aloysio de Oliveira
10. 00:28:24 Água de Beber, 1961
11. 00:31:14 Desafinado, 1965 com Newton Mendonça
12. 00:33:58 Correnteza, 1976 com Luiz Bonfá
13. 00:38:38 Caminhos Cruzados, 1956 com Newton Mendonça
14. 00:44:07 Anos Dourados, 1986 com Chico Buarque
15. 00:47:54 Corcovado, 1960
16. 00:50:20 Brigas, Nunca Mais, 1958 com Vinícius de Moraes
17. 00:52:47 Vivo Sonhando, 1963
18. 00:55:23 Samba do Avião, 1962
19. 00:58:02 Lamento no Morro, 1956 com Vinícius de Moraes
20. 01:01:31 Estrada do Sol, 1958 com Dolores Duran
21. 01:05:02 Garota de Ipanema, 1963 com Vinícius de Moraes
22. 01:09:45 Eu Não Existo sem Você, 1957 com Vinícius de Moraes
23. 01:12:16 Samba de Maria Luiza, 1994
24. 01:14:24 Este Seu Olhar, 1959
25. 01:16:47 Falando de Amor, 1979
26. 01:20:02 Eu Sei Que Vou Te Amar, 1959 com Vinícius de Moraes
27. 01:23:24 Só Danço Samba, 1962 com Vinícius de Moraes
28. 01:25:46 Passarim, 1985
29. 01:30:33 Lígia, 1972
30. 01:34:20 Discussão, 1958 com Newton Mendonça
31. 01:36:59 Fotografia, 1959
32. 01:41:26 Samba de Uma Nota Só, 1959 com Newton Mendonça
33. 01:43:40 Sem Você, 1959 com Vinícius de Moraes
34. 01:47:50 Ela É Carioca, 1963 com Vinícius de Moraes
35. 01:50:08 Por Causa de Você, 1957 com Dolores Duran
36. 01:53:33 Estrada Branca, 1958 com Vinícius de Moraes
37. 01:56:19 Luíza, 1981
38. 02:00:32 Sabiá, 1968 com Chico Buarque
39. 02:04:43 Tema de Amor de Gabriela, 1983


Eu Não Existo sem Você

Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos me encaminham pra você

Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o Vinícius
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você

Composição: Tom Jobim / Vinícius de Moraes


Anos dourados

Parece que dizes
Te amo, Maria
Na fotografia
Estamos felizes
Te ligo afobada
E deixo confissões no gravador
Vai ser engraçado
Se tens um novo amor

Me vejo a teu lado
Te amo?
Não lembro
Parece dezembro
De um ano dourado

Parece bolero
Te quero, te quero
Dizer que não quero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais

Não sei se eu ainda
Te esqueço de fato
No nosso retrato
Pareço tão linda
Te ligo ofegante
E digo confusões no gravador
É desconcertante
Rever o grande amor

Meus olhos molhados
Insanos dezembros
Mas quando eu me lembro
São anos dourados

Ainda te quero
Bolero, nossos versos são banais
Mas como eu espero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais

Composição: Chico Buarque / Tom Jobim



A Hora da Estrela - Então madama Carlota

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


continuando...

     Então madama Carlota contou-lhe que lá no Mangue, no seu cubículo, havia enfeites lindos nas paredes.

– Você sabe, meu amor, que cheiro de homem é bom? Faz bem à saúde. Você já sentiu cheiro de homem? 
– Não senhora.

     Finalmente, depois de lamber os dedos, madama Carlota mandou-a cortar as cartas com a mão esquerda, ouviu minha adoradinha? 
     Macabéa separou um monte com a mão trêmula: pela primeira vez ia ter um destino. Madama Carlota (explosão) era um ponto alto na sua existência. Era o vórtice de sua vida e esta se afunilara toda para desembocar na grande dama cujo ruge brilhante dava-lhe à pele arregalou os olhos.

– Mas, Macabeazinha, que vida horrível a sua! Que meu amigo Jesus tenha dó de você, filhinha! Mas que horror!

     Macabéa empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida fora tão ruim.
     Madama acertou tudo sobre o seu passado, até lhe disse que ela mal conhecera pai e mãe e que fora criada por uma parente muito madrasta má. Macabéa espantou-se com a revelação: até agora sempre julgara que o que a tia lhe fizera era educá-la para que ela se tornasse uma moça mais fina. Madama acrescentou: 

– Quanto ao presente, queridinha, está horrível também. Você vai perder o emprego e já perdeu o namorado, coitada de vocezinha. Se não puder, não me pague a consulta, sou madama de recursos. 

     Macabéa, pouco habituada a receber de graça, recusou a dádiva mas com o coração todo grato.
     E eis que (explosão) de repente aconteceu: o rosto da madama se acendeu todo iluminado:

– Macabéa! Tenho grandes notícias para lhe dar! Preste atenção, minha flor, porque é de maior importância o que vou lhe dizer. É coisa muito séria e muito alegre: sua vida vai mudar completamente! E digo mais: vai mudar a partir do momento em que você sair da minha casa! Você vai se sentir outra. Fique sabendo, minha florzinha, que até o seu namorado vai voltar e propor casamento, ele está arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe despedir.

     Macabéa nunca tinha tido coragem de ter esperança. 
     Mas agora ouvia a madama como se ouvisse uma trombeta vinda dos céus — enquanto suportava uma trombeta vinda dos céus — Enquanto suportava uma forte taquicardia. Madama tinha razão: Jesus enfim prestava atenção nela. Seus olhos estavam arregalados por uma súbita voracidade pelo futuro (explosão). E eu também estou com esperança enfim.

– E tem mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta adentro em horas da noite trazido por um homem estrangeiro. Você conhece algum estrangeiro? 
– Não senhora — disse Macabéa já desanimando.
– Pois vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos azuis ou verde ou castanhos ou pretos. E se não fosse porque você gosta de seu ex-namorado, esse gringo ia namorar você. Não! Não! Não! Agora estou vendo outra coisa (explosão) e apesar de não ver muito claro estou também ouvindo a voz de meu guia: esse estrangeiro parece se chamar Hans, e é ele quem vai se casar com você! Ele tem muito dinheiro, todos os gringos são ricos. Se não me engano, e nunca me engano, ele vai lhe dar muito amor e você, minha enjeitadinha, vai se vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai ganhar! 

