segunda-feira, 31 de março de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - j)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(j)

continuando...

     Ocorrera-lhe, inspirado pela ternura paterna e pelo desejo de emocionar o filho, a ideia de mandar buscar o instrumento. Mas faltava o "tempo material", ou antes, achou que faltava; mas apressou-se o jantar porque Saint-Loup não dispunha de tempo suficiente, esperando um tio que vinha passar de visita com a Sra. de Villeparisis. Como esse tio era muito dado aos exercícios físicos, sobretudo às longas caminhadas, era em grande parte a pé que percorreria entre o castelo, onde veraneava, e Balbec, dormindo à noite nas fazendas, de que era incerto o momento em que chegaria. Sem ousar se mexer, Saint-Loup encarregou-me até de levar a Incarville, onde ficavam os escritórios do telégrafo, o despacho que enviava diariamente à sua amante. O tio que esperava chamava-se Palamede, prenome que herdara dos príncipes da Sicília, seus antepassados; mais tarde, quando encontrei nas minhas leituras históricas, pertencentes potentado ou príncipe da Igreja, esse mesmo nome, bela medalha da Renascimento - alguns dizem ser uma verdadeira antiguidade - sempre na família, tendo de descendente em descendente, desde o gabinete do Vaticano até o tio amigo, senti o prazer reservado àqueles que, não podendo por escassez de formar uma coleção de medalhas ou uma pinacoteca, procuram velhos nomes (nomes de lugares, documentais e pitorescos como um mapa antigo, uma paisagem ampla, uma insígnia ou um foro consuetudinário, nomes de batismo onde se ouve ressoar, nas belas finais francesas, o defeito de pronúncia, o sotaque de uma vulgaridade racial, a fala viciosa segundo a qual nossos antepassados impunham às palavras latinas e saxãs mutilações permanentes que mais tarde passaram a ser nobres legisladoras de gramáticas) e, em suma, graças a tais coleções de sonoridades antigas dão concertos a si mesmos, à maneira dos que adquirem violas de gamba e violas de amor para tocar música de outrora em instrumentos antigos. Saint-Loup me disse que, mesmo na mais fechada sociedade aristocrática, seu tio Palamede ainda se distinguia por ser dificilmente acessível, desdenhoso, muito aferrado à sua nobreza, formando com a cunhada e algumas pessoas escolhidas o que era conhecido como o círculo dos Fênix. Ainda aí era tão temido por suas insolências que ocorreu algumas vezes que certos aristocratas, desejosos de conhecê-lo, haviam recorrido a seu próprio irmão, que se negou a apresentá-los.  

- Não, não me peçam para apresentá-los a meu irmão Palamede. Mesmo que eu, minha mulher, nós todos nos empenhássemos, nada obteríamos. Ou o senhor se arriscaria a que ele não fosse amável, e eu não desejo isso. - No Jockey, ele e alguns amigos tinham relacionado duzentos sócios a quem jamais se deixariam apresentar. E, na casa do conde de Paris, era conhecido pelo apelido de "Príncipe", devido a sua elegância e a seu orgulho.

      Saint-Loup me falou da juventude, há muito passada, de seu tio. Todos os dias levava mulheres ao apartamento de solteiro que dividia com dois amigos, bonitos como ele, razão pela qual os chamavam as "Três Graças".

- Um dia, um dos homens que atualmente é muito bem visto no faubourg Saint-Germain, como diria Balzac, mas que teve um primeiro período bastante tumultuado e mostrava estranhas preferências, pedira a meu tio que o deixasse ir àquele apartamento. Porém, mal chegado, declarou-se não às mulheres e sim a meu tio Palamede. Este fingiu não entender, chamou à parte os dois amigos com uma desculpa qualquer; voltaram, pegaram o culpado, despiram-no e lhe deram uma surra até que sangrasse, pondo-o depois porta afora, aos pontapés, sob um frio de dez graus abaixo de zero. O infeliz foi encontrado semimorto, a polícia instaurou inquérito, e custou muito ao desgraçado que a coisa não seguisse adiante. Hoje meu tio não daria um castigo tão cruel e você nem imagina o número de pessoas do povo a quem trata com afeto, ele tão altivo para com as pessoas da alta roda. Protege-os, e eles lhes pagam com a ingratidão. Ora é um criado que o serviu num hotel, a quem arranja uma colocação em Paris, ora um camponês a quem custeia o aprendizado de um ofício. É até o lado bem gentil de meu tio, em contraste com o lado mundano.
  
