quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Espumas Flutuantes - Prólogo

Castro Alves

À memória de Meu Pai, 
de Minha Mãe 
e de Meu Irmão 
O. D. C. 

PRÓLOGO

     Era por uma dessas tardes, em que o azul do céu oriental — é pálido e saudoso, em que o rumor do vento nas vergas — é monótono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio — é queixoso e tétrico.
     Das bandas do Ocidente o sol se atufava nos mares “como um brigue em chamas”... e daquele vasto incêndio do crepúsculo alastrava-se a cabeça loura das ondas.
     Além... os cerros de granito dessa formosa terra da Guanabara, vacilantes, a lutarem com a onda invasora de azul, que descia das alturas... recortavam-se indecisos na penumbra do horizonte.
     Longe, inda mais longe... os cimos fantásticos da serra dos Órgãos embebiam-se na distância, sumiam-se, abismavam-se numa espécie de naufrágio celeste.
     Só e triste, encostado à borda do navio, eu seguia com os olhos aquele esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se à forma vacilante das montanhas — derradeiras atalaias dos meus arraiais da mocidade.
     É que lá, dessas terras do Sul, para onde eu levara o fogo de todos os entusiasmos, o viço de todas as ilusões, os meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças de glória e de futuro:... é que dessas terras do Sul, onde eu penetrara “como o moço Rafael subindo as escadas do Vaticano;”... volvia agora silencioso e alquebrado... trazendo por única ambição — a esperança de repouso em minha pátria.
     Foi então que, em face destas duas tristezas — a noite que descia dos céus, — a solidão que subia do oceano —, recordei-me de vós, ó meus amigos!
     E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra hospitaleira, onde vagara; nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós vivera e sentira, gemera e cantara...
     Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!... Vós bem sabeis quanto sois efêmeros... — passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no escuro esquecimento.
     E quando — comediantes do infinito — vos obumbrais nos bastidores do abismo, o que resta de vós?

— Uma esteira de espumas... — flores perdidas na vasta indiferença do oceano. — Um punhado de versos... — espumas flutuantes no dorso fero da vida!...

     E o que são na verdade estes meus cantos?...
     Como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa — este sopro do alto; do coração — este pélago da alma.
     E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes rebentaram ao estalar fatídico do látego da desgraça.
     E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas rutilantes do arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico do entusiasmo — estes signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!
     Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos! — efêmeros filhos de minh’alma — levar uma lembrança de mim às vossas plagas!...
 São Salvador, fevereiro de 1870 
 Antônio de Castro Alves 

DEDICATÓRIA

A pomba d’aliança o voo espraia 
 Na superfície azul do mar imenso, 
 Rente... rente da espuma já desmaia 
 Medindo a curva do horizonte extenso... 
 Mas um disco se avista ao longe... 
A praia Rasga nitente o nevoeiro denso!... 
 Ó pouso! ó monte! ó ramo de oliveira! 
 Ninho amigo da pomba forasteira!... 

Assim, meu pobre livro as asas larga 
 Neste oceano sem fim, sombrio, eterno... 
 O mar atira-lhe a saliva amarga, 
 O céu lhe atira o temporal de inverno... 
 O triste verga a tão pesada carga! 
 Quem abre ao triste um coração paterno?... 
 É tão bom ter por árvore — uns carinhos! 
 É tão bom de uns afetos — fazer ninhos! 

Pobre órfão! Vagando nos espaços 
 Embalde às solidões mandas um grito! 
 Que importa? De uma cruz ao longe os braços 
 Vejo abrirem-se ao mísero precito... 
 Os túmulos dos teus dão-te regaços! 
 Ama-te a sombra do salgueiro aflito... 
 Vai, pois, meu livro! e como louro agreste 
 Traz-me no bico um ramo de... cipreste! 
      
Bahia, janeiro de 1870 

O LIVRO E A AMÉRICA
Ao Grêmio Literário 

Talhado para as grandezas, 
 Pra crescer, criar, subir, 
 O Novo Mundo nos músculos 
 Sente a seiva do porvir. 
 — Estatuário de colossos — 
 Cansado d’outros esboços 
 Disse um dia Jeová: 
 “Vai, Colombo, abre a cortina 
“Da minha eterna oficina... 
 “Tira a América de lá.”

Molhado inda do dilúvio, 
 Qual Tritão descomunal, 
 O continente desperta 
 No concerto universal. 
 Dos oceanos em tropa 
 Um — traz-lhe as artes da Europa, 
 Outro — as bagas de Ceilão... 
 E os Andes petrificados, 
 Como braços levantados, 
 Lhe apontam para a amplidão.  

Olhando em torno então brada: 
 “Tudo marcha!... Ó grande Deus! 
 “As cataratas — pra terra, 
 “As estrelas — para os céus. 
 “Lá, do pólo sobre as plagas, 
 “O seu rebanho de vagas 
 “Vai o mar apascentar... 
 “Eu quero marchar com os ventos, 
 “Com os mundos... co’os firmamentos!!!” 
 E Deus responde — “Marchar!” 

“Marchar!... Mas como?... Da Grécia 
 Nos dóricos Partenons 
 A mil deuses levantando 
 Mil marmóreos Panteons?... 
 Marchar co’a espada de Roma 
 — Leoa de ruiva coma 
 De presa enorme no chão, 
 Saciando o ódio profundo... 
 — Com as garras nas mãos do mundo, 
 — Com os dentes no coração?...  

“Marchar!... Mas como a Alemanha 
 Na tirania feudal, 
 Levantando uma montanha 
 Em cada uma catedral?... 
 Não!... Nem templos feitos de ossos, 
 Nem gládios a cavar fossos 
 São degraus do progredir... 
 Lá brada César morrendo: 
 “No pugilato tremendo 
 “Quem sempre vence é o porvir!”

Filhos do sec’lo das luzes! 
 Filhos da Grande nação! 
 Quando ante Deus vos mostrardes, 
 Tereis um livro na mão: 
 O livro — esse audaz guerreiro 
 Que conquista o mundo inteiro 
 Sem nunca ter Waterloo... 
 Éolo de pensamentos, 
 Que abrira a gruta dos ventos 
 Donde a Igualdade voou!... 

Por uma fatalidade 
 Dessas que descem de além, 
 O séc’lo, que viu Colombo, 
 Viu Guttenberg também. 
 Quando no tosco estaleiro 
 Da Alemanha o velho obreiro 
 A ave da imprensa gerou... 
 O Genovês salta os mares... 
 Busca um ninho entre os palmares 
 E a pátria da imprensa achou... 

Por isso na impaciência 
 Desta sede de saber, 
 Como as aves do deserto — 
 As almas buscam beber... 
 Oh! bendito o que semeia 
 Livros... livros à mão cheia... 
 E manda o povo pensar! 
 O livro caindo n’alma 
 É gérmen — que faz a palma, 
 É chuva — que faz o mar. 

Vós, que o templo das ideias 
 Largo — abris às multidões, 
 Pra o batismo luminoso 
 Das grandes revoluções, 
 Agora que o trem de ferro  
Acorda o tigre no cerro 
 E espanta os caboc’los nus, 
 Fazei desse “rei dos ventos” 
 — Ginete dos pensamentos, 
 — Arauto da grande luz!...

Bravo! a quem salva o futuro 
 Fecundando a multidão!... 
 Num poema amortalhada 
 Nunca morre uma nação. 
 Como Goëthe moribundo 
 Brada “Luz!” o Novo Mundo 
 Num brado de Briareu... 
 Luz! pois, no vale e na serra... 
 Que, se a luz rola na terra, 
 Deus colhe gênios no céu!... 
Bahia 

____________________

Prólogo / 
________________

Antônio Frederico de Castro Alves - foi um poeta, dramaturgo e advogado brasileiro, considerado o principal representante da terceira geração do romantismo no Brasil. Ficou conhecido por seus poemas abolicionistas, que renderam-lhe a alcunha de "poeta dos escravos".
Nascimento: 14 de março de 1847, Castro Alves, Bahia - Falecimento: 6 de julho de 1871, Salvador, Bahia. 
Influenciado por: Gonçalves Dias, Lord Byron, Victor Hugo, 
Formação: Faculdade de Direito do Recife | FDR, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) 
Pais: Clélia Brasília da Silva Castro, Antônio José Alves
Irmãos: Adelaide Alves, Cassiano José Alves
O “poeta dos escravos” foi um poeta sensível aos graves problemas sociais do seu tempo. Expressou sua indignação contra as tiranias e denunciou a opressão do povo.
A poesia abolicionista é sua melhor realização nessa linha, denunciando energicamente a crueldade da escravidão e clamando pela liberdade. Seu poema abolicionista mais famoso é “O Navio Negreiro”.

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção X

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção X

DOS MILAGRES[1]
PRIMEIRA PARTE
 
.

