sexta-feira, 1 de novembro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Nova fase da luta: II - Canudos

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1

Nova fase da luta 


II - 

Canudos

     Canudos tinha naquela ocasião — foram uma a uma contadas depois — 5.200 vivendas; e como estas, cobertos de tetos de argila vermelha, mesmo nos pontos em que se erigiam isoladas, mal se destacavam, em relevo, no solo, acontecia que as vistas, acomodadas em princípio ao acervo de pardieiros compactos em torno da praça, se iludiam, avolumando-a desproporcionadamente. A perspectiva era empolgante. Agarrava-a o tom misterioso do lugar. Repugnava admitir-se que houvesse ali embaixo tantas vidas. A observação mais afincada, quando transitório armistício a permitia, não lograva distinguir um vulto único, a sombra fugitiva de um homem; e não se ouvia o rumor mais fugaz. Lembrava uma necrópole antiga ou então, confundidos todos aqueles tetos e paredes no mesmo esboroamento — uma cata enterroada e enorme, roída de erosões, abrindo-se em voçorocas e pregueando-se em algares.
     Que o observador, porém, não avultasse demais sobre o parapeito: as balas ressaltando a súbitas, de baixo, revelavam-lhe, de pronto, a população entocada. Bastava que um disparo qualquer, a qualquer hora, atroasse o alto do morro para que dali refluísse, inevitável, o revide imediato. Porque os jagunços, se não tinham mais a iniciativa dos ataques, replicavam com o vigor antigo. Exauriam-se sem perder o aprumo, timbrando no disfarçar quaisquer sintomas de enfraquecimento. Compreendia-se, no entanto, que este era completo. Objetivavam-no os próprios escombros em que se entaliscavam, ocultos. Além disso, lá não estava apenas uma guarnição de valentes incorrigíveis. Havia mulheres e crianças sobre que rolavam durante três meses massas de ferros e de chamas, e elas punham muitas vezes no fragor das refregas a nota comovedora do pranto.
     Dias antes um schrapnel arrojado da Favela, e que passara beirando as cimalhas da igreja nova, arrebentara dentro do casario anexo à latada das orações. E dali ascendera imediatamente uma réplica cruel perturbando os artilheiros do coronel Olímpio: um longo e indefinível choro; assonância dolorosíssima de clamores angustiosos, fazendo que o canhoneio cessasse à voz austera e comovida daquele comandante...
     Assim, duplamente bloqueados, entre milhares de soldados e milhares de mulheres — entre lamentações e bramidos, entre lágrimas e balas — os rebeldes se renderiam de um momento para outro. Era fatal. A segurança do pleito já dera mesmo ensanchas a grandes temeridades. Um sargento do 5.° de Artilharia por duas vezes se aventurou, à noite, a atravessar todo o largo, penetrando no templo em ruínas, atirando lá dentro duas bombas de dinamite, que não explodiram. Um alferes do 25.°, dias depois, copiando-lhe o arrojo, lançara fogo aos restos da igreja velha, que ardera toda.
     De sorte que os lutadores vindo noviciar na pendência desigual, cientes destas coisas, recaíam na preocupação primitiva: que o inimigo in extremis tivesse ainda fôlego para lhes facultar desdobrassem o destemor e a força. A musculatura de ferro das brigadas novas ansiava a medir-se com o espernear da insurreição. Os que ali estavam havia tantos meses tinham glórias demais. Fartos, impando de triunfos e agora, mercê dos comboios diários, com a subsistência garantida, julgavam inútil despender mais vidas para que se apressasse a rendição inevitável. Quedavam numa mornidão irritante.
     O acampamento, afora os intervalos, que se tornavam maiores, dos assaltos, tinha a placabilidade de uma pequena povoação bem policiada. Nada que recordasse a campanha feroz. Na sede da comissão de engenharia o general Artur Oscar, com a atração irresistível de um temperamento franco e jovial, centralizava longas palestras. Discorria-se sobre assuntos vários de todo opostos à guerra; casos felizes d'antanho, anedotas hilares, ou então alentadas discussões sobre política geral. Enquanto observadores tenazes, num invejável apego à ciência, registravam, hora por hora, pressões e temperaturas; inscreviam, invariável, um zero na nebulosidade do céu; e consultavam muito graves o higrômetro. Na farmácia militar, estudantes em férias forçadas riam ruidosamente e recitavam versos; e pelas paredes ralas de todas as choupanas ridentes, de folhagens pintalgadas de flores murchas de juazeiros, transudavam vezes e risos dos que lá dentro não tinham temores, que lhes agourentassem as horas ligeiras e tranquilas. As balas que passavam, raras, repelidas pelas cristas dos cerros em trajetórias altas, eram inofensivas. Ninguém as percebia mais. Eram, indicava-o a precisão rítmica com que estalavam ou esfuziavam nos ares, lançadas por atiradores certos , que em Canudos parecia estarem apostados a lembrar os sitiantes que o sertanejo velava. Mas não impressionavam, embora algumas, em trajetórias baixas, batessem no pano das barracas, em vergastadas rijas; como não impressionavam mais os tiroteios fortes, que ainda surgiam, às vezes, inopinadamente, à noite.
     A vida normalizara-se naquela anormalidade. Despontavam peripécias extravagantes. Os soldados da linha negra, na tranqueira avançada do cerco, travavam, às vezes, noite velha, longas conversas com os jagunços. O interlocutor da nossa banda subia à berma da trincheira e, voltado para a praça, fazia ao acaso um reclamo qualquer, enunciando um nome vulgar, o primeiro que lhe acudia ao intento, com voz amiga e lhana, como se apelidasse algum velho camarada; e invariavelmente, do âmago da casaria ou, de mais perto, de dentro dos entulhos das igrejas, lhe respondiam logo, com a mesma tonalidade mansa, dolorosamente irônica. Entabulava-se o colóquio original através das sombras, num reciprocar de informações sobre tudo, do nome de batismo, ao lugar do nascimento, à família e às condições da vida. Não raro a palestra singular derivava a coisas escabrosamente jocosas e pelas linhas próximas, no escuro, ia rolando um cascalhar de risos abafados. O diálogo delongava-se até apontar a primeira divergência de opiniões. Salteavam-no, então, de lado a lado, meia dúzia de convícios ríspidos, num calão enérgico. E logo depois um ponto final — a bala...
     Os soldados do 5.° de Polícia, malgrado o ilusório abrigo dos espaldões de terra, que os acobertavam, matavam o tempo em descantes mitigando saudades dos rincões do S. Francisco. Se a fuzilaria apertava, pulavam de arremesso aos planos de fogo; batiam-se como demônios, terrivelmente, freneticamente, disparando as carabinas; e tendo nas bocas, ressoantes, cadenciadas a estampidos, as rimas das trovas prediletas. Baqueavam, alguns, cantando; e aplacada a refrega volviam ao folguedo sertanejo, ao toar langoroso das tiranas, aos "rasgados" nos machetes, como se fosse aquilo uma rancharia grande de tropeiros felizes, sesteando.