     Com efeito, Saint-Loup pertencia a esse tipo de rapazes aristocratas situados a uma altura onde podem brotar essas expressões: "É o que ele tem de gentil, é o seu lado gentil", sementes preciosas que logo determina" modo de conceber as coisas, na qual não se vale nada e o "povo" vale tudo-, em outras palavras, o oposto do orgulho plebeu. - Na juventude, parece que nem pode imaginar como ele dava o tom, como ditava a lei na sociedade. De sua parte em qualquer circunstância, fazia o que lhe era mais agradável, mais cômodo, mas era logo imitado pelos esnobes. Se lhe acontecia ter sede no teatro e mandasse tirar bebidas ao camarote, era certo que, na semana seguinte, todos os salõezinhos detrás dos camarotes se encheriam de refrescos. Num verão muito chuvoso, porque ele sofreu um pouco de reumatismo, encomendou um sobretudo de vicunha fina, mas bem quente, que só se usa em cobertas de viagem, e respeitou o tecido de listras azuis e alaranjadas. Imediatamente, os grandes alfaiates receberam dos clientes encomendas de casacos listrados de azul, com franjas, de pelos compridos. Se, por um motivo qualquer, desejava tirar toda a solenidade de um jantar no castelo onde passava o dia, e, para indicar esse tom, não vestia casaco sentava-se à mesa com a jaqueta que usara de tarde, virou moda jantar no campo jaqueta. Se, ao comer um doce, se servia de um garfo em vez da colher, ou de um talher que inventara e que havia encomendado a um ourives, ou mesmo dedos, não era mais permitido fazer de outro modo. Sentira vontade de ouvir de novo certos quartetos de Beethoven (pois, com todas as suas ideias extravagantes, não é nenhum estúpido e possui talento) e encarregou alguns músicos de tocarem em sua casa aquelas peças, para ele e os amigos. A maior elegância daquele tempo era dar reuniões pouco frequentadas, onde se ouvia música de câmara. Creio que deve ter se aborrecido nesta vida. Bonito como era, deve ter tido muitas mulheres - Apenas não poderia dizer quais, pois ele era muito discreto. Mas sei que enganou muito minha pobre tia. O que não impediu que fosse extremamente atencioso com ela, que ela o adorasse, e que tenha chorado durante anos. Quando está em Paris vai ainda ao cemitério quase todos os dias. 
      Na manhã seguinte ao dia em que Robert me falara assim de seu tio, enquanto ele o esperava em vão, passava eu sozinho pela frente do cassino, vindo ao hotel, quando tive a sensação de estar sendo observado por alguém que se achava longe. Virei a cabeça e dei com um homem de uns 40 anos, muito robusto, com bigodes bem pretos e que, batendo nervosamente com a bengala nas calças, fixava em mim os olhos dilatados pela atenção. Por instantes, aqueles eram atravessados por olhares de extrema atividade, próprios apenas dos homens que estão diante de uma pessoa a quem desconhecem, pessoa que, por motivo, lhes inspira ideias que não ocorreriam a outros - por exemplo, os loucos dos espiões. Lançou-me um olhar derradeiro, a um tempo ousado e prudente; profundo, como o último golpe antes de iniciar a fuga, e, depois de olhar em redor, assumindo de repente um ar distraído e altaneiro, virou-se inteiramente para um cartaz de teatro, em cuja leitura se absorveu, cantarolando uma canção, enquanto arrumava a rosa musgosa da botoeira. Tirou uma caderneta do bolso e pareceu tomar nota do espetáculo anunciado; olhou o relógio duas ou três vezes, baixou mais sobre a testa a palheta de cor negra, prolongando-lhe a aba com a mão em viseira como para ver alguém que não chegava, fez um gesto de descontentamento como esses que a gente faz quando já está farto de esperar, mas que nunca fazemos quando esperamos de verdade; depois, empurrando o chapéu para a nuca e deixando aparecer o cabelo cortado à escovinha, mas que apresentava de cada lado grandes mechas onduladas, soltou o suspiro ruidoso não das pessoas que têm muito calor, mas das que desejam aparentar que estão com calor. Veio-me a ideia de que se tratava de um ladrão de hotel, que, já tendo reparado em mim e minha avó nos dias anteriores, e preparando um golpe, vendo que o havia surpreendido enquanto me espiava, adotara aquela nova atitude para despistar, e expressava distração e indiferença, mas com tão agressivo exagero que seu objetivo, mais que o de dissipar as suspeitas que eu porventura tivesse, parecia o de vingar uma humilhação que eu lhe houvesse infligido sem querer, dando-me a entender não tanto que não me houvesse visto, mas que eu era sem importância demais para atrair a sua atenção. Empertigava se com ar de bravata, franzia os lábios, torcia o bigode e dava ao olhar um tom de indiferença, de dureza, quase insultante. De modo que a singularidade de sua expressão me fazia toma-lo tanto por um ladrão como por um doido. Todavia seu modo de trajar era extremamente correto, e muito mais sério e simples que o de todos os banhistas que eu via em Balbec, de forma que justificava minha jaqueta escura, tão frequentemente humilhada pela deslumbrante alvura banal das roupas de praia. Porém minha avó vinha a meu encontro, demos uma volta juntos e, uma hora depois, esperava-a diante do hotel, onde entrara por um momento; vi então sair a Sra. de Villeparisis na companhia de Robert de Saint-Loup e do desconhecido que me olhara tão fixamente à porta do cassino. Com a rapidez do relâmpago, o seu olhar me atravessou como no momento em que o vira pela primeira vez, e, como se não me tivesse visto, voltou a pôr diante dos olhos aquele olhar embotado, neutro, que finge nada ter visto fora e não é capaz de ler coisa alguma para dentro, olhar que expressa apenas a satisfação de sentir a seu redor as pestanas que entreabre com sua beatífica redondeza, o olhar devoto e derretido de alguns hipócritas, o olhar presunçoso de certos tolos. Vi que mudara de roupa. A que usava era ainda mais sombria; e, sem dúvida, o fato é que a verdadeira elegância está menos longe da simplicidade que a falsa; mas havia outra coisa: olhando-o de bem perto, via-se que, se a cor estava quase totalmente ausente dessas roupas, não era porque as banira por lhes ser indiferente, mas antes porque as proibira por um motivo qualquer. E a sobriedade que denotavam parecia provir mais da obediência a um regime do que da falta de gulodice. Um debrum verde-escuro se harmonizava, no tecido das calças, com o desenho das meias, refinamento que provava a vivacidade de um gosto cultivado em qualquer outra parte e ao qual esta única concessão fora feita por tolerância, ao passo que uma pinta rosada na gravata era imperceptível como uma liberdade que mal ousamos tomar.