     Há, nos escritos do Dr. Tillotson[2] um argumento contra a presença real, que é tão conciso, elegante e poderoso, como pode supor-se de um argumento contra uma doutrina tão pouco digna de séria refutação. Admite-se universalmente, diz o sábio prelado, que a autoridade da Escritura ou da tradição se baseia unicamente no depoimento dos apóstolos, que foram as testemunhas oculares dos milagres de nosso Salvador, pelos quais provou sua missão divina. Portanto, nossa evidência em favor da verdade da religião cristã é menor do que a evidência da verdade de nossos sentidos, porque mesmo nos primeiros autores de nossa religião não era maior; e é evidente que ela deve diminuir passando deles para os seus discípulos; ninguém pode pois depositar, em relação aos seus testemunhos, a mesma confiança que tem em relação ao objeto imediato de seus sentidos. Mas uma evidência mais fraca nunca pode destruir uma mais forte; portanto, se a doutrina da presença real estivesse revelada na Escritura tão claramente como se queira, seria diretamente contrário às regras do raciocínio exato dar nosso assentimento. Contradiz os sentidos, visto que tanto a Escritura como a tradição, sobre as quais se supõe que está edificada, não são tão evidentes como os sentidos, se elas são consideradas meramente como evidências externas e não como dirigidas ao coração de cada um por obra imediata do Espírito Santo.
     Nada é tão convincente como um argumento decisivo deste gênero que, pelo menos, deve reduzir ao silêncio o fanatismo e a superstição mais arrogantes e livrar-nos de suas impertinentes solicitações. Congratulo-me por ter descoberto um argumento de natureza análoga que, se é legítimo, servirá de obstáculo eterno, junto aos sábios e doutos, a toda espécie de ilusão supersticiosa e, por conseguinte, será de utilidade enquanto existir o mundo. Porque presumo que em todos os tempos da história sagrada e profana[3] encontrar-se-ão relatos de prodígios e de milagres.
     Embora a experiência seja o nosso único guia no raciocínio sobre as questões de fato, deve-se reconhecer que este guia não é totalmente infalível e que, em alguns casos, pode conduzir-nos a erros. Uma pessoa que esperasse em nosso clima melhor tempo durante uma semana de junho do que uma de dezembro, raciocinaria corretamente de acordo com a experiência; todavia é também verdade que ela pode ver-se equivocada acerca do evento. E, não obstante, podemos observar que, em tal caso, não teria nenhum motivo para queixar-se da experiência, visto que ela nos informa, comumente e por antecipação, da incerteza, mediante a oposição de eventos que poderíamos apreender através de uma observação diligente. Todos os efeitos não resultam com a mesma segurança das supostas causas. Alguns eventos se encontram em todos os países e em todas as épocas em conjunção constante; outros, contudo, têm sido mais variáveis e às vezes têm decepcionado nossas expectativas; de modo que, em nossos raciocínios acerca das questões de fato, há todos os graus imagináveis de certeza, desde a mais alta certeza até as formas mais inferiores da certeza moral.
     Um homem sábio,[4] portanto, torna sua crença proporcional à evidência. Nas conclusões que se baseiam numa experiência infalível, espera o evento com o máximo grau de segurança e considera a experiência passada uma prova completa da existência futura deste evento. Em outros casos, procede com mais precaução; pesa as experiências contrárias; considera qual dos lados está apoiado por maior número de experiências; é para este lado que se inclina, com dúvida e hesitação; e quando finalmente estabelece seu juízo a evidência não ultrapassa o que denominamos propriamente de probabilidade. Toda probabilidade, portanto, supõe uma oposição de experiências e de observações, na qual um dos lados sobrepuja o outro e produz um grau de evidência proporcional à superioridade. Cem casos ou experiências de um lado e cinquenta do outro fornecem uma expectativa duvidosa de qualquer evento; contudo, cem experiências uniformes, com apenas uma que é contraditória, engendram racionalmente um grau bastante alto de segurança. Em todos os casos, devemos contrabalançar as experiências opostas, se são opostas, e subtrair os números menores dos maiores a fim de conhecer a força exata da evidência superior.
     Aplicando estes princípios a um caso particular, constatamos que não há espécie de raciocínio mais comum, mais útil e mesmo mais necessário à vida humana que o derivado do depoimento humano, dos relatos das testemunhas oculares e dos expectadores. Negar-se-ia, talvez, que esta espécie de raciocínio se funda na relação de causa e efeito. Não discutirei sobre a terminologia. Será suficiente notar, contudo, que nossa segurança em qualquer argumento deste gênero não deriva de outro princípio senão da constatação da veracidade do testemunho humano e da conformidade usual dos fatos com os relatos das testemunhas. Como um princípio geral diz que em nenhum objeto se pode descobrir uma conexão, e que todas as inferências que podemos tirar de um para o outro se baseiam unicamente em nossa experiência de sua conjunção constante e regular, é evidente que não devemos fazer uma exceção deste princípio em favor do testemunho humano, cuja conexão com qualquer evento em si mesmo parece mui pouco necessária como qualquer outra.[5] Se a memória não fosse até certo grau tenaz, se os homens não tivessem geralmente inclinação para a verdade e princípio de probidade, se não fossem sensíveis à vergonha quando se descobrem suas mentiras; se a experiência, digo eu, não revelasse que essas qualidades são inerentes à natureza humana, não depositaríamos jamais a menor confiança no testemunho humano. Um homem que delira ou que é conhecido por sua falsidade e sua vilania não tem nenhuma espécie de autoridade para nós.
     Como o depoimento que deriva das testemunhas e do testemunho humano se funda sobre a experiência passada, varia com a experiência e se considera ou uma prova ou uma probabilidade, conforme se tem verificado constante ou variável a conjunção entre um gênero particular do relato e um gênero do objeto. Devem-se, portanto, levar em consideração numerosas circunstâncias em todos os julgamentos deste gênero; e a última regra que nos permite decidir em todas as discussões que podem nascer a respeito deste tema deriva sempre da experiência e da observação. Se esta experiência não é inteiramente uniforme em um dos dois lados, gerará uma inevitável contradição em nossos juízos, cujos argumentos apresentam a mesma oposição e destruição mútua como em qualquer outro gênero de evidência. Frequentemente duvidamos dos relatos de outrem. Contrabalançamos as circunstâncias opostas originárias de alguma dúvida ou incerteza; e quando descobrimos uma superioridade a favor de um lado, inclinamo-nos para ele, porém com segurança diminuída em proporção à força de seu antagonista.[6]
     Esta contradição da evidência no caso presente pode derivar de diferentes causas: da oposição de testemunhos contrários, do caráter ou do número de testemunhas, da maneira como eles produzem seus testemunhos, ou da união de todas essas circunstâncias. Suspeitamos de uma questão de fato quando as testemunhas se contradizem entre si, quando são poucas e de caráter duvidoso, quando têm algum interesse pessoal naquilo que afirmam, quando enunciam seu testemunho com hesitação ou, pelo contrário, com afirmações mui violentas. Há muitos outros aspectos do mesmo gênero que podem diminuir ou destruir a força de qualquer argumento derivado do testemunho humano.
     Suponha, por exemplo, que o fato que o testemunho tenta estabelecer tem de algo extraordinário e de maravilhoso; neste caso, a evidência que resulta do testemunho admite uma diminuição maior ou menor em proporção ao fato que é mais ou menos invulgar. A razão que nos leva a dar algum crédito às testemunhas e aos historiadores não deriva de nenhuma conexão que percebemos a priori entre o testemunho e a realidade, mas do fato de estarmos acostumados a encontrar uma conformidade entre eles. Contudo, quando o fato testificado é tal que raramente caiu sob nossa observação, produz-se então um conflito entre duas experiências opostas, em que uma destrói a outra em proporção de sua força, e a experiência superior apenas pode agir sobre o espírito com a força que lhe resta. E precisamente este mesmo princípio da experiência que nos fornece certo grau de segurança sobre o depoimento das testemunhas, e que nos dá também, neste caso, outro grau de segurança contra o fato que tentam estabelecer; e desta contradição surge necessariamente um contrapeso e uma destruição recíproca da crença e da autoridade.
     Não acreditaria numa tal história mesmo se Catão ma contasse, era um dito proverbial em Roma, inclusive durante a vida deste filósofo patriota.[7] Admitia-se, pois, que a incredibilidade de um fato poderia invalidar tão grande autoridade.
     O príncipe hindu que inicialmente se recusou a acreditar nos relatos sobre os efeitos da escarcha raciocinou corretamente, pois, como é natural, necessitar-se-ão testemunhos poderosos para lograr seu assentimento acerca de fatos que surgiram de um estado da natureza, com os quais ele não estava familiarizado, e que tinham tão pouca analogia com os eventos dos quais tinha tido uma experiência constante e uniforme. Embora estes fatos não fossem contrários à sua experiência, tampouco estavam de acordo com ela.[8]
     Mas, para aumentar a probabilidade contra o depoimento das testemunhas, suponhamos que o fato que afirmam, em vez de ser apenas maravilhoso, é realmente miraculoso, e suponhamos também que o depoimento considerado à parte e em si mesmo equivale a uma prova completa; neste caso, temos prova contra prova, e a mais forte delas deve prevalecer, mas com uma diminuição de sua força em proporção à de sua antagonista.
     Um milagre é uma violação das leis da natureza; e como uma experiência constante e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra o milagre, devido à própria natureza do fato, é tão completa como qualquer argumento da natureza que se possa imaginar. Por que é mais do que provável que todos os homens devem morrer; que o chumbo não pode por si mesmo permanecer suspenso no ar; que o fogo consome a madeira e que, por sua vez, a água o extingue; a não ser que estes eventos estão de acordo com as leis da natureza, e que é preciso uma violação destas leis, ou em outras palavras, um milagre, para impedi-los? Nada é considerado um milagre se ocorre no curso normal da natureza. Não é um milagre que um homem, aparentemente de boa saúde, morra subitamente, pois verifica-se que tal gênero de morte, embora mais incomum que qualquer outro, ocorre frequentemente. Mas é um milagre que um morto possa ressuscitar, porque isto nunca foi observado em nenhuma época e em nenhum país. Portanto, deve haver uma experiência uniforme contra todo evento miraculoso, senão o evento não mereceria esta denominação. E, como uma experiência uniforme equivale a uma prova, há aqui uma prova direta e completa, tirada da natureza fática contra a existência de um milagre; uma tal prova não pode ser destruída nem o milagre fazer-se crível senão por meio de uma prova oposta que lhe seja superior.[9]
     A consequência clara — e é uma máxima geral digna de nossa atenção — é que não há testemunho suficiente para fundamentar um milagre, a menos que o testemunho seja tal que sua falsidade seria ainda mais miraculosa que o fato que pretende estabelecer; e mesmo neste caso há mútua destruição de argumentos, e o argumento mais forte nos dá apenas uma segurança proporcional ao grau da força depois da dedução da força inferior. Quando alguém me diz que viu um morto ressuscitar, considero imediatamente comigo mesmo: é mais provável que essa pessoa procure enganar-me ou esteja equivocada, do que o fato que relata possa realmente ter ocorrido. Peso um milagre contra o outro e, de acordo com a superioridade que descubro, pronuncio minha decisão e rejeito sempre o milagre maior. Se a falsidade de seu testemunho fosse ainda mais miraculosa que o evento que relata, agora e somente agora, pode pretender orientar minha crença e minha opinião.