O charlatanismo da coragem

     Toda a gente se adaptara à situação. O espetáculo diário da morte dera-lhe a despreocupação da vida. Os antigos lutadores andavam por fim pelo acampamento inteiro, da extrema direita à extrema esquerda, sem as primitivas cautelas. Ao chegarem aos altos expostos mal estugavam o passo ante os projetis, que lhes caíam logo à roda, batendo, ríspidos, no chão. Riam-se dos recém-vindos inexpertos, que transpunham os pontos enfiados, retransidos de sustos, correndo encolhidos, quase de cócoras, num agachamento medonhamente cômico; ou que não refreavam sobressaltos ante a bala que esfuziava perto, riscando um assovio suavíssimo nos ares, como um psiu insidiosamente acariciador da morte; ou que não tolhiam interjeições vivas ante incidentes triviais — dois, três ou quatro moribundos, diariamente removidos dos pontos avançados.
     Alguns estadeavam o charlatanismo da coragem. Um esnobismo lúgubre. Fardados — vivos dos galões irradiantes ao sol, botões das fardas rebrilhando — quedavam numa aberta qualquer livremente devassada ou aprumavam-se, longe, no cabeço desabrigado de um cerro distante dois quilômetros do arraial, para avaliarem o rigor da mira dos jagunços em alcance máximo. Calejara-os a luta. Narravam aos novos companheiros, insistindo muito nos pormenores dramáticos, as provações sofridas. Os episódios sombrios da Favela com o seu cortejo temeroso de combates e agruras. Os longos dias de privações que vitimaram os próprios oficiais, um alferes, por exemplo, morrendo embuchado, ao desjejuar com punhados de farinha após três dias de fome. As lides afanosas das caçadas aos cabritos ariscos ou das colheitas de frutos avelados nos arbustos mortos. Todos os incidentes. Todas as minúcias. E concluíam que o que restava fazer era pouco — um magro respigar no rebotalho da seara guerreira inteiramente ceifada — porque o antagonista desairado e frágil estertorava agonizando. Aquilo era agora um passatempo ruidoso, e nada mais.
     A divisão auxiliar, porém, não podia ater-se a papel tão secundário: fazer trinta léguas de sertão, apenas para contemplar — espectadora inofensiva e armada dos pés à cabeça — o perdimento do arraial cedendo a pouco e pouco àquele estrangulamento vagaroso, sem a movimentação febril e convulsiva de uma batalha...