     Macabéa começou (explosão) a tremilicar toda por causa do lado penoso que há na excessiva felicidade. Só lhe ocorreu dizer:

– Mas casaco de pele não precisa no calor do Rio... 
– Pois vai ter só para se enfeitar. Faz tempo não boto cartas tão boas. E sou sempre sincera: por exemplo, acabei de ter a franqueza de dizer para aquela moça que saiu daqui que ela ia ser atropelada, ela até chorou muito, viu os olhos avermelhados dela? E agora vou lhe dar um feitiço que você deve guardar dentro deste sutiã que quase não tem seio, coitada, bem em contato com a pele. Você não tem busto mas vai engordar e vai ganhar corpo. Enquanto você não engordar, ponha dentro do sutiã chumaços de algodão para fingir que tem. Olha, minha queridinha, esse feitiço também sou obrigada por Jesus a lhe cobrar porque todo o dinheiro que eu recebo das cartas eu dou para um asilo de crianças, Mas se não puder, não pague, só venha e pagar quando tudo acontecer.
– Não, eu lhe pago, a senhora acertou tudo, a senhora é...

     Estava meio bêbada, não sabia o que pensava, parecia que lhe tinham dado um forte cascudo na cabeça de ralos cabelos, sentia-se tão desorientada como se lhe tivesse acontecido uma infidelidade.
     Sobretudo estava conhecendo pela primeira vez o que os outros chamavam de paixão: estava apaixonada por Hans.

– E que é que eu faço para ter mais cabelo? – ousou perguntar porque já se sentia outra.
– Você está querendo demais. Mas está bem: lave a cabeça com sabão Aristolino, não use sabão amarelo em pedra. Esse conselho eu não cobro.

     Até isso? (explosão) bateu-lhe o coração, até mais cabelo? Esquecera Olímpico e só pensava no gringo: era sorte demais pegar homem de olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos, não havia como errar, era vasto o campo das possibilidades.

– E agora — disse a madama — você vá embora para encontrar seu maravilhoso destino. E mesmo porque tem outra freguesa esperando, demorei demais com você, meu anjinho, mas valeu a pena!

     Num súbito ímpeto (explosão) de vivo impulso Macabéa, entre feroz e desajeitada, deu um estalado beijo no rosto da madama. E sentiu de novo que sua vida já estava melhorando ali mesmo: pois era bom beijar. Quando ela era pequena, como não tinha a quem beijar, beijava a parede. Ao acariciar ela se acariciava si própria.
     Madama Carlota havia acertado tudo. Macabéa estava espantada. Só então vira que sua vida era uma miséria. Teve vontade de chorar ao ver o seu lado oposto, ela que, como disse, até então se julgava feliz.  
continua pág 79...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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Leia também:

A Hora da Estrela - Então madama Carlota

Marcel Proust - No Caminho de Swann (II - Combray, Tanto mais agradáveis foram meus passeios - o)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(o) 

continuando...