- Como vai? Apresento-lhe o meu sobrinho, o barão de Guermantes - disse-me a Sra. de Villeparisis, enquanto o desconhecido, sem me olhar, resmungando um vago "Encantado", que fez seguir de uns grunhidos para emprestar à amabilidade um tom forçado, e dobrando o dedo mínimo, o indicador e o estendeu-me o médio e o anular, sem nenhum anel, que apertei, protegidos em, luva de couro da Suécia; depois, sem ter erguido os olhos para mim, virou-se para Sra. de Villeparisis.
- Meu Deus, onde estou com a cabeça? - disse esta. - Já te chamei, barão de Guermantes. Apresento-lhe o barão de Charles. Afinal, o erro não é grande - acrescentou -, pois também és um Guermantes.

      Nesse meio tempo, saía a minha avó e começamos a andar todos. O tio de Saint-Loup não só não me honrou com uma palavra mas sequer com o olhar. Se encarava os desconhecidos (e nesse curto passeio lançou duas ou três vezes o seu olhar profundo e terrível como para sondar as pessoas insignificantes de condição bem modesta que passavam), em compensação não olhava posso julgar por mim, as pessoas conhecidas como um policial em missão secreta mas que mantém os amigos fora de sua vigilância profissional. Deixei minha avó, a Sra. de Villeparisis e ele conversando juntos, fiquei um pouco atrás com Robert:

- Diga-me, escutei bem? A Sra. de Villeparisis disse a seu tio que era um Guermantes?
- Sim, naturalmente, é: Palamede de Guermantes.
- Mas dos mesmos Guermantes que têm um castelo perto de Combray, que pretendem descender de Genevieve de Brabante?
- Perfeitamente. Meu tio, que é o que existe de mais heráldico, lhe responderia que o nosso grito de guerra, que mais tarde foi Passavent, em princípio era Combraysis - disse ele rindo, para não dar impressão de se envaidecia dessa prerrogativa do grito, próprio só das casas quase soberanas, dos senhores de brasões. - É irmão do atual proprietário do castelo.