continua na página 316...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Os Bruzundangas - Capítulo XI: Um Ministro

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.

Capítulo XI

Um Ministro

     ESTAS “notas” sobre a Bruzundanga ameaçam não acabar mais. Temo, ao escrevê-las tão longas como as Histórias de Heródoto, não virem elas, apesar disso, merecer a imortalidade da obra do viajante grego.
     Contudo, se a posteridade não encontrar nelas algum ensinamento, e as desprezar, os contemporâneos do meu país podem achar nestas rápidas narrações de cousas de nação tão remota, moldes, receitas e meios para esbodegar de vez o Brasil.
     Esbocei em um capítulo antecedente o tipo de mandachuva da Bruzundanga; agora, vou ver se debuxo o de um ministro daquele país.
     A Bruzundanga, como o Brasil, é um país essencialmente agrícola; e, como o Brasil, pode-se dizer que não tem agricultura.
     O regime de propriedade agrícola lá, regime de latifúndios com toques feudais, faz que o trabalhador agrícola seja um pária, quase sempre errante de fazenda em fazenda, donde é expulso por dá cá aquela palha, sem garantias de espécie alguma — situação mais agravada ainda pela sua ignorância, pela natureza das culturas, pela politicagem roceira e pela incapacidade e cupidez dos proprietários.
     Estes, em geral, são completamente inábeis para dirigir qualquer cousa, indignos da função que a obscura marcha das cousas depositou em suas mãos. Pouco instruídos, apesar de formados, nisto ou naquilo, e sem iniciativa de qualquer natureza, despidos de qualquer sentimento de nobreza e generosidade para com os seus inferiores, mais ávidos de riqueza que o mais feroz taverneiro, pimpãos e arrogantes, as suas fazendas ou usinas são governadas por eles, quando o são, com a dureza e os processos violentos de uma antiga fazenda brasileira de escravos.
     Todos eles são políticos, senão de destaque, ao menos com influência nos lugares em que têm as suas fazendas agrícolas; e, apoiados na política, fazem o que querem, são senhores de baraço e cutelo, eles ou os seus prepostos.
     O pária agrícola (chamam lá colono ou caboclo), quando se estabelece nas suas propriedades, tem todas as promessas e todas as garantias verbais. Constrói o seu rancho, que é uma cabana de taipa coberta com o que nós chamamos sapê, e começa a trabalhar para o barão, desta ou daquela maneira. Não me alongo mais sobre a vida deles, porque pouco vivi na roça da Bruzundanga; mas posso asseverar que o trabalhador agrícola daquele país — esteja o café em alta, esteja em baixa, suba o açúcar, desça o açúcar — há trinta anos ganha o mesmo salário, isto é, dez tônios por dia, a seco, o que quer dizer, na nossa moeda, mil quinhentos e dous mil-réis, sem alimentação.
     Todos os salários têm subido na Bruzundanga, menos os dos trabalha- dores agrícolas. A parte povoada e cultivada do país tem já uma razoável população e talvez suficiente para as suas necessidades, mas, à vista do pouco lucro que os trabalhadores agrícolas tiram do seu suor, em breve deixam-se cair em marasmo, em desânimo, ou vêm a morrer de miséria nas cidades, onde se sentem mais garantidos contra o arbítrio dos fazendeiros e seus prepostos.
     Como os grandes agricultores e seus parentes são políticos, e deputados, e senadores, e ministros, logo que sentem o êxodo dos naturais, começam a berrar que há falta de braços. Publicam uns fascículos desonestamente otimistas, onde há as maiores hipérboles laudatórias ao clima e à fertilidade da Bruzundanga e atraem emigrantes incautos.