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção X(1)
____________________
Notas:
[1] Da interessante entrevista que Hume concedeu a James Boswell, em 7 de julho de 1776, é conhecida a célebre passagem do primeiro: “nunca mais nutri qualquer crença pela Religião desde que comecei a ler Locke e Clarke” (Boswell, “An Account ol my last interview with David Rume”, cit. por N. K. Smith, Dialogues Concerning Natural Religion, de Hume, Liberal Arts, 1947, p. 76). Hume pretende, talvez, mostrar sua intenção de criticar a base racional da teologia natural, defendida tanto por Locke e Clarke como por outros metafísicos do século XVIII, e aceita quase universalmente pelos pensadores da Ilustração. De modo geral, podemos dizer que os argumentos da teologia natural abrangem dois momentos: a) com base no “argumento do desígnio” (seção XI), a teologia natural defende a tese de que tanto a existência como todos os atributos de Deus podem ser conhecidos pela razão natural e b) esta visão da religião da natureza pode ser suplementada pela revelação, cuja validade é garantida pela ocorrência de milagres, que, por seu turno, são apoiados por abundante evidência histórica (seção X). As seções X e XI constituem, de acordo com Stephen, partes de um único argumento, que julgamos ter sido elaborado por Hume para mostrar a inviabilidade dos momentos (a e b) da teologia natural. (Stephen, L. English Thought ín the Eighteenth Century Londres, 1902, vol. I, p. 310). [N. do T.]
[2] John Tillotson (1630-1694), influente teólogo e arcebispo de Canterbury a partir de 1691, apresenta o argumento que Hume sumariza, no Discourse against Transubstantion, publicado em 1684, da seguinte maneira: “Todo homem tem tão grande evidência de que a transubstanciação é falsa como tem de que a religião cristã é verdadeira. Suponde que a transubstanciação fizesse parte da doutrina cristã, deveria então ter a mesma confirmação com o todo, isto é, milagres. Mas, dentre todas as doutrinas do mundo, ela é peculiarmente incapaz de ser provada por um milagre. Pois, se um milagre fosse elaborado para prová-la, a própria segurança que leva alguém a aceitar a verdade do milagre o leva a considerar a falsidade da doutrina, isto é, através da clara evidência dos sentidos. Para que um milagre possa provar que o que ele vê no sacramento não é o pão, mas o corpo de Cristo, ele tem apenas o testemunho do sentido; e este mesmo testemunho aparece para provar que o que ele vê no sacramento não é o corpo de Cristo, mas o pão”. (Tillotson, vol. II, p. 448; citado por Flew, ob. cit., p. 172). [N. do T.]
[3] Nas edições K e L lê-se: “em toda história profana”.
[4] O “argumento” constituirá poderosa bacreira, se utilizado pelos “sábios e doutos”, contra todo tipo de narrativas sobre fenômenos sobrenaturais. Aludindo de modo explícito aos “sábios e doutos”, Hume está implicitamente colocando seu argumento fora do alcance do homem comum. É que o último considera qualquer uniformidade da natureza, embora temporal e acidental, como válida, já que sua principal caracteristica é a credulidade: “nenhuma fraqueza da natureza humana — escreve Hume — é mais notável e mais universal do que a que denominamos credulidade” (Tratado, I, iii, p. 112). O sábio, pelo contrário, tem plena consciência de que apenas as seqüencias invariáveis podem ser encaradas como causais e como os fundamentos da crença; por esse motivo ele inicia suas buscas com certa dosagem de ceticismo. Daí que, 1) o sábio admite que sua expectativa acerca de eventos futuros será inteiramente comprovada, apenas quando baseada em “experiência infalível”, e 2) nas situações em que perdura certo grau de probabilidade, isto é, a expectativa é confirmada por alguma, mas não por toda evidência experimental, o sábio deve contrabalançar as experiências opostas e tender para a que se mostrar favorecida por maior número de “experimentos e observações”. [N. do T.]
[5] Nas edições de K a M lê-se: A imaginação humana não acompanha naturalmente sua memória.
[6] A estrutura metodológica exposta resumidamente na nota 69, desta seção, é transferida por Hume para estudar o “raciocínio” baseado no depoimento do ‘testemunho Humano”: núcleo transmissor de todos os eventos cotidianos, históricos, maravilhosos e milagrosos. [N. do T.]
[7] Plutarco em Vita Catonis (Hume).
[8] Certamente, nenhum hindu poderia ter experiência do congelamento da água em climas frios, visto que a natureza se apresenta de maneira inteiramente desconhecida para ele, é-lhe, portanto, impossível afirmar a priori o que resultará do fenômeno. É preciso fazer um novo experimento, embora sua consequência seja sempre incerta. As vezes pode-se conjeturar mediante analogia o que ocorrerá; porém, trata-se ainda de mera conjetura. Deve se admitir que, no presente exemplo de congelação, o evento se produz contrariamente às regras da analogia, de tal modo que um hindu não poderia esperá-lo. A ação do frio sobre a água não se processa gradativamente segundo os diferentes graus de frio; ao contrário, quando a água atinge o ponto de congelação, passa num instante do estado líquido para o sólido. Tal fenômeno pode, todavia, denominar-se extraordinário, e se requer forte testemunho para fazê-lo crível aos povos de clima quente. Apesar disso, não é considerado miraculoso e nem contrário à experiência uniforme do curso da natureza em que todas as circunstâncias são idênticas. Os habitantes de Sumatra sempre têm observado o fluir das águas em seu próprio clima e consideram o congelamento de seus rios como algo prodigioso. Porquanto jamais viram a água em Moscou durante o inverno e não podem, por conseguinte, afirmar razoavelmente quais seriam suas consequências (Hume).
[9] Às vezes, um evento pode não parecer, em si mesmo, contrário às leis da natureza, e sem dúvida, se fosse real, em razão de algumas circunstâncias, poderia denominar-se um milagre, porque, de fato, é contrário a estas leis. Assim, se uma pessoa que pretendesse ter autoridade divina ordenasse a um enfermo que se curasse, a um homem sadio que morresse, às nuvens que derramassem água, aos ventos que ventassem, em uma palavra, se ordenasse vários eventos naturais que obedecessem de imediato à sua ordem: estes, sim, poderiam ser corretamente considerados milagres, porque neste caso são realmente contrários às leis da natureza. Porque, se persiste alguma suspeita de que o evento e a ordem emitida concordaram por acidente, não há nenhum milagre nem transgressão das leis naturais. Mas se se exclui esta suspeita há evidentemente um milagre e uma transgressão destas leis, porque nada pode ser mais contrário à natureza que o fato de que a voz ou ordem de um homem tenha semelhante influência. Um milagre pode definir-se estritamente deste modo: é a transgressão de uma lei da natureza pela volição particular da Divindade ou pela interposição de algum agente invisível. Um milagre pode ser cognoscível ou não pelos homens. Isto não altera sua natureza e essência. Que uma casa ou um navio se elevem no ar é um Visível milagre. Que se levante uma pena é um milagre igualmente real, se bem que não tão notável para nós quando não há vento, embora se necessite tão pouca força para sua realização (Hume).

Mini-conto: Saco de lixo

dinheiros esquecidos e chinelos disfarçados

baitasar


procurando meus chinelos... encontrei no lixo uma grande quantia de cédulas, tergiversando culpei os chinelos.




Mini-conto, miniconto, mini conto... nem te conto

Saco de lixo / 

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (O Movimento Totalitário - {2a} A Organização Totalitária)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