      Assim, a Sra. de Villeparisis era parente, e bem próxima, dos Guermantes. Ela, que por muito tempo fora para mim a senhora que me dera uma caixa de chocolates com um pato, quando eu era pequeno, caixa então de tal modo a do lado de Guermantes como se tivesse sido preparada no lado de Méséglise; menos brilhante e menos considerada a meus olhos, que o oculista de Combray disse que sofria agora subitamente uma dessas altas fantásticas, semelhantes às baixas, menos imprevistas de outros objetos que possuímos, altas e baixas que introduzem na nossa adolescência, e nos aspectos de nossa vida onde subsistir algo de nossa adolescência, mudanças tão numerosas como as metamorfoses de Ovídio.

- Não existem nesse castelo os bustos de todos os antigos senhores de Guermantes?
- Sim, e são um belo espetáculo. - disse Saint-Loup com ironia. - Aqui, entre nós, acho essas coisas meio ridículas. Mas em Guermantes há coisas de maior interesse: um retrato impressionante da minha tia, pintado por Carriere. É lindo como um Whistler ou um Velásquez. -acrescentou Saint-Loup, que, no seu zelo de neófito, nem sempre conservava com exatidão a escala de valores. - Há também quadros muito curiosos de Gustave Moreau. Minha tia é sobrinha de sua amiga Sra. de Villeparisis, foi educada por ela e se casou com o primo, que também era sobrinho da tia de Villeparisis, o atual duque de Guermantes.
- Mas então o que é o seu tio...?
- Ele usa o título de barão de Charles. Na verdade, quando meu tio-avô morreu, o tio Palamede deveria ter tomado o título de príncipe des Laumes, que era o de seu irmão antes que se tornasse duque de Guermantes, pois na nossa família mudam de nome como quem troca de camisa. Mas meu tio tem idéias próprias sobre esse assunto. E, como acha que se abusa um pouco dos ducados italianos, grandezas espanholas, etc., embora pudesse ter escolhido entre quatro ou cinco títulos de príncipe, preferiu o de barão de Charles como forma de protesto e com uma simplicidade aparente onde há muito de orgulho. "- Hoje diz ele todo mundo é príncipe; portanto, é necessário a gente se diferenciar em alguma coisa; tomarei um título de príncipe quando quiser viajar incógnito." Segundo ele, não há título mais antigo que o de barão de Charles. Para provar que é anterior ao dos Montmorency, que falsamente se diziam os primeiros barões da França, ao passo que na verdade o eram apenas da Ilha de França, onde ficava o seu feudo, meu tio lhe dará explicações durante horas e horas, e com todo o prazer, pois que, embora seja homem de gosto e muito talento, este assunto de conversação parece lhe interessar sempre. -disse Saint-Loup com um sorriso. - Mas como não sou feito ele, não me faça falar de genealogia, pois não conheço nada tão aborrecido, tão morto, como isso; e de fato a existência é muito curta para essas coisas.

     Agora eu reconhecia, no olhar duro que me fizera desviar a cabeça há pouco, perto do cassino, o mesmo que vira fixado em mim em Tansonville, quando a Sra. Swann havia chamado Gilberte.

- Mas dentre as numerosas amantes que me dizia que seu tio, Sr. de Charles, havia tido, não estava a Sra. Swann?
- Oh, de jeito nenhum! Quer dizer, ele é um grande amigo de Swann e sempre o defendeu. Mas nunca se murmurou que fosse amante de sua mulher. Você provocaria um grande espanto na sociedade se desse a impressão de acreditar nisso.