     Os primeiros que chegam com aquele fervor de quem “queimou os seus navios”, trabalham vigorosamente e abarrotam de dinheiro os régulos das feitorias; mas já seus filhos não são assim. Logo se enchem do mesmo desânimo que os seus patrícios mais antigos, na terra, e começam a cair naquele marasmo, naquela apatia, naquela tristeza, que se evola, com um grande apelo à embriaguez sexual, das cantigas populares do país e cobre a roça da Bruzundanga de um sudário impalpável.
     A manobra dos fazendeiros e outros agricultores é mudar, de quando em quando, a nacionalidade dos emigrantes que vão buscar. Assim, eles conseguem manter o fogo sagrado e ter trabalhadores abnegados.
     Tudo isto se dá porque o fazendeiro ou grande agricultor da Bruzundanga quer ter da sua cultura lucros imensos que lhe proporcionem uma vida de fausto, a ele, aos filhos que estudam para doutor, às filhas para casarem com a nobreza do país. O crédito agrícola é, por isso, até prejudicial à lavoura da paradoxal república.
     Em geral, vivem fora das propriedades, nas grandes cidades, sob o pretexto de educarem as filhas e os filhos, mas com o secreto intuito de arranjar bons partidos matrimoniais para as meninas.
     Foi entre semelhantes morubixabas que certo mandachuva escolheu um seu ministro da Agricultura. Remontemos as origens desse cacique do açúcar, os piores da Bruzundanga, pois lidam em geral com os naturais do pais que não têm a quem se queixar. Na província das Canas, houvera um turumbamba mais ou menos oficialmente protegido por um manda-chuva, motivo esse que derrubou a oligarquia da família dos Cravhos. Um usineiro muito rico da mesma província, Phrancisco Novilho Ben Kosta, mais conhecido por Chico Caiana, tinha adiantado dinheiro e assoldadado gente para que o general Tupinambá tomasse o lugar do soba-mor Cravho Ben Mathos. O general vitorioso ficou muito agradecido ao Chico, e prometeu dar-lhe uma posição de destaque na política.
     Chico era o tipo do grande agricultor da Bruzundanga: nada entendia de agricultura, mesmo daquela que dizia exercer.
     As canas que moía nos seus engenhos, eram plantadas por outros, a quem ele impunha o preço do carro como bem entendia; e, no que toca à moagem e preparo do açúcar, aí já de indústria, ele nada ou pouco conhecia.
     Apesar de bacharel em direito, mal lia os jornais e o seu forte, em aritmética, era a conta de juros, de cabeça. A sua usina era de fato dirigida por um francês boêmio, Ormesson, a quem chamavam de doutor, apesar de ter ele unicamente um simples curso do Conservatoire des Arts et Métiers, de Paris.
     Charles Ormesson, o tal francês, com o ser prático e hábil no ofício, era um extravagante incorrigível; e, como tal, pouco exigente de dinheiro e facilmente explorável. Bebia desregradamente e fazia do feroz doutor Chico Novilho gato e sapato. O doutor Novilho não o despedia, apesar de seus pruridos disciplinadores até à tirania, por sordícia. Caiana nada entendia daqueles mistérios de fazer da cana, açúcar; e, se fosse mexer nos aparelhos, nas turbinas, dosar o caldo, etc., etc., a cousa era capaz de explodir como pólvora. Acrescia mais ainda que ele conseguia pagar a Ormesson o que bem entendia; e, se quisesse substituí-lo, o outro talvez custasse mais caro. Aturava o francês e explorava-o. Conservando Ormesson, reservava o seu autoritarismo para os outros pobres-diabos de empregados subalternos, colonos e mais gente sob o seu guante.
     Toda a manhã, em tempo de safra, inteiramente de branco, montado no “Quitute”, um cavalo ruço-malhado, Caiana corria os canaviais; e, se se encontrava com um comboio de canas, nas usineiras linhas Decauville, olhava a pequena locomotiva e sempre se lembrava de admoestar o foguista-maquinista:

— Olhe o manômetro que não está limpo.