O Movimento Totalitário
     2 - A Organização Totalitária
          As formas da organização totalitária em contraposição com o seu conteúdo ideológico e os slogans de propaganda são completamente novas.[60] Visam a dar às mentiras propagandísticas do movimento, tecidas em torno de uma ficção central — a conspiração dos judeus, dos trotskistas, das trezentas famílias etc. —, a realidade operante e a construir, mesmo em circunstâncias não-totalitárias, uma sociedade cujos membros ajam e reajam segundo as regras de um mundo fictício. Em contraste com partidos e movimentos aparentemente semelhantes de orientação fascista ou socialista, nacionalista ou comunista, que dão à sua propaganda o apoio terrorista assim que atingem um certo grau de extremismo (o que geralmente depende do grau de desespero dos seus membros), o movimento totalitário realmente leva a sério a sua propaganda, e essa seriedade se expressa muito mais assustadoramente na organização dos seus adeptos do que na liquidação física dos seus oponentes. A organização e a propaganda, e não o terror e a propaganda, são duas faces da mesma moeda.[61] O mais surpreendentemente novo expediente organizacional dos movimentos na fase que antecede a tomada do poder é a criação de organizações de vanguarda, ou seja, a definição da diferença entre os membros do partido e os seus simpatizantes.
     Comparadas a essa invenção, outras características tipicamente totalitárias, como a nomeação de funcionários por uma cúpula ideológica e a monopolização final das nomeações por um homem só, são de menor importância. O chamado "princípio de liderança" não é totalitário em si; algumas de suas características derivam do autoritarismo e da ditadura militar, que muito contribuíram para obscurecer e subestimar o fenômeno essencialmente totalitário. Se os funcionários nomeados por alguém de cima tivessem verdadeira autoridade e responsabilidade, estaríamos lidando com uma estrutura hierárquica na qual a autoridade e o poder são delegados e regulados por lei. O mesmo também se aplica à organização de um exército e à ditadura estabelecida segundo o modelo militar; neste caso, o poder absoluto de comando, de cima para baixo, e a obediência absoluta, de baixo para cima, correspondem a uma situação de extrema emergência em combate, e é precisamente por isso que não são totalitárias. Uma escala de comando hierarquicamente organizada significa que o poder do comandante depende de todo o sistema hierárquico dentro do qual atua. Toda hierarquia, por mais autoritária que seja o seu funcionamento, e toda escala de comando, por mais arbitrário e ditatorial que seja o conteúdo das ordens, tende a estabilizar-se e constituiria um obstáculo ao poder total do líder de um movimento totalitário.[62] Na linguagem dos nazistas, é o "desejo do Führer", dinâmico e sempre em movimento — e não as suas ordens, expressão que poderia indicar uma autoridade fixa e circunscrita —, que é a "lei suprema" num Estado totalitário.[63] O caráter totalitário do princípio de liderança advém unicamente da posição em que o movimento totalitário, graças à sua peculiar organização, coloca o líder, ou seja, da importância funcional do líder para o movimento. Comprova essa asserção o fato de que, tanto no caso de Hitler como no de Stálin, o verdadeiro princípio de liderança só se cristalizou lentamente, em paralelo com a gradual "totalitarização" do movimento.
     Um anonimato que muito contribui para a esquisitice do fenômeno encobre as origens dessa estrutura organizacional. Não sabemos quem primeiro decidiu organizar os simpatizantes em grupos de vanguarda, quem viu primeiro uma força decisiva em si, e não apenas um reservatório de onde se poderiam arregimentar membros, nas massas vagamente simpatizantes — com as quais todo partido costumava contar no dia da eleição, mas que eram consideradas demasiado flutuantes para serem aceitas como membros. As primeiras organizações de simpatizantes de inspiração comunista, tais como os Amigos da União Soviética, tornaram-se grupos de vanguarda, embora originalmente não fossem mais do que os seus nomes indicavam: agrupamentos de simpatizantes para ajuda financeira ou de outra natureza (como, por exemplo, assistência legal). Hitler foi o primeiro a dizer que cada movimento devia dividir as massas conquistadas pela propaganda em duas categorias: simpatizantes e membros do partido, em si, já é muito interessante: porém, mais significativo ainda é ter baseado essa divisão numa filosofia mais ampla, segundo a qual as pessoas em sua maioria são demasiado preguiçosas e covardes para qualquer ato que ultrapasse o mero conhecimento teórico, é só uma minoria está disposta a lutar por suas convicções.[65] Consequentemente, Hitler foi o primeiro a traçar uma política de contínua ampliação dos escalões de simpatizantes, ao mesmo tempo em que mantinha o número de membros do partido estritamente limitado.[66] Essa noção de uma minoria de membros do partido cercada por uma maioria de simpatizantes aproxima-se do que vieram a ser as organizações de vanguarda — termo que realmente exprime muito bem a sua função ulterior, e indica a relação entre membros e simpatizantes dentro do próprio movimento. Pois as organizações de vanguarda de simpatizantes não são menos essenciais ao funcionamento do movimento do que os seus verdadeiros membros.
     As organizações de vanguarda cercam os membros dos movimentos com uma parede protetora que os separa do mundo exterior normal; ao mesmo tempo, constituem a ponte que os leva de volta à normalidade e sem a qual os membros, na fase anterior à tomada do poder, sentiriam com demasiada clareza as diferenças entre as suas crenças e as das pessoas normais, entre a mentirosa ficção do seu mundo e a realidade do mundo normal. A engenhosidãde desse expediente, durante a luta do movimento pelo poder, é que a organização de vanguarda não apenas isola os membros, mas lhes empresta uma aparência de normalidade externa que amortece o impacto da verdadeira realidade de maneira mais eficaz que a simples doutrinação. O que consolida a crença de um nazista ou bolchevista na explicação fictícia do mundo é a diferença entre a sua atitude e a do simpatizante, porque, afinal, o simpatizante tem as mesmas convicções, embora de um modo mais "normal", isto é, menos fanático e mais confuso; de forma que parece ao membro do partido que qualquer pessoa a quem o movimento não tenha expressamente apontado como inimigo (um judeu, um capitalista etc.) está do seu lado, e que o mundo é cheio de aliados secretos que apenas não têm ainda a necessária força de espírito e de caráter para tirar as conclusões lógicas de suas próprias convicções.[67]
     Por outro lado, o mundo exterior geralmente tem o primeiro vislumbre do movimento totalitário através das organizações de vanguarda. Os simpatizantes que, ao que tudo indica, são ainda concidadãos inofensivos numa sociedade não-totalitária, não podem propriamente ser chamados de fanáticos obstinados; através deles, os movimentos fazem com que suas fantásticas mentiras sejam mais geralmente aceitas, podem divulgar sua propaganda em formas mais suaves e respeitáveis, até que toda a atmosfera esteja impregnada de elementos totalitários disfarçados em opiniões e reações políticas normais. As organizações de simpatizantes dão aos movimentos totalitários uma aparência de normalidade e respeitabilidade que engana os seus membros quanto à verdadeira natureza do mundo exterior, da mesma forma que engana o mundo exterior 'quanto ao verdadeiro caráter do movimento. As organizações de vanguarda funcionam nas duas direções: como fachada do movimento totalitário para o mundo não totalitário, e como fachada deste mundo para a hierarquia interna do movimento.
     Ainda mais notável do que essa relação é o fato de que ela se repele em níveis diferentes dentro do próprio movimento. Os membros do partido mantêm a mesma distância e relação com os simpatizantes que as formações de elite do movimento mantêm com os membros comuns. Se o simpatizante parece ser ainda um habitante normal do mundo exterior que adotou o credo totalitário como se pode adotar o programa de um partido comum, o membro comum do movimento nazista ou bolchevista ainda pertence, em muitos aspectos, ao mundo exterior: suas relações profissionais e sociais ainda não são determinadas de modo absoluto pelo fato de pertencer ao partido, embora ele compreenda — ao contrário do simples simpatizante — que, em caso de conflito entre a fidelidade partidária e a vida privada, deverá prevalecer a primeira. Por outro lado, o membro do grupo militante identifica-se completamente com o movimento, não tendo profissão nem vida pessoal independente deste último. Assim como os simpatizantes constituem um muro de proteção em torno dos membros do movimento e representam para eles o mundo exterior, também os membros comuns envolvem os grupos militantes e representam para estes o mundo exterior normal.
     Uma vantagem definida dessa estrutura é que ela neutraliza o impacto de um dos dogmas básicos do totalitarismo, que afirma ser o mundo dividido em dois gigantescos campos inimigos, um dos quais é o movimento, e que este pode e deve lutar contra o resto do mundo — afirmação que abre o caminho para a indiscriminada agressividade dos regimes totalitários. O choque da terrível e monstruosa dicotomia totalitária é neutralizado, e nunca totalmente percebido, graças a uma cuidadosa graduação de militância, na qual cada escalão reflete para o escalão imediatamente superior a imagem do mundo não-totalitário, porque é menos militante e os seus membros são menos organizados. Esse tipo de organização evita que os seus membros jamais venham a encarar diretamente o mundo exterior, cuja hostilidade permanece para eles um simples pressuposto ideológico. Permanecem tão bem protegidos contra a realidade do mundo não-totalitário que subestimam constantemente os tremendos riscos da política totalitária.