      Não ousei responder-lhe que maior espanto haveria em Combray se eu afirmasse o contrário.
      Minha avó ficou encantada como Sr. de Charles. De fato, ele dava grande importância a questões relativas a linhagem e posição social, o que minha avó notara; mas sem aquela severidade onde em geral costuma haver uma inveja e a irritação de ver outra pessoa desfrutar vantagens que a gente deseja conseguir. Como, pelo contrário, minha avó, contente com sua sorte e não ficava lamentando de forma alguma o não viver numa sociedade mais brilhante, servia-se nas da inteligência para observar os caprichos do Sr. de Charles, falava dos Saint-Loup com essa benevolência desinteressada, sorridente, quase simpático, com que recompensamos o objeto de nossa observação casual pelo prazer que dá; e tanto mais que desta vez o objeto de observação era um personagem cujas pretensões ela considerava, senão legítimas, pelo menos pitorescas; o destacar-se vivamente das personalidades com que ela em geral tinha ocasião de lidar. Mas minha avó lhe perdoara facilmente o preconceito aristocrático, espertamente por causa da inteligência e da sensibilidade, que se adivinhava serem eternamente vivas no Sr. de Charles, ao contrário de tantas pessoas da alta sociedade de quem Saint-Loup escarnecia. Mas tal preconceito não fora entretanto sacrificado pelo tio, como o fizera o sobrinho, em favor de qualidades superiores. O Sr. Charles antes conseguira conciliar ambas as coisas. Descendente dos duques de Nemours e dos príncipes de Lamballe, possuía arquivos, móveis, tapeçarias, retratos dos antepassados feitos por Rafael, Velásquez e Boucher; podia dizer "visitava" um museu e uma incomparável biblioteca apenas ao percorrer as acomodações da família, e colocava, ao contrário, na posição de onde o sobrinho afirmava, descender, toda a herança da aristocracia. Talvez também, por ser menos ideólogo Saint-Loup, atentava menos nas palavras e era um observador mais realista dos homens; não queria desprezar um elemento essencial de prestígio aos olhos das pessoas em geral, e que, se dava à sua imaginação prazeres desinteressados; muitas vezes ser um auxílio extremamente eficaz para sua atividade utilitária permanece aberto o debate entre os homens desse gênero e aqueles que obedecem um ideal interior que os impele a se desfazerem dessas vantagens para tentar realizá-lo, nisto semelhantes aos pintores e escritores que renunciam à virtuosidade, aos povos artistas que se modernizam, aos povos guerreiros que tomam a iniciativa do desarmamento universal, aos governos absolutistas que tornam democráticos e revogam as leis severas, muitas vezes sem que a realidade recompense seus nobres esforços; pois uns perdem seu talento, outros a secular predominância; o pacifismo às vezes multiplica a guerra, e a indulgência leva à criminalidade. Se os esforços de sinceridade e de emancipação de Saint-Loup deviam ser considerados muito nobres, a avaliar pelo resultado exterior, seria de que o Sr. de Charles se felicitasse por não participar de tais ideias, visto mandar transportar para sua casa uma grande parte dos admiráveis entalhamentos do palácio dos Guermantes em vez de trocá-los, como fizera seu sobrinho, por mobiliário de estilo moderno, dos Lebourg e dos Guillaumin. Não é menos verdade que o ideal do Sr. de Charles era bastante artificial, se é que tal adjetivo se pode aplicar à palavra ideal, tanto no sentido social como no artístico. Em certas mulheres muito belas e de rara cultura, cujas avós, dois séculos antes, estiveram misturadas à glória e elegância do antigo regime, ele descobria uma distinção que o fazia só sentir-se a gosto em sua companhia; e, sem dúvida, era sincera a admiração que lhes votava, mas, em grande parte, contribuíam para este sentimento numerosas reminiscências de história e de arte evocadas por seus nomes, assim como as lembranças da Antiguidade são um dos motivos do prazer que um homem culto encontra na leitura de uma ode de Horácio, talvez inferior a alguns poemas de hoje que o deixariam indiferente. Cada uma dessas mulheres, na opinião do Sr. de Charles, estaria para uma linda burguesa como, para uma tela contemporânea que represente uma estrada ou um casamento, está um desses quadros antigos cuja história conhecemos perfeitamente, desde o rei ou o papa que o encomendaram, passando por determinadas personagens junto a quem sua presença, por doação, compra, roubo ou herança, nos lembra algum acontecimento, ou, pelo menos, uma aliança de interesse histórico e, por consequência, representa a aquisição de conhecimentos que adquirimos, dando-lhes uma nova utilidade, e aumentando o sentimento da riqueza dos recursos da nossa memória ou da nossa erudição. O Sr. de Charles se felicitava que um preconceito análogo ao seu impedisse essas grandes damas de conviverem com mulheres de sangue menos puro, pois assim se ofereciam intactas em sua nobreza inalterada, como essas fachadas do séc. XVIII sustentadas por lisas colunas de mármore róseo e que o tempo não mudou em nada.