     Eis aí a sua agricultura, de que veio tirá-lo o braço forte do general Tupinambá. Vejamos como. Ascendendo à governança da província das Canas, Tupinambá tratou logo de eleger senador da Bruzundanga o seu forte esteio eleitoral, o doutor Chico Caiana. Arranjaram as atas e mandaram-nas, e mais ele, para a capital do país.
     Quando saltou, era um gozo ver o Chico Caiana atravessar as ruas com um ostentoso chapéu Panamá, terno de linho branco, botinas inteiriças de pelica amarela e açoiteira pendente do pulso direito. Olhava tudo alvarmente; e, de quando em quando, ficava surpreendido de que ninguém o conhecesse. O doutor Chico Caiana, da usina do Cambambu! Não conhecem? Que gente fútil!
     O senado não o quis reconhecer; porém, mandachuva, que tinha a palavra empenhada com Tupinambá, arranjou as cousas. Determinou que o ministro da Guerra fosse estudar na Europa o fabrico dos mais modernos medicamentos alemães; transferiu o ministro da Agricultura para a pasta da Guerra e nomeou Caiana para aquela outra.
     Tomando posse, o famoso e prático usineiro imediatamente teve uma grande admiração.

— Onde está aqui agricultura?... Estes papéis... Isto não é prático!... Quero cousas práticas!... Canaviais... Engenhos... Qual! Isto não é prático! Vou fazer uma reforma!

     Mandou chamar Ormesson para ajudá-lo e, nesse ínterim, andou às cristas com os seus subalternos. Vinha o chefe da Contabilidade e ele gritava:

— Qual verba 29, letra A! Isto é uma trapalhada! Quero cousas práticas! Vou chamar o Félix, o meu guarda-livros, lá do Cambambu, a minha usina. Conhece?

     O inspetor do serviço de veterinária vinha pedir-lhe autorização para instalar um laboratório e Caiana berrava:

— Qual laboratório! Qual nada! Tudo isto é pomada! Vou mandar chamar o Nicodemo. Conhece? Pois trata toda a espécie de moléstias de animais com sangria ou óleo de andaiaçu. Quero cousas práticas! Práticas, está ouvindo?

     Tendo chegado o francês e o guarda-livros, ele recomendou ao primeiro:

— Ormesson, vê como havemos de fazer isto aqui ser mesmo de agricultura. Quero cousa prática! Hein? Vê lá, se vais beber! Hein?

     Ao guarda-livros, ele disse:

— Tome conta dessas cousas de papéis aí, que não pesco nada disso.

     A Nicodemos, nada o doutor Chico recomendou, porque o alveitar não quis deixar as Canas.
     O francês não bebeu e, dias depois, trouxe o projeto de transformar a chácara da secretaria em campo agrícola.

— Amendoim! — exclamou o ministro.—Não dá nada! Se fosse cana... “Mindobi”, só para preta velha vender torrado...

     Ele não conhecia, não admitia outra cultura que não fosse a da cana-de-açúcar. Ormesson convenceu-o e o ministro determinou o plantio aconselhado. Um dos diretores pediu autorização para admitir trabalhadores.

— Trabalhadores! Ponha lá os escriturários, esses escreventes todos...

— Mas...

— Não tem mas, não tem nada! Quem não quiser, deixe o lugar, que eu arranjo outros mais baratos.

     Não houve remédio senão os oficiais da sua Secretaria de Estado irem puxar o rabo da enxada.
     Houve, no ano seguinte, uma complicação internacional e o açúcar começou a ser procurado. Chico Caiana não se importou mais com as cousas do ministério e aproveitou a posição para ganhar dinheiro. Durante muito tempo, o mandachuva não o viu. O guarda-livros era quem lhe levava os atos necessitados da assinatura presidencial.
     Um dia o chefe do governo perguntou ao auxiliar do grande agricultor:

— Onde está o doutor Phrancisco Novilha?

— Está ocupado com cousas práticas.