     Não há dúvida de que os movimentos, totalitários atacam o status quo mais radicalmente que qualquer antigo partido revolucionário. Podem dar-se ao luxo desse radicalismo, aparentemente tão inadequado para organizações de massa, porque a sua organização proporciona um substituto temporário para a vida comum, não-política, que o totalitarismo realmente procura abolir. Todas as pessoas que formam o mundo das relações sociais não-políticas, das quais o "revolucionário profissional" teve de separar-se ou aceitar como eram, existem sob a forma de grupos menos militantes dentro do movimento; nesse mundo hierarquicamente organizado, os que lutam pela conquista do mundo e pela revolução mundial nunca se expõem ao choque inevitável da discrepância entre as crenças "revolucionárias" e o mundo "normal". O motivo pelo qual os movimentos, em sua fase revolucionária anterior ao poder, podem atrair tantos homens comuns é que os seus membros vivem num mundo ilusoriamente normal: os membros do partido são rodeados pelo mundo normal dos simpatizantes, e as formações de elite pelo mundo normal dos partidários comuns.
     Outra vantagem do modelo totalitário é que pode ser repetido indefinidamente, e mantém a organização num estado de fluidez que permite a constante inserção de novas camadas e a definição de novos graus de militância. Toda a história do partido nazista pode ser narrada em termos de novas formações dentro do movimento. A SA, as tropas de assalto (fundada em 1922), foi a primeira formação nazista supostamente mais militante que o próprio partido;68 em 1926, foi fundada a SS como a formação de elite da SA; três anos depois, a SS foi separada da SA e colocada sob o comando de Himmler; Himmler levou apenas mais alguns anos para repetir o mesmo jogo dentro da SS: um após outro — e cada qual mais militante que o grupo anterior — vieram à luz, primeiro, as Tropas de Choque,[69] depois as unidades da Caveira, criadas para guardarem os campos de concentração e mais tarde reunidas para formar a SS-Armada (Waffen-SS), e finalmente o Serviço de Segurança (o "serviço de espionagem ideológica do Partido", com a sua ramificação para executar a "política de população negativa") e o Centro para Questões de Raça e Colonização (Rasse-und Siedlungswesen), cuja função era de "natureza positiva" — todos emanados da SS Geral, cujos membros, com a exceção da elite do Corpo do Führer, permaneciam em suas ocupações civis. Daí em diante, as relações entre essas novas formações e o membro do Corpo do Führer eram as mesmas que entre o membro da SA e o membro da SS, ou entre o membro do partido e o membro da SA, ou entre o membro da organização de vanguarda e o membro do partido.[70] Agora, a SS Geral era encarregada não apenas de "salvaguardar a (...) corporificação da ideia nacional-socialista", mas também de "proteger os membros de todos os escalões especiais da SS para que não se afastassem do próprio movimento".[71]  Esse tipo de hierarquia flutuante com a constante adição de novas camadas e mudanças de autoridade, é bem conhecido: existe em entidades secretas descontrole» como a polícia secreta ou os serviços de espionagem, nos quais Sempre há necessidade de novos controles para controlar os controladores*. Antes que os movimentos tomem o poder, a espionagem total ainda não é possível; mas a hierarquia flutuante, semelhante à dos serviços secretos, torna possível, mesmo sem o poder efetivo, degradar qualquer escalão ou grupo que vacile ou mostre sinais de perda de radicalismo, através da mera inserção de mais uma camada radical, deslocando assim o grupo mais velho em direção da organização periférica de vanguarda, ou seja, na direção oposta ao centro do movimento. Assim, as formações de elite nazista eram fundamentalmente organizações vindas do âmago do partido; a SA galgou a posição de superpartido quando o radicalismo do partido pareceu diminuir, e foi depois, por sua vez e por motivos semelhantes, substituída pela SS.
     Exagera-se freqüentemente o valor militar das formações de elite totalitárias, especialmente da SA e da SS, e de certa forma esquece-se o significado puramente interno que tinham para o partido.[72] Nenhuma das organizações fascistas, caracterizadas pela cor da camisa, foi fundada para fins específicos de defesa ou de agressão, embora a defesa dos líderes ou dos membros comuns do partido fosse citada como pretexto.[73] A natureza paramilitar dos grupos de elite nazistas e fascistas resultou do fato de terem sido fundados como "instrumentos para a luta ideológica do movimento"[74] contra o pacifismo corrente na Europa depois da Primeira Guerra Mundial. Para fins totalitários, era muito mais importante criar, como "expressão de uma atitude agressiva",[75] um exército de imitação que se assemelhasse o mais possível ao falso exército dos pacifistas (os quais, incapazes de compreender a função constitucional do Exército dentro da estrutura política, denunciavam todas as instituições militares como bandos de assassinos voluntários) do que ter uma tropa de soldados bem-treinados. A SA e a SS eram, sem dúvida, organizações exemplares para fins de violência arbitrária e de assassinato; não eram tão bem-treinadas quanto o Reichswehr e não estavam equipadas para lutar contra tropas regulares. A propaganda militarista foi mais popular na Alemanha do pós-guerra do que o treinamento militar, e os uniformes não aumentaram o valor militar das tropas paramilitares, embora fossem úteis como indicação clara da abolição das normas e da moral dos civis; de certo modo, esses uniformes apaziguavam consideravelmente a consciência dos assassinos e, além disso, tornavam-nos ainda mais acessíveis à obediência cega diante da autoridade inconteste. Apesar desses enfeites militares, a facção interna do partido nazista, que era primordialmente nazista e militarista e, portanto, encarava as tropas paramilitares não apenas como meras formações partidárias, mas como ampliação ilegal do Reichswehr (que havia sido limitado pelo Tratado de Paz de Versalhes), foi a primeira a ser liquidada. Rohm, o líder das tropas de assalto da SA, havia realmente imaginado e negociado a incorporação da sua SA ao Reichswehr depois que os nazistas tomassem o poder. Hitler mandou matá-lo por sua tentativa de transformar o novo regime nazista em ditadura militar.[76] Vários anos antes, Hitler havia deixado claro que o movimento nazista não desejava tal coisa; da chefia da SA, demitiu Rohm — um verdadeiro soldado, cuja experiência na guerra e na organização do Reichswehr Negro teria feito dele um elemento indispensável a um programa sério de treinamento militar — e escolheu Himmler, um homem sem o menor conhecimento de assuntos militares, para reorganizar a SS.
     Além da importância das formações de elite para a estrutura organizacional dos movimentos, onde constituíam núcleos mutáveis da militância, o seu caráter paramilitar deve ser compreendido em conjunto com outras organizações partidárias profissionais, como as dos mestres, advogados, médicos, estudantes, professores universitários, técnicos e trabalhadores. Todos eram, essencialmente, duplicatas de sociedades profissionais não-totalitárias existentes; eram paraprofissionais como as tropas de assalto eram paramilitares. Era típico que, quanto mais claramente os partidos comunistas europeus se tornavam ramificações do movimento bolchevista dirigido por Moscou, tanto mais usavam também as suas organizações de vanguarda para competir com grupos puramente profissionais. A diferença entre os nazistas e os bolchevistas, a esse respeito, era que os nazistas tinham forte tendência de considerar essas formações paraprofissionais como parte da elite do partido, enquanto os bolchevistas preferiam recrutar delas o material para as suas organizações de vanguarda. O importante para os movimentos totalitários é, antes mesmo de tomarem o poder, darem a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões: o fim último da propaganda nazista era organizar todos os alemães como simpatizantes.[77] Os nazistas foram um passo adiante neste jogo e criaram uma série de falsos departamentos, moldados segundo a administração regular do Estado, tais como o seu próprio departamento de relações exteriores, educação, cultura, esportes etc. O valor profissional dessas instituições era tão pequeno quanto o valor militar da imitação de exército representada pelas tropas de assalto mas, juntas, criavam um perfeito mundo de aparências onde cada realidade do mundo não-totalitário era servilmente reproduzida sob forma de embuste.
     Esta técnica de duplicação, que de nada serve para a derrubada direta de um governo, foi extremamente útil no trabalho de solapar instituições atuantes existentes e na "decomposição do status quo",[78] tarefa que as organizações totalitárias invariavelmente preferem a uma franca exibição de força. Se o objetivo dos movimentos é "penetrarem como pólipos em todas as posições de poder",[79] devem estar prontos para qualquer posição específica, social ou política. Dando a pretensão de domínio total, todo grupo organizado na sociedade não-totalitária parece constituir, especificamente, uma ameaça de destruir o movimento; cada um deles requer um instrumento específico de destruição. O valor prático das falsas organizações veio à luz quando os nazistas tomaram o poder e demonstraram estar preparados para destruir imediatamente as organizações existentes de professores por meio de outras organizações de professores, os clubes existentes de advogados por meio de um clube de advogados patrocinado pelos nazistas etc. Puderam mudar, da noite para o dia, toda a estrutura da sociedade alemã — e não apenas a vida política — precisamente porque haviam^ preparado o correspondente exato de cada setor dentro dos seus próprios escalões. Por sinal, a tarefa das formações paramilitares terminou quando a hierarquia militar regular pôde ser colocada, durante os últimos estágios da guerra, sob a autoridade dos generais da SS. A técnica dessa "coordenação" era tão engenhosa e irresistível quanto era rápida e radical a deterioração dos padrões profissionais, embora esses resultados fossem mais imediatamente sentidos no campo altamente técnico e especializado da arte militar do que em qualquer outro.