     Tanto mais agradáveis foram meus passeios naquele outono porque os dava depois de ter passado muitas horas com um livro. Quando me cansava de ler toda a manhã na sala, lançava o plaid aos ombros e saía: meu corpo, obrigado por muito tempo a conservar-se imóvel, mas que se fora carregando de animação e velocidade acumuladas, precisava logo, como um pião que se solta, despendê-las em todas as direções. Os muros das casas, a sebe de Tansonville, as árvores do bosque de Roussainville, os matagais junto de Moutjouvain recebiam golpes de guarda-chuva ou de bengala, ouviam gritos alegres, que não passavam, uns e outros, de ideias confusas que me exaltavam e ainda não haviam alcançado o repouso da plena claridade, preferindo, a um lento e penoso esclarecimento, o prazer de uma derivação mais fácil para um escape imediato. A maioria dessas pretensas traduções de nossos sentimentos não consegue mais que desembaraçar-nos deles, fazendo-os sair de nós sob uma forma indistinta que não nos ensina a conhecê-los. Quando tento avaliar o que devo a Méséglise, as humildes descobertas de que constituiu o quadro fortuito ou o necessário inspirador, lembro-me que foi por aquele outono, em um daqueles passeios, perto do talude que protege Montjouvain, que pela primeira vez me impressionou esse desacordo entre nossas impressões e sua expressão habitual. Após uma hora de chuva e de vento, contra os quais lutara animadamente, quando chegava à beira do pântano de Montjouvain, ante uma cabana coberta de telhas em que o jardineiro do sr. Vinteuil guardava seus instrumentos, o sol acabava de reaparecer, e os dourados que a chuva lavara reluziam de novo no céu, nas árvores, na parede da cabana, em seu telhado ainda úmido onde passeava uma galinha. O vento soprava horizontalmente as ervas que haviam crescido nas frinchas da parede e as penugens da galinha, que se deixavam umas e outras estirar em todo o seu comprimento, com o abandono das coisas inertes e leves. O telhado dava ao charco, que com o sol se tornara de novo espelhante, umas róseas marmorizações que eu nunca notara anteriormente. E vendo sobre as águas e na superfície da parede um pálido sorriso responder ao sorriso do céu, exclamei, em meu entusiasmo, brandindo o guarda-chuva fechado: “Vamos! Vamos! Vamos!”. Mas ao mesmo tempo senti que era meu dever não me contentar com essas palavras opacas e tratar de ver mais claro em meu encantamento.
     E foi também naquele momento — graças a um camponês que passava de cara fechada, e que ainda mais se fechou quando quase o atinjo com o guarda-chuva, e que respondeu friamente ao meu: “belo tempo para um passeio, não?” — que fiquei sabendo que as mesmas emoções não se produzem simultaneamente, em uma ordem preestabelecida, em todos os homens. Mais tarde, cada vez que uma leitura um pouco longa me pusera em disposição de conversar, o camarada a quem eu ardia por dirigir a palavra acabava justamente de entregar-se ao prazer da conversação e desejava agora que o deixassem ler em paz. Se eu acabava de pensar ternamente em meus pais, tomando as decisões mais sensatas e mais adequadas para lhes causar satisfação, haviam eles empregado o mesmo tempo em tomar conhecimento de algum pecadilho que eu já esquecera e que me censuravam severamente no momento em que eu corria a beijá-los.
     Muitas vezes, à exaltação causada pela solitude vinha unir-se outra que eu não sabia separar claramente da primeira e proveniente do desejo de ver surgir ante mim uma camponesa que eu pudesse enlaçar em meus braços. Bruscamente surgido em meio de pensamentos diversos, sem que eu tivesse tempo de o relacionar com sua causa, o prazer de que vinha acompanhado esse desejo apenas me parecia um pouco superior ao que me davam aqueles pensamentos. Emprestava então maior mérito a tudo o que naquele momento se achava em meu espírito, ao reflexo róseo do telhado, às ervas da parede, à aldeia de Roussainville que havia tanto tempo eu desejava visitar, às árvores de seu bosque, às torres de sua igreja, mercê da nova emoção que só nos apresentava mais desejáveis porque julgava que eram eles que a provocavam, e a qual parecia querer apenas impulsionar-me mais rapidamente para eles quando inflava minha vela com uma brisa poderosa, desconhecida e propícia. Mas se esse desejo de que me aparecesse uma mulher acrescentava aos encantos da natureza algo de mais excitante, os encantos da natureza, em troca, ampliavam o que poderia haver de demasiado restrito no encanto feminino. Parecia-me que a beleza das árvores era sua beleza e que a alma daqueles horizontes, da aldeia de Roussainville, dos livros que eu estava lendo, seu beijo a revelaria e como minha imaginação recobrava forças ao contato de minha sensualidade, e minha sensualidade se expandia por todos os domínios de minha imaginação, meu desejo não tinha mais limites. É que também — como acontece nesses momentos de cisma no seio da natureza, em que, suspensa a ação dos hábitos e relegadas as noções abstratas que temos das coisas, cremos então com uma profunda fé na originalidade e na vida individual do lugar onde nos achamos — a passante que meu desejo chamava afigurava-se-me não um mero exemplar desse tipo geral, a mulher, mas um produto necessário e natural daquele solo. Pois naquele tempo, tudo que não fosse eu próprio, a terra e os seres, parecia-me mais precioso, mais importante, dotado de uma existência mais real do que se apresenta aos homens feitos. E a terra e os seres, eu não os separava absolutamente. Sentia desejos de uma camponesa de Méséglise ou de Roussainville, de uma pescadora de Balbec, como sentia desejos de Méséglise e de Balbec. O prazer que elas poderiam me dar me pareceria menos verdadeiro, e deixaria de acreditar nele, se lhe modificasse arbitrariamente as condições. Conhecer em Paris uma pescadora de Balbec ou uma camponesa de Méséglise seria como receber conchas que eu não tivesse visto na praia ou alguma planta que não tivesse encontrado no bosque, seria subtrair ao prazer que me proporcionasse a mulher todos aqueles prazeres no meio dos quais a colocara minha imaginação. Mas vagar assim pelos bosques de Roussainville sem uma camponesa a quem beijar, era não conhecer o tesouro oculto daqueles bosques, sua beleza mais profunda. Aquela rapariga que eu imaginava sempre rodeada de folhagens era também como uma planta local, apenas de espécie mais elevada que as outras e cuja estrutura me permitisse sentir, muito mais de perto que as demais, o sabor profundo da terra. E com tanto maior facilidade acreditava (como acreditava que as carícias com que me revelasse esse sabor seriam de uma classe especial cujo prazer só ela poderia proporcionar-me), porquanto ainda continuaria por muito tempo nessa idade em que não abstraímos o gozo de possuir das diferentes mulheres que o oferecem, e ainda não o reduzimos a uma noção geral que desde então nos faça considerar as mulheres como instrumentos substituíveis de um prazer idêntico. Nem sequer existe, isolado, separado e formulado no espírito, como a finalidade que a gente visa ao aproximar-se de uma mulher ou como causa da prévia perturbação que se experimenta. Mal pensamos nele como em um prazer futuro; antes o consideramos como encanto dela, pois não pensamos em nós e sim em sair de nós. Obscuramente esperado, imanente e oculto, somente leva a tal paroxismo no momento em que se cumprem os outros prazeres que nos causam os amorosos olhares e beijos da que está junto de nós, em que se nos apresenta antes de tudo como um transporte de gratidão pela bondade de nossa companheira e por sua tocante predileção por nós e que medimos pelos benefícios e ventura que ela nos proporciona.