Os Bruzundangas - Capítulo XI: Um Ministro
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Homem de Espírito (XXXIV)

 Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XXXIV

UM HOMEM DE ESPÍRITO


Andando a cavalo, o governador dizia: por que não serei ministro, 
presidente do conselho, duque? Eis como faria a guerra... Desse modo, 
poria os inovadores na cadeia...

LE GLOBE 


     NENHUM ARGUMENTO CONSEGUE destruir a força de dez anos de sonhos agradáveis. O marquês não achava razoável zangar-se, mas não podia decidir-se a perdoar. Se esse Julien pudesse morrer acidentalmente, pensava às vezes... Assim essa imaginação entristecida encontrava algum alívio perseguindo as quimeras mais absurdas. Elas barravam a influência dos sensatos argumentos do abade Pirard. Passou-se um mês sem que a negociação desse um passo. 
     Nesse assunto de família, como nos da política, o marquês tinha ideias brilhantes que o entusiasmavam durante três dias. Um plano de conduta não lhe agradava, então, por estar apoiado em bons raciocínios; para ele, os raciocínio só tinham graça na medida em que se apoiassem em seu plano favorito. Durante três dias ele buscava, com o ardor e o entusiasmo de um poeta, levar as coisas a uma certa posição; no dia seguinte não pensava mais nisso.
     A princípio, Julien ficou desconcertado com a lentidão do marquês; mas, depois de algumas semanas, começou a adivinhar que o sr. de La Mole não tinha, nesse assunto, nenhum plano traçado.
     A sra. de La Mole e toda a casa acreditavam que Julien viajava pelo interior, cuidando da administração das terras; ele estava escondido no presbitério do abade Pirard e via Mathilde quase diariamente; ela, toda manhã, passava uma hora com o pai, mas às vezes ficavam semanas inteiras sem falar do assunto que ocupava todos os seus pensamentos.

– Não quero saber onde está esse homem, disse-lhe um dia o marquês; entregue-lhe esta carta. Mathilde leu:

“As terras do Languedoc rendem 20.600 francos. Dou 10.600 francos à minha filha e 10.000 francos ao sr. Julien Sorel. Também dou as terras, obviamente. Diga ao notário para preparar duas atas de doação separadas e trazê-las amanhã; depois disso, mais nenhuma relação entre nós. Ah! Senhor, eu merecia tudo isso? O marquês de La Mole.”

– Agradeço-lhe muito, disse Mathilde alegremente. Vamos morar no castelo d’Aiguillon, entre Agen e Marmande. Dizem que é uma região tão bela quanto a Itália. 

     Essa doação surpreendeu extremamente Julien. Ele não era mais o homem severo e frio que conhecemos. O destino de seu filho absorvia antecipadamente todos os seus pensamentos. Essa fortuna imprevista e bastante considerável para um homem tão pobre fez dele um ambicioso. Já se via, juntando os recursos dele e da mulher, com 36.000 libras de renda. Quanto a Mathilde, todos os seus sentimentos estavam absorvidos na adoração pelo marido, pois é assim que seu orgulho chamava sempre Julien. Sua grande e única ambição é que o casamento fosse reconhecido. Passava o tempo a exagerar a grande prudência que tivera ao ligar seu destino ao de um homem superior. O mérito pessoal estava em moda, na sua mente.
     A ausência quase contínua, a multiplicidade dos afazeres, o pouco tempo que tinham para falar de amor vieram completar o efeito salutar da sábia política inventada por Julien.
     Mathilde acabou por impacientar-se de ver tão pouco o homem que ela conseguira amar realmente. Num momento de irritação, escreveu ao pai, começando a carta como Otelo:

“Que eu tenha preferido Julien aos prazeres que a sociedade oferecia à filha do sr. marquês de La Mole, minha escolha o prova suficientemente. Esses prazeres de consideração e de pequenas vaidades são nulos para mim. Eis que há seis semanas vivo separada de meu marido. É o bastante para testemunhar ao senhor meu respeito. Na próxima quinta-feira deixarei a casa paterna. Seus benefícios nos enriqueceram. Ninguém conhece meu segredo a não ser o respeitável abade Pirard. Irei à casa dele; ele nos casará e, uma hora depois da cerimônia, estaremos a caminho do Languedoc, e só reapareceremos em Paris por ordem sua. Mas o que me traspassa o coração é que tudo isso fará circular histórias picantes contra mim, contra o senhor. Os epigramas de um público tolo não poderão levar nosso excelente Norbert a lançar provocações a Julien? Sei que nessas circunstâncias eu não teria o menor domínio sobre ele, ressurgiria em sua alma o plebeu revoltado. Conjuro-o de joelhos, ó meu pai! Venha assistir ao meu casamento, na igreja do sr. Pirard, na próxima quinta-feira. O picante das histórias maldosas será suavizado, e a vida de seu filho único e a de meu marido estarão asseguradas” etc. etc.