Parte III Totalitarismo (O Movimento Totalitário - {2a} A Organização Totalitária)
_________________

[60] Hitler, discutindo a relação entre a Weltanschauung e a organização, admite como natural que os nazistas tomassem emprestado a outros grupos e partidos a "ideia racial" (die vòl-kische Idee); e, se agiram como se fossem os seus únicos representantes, é por terem sido os primeiros a basearem nela uma organização combativa e a formularem-na para fins práticos. Op. cit., livro II, capítulo v.
[61] Ver Hitler, "Propaganda e organização", op. cit., livro II, capítulo xi.
[62] Exemplo disso é o pedido de Himmler, veementemente urgente, para que "não se emitisse nenhum decreto referente à definição do termo 'judeu'"; porque, "com todos esses compromissos idiotas, estaremos atando as nossas próprias mãos" (Documento de Nurembergue n? 626, carta a Berger datada de 28 de julho de 1942, cópia fotostática no Centre de Documentation Juive).
[63] A fórmula "O desejo do Führer é a lei suprema" encontra-se em todas as normas e regulamentações oficiais sobre a conduta do Partido e da SS. A melhor fonte nesse assunto é Otto Gauweiler, Rechtseinrichtungen und Rechtaufgaben der Bewegung [Disposições e tarefas jurídicas do movimento], 1939.
[64] Heiden, op. cit., p. 292, menciona a seguinte diferença entre a primeira edição e as edições seguintes de Mein Kampf: a primeira edição propõe a eleição de autoridades do partido que, somente após a eleição, recebem "poder e autoridade ilimitados"; todas as edições posteriores estabelecem a nomeação das autoridades do partido pelo líder imediatamente superior. Naturalmente, para a estabilidade dos regimes totalitários, a nomeação vinda de cima é um princípio muito mais importante do que a "autoridade ilimitada" da autoridade eleita. Na prática, a autoridade do sub líder era limitada pela absoluta soberania do líder. Stálin, que vinha do aparelho conspiratório do partido bolchevista, provavelmente nunca achou que isso constituísse problema. Para ele, as nomeações na máquina do partido eram uma questão de acúmulo de poder pessoal. Contudo, foi somente em meados da década de 30, depois de haver estudado o exemplo de Hitler, que ele se deixou tratar por "líder". Mas, é forçoso admitir que poderia facilmente justificar esses métodos citando a teoria de Lênin de que "a história de todos os países demonstra que a classe trabalhadora, se depender apenas dos seus próprios esforços, só é capaz de desenvolver uma consciência sindical", e que a sua liderança, portanto, advém necessariamente de fora. (Ver Que fazer?, publicado pela primeira vez em 1902.) O fato é que Lênin considerava o Partido Comunista como a parte "mais progressista" da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, "a alavanca da organização política" que "dirige toda a massa do proletariado", isto é, uma organização que está fora e acima da classe. (Ver W. H. Chamberlin, The Russian Revolution, 1917-1921, Nova York, 1935, II, 361.) Não obstante, Lênin não punha em dúvida a validez da democracia intrapartidária, embora se inclinasse pela restrição da democracia com relação à própria classe trabalhadora.
[65] Hitler, op. cit., livro II, capítulo xi.
[66] Ibid. Esse princípio foi rigorosamente adotado logo que os nazistas tomaram o poder. Dos 7 milhões de membros da juventude hitlerista, somente 50 mil foram aceitos como membros do partido em 1937. Ver o prefácio de H. L. Childs a The Nazi primer. Compare-se também Gottfried Neesse, "Die verfassungsrechtliche Gestaltung der Ein-Partei", tmZeitschriftfürdiegesamteStaat-swissenschaft, 1948, vol. 98, p. 678: "MesmaoPartidp Ünico jamais deve crescer a ponto de incluir toda a população. Ele é total devido à influência ideológica que exerce sobre a nação".
[67] Ver a diferenciação feita por Hitler entre as "pessoas radicais", que eram as únicas que estavam preparadas para se tornarem membros do partido, e as centenas de milhares de simpatizantes, que eram demasiado "covardes" para fazer o necessário sacrifício. Op. cit., loc. cit.
[68] Ver Hitler: capítulo sobre a SA, op. cit., livro II, cap. ix, 2? parte.
[69] Ao traduzir Verfügungstruppe, ou seja, as unidades da SS que deviam estar à disposição especial de Hitler, como tropas de choque, sigo O. C. Giles, The Gestapo, Oxford Pamphlets on World Affairs, n? 36, 1940.
[70] A fonte mais importante para a organização e a história da SS é "Wesen und Aufgabe der SS und der Polizei" [Caráter e função da SS e da polícia], de Himmler, em Sammelhefte ausge-wàhlter Vortrage und Reden, 1939. No decorrer da guerra, quando os escalões da Waffen-SS tiveram de ser preenchidos com voluntários, devido às perdas no front, a Waffen-SS perdeu o seu caráter de elite dentro da SS a tal ponto que a SS Geral, isto é, o Corpo do Führer mais elevado, passou mais uma vez a representar o verdadeiro núcleo de elite do movimento em seu aspecto geral. Documentação muito reveladora sobre essa última fase da SS encontra-se nos arquivos da Hoover Library, arquivo Himmler, pasta n? 278. Mostra que a SS passou a recrutar trabalhadores estrangeiros e a população nativa, imitando deliberadamente os métodos e normas da Legião Estrangeira Francesa. O recrutamento entre os alemães baseava-se numa ordem de Hitler (nunca publicada), de dezembro de 1942, segundo a qual "a classe de 1925 [devia] ser recrutada para a Waffen-SS" (carta de Himmler a Bormann). A convocação e o recrutamento eram tratados, ostensivamente, como serviços voluntários. Mas numerosos relatórios de líderes da SS encarregados da tarefa mostram o que de fato aconteceu. Um relatório de 21 de julho de 1943 descreve como a polícia cercava o pavilhão dos trabalhadores franceses que seriam recrutados, e como os franceses primeiro cantavam a Marselhesa e depois tentavam pular pelas janelas. As tentativas de recrutamento dos jovens alemães também não eram encorajadoras. Embora fossem submetidos a extraordinárias pressões, e fosse-lhes dito que "certamente não iriam querer incorporar se aos 'bandos sujos vestidos de cinza'" (o Exército), somente dezoito de 220 membros da Juventude Hitlerista apresentaram-se para o serviço da SS (segundo relatório de 30 de abril de 1943, submetido por Hàussler, chefe do Centro de Recrutamento do Sudoeste, da Waffen-SS); todos os outros preferiram alistar-se na Wehrmacht. É possível que as perdas da SS, maiores que as da Wehrmacht, influenciassem a sua decisão (ver Karl O. Paetel, "Die SS", em VierteljahresheftfürZeitgeschichte, janeiro de 1954). Mas esse fator, por si só, não poderia ter sido decisivo, como prova o seguinte: já em janeiro de 1940, Hitler havia ordenado o recrutamento de homens da SApara as fileiras da Waffen-SS; os resultados em Koenigsberg, baseados num relatório que foi preservado, foram esses: 1.807 membros da SA foram convocados "para serviço policial" (de SS); desses, 1.094 deixaram de apresentar-se; 631 foram desclassificados; 82 estavam aptos para servir na SS.
[71] WernerBest, op. cit., 1941, p. 99.
[72] Hitler sempre insistiu em que o próprio nome da SA (Sturmabteilung) indicava que ela era apenas "uma secção do movimento" como qualquer outra formação partidária. Ele procurou também desfazer a ilusão do possível valor militar de uma formação paramilitar; e queria que o treinamento fosse realizado segundo as necessidades do partido, e não segundo os princípios de um exército. Op. cit., loc. cit.
[73] O motivo oficial da fundação da SA foi a proteção dos comícios nazistas, enquanto a tarefa original da SS era a proteção dos líderes nazistas.
[74] Hitler, op. cit., loc. cit.
[75] ErnstBayer,.DH>&4, Berlim, 1938. Tradução citada de Naziconspiracy, IV.
[76] A autobiografia de Ròhm mostra claramente quão pouco as suas convicções políticas concordavam com as dos nazistas. Ele desejou um Soldatenstaat (Estado dos soldados) e insistiu na primazia do soldado com relação ao político (op. cit., p. 349). A seguinte passagem revela especialmente a sua incapacidade de compreender o totalitarismo: "Não vejo por que estas três coisas não possam ser compatíveis: a minha lealdade ao príncipe herdeiro da casa de Wittelsbach, herdeiro da coroa da Baviera; minha admiração pelo intendente-geral da Guerra Mundial [isto é, Ludendorff], que hoje representa a consciência do povo alemão; e a minha camaradagem com o arauto e veículo da luta política, Adolf Hitler" (p. 348). O que finalmente custou a Rohm a sua cabeça foi que, após a tomada* do poder pelos nazistas, ele visualizava uma ditadura fascista nos moldes do regime italiano, na qual o partido nazista "quebraria as correntes do partido" e "se tornaria, ele próprio, o Estado", o que era exatamente o que Hitler estava disposto a evitar. Ver o discurso pronunciado por Ernst Rõhm perante o corpo diplomático, em dezembro de 1933, em Berlim e publicado, sem data, sob o título Warum SA? [Por que a SA?]
     Dentro do partido nazista, nunca foi esquecida a possibilidade de uma trama entre a SA e o Reichswehr contra o domínio da SS e da polícia. Até Hans Frank, governador-geral da Polônia ocupada, foi posto sob suspeita em 1942 — isto é, oito anos depois do assassínio de Rõhm (SA) e do general Schleicher (Reichswehr) — por desejar "após a guerra (...) iniciar a luta pela justiça, contra a SS, com a ajuda das Forças Armadas e da SA" (Nazi conspiracy, VI, 747).
[77] Hitler, op. cit., livro II, capítulo xi, afirma que a propaganda procura forçar uma doutrina sobre todo o povo, enquanto a organização incorpora apenas uma proporção relativamente pequena dos seus membros mais militantes. Compare-se também G. Neesse, op. cit.
[78] Hitler,op. cit.Joc. cit.
[79] Hadamovsky, op. cit., p. 28.

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap II - Quando me despedi de Rosemonde e de Gisele)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra

Capítulo Segundo

Os mistérios de Albertine. - As moças que ela vê no espelho. - A dama desconhecida. - O ascensorista. - A Senhora de Cambremer. - Os prazeres do Sr. Nissim Bernard. - Primeiro esboço do estranho caráter de Morel. - O Sr. de Charlus janta em casa dos Verdurin. 
 

continuando...

     Quando me despedi de Rosemonde e de Gisele, viram elas com espanto que Albertine, parada, não as seguia. 

- E então, Albertine, que estás fazendo? Não sabes que horas são? - Voltem - respondeu lhes Albertine com autoridade. - Preciso falar com ele - acrescentou, apontando-me com ar submisso. Rosemonde e Gisele me olharam, penetradas de um novo respeito por mim. Era delicioso sentir que, por um momento ao menos, aos próprios olhos de Rosemonde e de Gisele, eu era para Albertine algo de mais importante que a hora de regressar, que suas amigas, e podia até mesmo ter com ela graves segredos aos quais era impossível misturá-las. 
- Quer dizer que não te veremos esta noite? 
- Não sei, depende dele. Em todo caso, até amanhã. 
- Subamos para o meu quarto - disse-lhe eu depois que as amigas se afastaram. Tomamos o elevador; ela se manteve em silêncio diante do ascensorista. O hábito de ser obrigado a recorrer à observação pessoal e à dedução para conhecer os assuntos particulares dos patrões, essas pessoas estranhas que conversam entre si e não lhes falam, desenvolve entre os "empregados" (como o ascensorista denominava os criados) um grande poder de adivinhação, maior do que entre os "patrões". Os órgãos se atrofiam ou tornam-se mais robustos ou mais sutis, conforme aumenta ou diminui a necessidade de seu uso. Desde que existem estradas de ferro, a necessidade de não perder o trem nos ensinou a prestar atenção nos minutos, enquanto que, entre os antigos romanos, cuja astronomia era não só mais sumária; mas cuja vida era também menos apressada, a noção não dos minutos, mas até das horas fixas, mal existia. Assim, o ascensorista compreendera e esperava contar aos camaradas que Albertine e eu estávamos preocupados. Mas ele nos falava sem parar porque era destituído de tato. Entretanto, eu via desenhar-se em seu rosto, substituindo a impressão habitual de alegria e amizade com que me fazia subir pelo elevador, um raro aspecto de abatimento e inquietação. Como lhe ignorava a causa, para tentar distraí-lo, apesar de mais preocupado com Albertine, disse-lhe que a dama que acabara de partir se chamava marquesa de Cambremer e não de Camembert. No andar pelo qual passávamos então, avistei, carregando um travesseiro, uma camareira horrível que me saudou com respeito, esperando uma gorjeta à saída. Gostaria eu de saber se fora ela que tanto havia desejado na noite da minha primeira chegada a Balbec, mas nunca pude ter certeza. O ascensorista jurou-me, com a sinceridade da maioria dos falsos testemunhos, mas sem abandonar seu ar desesperado, que fora mesmo sob o nome de Camembert que a marquesa lhe pedira que a anunciasse. E, para falar a verdade, era natural que tivesse entendido um nome que já conhecia. Além disso, tendo sobre a nobreza e a natureza dos nomes com que se fazem os títulos noções extremamente vagas, que são as de muita gente que não é ascensorista, o nome de Camembert lhe parecera tanto mais verossímil, porque, sendo aquele queijo universalmente conhecido, não seria de espantar que se houvesse extraído um marquesado de um renome tão glorioso, a menos que não fosse o do marquesado que desse a sua celebridade ao queijo. Todavia, como reparava que eu não queria parecer que me enganava, e sabia que os patrões gostam de ver obedecidos seus caprichos mais fúteis e aceitas suas mentiras mais evidentes, prometeu-me, como bom criado, passar a dizer Cambremer. É verdade que nenhum lojista da cidade ou nenhum camponês das redondezas, onde o nome e a pessoa dos Cambremer eram perfeitamente conhecidos, jamais poderiam cometer o erro do ascensorista. Mas o pessoal do Grande Hotel de Balbec absolutamente não era da região. Provinha diretamente, com todo o material, de Biarritz, Nice e Monte-Carlo, uma parte tendo sido encaminhada para Deauville, outra para Dinard e a terceira reservada para Balbec. Mas a dor angustiosa do ascensorista não fez mais que crescer. Para que ele assim se esquecesse de me testemunhar o seu devotamento com os sorrisos costumeiros, era preciso que lhe tivesse acontecido alguma desgraça. Talvez tivesse sido "enviado". Prometi a mim mesmo, nesse caso, tentar conseguir que ele permanecesse no emprego, pois o gerente me garantira que ratificaria tudo o que eu decidisse em rei, - ao seu pessoal. - O senhor pode fazer sempre o que desejar, eu autorizo previamente. -