     Mas era em vão que eu implorava o torreão de Roussainville, que lhe pedia me mandasse alguma menina de sua aldeia, como ao único confidente que eu podia ter de meus primeiros desejos, quando, nos altos de nossa casa em Combray, no pequeno gabinete que cheirava a íris, só avistava sua torre no quadrado da janela entreaberta, enquanto, com as hesitações heroicas do viajante que empreende uma exploração ou do desesperado que se suicida, eu abria desfalecente em mim mesmo uma vereda desconhecida e que julgava mortal até o momento em que um rastro natural, como o de um caracol, vinha acrescentar-se às folhas da groselheira silvestre que se inclinavam até a mim. Em vão lhe suplicava agora. Em vão, abrangendo toda aquela extensão em meu campo visual, eu a drenava com meus olhares que desejariam trazer dali uma mulher. Podia ir até o pórtico de Santo André dos Campos; nunca se achava ali a camponesa que eu não teria deixado de encontrar se tivesse ido com meu avô e, portanto, impossibilitado de conversar com ela. Fixava indefinidamente o tronco de uma árvore longínqua, detrás do qual ela ia surgir e encaminhar-se para mim; o horizonte perscrutado permanecia deserto, a noite caía, era sem esperança que minha atenção ficava presa àquele solo estéril, àquela terra esgotada, como para aspirar as criaturas que pudessem ocultar; e não era mais de alegria, era de raiva que eu batia às árvores do bosque de Roussainville dentre as quais não saía nem um ente vivo, como se não passassem de árvores pintadas sobre a tela de um panorama, quando, não podendo resignar-me a voltar para casa antes de haver apertado em meus braços a mulher a quem tanto desejara, via-me, no entanto, obrigado a retomar o caminho de Combray, confessando a mim mesmo que era cada vez menos provável o acaso que a pusesse em meu caminho. Mas, e se ela ali se encontrasse, teria eu ousado falar-lhe? Parecia-me que ela haveria de considerar-me um louco; deixava de considerar compartilhados por outras criaturas, de considerar como verdadeiros fora de mim os desejos que formava durante aqueles passeios e que não se realizavam. Não se me afiguravam mais que como criações puramente subjetivas, impotentes, ilusórias, de meu temperamento. Não mais tinham ligação com a natureza, com a realidade, que desde então perdia todo encanto e todo significado e não era, para minha vida, senão um quadro convencional, como o é, para a ficção de um romance, o vagão em cujo banco o viajante o lê para matar o tempo.
     Também de uma impressão que tive em Montjouvain, alguns anos mais tarde, impressão que no momento permaneceu obscura, proveio talvez a ideia que muito depois formei a respeito do sadismo. Ver-se-á mais tarde como a lembrança dessa impressão, por motivos muito diversos, devia desempenhar importante papel em minha vida. Era por um tempo muito quente; meus pais, que deviam estar ausentes todo o dia, haviam-me dito que eu podia voltar para casa o mais tarde que quisesse e, tendo ido até o pântano de Montjouvain, onde gostava de rever os reflexos das telhas, deitara-me na sombra e adormecera entre as moitas do talude que domina a casa, ali onde esperara outrora por meu pai, em um dia em que ele fora visitar o sr. Vinteuil. Era quase noite quando despertei, quis levantar-me, mas vi a srta. Vinteuil (tanto quanto a pude reconhecer, pois não a via muito seguido em Combray, e apenas quando era ainda menina, ao passo que agora começava a fazer-se moça), que provavelmente acabava de chegar em casa, ali defronte a mim, a alguns centímetros de distância, naquela sala em que seu pai recebera o meu e de que ela fizera seu gabinete particular. A janela estava entreaberta, a lâmpada acesa e eu via todos os seus movimentos, sem que ela me enxergasse, mas, se me fosse embora, poderia fazer estalar os ramos e a moça ouviria e era capaz de pensar que eu me ocultara ali para espiá-la.
     Estava de luto fechado, pois fazia pouco que o pai morrera. Não tínhamos ido apresentar-lhe os pêsames; minha mãe não o quisera devido à única coisa que limitava nela os efeitos da bondade: o pudor; mas lamentava-a profundamente. Recordando o triste fim de vida do sr. Vinteuil, absorvido primeiro pelos cuidados de mãe e de ama que prestava à filha e depois pelos desgostos que esta lhe causara, revia minha mãe a torturada fisionomia do velho nos últimos tempos; sabia que ele renunciara para sempre a passar a limpo toda a sua obra dos últimos anos, pobres composições de um velho professor de piano, de um antigo organista de aldeia, que imaginávamos de escasso valor, mas sem desprezá-las, porque para ele valiam muito e constituíam a razão de ser de sua vida, antes que as sacrificasse à filha e que, na maioria nem sequer transcritas, retidas unicamente de memória, algumas anotadas em folhas avulsas, ilegíveis, permaneceriam ignoradas de todos; minha mãe pensava nessa outra renúncia ainda mais cruel a que o sr. Vinteuil fora constrangido; a renúncia a um porvir de felicidade honesta e respeitada para a filha; e quando evocava aquela suprema desgraça do antigo professor de piano de minhas tias, sentia uma verdadeira aflição e pensava com horror nessa outra aflição muito mais amarga que devia sentir a filha de Vinteuil, unida ao remorso de haver matado aos poucos seu pai. “Pobre do senhor Vinteuil!”, dizia minha mãe. “Viveu e morreu pela filha, sem receber sua paga. Vejamos se a recebe depois de morto, e de que forma. Só ela poderá fazê-lo.”
     Ao fundo do salão da srta. Vinteuil, havia sobre a lareira um pequeno retrato de seu pai, que ela foi buscar apressadamente no instante em que ressoou o rodar de um carro na estrada; depois se lançou sobre um canapé e puxou para junto de si uma mesinha sobre a qual colocou o retrato, como outrora o sr. Vinteuil havia posto a seu lado o trecho de música que desejava executar para meus pais. Em breve sua amiga entrou. A filha de Vinteuil acolheu-a sem se erguer, com as duas mãos enlaçadas atrás da cabeça, e afastou-se até a ponta do sofá, como para dar lugar à outra. Mas logo sentiu que parecia assim impor-lhe uma atitude que talvez lhe fosse importuna. Cuidou que a amiga talvez preferisse ficar longe dela, em uma cadeira, e considerou-se indiscreta, o que alarmou a delicadeza de seu coração; retomando todo o espaço no sofá, fechou os olhos e pôs-se a bocejar, para indicar que o desejo de dormir era a única razão por que assim se reclinara. Apesar da rude e dominadora familiaridade que tinha para com sua camarada, eu reconhecia os gestos obsequiosos e reticentes, os bruscos escrúpulos de seu pai. Em breve se ergueu, fingiu que queria fechar os postigos e que não o conseguia.