     Essa carta lançou a alma do marquês num estranho embaraço. Era preciso então finalmente tomar um partido. Todos os pequenos hábitos, todos os amigos vulgares haviam perdido sua influência.
     Nessa estranha circunstância, os grandes traços do caráter, impressos pelos acontecimentos da juventude, readquiriram toda a sua força. Os infortúnios da emigração haviam feito dele um homem de imaginação. Depois de ter usufruído durante dois anos de uma fortuna imensa e de todas as distinções da corte, 1790 lançara-o nas terríveis misérias da emigração. Essa dura escola transformou uma alma de vinte e dois anos. No fundo, ele estava provisoriamente instalado em meio a suas riquezas atuais, em vez de ser dominado por elas. Mas a mesma imaginação que lhe preservara a alma da gangrena do ouro, lançara-o na louca paixão de ver a filha ostentar um belo título.
     Durante as seis semanas que acabavam de transcorrer, em alguns momentos o marquês, impelido por um capricho, queria enriquecer Julien; a pobreza parecia-lhe ignóbil, desonrosa para ele, sr. de La Mole, impossível no esposo da filha; e dava-lhe o dinheiro. No dia seguinte, tomando sua imaginação um outro curso, parecia-lhe que Julien ouviria a linguagem muda dessa generosidade financeira, mudaria de nome, exilar-se-ia na América, escreveria a Mathilde que estava morto para ela. O sr. de La Mole supunha essa carta escrita e acompanhava seu efeito sobre o caráter da filha.
     No dia em que foi tirado desses devaneios tão juvenis pela carta real de Mathilde, depois de muito pensar em matar Julien ou em fazê-lo sumir, ele imaginava construir-lhe uma brilhante fortuna. Fazia-o tomar o nome de uma de suas terras; e por que não lhe transmitiria seu pariato? O duque de Chaulnes, seu sogro, falara-lhe várias vezes, depois que o filho único fora morto na Espanha, do desejo de transmitir seu título a Norbert...
     Não se pode negar a Julien uma singular aptidão aos negócios, ousadia e até mesmo brilhantismo, pensava o marquês... Mas no fundo desse caráter existe algo de assustador. É a impressão que ele causa em todo o mundo, portanto deve haver algo de real (quanto maior a dificuldade de perceber esse ponto real, mais ele assustava a alma imaginativa do velho marquês).
     Minha filha dizia-me isso muito habilmente, outro dia (numa carta suprimida): “Julien não se filiou a nenhum salão, a nenhum grupo”. Ele não conta com nenhum apoio contra mim, não tem o menor recurso se o abandono... Mas será isso ignorância do estado atual da sociedade?... Duas ou três vezes eu lhe disse: Não há candidatura real e proveitosa a não ser a dos salões...
     Não, ele não tem o gênio hábil e cauteloso de um procurador que não perde um minuto nem uma oportunidade... Não é de modo nenhum um caráter à Luís XI. Por outro lado, ouço-o pronunciar as máximas mais antigenerosas... Não entendo... Repetiria essas máximas para servirem de dique a suas paixões?
     Mas uma coisa é certa: ele é impaciente com o desprezo, por aí posso pegá-lo.
     Não tem a religião do alto nascimento, é verdade, não nos respeita por instinto... Isso é uma falta; mas, enfim, a alma de um seminarista deveria impacientar-se somente com a falta de prazer e de dinheiro. Ele, muito ao contrário, não pode suportar o desprezo por preço algum.
     Pressionado pela carta da filha, o sr. de La Mole sentiu a necessidade de decidir-se: – Enfim, eis a grande questão: a audácia de Julien o terá levado a querer cortejar minha filha, porque sabe que a amo mais que tudo e possuo cem mil escudos de renda?
     Mathilde afirma o contrário... Não, meu Julien, esse é um ponto sobre o qual não quero iludir-me.
     Houve amor verdadeiro, imprevisto? Ou desejo vulgar de elevar-se a uma bela posição? Mathilde é clarividente, ela logo percebeu que essa suspeita pode colocá-lo a perder junto a mim, daí a confissão: foi ela a primeira que pensou em amá-lo.
     Uma moça de um caráter tão altivo teria esquecido sua condição a ponto de tomar iniciativas materiais!... Apertar-lhe o braço no jardim, à noite, que horror! Como se ela não tivesse outros meios menos indecentes de dar a entender que o distinguia.
     Quem se escusa, se acusa; desconfio de Mathilde... Naquele dia, os raciocínios do marquês eram mais conclusivos do que de costume. No entanto, o hábito prevaleceu, ele resolveu ganhar tempo e escrever à filha. Pois eles se escreviam de uma ala a outra da mansão. O sr. de La Mole não ousava discutir com Mathilde e enfrentá-la. Tinha medo de acabar tudo por uma concessão súbita.