     De súbito, como acabasse de sair do elevador, comparara a aflição e o ar desesperado do ascensorista. Por causa da presença de Albertine, eu não lhe dera os cem sous que tinha o hábito de lhe pôr na mão, ao subir. E esse imbecil, em vez de entender que eu não queria fazer alarde de gorjetas diante de terceiros, começara a tremer, supondo que aquilo estava acabado de uma vez por todas, que nunca mais lhe daria - Pensava que eu caíra no "desvio" (como teria dito o duque de Guermantes tal suposição não lhe inspirava nenhuma piedade por mim, mas uma terrível decepção egoísta. Disse comigo que eu era menos desarrazoado do que achava minha mãe, quando não ousava deixar de dar um dia a soma exagerada, mas febrilmente esperada, que dera na véspera. Mas também sendo dado até ali por mim, e sem qualquer dúvida, ao habitual ar de alegria em que não hesitava em ver um sinal de simpatia pareceu-me desmentir segura significação. Ao ver o ascensorista, no seu desespero, prestes de atirar do quinto andar, perguntei-me se (caso se achassem respectivamente trocadas as nossas condições sociais, por exemplo, devido a uma revogação) em vez de manobrar gentilmente para mim o elevador, o ascensorista se transformasse num burguês, eu não teria me jogado, e se não há certas classes do povo mais duplicidade que entre os mundanos; mas sem dúvida, reserva-se para a nossa ausência as frases desfavoráveis, de onde a atitude a nosso respeito não seria insultuosa se fôssemos inferiores.
     No entanto, não se pode dizer que no hotel de Balbec o ascensorista fosse o mais interesseiro. Sob esse aspecto, o pessoal dividia-se em duas categorias: por um lado, os que faziam diferenças entre os hóspedes mais sensíveis à gorjeta razoável de um velho nobre (aliás, em condição de evitar-lhes os vinte e oito dias de convocação, recomendando-lhes ao general de Beautrillis) do que às larguezas despropositadas de um rasto, que revelava nisso mesmo uma falta de experiência que só diante dele se chamava bondade. Por outro lado, aqueles para quem nobreza, inteligência, celebridade, situação, maneiras era algo inexistente, coberto por uma cifra; para esses, só havia uma hierarquia, o dinheiro que se tem, ou melhor, se é dado. Talvez o próprio Aimé, que, devido ao grande número de hotéis que servira, afirmava possuir uma grande sabedoria mundana, pertencesse à essa categoria. Quando muito, dava um toque social e de conhecimento das famílias a esse gênero de apreciação, dizendo, por exemplo, da princesa de Luxemburgo: 

- Há muito dinheiro ali? (o ponto de interrogação para informar-se ou para controlar definitivamente as informações que tomara antes de conseguir para um freguês um cozinheiro para Paris; ou lhe garantir uma mesa à esquerda, à entrada, com vista para o mar, em Balbec). Apesar disso, embora não desprovido de interesse, não o teria exibido da maneira tolamente desesperada do ascensorista. Aliás, a ingenuidade deste último talvez simplificasse as coisas. A comodidade de um grande hotel, de uma casa como o era antigamente a de Rachel e que, sem intermediários, à face até então glacial de um empregado ou de uma mulher, a vista de uma cédula de cem francos, e com mais forte razão uma de mil, mesmo dada uma vez ou outra, traz um sorriso e oferecimentos. Pelo contrário, na política, nas relações de amante para amante, há muita coisa colocada entre o dinheiro e a docilidade. Tantas coisas que mesmo aqueles em quem o dinheiro afinal desperta o sorriso são amiúde incapazes de acompanhar o processo interno que os liga, e se julgam e são mais delicados. E depois, isso filtra a conversação polida dos "Já sei o que me resta fazer: amanhã vão me encontrar no necrotério." Assim, encontram-se na sociedade polida poucos romancistas, poetas, todas essas criaturas sublimes que falam justamente do que não convém falar.

     Logo que ficamos sozinhos e fomos pelo corredor, Albertine disse: 

- Que é que você tem contra mim? - 

     Minha dureza para com ela fora mais penosa para mim mesmo? Não passaria, de minha parte, de uma astúcia inconsciente para levar minha amiga, perante mim, àquela atitude de temor e de súplica que me permitiria interrogá-la, e talvez ficar sabendo qual das duas hipóteses que eu há muito formava a seu respeito era a verdadeira? Sempre é certo que, quando ouvi sua pergunta, senti-me subitamente feliz como alguém que alcança um objetivo há muito desejado. Antes de responder, levei-a até minha porta. Esta, abrindo-se, fez refluir a luz cor-de-rosa que enchia o quarto e mudava a musselina branca das cortinas estendidas sobre a noite num tom de aurora. Cheguei à janela; as gaivotas haviam pousado novamente nas ondas; mas agora eram róseas. Fi-lo reparar a Albertine. 

- Não mude de assunto, seja franco comigo - disse ela.

     Menti. Declarei-lhe que ela devia ouvir primeiro uma confissão, a de uma grande paixão que eu tivera fazia algum tempo por Andrée, e o fiz com uma simplicidade e uma franqueza dignas do teatro, mas que na vida só temos para com os amores que já não sentimos. Retomando a mentira que pregara à Gilberte antes de minha primeira estada em Balbec, porém variando-a, e para melhor me fazer acreditado por ela quando lhe dizia agora que não a amava, fui ao ponto de deixar escapar que outrora estivera prestes a enamorar-me dela, mas que muito tempo se passara, que ela para mim não era mais que uma boa camarada e que, mesmo que o quisesse, já não me teria sido possível experimentar de novo a seu respeito sentimentos mais ardentes. Além disso, apoiando-me assim, diante de Albertine, nesses protestos de frieza para com ela, eu só fazia devido a uma circunstância e de um fim particulares tornar mais sensível, acentuar com mais intensidade esse ritmo binário que o amor adota em todos aqueles que duvidam demais de si mesmos para crer que uma mulher possa amá-los um dia; também que eles a possam amar de verdade. Conhecem-se o bastante para saber que, junto das mais diferentes, experimentavam as mesmas esperanças, as mesmas angústias, inventavam os mesmos romances, pronunciam as mesmas palavras, para igualmente se darem conta de que seus sentimentos e ações não se relacionam estreita e necessariamente com a mulher amada, mas passam a seu lado, salpicam na, circundam-na com fluxo que se lança ao longo dos rochedos, e o sentimento de sua própria instabilidade ainda faz aumentar neles a desconfiança de que essa mulher, por quem tanto gostariam de ser amados, não os ama em absoluto. Porém, faria o acaso, visto que ela é apenas um simples acidente colocado diante do jorrar dos nossos desejos, que fôssemos nós mesmos o objetivo; dos desejos dela? Assim, mesmo tendo necessidade de expandir para ela esses sentimentos, tão diversos dos sentimentos simplesmente humanos que nosso próximo nos inspira, esses sentimentos tão especiais que são os sentimentos amorosos, depois de ter dado um passo adiante, confessando àquela a quem amamos a nossa ternura por ela, nossas esperanças, e temendo desagradar-lhe, também confusos por sentir que a linguagem que lhe falamos não se formou expressamente para ela, que nos serviu; e servirá para outras, que se ela não nos ama não poderá nos compreender; e que então falamos com falta de gosto, com o impudor do pedante, que dirige às pessoas ignorantes frases sutis que não são para elas, esse terror, essa vergonha, trazem o contra ritmo, o refluxo, a necessidade ainda que recuando a princípio, retirando vivamente a simpatia primeiro confessada de retomar a ofensiva e de recuperar a estima, a autoridade; o ritmo duplo é perceptível nos diversos períodos de um mesmo amor, em todos os períodos correspondentes de amores similares, em todas as criaturas que melhor se analisam do que se prezam.
     No entanto, se estava um pouco mais vigorosamente acentuado que de hábito naquele discurso que eu fazia à Albertine era apenas para me permitir passar mais rápida e energicamente ao ritmo oposto que minha ternura escondia.
     Como Albertine tivesse dificuldade em acreditar que lhe dizia sobre minha impossibilidade de a amar de novo, por causa do tão longo intervalo, apoiei o que chamava de esquisitice do meu temperamento; dos exemplos tirados de pessoas a quem, por culpa delas ou minha, havia deixado passar a hora de as amar, sem poder, por mais que o desejasse encontrá-la depois. Assim, dava a um tempo a impressão de me desculpar com ela, como de uma indelicadeza, dessa incapacidade de recomeçar a amá-la, e de procurar fazê-la compreender os motivos psicológicos daquilo como se me fossem peculiares. Porém, explicando-me desse modo, e estendendo-me sobre o caso de Gilberte, com quem fora de fato rigorosamente verdadeiro o que o era muito pouco aplicado em relação a Albertine, não fazia mais que tornar minhas asserções tão plausíveis; quanto fingia acreditar que não o fossem. Sentindo que Albertine apreciava o que julgava ser "o meu modo franco de falar" e reconhecendo em minhas deduções a clareza da evidência; desculpei-me do primeiro, dizendo que bem sabia que a gente sempre desagradava ao dizer a verdade; e que esta, aliás, deveria parecer-lhe incompreensível. Ao contrário, ela me agradeceu a sinceridade e acrescentou que, quanto ao resto, compreendia às maravilhas um estado de espírito tão freqüente e tão natural.
     Confessando a Albertine um sentimento imaginário por Andrée e por ela própria uma indiferença que, para parecer totalmente sincera e sem exagero, assegurei-lhe incidentalmente, como por escrúpulo de polidez, não dever ser tomada muito ao pé da letra, pude enfim, sem recear que Albertine lhe suspeitasse amor, falar-lhe com uma doçura que há muito me recusava e que me pareceu deliciosa. Quase acariciei a minha confidente; falando de sua amiga, a quem amava, vinham-me lágrimas aos olhos. Mas, vindo aos fatos, disse-lhe por fim que ela sabia o que era o amor, suas suscetibilidades, seus sofrimentos e que talvez, como já velha amiga minha, se empenhasse em fazer cessar as grandes mágoas que me causava, não diretamente, pois não era ela que eu amava, se ousava repeti-lo sem constrangê-la, mas indiretamente, atingindo-me em meu amor por Andrée. Interrompi-me para olhar e mostrar a Albertine um grande pássaro solitário e apressado que, longe, à nossa frente, fustigando o ar com as batidas regulares de suas asas, passava rapidamente por sobre a praia, aqui e ali manchada de reflexos semelhantes a pedacinhos de papel vermelho rasgados, e atravessava-a em todo o comprimento, sem diminuir o voo, sem desviar sua atenção, sem mudar de caminho, como um emissário que vai levar bem longe uma mensagem urgente e de importância capital. 