— Deixa tudo aberto, estou com calor — disse a amiga.
— É perigoso, podem ver-nos — respondeu a srta. Vinteuil.

     Mas sem dúvida adivinhou que a amiga ia pensar que ela só dissera tais palavras para provocá-la a lhe responder com outras que efetivamente desejava ouvir, mas que por discrição queria deixar-lhe a iniciativa de pronunciar. Assim, seu olhar, que eu não podia distinguir, deve ter tomado a expressão que tanto agradava a minha avó, no instante em que ela acrescentou vivamente:

— Quando digo “podem ver-nos” quero dizer “podem ver-nos ler”, pois qualquer coisa de insignificante que se faça, é incômodo pensar que possam estar a olhar-nos. 

     Por uma instintiva generosidade e involuntária polidez, calava ela as palavras premeditadas que julgara indispensáveis à plena realização de seu desejo. E a todos os momentos, no fundo de si mesma, uma virgem tímida e suplicante implorava e fazia recuar um soldado rude e dominador.

— Sim, é muito provável que nos estejam olhando agora, nestes campos tão frequentados — disse ironicamente a amiga. — E depois, que tem isso? — acrescentou, julgando que devia acompanhar com uma piscada maliciosa e terna aquelas palavras que recitou por bondade, como um texto agradável à srta. Vinteuil, e em um tom que ela se esforçava por tornar cínico. — Se nos virem, tanto melhor!

     A filha de Vinteuil estremeceu e ergueu-se. Seu coração escrupuloso e sensível ignorava que palavras deviam vir espontaneamente adaptar-se à cena que seus sentidos reclamavam. Procurava, o mais longe que podia de sua verdadeira natureza moral, a linguagem apropriada à rapariga viciosa que ela desejava ser, mas as palavras que esta pronunciaria sinceramente lhe pareciam falsas em sua boca. E o pouco que ela permitia nesse terreno era dito em um tom afetado, em que seus hábitos de timidez lhe paralisavam as veleidades de audácia, e tudo entremesclado de: “não tens frio, estás com calor, não queres ficar lendo sozinha?”.
     E afinal acabou por dizer: “A senhorita me parece estar com pensamentos bastante lúbricos esta noite”, repetindo sem dúvida uma frase que ouvira um dia da boca de sua amiga. 
     No decote de seu corpete de crepe a srta. Vinteuil sentiu um beijo súbito da amiga, soltou um gritinho, escapou-se, e as duas perseguiram-se, com as largas mangas revoluteando como asas, cacarejando e chilreando como dois pássaros enamorados. Depois a srta. Vinteuil acabou por tombar sobre o canapé, recoberta pelo corpo da amiga. Mas esta se achava de costas para a mesinha onde estava o retrato do antigo professor de piano. A srta. Vinteuil compreendeu que a amiga não o veria se não lhe chamasse a atenção, e então lhe disse como se só naquele momento houvesse reparado nele:

— Oh!, e esse retrato de meu pai, a olhar-nos! Não sei quem o teria posto em cima da mesa, já disse mil vezes que não é aí o seu lugar.

     Lembrei-me de que eram as palavras que o sr. Vinteuil dissera a meu pai, a propósito do trecho de música. Sem dúvida aquele retrato lhes servia habitualmente para profanações rituais, pois sua amiga lhe respondeu com estas palavras que deviam fazer parte de seus responsos litúrgicos:

— Deixa-o aí mesmo, ele não está mais aqui para nos aborrecer. E como não havia de se lamuriar e querer pôr-te um xale, o macaco velho, se te visse agora de janela aberta! 

     A srta. Vinteuil respondeu com palavras de suave censura: “Que é isto!? Que é isto!?”, que denotavam sua bondosa índole, não porque fossem ditadas pela indignação que lhe pudesse causar aquela maneira de se referirem a seu pai (esse era um sentimento que, sabe Deus com o auxílio de que sofismas, já se habituara evidentemente a sufocar naqueles instantes), mas porque eram como um freio que ela mesma punha, para não se mostrar egoísta, no prazer que sua amiga tentava proporcionar-lhe. E depois, aquela sorridente moderação no responder a tais blasfêmias, aquela censura hipócrita e carinhosa, talvez parecessem a sua alma franca e bondosa uma forma particularmente infame, uma forma adocicada daquela perversidade que ela procurava assimilar. Mas não pôde resistir ao atrativo do prazer que experimentaria em ser tratada com carinho por uma pessoa tão implacável para com um morto sem defesa; saltou para os joelhos da amiga e ofereceu-lhe castamente a fronte a beijar como o poderia fazer se fosse sua filha, sentindo com delícia que ambas alcançavam assim o limite da crueldade, roubando ao sr. Vinteuil, até no túmulo, sua paternidade. A amiga tomou-lhe a cabeça entre as mãos e lhe depôs um beijo sobre a fronte, com uma docilidade que lhe era facilitada pela grande afeição que dedicava à srta. Vinteuil e seu desejo de oferecer alguma distração à vida agora tão triste da pobre órfã.

— Sabes o que eu tenho vontade de fazer com essa velha carcaça? — disse ela, pegando o retrato.

     E murmurou ao ouvido da srta. Vinteuil alguma coisa que eu não pude ouvir. 

— Oh! Tu não te atreves!
— Que eu não me atrevo a cuspir em cima? Em cima disto? — disse a amiga, com proposital brutalidade.

     Não ouvi mais nada, porque a srta. Vinteuil, com um ar cansado, esquerdo, ocupado, virtuoso e triste, veio fechar os postigos e a vidraça, mas eu agora sabia, por todos os sofrimentos que o sr. Vinteuil suportara em vida por causa de sua filha, o que, após a morte, recebera em paga da parte dela.

continua na página 115...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Tanto mais agradáveis foram meus passeios - o)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