CARTA
“Procure não cometer novas loucuras; eis aqui uma patente de tenente dos hussardos para o sr. cavaleiro Julien Sorel de La Vernaye. Está vendo o que faço por ele. Não me contrarie, não me interrogue. Que ele parta dentro de vinte e quatro horas para apresentar-se em Estrasburgo, onde está seu regimento. Anexo uma ordem ao meu banqueiro. Que me obedeçam.” 

     O amor e a alegria de Mathilde não tiveram mais limites; ela quis tirar proveito da vitória e respondeu imediatamente:

“O sr. de La Vernaye estaria a seus pés, completamente agradecido, se soubesse tudo o que o senhor se digna fazer por ele. Mas, em meio a essa generosidade, meu pai esqueceu-me: a honra de sua filha está em perigo. Uma indiscrição pode causar uma mancha eterna e que vinte mil escudos de renda não reparariam. Só enviarei a patente ao sr. de La Vernaye se o senhor der a palavra de que, no correr do mês que vem, meu casamento será celebrado em público, em Villequier. Logo depois dessa época, que suplico não seja ultrapassada, sua filha só poderá aparecer em público com o nome de sra. de La Vernaye. Quanto lhe agradeço, querido papai, ter-me salvo desse nome Sorel” etc. etc.

     A resposta foi imprevista.

“Obedeça, ou retrato-me de tudo. Trema, jovem imprudente! Ainda não sei quem é o seu Julien, e você mesma o sabe menos que eu. Que ele parta para Estrasburgo e procure marchar direito. Farei conhecer minhas vontades dentro de quinze dias.”

     Essa resposta tão firme surpreendeu Mathilde. Não conheço Julien; essa frase lançou-a num devaneio que logo enveredou pelas suposições mais encantadoras e que ela acreditava verdadeiras. O espírito de meu Julien não vestiu o uniforme mesquinho dos salões, e meu pai não crê em sua superioridade precisamente por causa daquilo que a comprova... 
     Todavia, se eu não obedecer a essa veleidade de caráter, vejo a possibilidade de uma cena pública; um escândalo rebaixará minha posição na sociedade e pode fazer-me menos amável aos olhos de Julien. Depois do escândalo... pobreza por dez anos; e a loucura de escolher um marido por causa de seu mérito só pode salvar do ridículo pela mais brilhante opulência. Se eu viver longe de meu pai, em sua idade, ele pode me esquecer... Norbert desposará uma mulher amável, esperta: o velho Luís XIV foi seduzido pela duquesa de Borgonha...
     Ela decidiu obedecer, mas evitou falar da carta do pai a Julien; este caráter feroz poderia ser levado a alguma loucura.
     À noite, quando comunicou a Julien que ele era tenente dos hussardos, a alegria dele foi ilimitada. Podemos imaginar isso pela ambição de toda a sua vida e pela paixão que tinha agora pelo filho. A mudança de nome causava-lhe espanto.
     Afinal, pensava, meu romance acabou, e cabe a mim todo o mérito. Soube fazer-me amar por esse monstro de orgulho – e olhava para Mathilde. O pai não pode viver sem ela e ela sem mim.  

continua página 310...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: Um Homem de Espírito (XXXIV)