 - Ele ao menos vai direto ao fim - comentou Albertine em tom de censura. 
- Você me diz isso porque não sabe o que eu desejaria dizer-lhe. Mas é tão difícil que prefiro desistir; estou certo de que você se aborreceria; e tudo só ficaria nisso: eu não seria mais feliz em nada com aquela a quem amo de fato e teria perdido uma boa camarada. 
- Mas eu lhe juro que não me aborreceria. -

     Tinha ela um ar tão suave, tão tristemente dócil e como que esperasse de mim a sua felicidade, que eu mal me segurava para não beijá-la e beijá-la quase com o mesmo tipo de prazer que sentiria em beijar minha mãe naquele rosto novo que já não oferecia a face alerta e ruborizada de uma gatinha teimosa e perversa, de narizinho róseo e arrebitado, mas parecia, na plenitude de sua tristeza acabrunhada, todo fundido na bondade em amplas vazas escorridas e pendentes. Abstraindo o meu amor como uma loucura crônica sem reação com ela, pondo-me no seu lugar, eu me enternecia diante daquela boa moça habituada a que tivessem consigo atitudes amáveis e leais, e que bom rapaz que julgara que eu podia ser para ela, a perseguia desde algumas semanas; perseguições que haviam atingido por fim o seu ponto culminante. Por colocar me num ponto de vista puramente humano, exterior à nós dois e de onde o meu amor ciumento se desvanecia, é que sentia por Albertine essa profunda piedade, que seria menor se não a amasse. De resto, na oscilação ritmada que vai da declaração à briga (o meio mais seguro, o mais eficazmente perigoso para formar, por movimentos opostos e sucessivos, um nó que não se desata e nos prende solidamente a uma pessoa), no seio do movimento de retração que constitui um dos dois elementos do ritmo, para que distinguir ainda os refluxos da piedade humana que opostos ao amor, embora tendo talvez inconscientemente a mesma causa em todo caso produzem os mesmos efeitos? Ao nos lembrarmos mais tarde do total de tudo o que fizemos por uma mulher, percebemos muitas vezes que os atos inspirados pelo desejo de mostrar que amamos, de nos fazer amados, de obter favores, não ocupam mais espaço do que os devidos à necessidade humana de reparar os erros relativos à criatura amada, por simples dever moral, como se não mais a amássemos. 

- Mas afinal, que poderei ter feito? - indagou Albertine.

     Bateram; era o ascensorista; a tia de Albertine, que passava de carro pelo hotel, havia parado para ver se por acaso ela não se achava ali e levá-la de volta. Albertine mandou dizer que não podia descer, que fossem jantar sem esperá-la, que não sabia a que horas chegaria à casa. 

- Mas sua tia não vai ficar aborrecida? 
- Imagine! Ela vai compreender muito bem.

     Assim, portanto, ao menos naquele momento, como talvez jamais houvesse outro, um encontro comigo acontecia ser, aos olhos de Albertine, devido às circunstâncias, algo de uma tão evidente importância que devia superar tudo o mais, e ao qual, reportando-se instintivamente sem dúvida a uma jurisprudência familiar, enumerando certas conjunturas em que, quando estava em jogo a carreira do Sr. Bontemps não haviam desistido diante de uma viagem, minha amiga tinha a certeza de que sua tia acharia muito natural ver sacrificada a hora do jantar. Essa hora remota que ela passava sem mim, com os seus, Albertine dava-me agora, fazendo-a deslizar até mim; eu podia utilizá-la à vontade. Acabei pois, ousar dizer-lhe o que me haviam contado do seu gênero de vida e que apesar da aversão profunda que me inspiravam as mulheres portadoras do mesmo vício, eu não me incomodara até que me haviam dito o nome de sua cúmplice, e que ela facilmente podia compreender, tendo em vista o quanto eu amava Andrée, como deveria ter sofrido. Talvez fora mais hábil dizer que também me haviam nomeado outras mulheres, que me eram indiferentes. Mas a brusca e terrível revelação que me fizera Cottard entrara em mim dilacerando-me, tal e qual, inteira, sem mais nada. E assim como, antes, eu jamais teria por mim mesmo a ideia de que Albertine amava Andrée, ou que pelo menos pudesse ter brincadeiras cariciosas com ela, caso Cottard não me houvesse chamado a atenção para a sua atitude ao valsar, da mesma forma não soubera passar deste pensamento ao outro, para mim totalmente diverso, de que Albertine pudesse ter com outras mulheres, que não Andrée, relações a que nem o afeto serviria de desculpa. Albertine, antes mesmo de me jurar que aquilo não era verdade, manifestou, como toda pessoa a quem acabam de falar dela desse modo, cólera, aborrecimento e, em relação ao caluniador desconhecido, a raivosa curiosidade de saber quem era e o desejo de ser confrontada com ele para poder confundi-lo. Mas garantiu-me que, pelo menos a mim, não me queria mal por isso. 

- Se isso fosse verdade, eu lhe teria confessado. Mas tanto eu como Andrée temos horror dessas coisas. Não chegamos à nossa idade sem ver mulheres de cabelos curtos, que têm maneiras masculinas e são do gênero que você diz. E não há nada que mais nos revolte.

     Albertine só me dava a sua palavra, peremptória e sem provas. Mas era justamente o que melhor podia me acalmar, pois o ciúme pertence a essa família de dúvidas doentias que cedem muito mais à energia de uma afirmativa do que à sua verossimilhança. É aliás próprio do amor tornar-nos a um tempo mais desconfiados e mais crédulos, fazer-nos suspeitar, mais depressa do que o faríamos quanto a uma outra, daquela a quem amamos, e mais facilmente acreditar em suas negações. É preciso amar para preocupar-se com que não existam apenas mulheres honestas, ou melhor, para reparar nisso, e é preciso também amar para desejar que existam, isto é, para ter certeza de que existem. É humano buscar a dor e logo livrar-se dela. As proposições capazes de o conseguir facilmente nos parecem verdadeiras, não se discute muito sobre um calmante que produz efeito. E depois, por múltipla que seja a criatura que amamos, pode em todo caso apresentar-nos duas personalidades essenciais conforme nos surja como nossa, ou com seus desejos voltados para outrem. A primeira dessas personalidades possui a força particular que nos impede de crer na realidade da segunda, o segredo específico para acalmar os sofrimentos que esta última provocou. A criatura amada é sucessivamente o mal e o remédio que suspende e agrava o mal. Sem dúvida, há muito tempo, pela força que exercia em minha imaginação e minha faculdade sensitiva o exemplo de Swann, eu estava preparado para julgar verdadeiro o que receava em vez daquilo que teria desejado. Assiti a doçura trazida pelas afirmações de Albertine esteve a um passo de me comprometer porque me lembrei da história de Odette. Mas disse a mim, mesmo que, se era justo considerar o pior não só quando, para comprometer os sofrimentos de Swann tentara colocar-me em seu lugar, mas também agora que se tratava de mim mesmo, buscando a verdade como se fosse de outro. Todavia não era preciso que, por crueldade para comigo, tratasse do que escolhe o local em que talvez seja mais útil, mas também onde o sol está mais exposto, eu chegasse ao erro de julgar uma suposição; mais ficara verdadeira que as outras, só porque era a mais dolorosa. Não haveria uma boa família burguesa, e Odette, verdadeiramente, entre Albertine, era moça de muito abismos, abandonada pela mãe desde a infância? A palavra de uma não podia ser comparada com a de outra. Além disso, Albertine não tinha em mentir-me com o mesmo interesse que Odette a Swann. E ainda a este, Odette havia contado o que Albertine acabara de negar. Eu teria portanto, cometido uma falha de raciocínio tão grave, embora inversa como a que me inclinasse uma hipótese apenas porque esta me fazia sofrer menos que as outras, separasse sem levar em consideração essas diferenças de fato nas outras situações; e reconstituindo a vida real de minha amiga unicamente segundo o que soubera acerca da de Odette. Tinha diante de mim uma nova Albertine, vislumbrada por mim diversas vezes, em minha primeira estadia em Balbec; em que de fato tinha sido sincera e bondosa; uma Albertine que, por afeição a mim, acabava por perdoar minhas suspeitas tratando de dissipá-las. Fez-me sentar a seu lado na cama. Agradeci-lhe o que havia dito, assegurei-lhe que estávamos reconciliados; que não seria mais duro com ela. Disse-lhe que, de qualquer modo deveria voltar para jantar em casa. Ela me perguntou se não me sentia bem assim. E, puxando a minha cabeça para uma carícia como jamais me fizera, que isso se devia à nossa rusga terminada. Passou ligeiramente a língua sobre meus lábios, o qual tentava entreabrir; mas não os descerrei. 

- Como és mau. - disse ela.

     Devia ter ido embora naquela mesma noite sem jamais tornar a vê-la. Desde então percebi que o amor não era compartilhado; porque existem pessoas para quem não existe amor compartilhado. Um pode gostar da felicidade daquele simulacro que me era dado nesses momentos únicos; nos quais a bondade da mulher, ou o seu capricho ao acaso, dizem sobre nosso desejos, numa perfeita coincidência, as palavras e as mesmas ações como se fôssemos verdadeiramente, amados. Sábio seria considerar com curiosidade uma pequena parcela de ventura, na falta da qual eu morreria sem ter suspeitado o que pode ser essa ventura para os corações menos difíceis ou mais favorecidos; supor que ela fazia parte de uma felicidade vasta e duradoura que só me aparecia naquele ponto; e, para que o dia seguinte não desse um desmentido a esse fingimento, não procurar pedir um favor a mais depois daquele que só fora alcançado devido a um artifício de um minuto de exceção. Deveria ter deixado Balbec, fechar-me na solidão e nela permanecer em harmonia com as últimas vibrações da voz que eu soubera por um instante fazer amorosa, e da qual só exigiria que nunca mais se dirigisse a mim, por medo de que, com uma palavra nova que daí em diante só poderia ser diferente, ela viesse ferir com uma dissonância o silêncio sensitivo onde, como que graças a um pedal, a tonalidade da ventura poderia sobreviver em mim por muito tempo.

continua na página 108...
________________

Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap II - Quando me despedi de Rosemonde e de Gisele)
Volume 6
Volume 7