O Cortiço - XIII: À proporção que alguns locatários abandonavam

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


XIII 
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     À proporção que alguns locatários abandonavam a estalagem, muitos pretendentes surgiam disputando os cômodos desalugados. Delporto e Pompeo foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram em risco de vida. O número dos hóspedes crescia, os casulos subdividiam-se em cubículos do tamanho de sepulturas, e as mulheres iam despejando crianças com uma regularidade de gado procriador. Uma família, composta de mãe viúva e cinco filhas solteiras, das quais destas a mais velha tinha trinta anos e a mais moça quinze, veio ocupar a casa que Dona Isabel esvaziou poucos dias depois do casamento de Pombinha.
     Agora, na mesma rua, germinava outro cortiço ali perto, o “Cabeça-de-Gato”. Figurava como seu dono um português que também tinha venda, mas o legitimo proprietário era um abastado conselheiro, homem de gravata lavada, a quem não convinha, por decoro social, aparecer em semelhante gênero de especulações. E João Romão, estalando de raiva, viu que aquela nova república da miséria prometia ir adiante e ameaçava fazer-lhe à sua, perigosa concorrência. Pôs-se logo em campo, disposto à luta, e começou a perseguir o rival por todos os modos, peitando fiscais e guardas municipais, para que o não deixassem respirar um instante com multas e exigências vexatórias; enquanto pela sorrelfa plantava no espírito dos seus inquilinos um verdadeiro ódio de partido, que os incompatibilizava com a gente do “Cabeça-de-Gato”. Aquele que não estivesse disposto a isso ia direitinho para a rua, “que ali se não admitiam meias medidas a tal respeito! Ah! ou bem peixe ou bem carne! Nada de embrulho!” É inútil dizer que a parte contrária lançou mão igualmente de todos os meios para guerrear o inimigo, não tardando que entre os moradores da duas estalagens rebentasse uma tremenda rivalidade, dia a dia agravada por pequenas brigas e rezingas, em que as lavadeiras se destacavam sempre com questões de freguesia de roupa. No fim de pouco tempo os dois partidos estavam já perfeitamente determinados; os habitantes do “Cabeça-de-Gato” tomaram por alcunha o titulo do seu cortiço, e os de “São Romão”, tirando o nome do peixe que a Bertoleza mais vendia à porta da taverna, foram batizados por “Carapicus”. Quem se desse com um Carapicus não podia entreter a mais ligeira amizade com um cabeça-de-gato; mudar-se alguém de uma estalagem para outra era renegar ideias e princípios e ficava apontado a dedo; denunciar a um contrário o que se passava, fosse o que fosse, dentro do circulo oposto, era cometer traição tamanha, que os companheiros a puniam a pau. Um vendedor de peixe, que caiu na asneira de falar a um cabeça-de-gato a respeito de uma briga entre a Machona e sua filha, a das Dores, foi encontrado quase morto perto do cemitério de São João Batista. Alexandre, esse então não cochilava com os adversários: nas suas partes policiais figurava sempre o nome de um deles pelo menos, mas entre os próprios polícias havia adeptos de um e de outro partido; o urbano que entrava na venda do João Romão tinha escrúpulo de tomar qualquer coisa ao balcão da outra venda. Em meio do pátio do “Cabeça-de-Gato” arvorara-se uma bandeira amarela; os Carapicus responderam logo levantando um pavilhão vermelho. E as duas cores olhavam-se no ar como um desafio de guerra.
     A batalha era inevitável. Questão de tempo.
     Firmo, assim que se instaurara a nova estalagem, abandonou o quarto na oficina e meteu-se lá de súcia com o Porfiro, apesar da oposição de Rita, que mais depressa o deixaria a ele do que aos seus velhos camaradas de cortiço. Daí nasceu certa ponta de discórdia entre os dois amantes; as suas entrevistas tornavam-se agora mais raras e mais difíceis. A baiana, por coisa alguma desta vida, poria os pés no “Cabeça-de-Gato” e o Firmo achava-se, como nunca, incompatibilizado com os Carapicus. Para estarem juntos tinham encontros misteriosos num calojio de uma velha miserável da Rua de São João Batista, que lhe cedia a casa mediante esmolas. O capoeira fazia questão de ficar no “Cabeça-de-Gato”, porque ai se sentia resguardado contra qualquer perseguição que o seu delito motivasse; de resto, Jerônimo não estava morto e, uma vez bem curado, podia vir sobre ele com gana. No “Cabeça-de-Gato”, o Firmo conquistara rápidas simpatias e constituíra-se chefe de malta. Era querido e venerado; os companheiros tinham entusiasmo pela sua destreza e pela sua coragem; sabiam-lhe de cor a legenda rica de façanhas e vitórias. O Porfiro secundava-o sem lhe disputar a primazia, e estes dois, só por si, impunham respeito aos Carapicus, entre os quais, não obstante, havia muito boa gente para o que desse e viesse.
     Mas ao cabo de três meses, João Romão, notando que os seus interesses nada sofriam com a existência da nova estalagem e, até pelo contrário, lucravam com o progressivo movimento de povo que se ia fazendo no bairro, retornou à sua primitiva preocupação com o Miranda, única rivalidade que verdadeiramente o estimulava.
     Desde que o vizinho surgiu com o baronato, o vendeiro transformava-se por dentro e por fora a causar pasmo. Mandou fazer boas roupas e aos domingos refestelava-se de casaco branco e de meias, assentado defronte da venda, a ler jornais. Depois deu para sair a passeio, vestido de casimira, calçado e de gravata. Deixou de tosquiar o cabelo à escovinha; pôs a barba abaixo, conservando apenas o bigode, que ele agora tratava com brilhantina todas as vezes que ia ao barbeiro. Já não era o mesmo lambuzão! E não parou aí: fez-se sócio de um clube de dança e, duas noites por semana, ia aprender a dançar; começou a usar relógio e cadeia de ouro; correu uma limpeza no seu quarto de dormir, mandou soalhá-lo, forrou-o e pintou-o; comprou alguns móveis em segunda mão; arranjou um chuveiro ao lado da retrete; principiou a comer com guardanapo e a ter toalha e copos sobre a mesa; entrou a tomar vinho, não do ordinário que vendia aos trabalhadores, mas de um especial que guardava para seu gasto. Nos dias de folga atirava-se para o Passeio Público depois do jantar ou ia ao teatro São Pedro de Alcântara assistir aos espetáculos da tarde; do “Jornal do Comércio”, que era o único que ele assinava havia já três anos e tanto, passou a receber mais dois outros e a tomar fascículos de romances franceses traduzidos, que o ambicioso lia de cabo a rabo, com uma paciência de santo, na doce convicção de que se instruía.
     Admitiu mais três caixeiros; já não se prestava muito a servir pessoalmente à negralhada da vizinhança, agora até mal chegava ao balcão. E em breve o seu tipo começou a ser visto com frequência na Rua Direita, na praça do comércio e nos bancos, o chapéu alto derreado para a nuca e o guarda-chuva debaixo do braço. Principiava a meter-se em altas especulações, aceitava ações de companhias de títulos ingleses e só emprestava dinheiro com garantias de boas hipotecas.
     O Miranda tratava-o já de outro modo, tirava-lhe o chapéu, parava risonho para lhe falar quando se encontravam na rua, e às vezes trocava com ele dois dedos de palestra à porta da venda. Acabou por oferecer-lhe a casa e convidá-lo para o dia de anos da mulher, que era daí a pouco tempo. João Romão agradeceu o obséquio, desfazendo-se em demonstrações de reconhecimento, mas não foi lá. Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo; essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo; pelo contrário, à medida que ele galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais e mais escrava e rasteira. João Romão subia e ela ficava cá embaixo, abandonada como uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a viagem. Começou a cair em tristeza.
     O velho Botelho chegava-se também para o vendeiro, e ainda mais do que o próprio Miranda. O parasita não saia agora depois do almoço para a sua prosa na charutaria, nem voltava à tarde para o jantar, sem deter-se um instante à porta do vizinho ou, pelo menos, sem lhe gritar lá de dentro: “Então, seu João, isso vai ou não vai?...” E tinha sempre uma frase amigável para lhe atirar cá de fora. Em geral o taverneiro acudia a apertar-lhe a mão, de cara alegre, e propunha-lhe que bebesse alguma coisa.
     Sim, João Romão já convidava para beber alguma coisa. Mas não era à toa que o fazia, que aquele mesmo não metia prego sem estopa! Tanto assim que uma vez, em que os dois saíram à tardinha para dar um giro até à praia, Botelho, depois de falar com o costumado entusiasmo do seu belo amigo Barão e da virtuosíssima família deste, acrescentou com o olhar fito:

- Aquela pequena é que lhe estava a calhar, seu João!...
- Como? Que pequena?
- Ora morda aqui! Pensa que já não dei pelo namoro?... Maganão! - o vendeiro quis negar, mas o outro atalhou:
- É um bom partido, é! Excelente menina... tem um gênio de pomba... uma educação de princesa: até o francês sabe! Toca piano como você tem ouvido... canta o seu bocado... aprendeu desenho... muito boa mão de agulha!... e...
     
     Abaixou a voz e segredou grosso no ouvido do interlocutor:

- Ali, tudo aquilo é sólido!... Prédios e ações do banco!...
- Você tem certeza disso? Já viu?
- Já! Palavra d’honra!
  
     Calaram-se um instante.
     Botelho continuou depois:

- O Miranda é bom homem, coitado! tem lá as suas fumaças de grandeza, mas não o podemos criminar... são coisas pegadas da mulher; no entanto acho-o com boas disposições a seu respeito... e, se você souber levá-lo, apanha-lhe a filha...
- Ela talvez não queira...
- Qual o quê! Pois uma menina daquelas, criada a obedecer aos pais, sabe lá o que é não querer? Tenha você uma pessoa, de intimidade com a família; que de dentro empurre o negócio e verá se consegue ou não! Eu, por exemplo!
- Ah! se você se metesse nisso, que dúvida! Dizem que o Miranda só faz o que você quer...
- Dizem com razão.
- E você está resolvido a... ?
- A protegê-lo?... Sim, decerto: neste mundo estamos nós para servir uns aos outros!... apenas, como não sou rico...
- Ah! Isso é dos livros! Arranje-me você o negócio e não se arrependerá...
- Conforme, conforme...
- Creio que não me supõe um velhaco!...
- Pelo amor de Deus! Sou incapaz de semelhante sacrilégio!
- Então!...
- Sim, sim... em todo o caso falaremos depois, com mais vagar... Não é sangria desatada!

     E desde então, com efeito, sempre que os dois se pilhavam a sós discutiam o seu plano de ataque à filha do Miranda. Botelho queria vinte contos de réis, e com papel passado a prazo de casamento; o outro oferecia dez.

- Bom! então não temos nada feito... resumiu o velho. Trate você do negócio só por si; mas já lhe vou prevenindo de que não conte comigo absolutamente... Compreende?
- Quer dizer que me fará guerra...
- Valha-me Deus, criatura! não faço guerra a ninguém! guerra está você a fazer-me, que não me quer deixar comer uma migalha da bela fatia que lhe vou meter no papo!... O Miranda hoje tem para mais de mil contos de réis! Agora, fique sabendo que a coisa não é assim também tão fácil, como lhe parece talvez...
- Paciência!
- O Barão há de sonhar com um genro de certa ordem!... Ai algum deputado... algum homem que faça figura na política aqui da terra!
- Não! melhor seria um príncipe!...
- E mesmo a pequena tem um doutorzinho de boa família, que lhe ronda muito a porta... E ela, ao que parece, não lhe faz má cara...
- Ah! nesse caso é deixá-los lá arranjar a vida!
- É melhor, é! Creio até que com ele será mais fácil qualquer transação...
- Então não falemos mais nisso! Está acabado!
- Pois não falemos!

     Mas no dia seguinte voltaram à questão:

- Homem! disse o vendeiro; para decidir, dou-lhe quinze!
- Vinte!
- Vinte, não!
- Por menos não me serve!
- E eu vinte não dou!
- Nem ninguém o obriga... Adeuzinho!
- Até mais ver.

     Quando se encontraram de novo, João Romão riu-se para o outro, sem dizer palavra. O Botelho, em resposta, fez um gesto de quem não quer intrometer-se com o que não é da sua conta.

- Você é o diabo!... faceteou aquele, dando-lhe no ombro uma palmada amigável. Então não há meio de chegarmos a um acordo?...
- Vinte!
- E, caso esteja eu pelos vinte, posso contar que...?
- Caso o meu nobre amigo se decida pelos vinte, receberá do Barão um chamado para lá ir jantar ao primeiro domingo; aceita o convite, vai, e encontrará o terreno preparado.
- Pois seja lá como você quer! mais vale um gosto do que quatro vinténs!

     O Botelho não faltou ao prometido: dias depois do contrato selado e assinado, João Romão recebeu uma carta do vizinho, solicitando-lhe a fineza de ir jantar com ele mais a família.
     Ah! que revolução não se feriu no espírito do vendeiro! passou dias a estudar aquela visita; ensaiou o que tinha que dizer, conversando sozinho defronte do espelho do seu lavatório; afinal, no dia marcado, banhou-se em varias águas, areou os dentes até fazê-los bem limpos, perfumou-se todo dos pés à cabeça, escanhoou-se com esmero, aparou e bruniu as unhas, vestiu-se de roupa nova em folha, e às quatro e meia da tarde apresentou-se, risonho e cheio de timidez, no espelhado e pretensioso salão de Sua Excelência.
     Aos primeiros passos que dera sobre o tapete, onde seus grandes pés, afeitos por toda vida à independência do chinelo e do tamanco, se destacavam como um par de tartarugas, sentiu logo o suor dos grandes apuros inundar-lhe o corpo e correr-lhe em bagada pela fronte e pelo pescoço, nem que se o desgraçado acabasse de vencer naquele instante uma légua de carreira ao sol. As suas mãos vermelhas e redondas gotejavam, e ele não sabia o que fazer delas, depois que o Barão, muito solicito, lhe tomou o chapéu e o guarda-chuva.
     Arrependia-se já de ter lá ido.

- Fique a gosto, homem! bradou-lhe o dono da casa. Se tem calor venha antes aqui para a janela. Não faça cerimônia! Ó Leonor! traz o vermute! Ou o amigo prefere tomar um copinho de cerveja?

     João Romão aceitava tudo, com sorrisos de acanhamento, sem animo de arriscar palavra. A cerveja fê-lo suar ainda mais e, quando apareceram na sala Dona Estela e a filha, o pobre-diabo chegava a causar dó de tão atrapalhado que se via. Por duas vezes escorregou, e numa delas foi apoiar-se a uma cadeira que tinha rodízios; a cadeira afastou-se e ele quase vai ao chão.
     Zulmira riu-se, mas disfarçou logo a sua hilaridade pondo-se a conversar com a mãe em voz baixa. Agora, refeita nos seus dezessete anos, não parecia tão anêmica e deslavada; vieram-lhe os seios e engrossara-lhe o quadril. Estava melhor assim. Dona Estela, coitada! é que se precipitava, a passos de granadeiro, para a velhice, a despeito da resistência com que se rendia; tinha já dois dentes postiços, pintava o cabelo, e dos cantos da boca duas rugas serpenteavam-lhe pelo queixo abaixo, desfazendo-lhe a primitiva graça maliciosa dos lábios; ainda assim, porém, conservava o pescoço branco, liso e grosso, e os seus braços não desmereciam dos antigos créditos.
     À mesa, a visita comeu tão pouco e tão pouco bebeu, que os donos da casa a censuraram jovialmente, fingindo aceitar o fato como prova segura de que o jantar não prestava; o obsequiado pedia por amor de Deus que não acreditassem em tal e jurava sob palavra de honra que se sentia satisfeito e que nunca outra comida lhe soubera tão bem. Botelho lá estava, ao lado de um velhote fazendeiro, que por essa ocasião hospedava-se com o Miranda. Henrique, aprovado no seu primeiro ano de Medicina, fora visitar a família; em Minas. Isaura e Leonor serviam aos comensais, rindo ambas à socapa por verem ali o João da venda engravatado e com piegas de visita. 
     Depois do jantar apareceu uma família; conhecida, trazendo um rancho de moças; vieram também alguns rapazes; formaram-se jogos de prendas, e João Romão, pela primeira vez em sua vida, viu-se metido em tais funduras. Não se saiu mal todavia.
     O chá das dez e meia correu sem novidade; e, quando enfim o neófito se pilhou na rua, respirou com independência, remexendo o pescoço dentro do colarinho engomado e soprando com alívio. Uma alegria de vitória transbordava-lhe do coração e fazia-o feliz nesse momento. Bebeu o ar fresco da noite com uma volúpia nova para ele e, muito satisfeito consigo mesmo, entrou em casa e recolheuse, rejubilando com a ideia de que ia descalçar aquelas botas, desfazer-se de toda aquela roupa e atirar-se à cama, para pensar mais à vontade no seu futuro, cujos horizontes se rasgavam agora iluminados de esperança.
     Mas a bolha do seu desvanecimento engelhou logo à vista de Bertoleza que, estendida na cama, roncava, de papo para o ar, com a boca aberta, a camisa soerguida sobre o ventre, deixando ver o negrume das pernas gordas e lustrosas.
     E tinha de estirar-se ali, ao lado daquela preta fedorenta a cozinha e bodum de peixe! Pois, tão cheiroso e radiante como se sentia, havia de pôr a cabeça naquele mesmo travesseiro sujo em que se enterrava a hedionda carapinha da crioula?...

- Ai! ai! gemeu o vendeiro, resignando-se.

     E despiu-se.
     Uma vez deitado, sem animo de afastar-se da beira da cama, para não se encostar com a amiga, surgiu-lhe nítida ao espírito a compreensão do estorvo que o diabo daquela negra seria para o seu casamento.
     E ele que até aí não pensara nisso!... Ora o demo!
     Não pôde dormir; pôs-se a malucar:
     Ainda bem que não tinham filhos! Abençoadas drogas que a Bruxa dera à Bertoleza nas duas vezes em que esta se sentiu grávida! Mas, afinal, de que modo se veria livre daquele trambolho? E não se ter lembrado disso há mais tempo!... parecia incrível!
     João Romão, com efeito, tão ligado vivera com a crioula e tanto se habituara a vê-la ao seu lado, que nos seus devaneios de ambição pensou em tudo, menos nela.
     E agora?
     E malucou no caso até às duas da madrugada, sem achar furo. Só no dia seguinte, a contemplá-la de cócoras à porta da venda, abrindo e destripando peixe, foi que, por associação de idéias, lhe acudiu esta hipótese:

- E se ela morresse?...

Continua página 79...
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O Cortiço - XIII: À proporção que alguns locatários abandonavam
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   Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
   Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
   Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
   A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
   Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
   Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.