     O Sr. de Charles celebrava a verdadeira nobreza de espírito e sentimentos dessas mulheres, fazendo assim um trocadilho com a palavra nobreza, num equívoco que a si mesmo o enganava e onde residia a falsidade desse conceito bastardo, dessa mistura ambígua de aristocracia, generosidade e arte, mas também a sua sedução, perigosa para as criaturas como a minha avó, a quem o preconceito mais grosseiro porém mais inocente de um nobre, que só vê os seus brasões e não se preocupa com o resto, teria parecido excessivamente ridículo, mas que ficaria indefesa desde que algo se lhe apresentasse sob as aparências de uma superioridade espiritual, a ponto de considerar os príncipes os mais invejáveis dos homens porque poderiam ter tido um La Bruyere ou um Fénelon como preceptores.
      Diante do Grande Hotel, os três Guermantes nos deixaram; iam almoçar na casa da princesa de Luxemburgo. No momento em que minha avó dizia adeus à Sra. de Villeparisis e Saint-Loup se despedia dela, o Sr. de Charles, que até então não me dirigira a palavra, deu alguns passos para trás até chegar a meu lado:

- Vou tomar chá esta noite após o jantar, no apartamento de minha tia Villeparisis, disse-me. - Espero que me dê o prazer de comparecer com a senhora sua avó.- e foi reunir-se à marquesa.

      Embora fosse domingo, já não havia mais fiacres diante do hotel como no começo da temporada. A esposa do tabelião, em particular, achava ser gasto excessivo alugar todo fim de semana um carro a não ser para ir aos Cambremer; contentava-se em ficar encerrada no quarto.

- A Sra. Blandais está doente? - perguntavam ao tabelião 
- Não vir hoje. Tem um pouco de dor de cabeça; deve ser o calor, a trovoada. Mas, uma coisinha de nada; mas creio que a verão esta noite. Aconselhei-a a que descansasse. Isto só poderá lhe fazer bem.

continua na página 145...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - j)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Tranquilidade (XL)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XL

A TRANQUILIDADE

 É porque então eu era louco que hoje sou sábio. Ó filósofo que nada vê 
 senão o instantâneo, como tuas ideias são curtas! Teu olhar não foi feito 
 para seguir o trabalho subterrâneo das paixões.

W. GOETHE



     ESSA CONVERSA FOI INTERROMPIDA POR UM INTERROGATÓRIO, seguido de uma reunião com o advogado encarregado da defesa. Esses momentos eram os únicos absolutamente desagradáveis de uma vida cheia de incúria e de devaneios ternos.

– Há homicídio, e homicídio com premeditação, disse Julien tanto ao juiz como ao advogado. Sinto muito, senhores, acrescentou sorrindo; mas isso reduz vossa tarefa a muito pouca coisa.

      Afinal, pensava Julien, depois de livrar-se desses dois homens, devo ser bravo, e aparentemente mais bravo que eles, que consideram como o pior dos males, como o rei dos pavores, esse duelo sem final feliz, do qual só me ocuparei a sério no próprio dia.
      É que conheci uma infelicidade maior, continuou Julien, filosofando consigo mesmo. Eu sofria de uma forma bem diferente durante minha primeira viagem a Estrasburgo, quando me julgava abandonado por Mathilde... E pensar que desejei com tanta paixão essa intimidade perfeita que hoje me deixa tão frio!... Na verdade, sou mais feliz sozinho do que quando essa moça tão bela compartilha minha solidão...
     O advogado, homem de regra e de formalidades, julgava-o louco e pensava, com o público, que o ciúme pusera-lhe a pistola na mão. Um dia, ele arriscou dar a entender a Julien que essa alegação, verdadeira ou falsa, seria um excelente argumento de defesa. Mas o acusado reagiu prontamente, voltando a ser uma criatura apaixonada e incisiva.

– Por sua vida, senhor, exclamou Julien fora de si, nunca mais pronuncie essa abominável mentira! O prudente advogado temeu, por um momento, ser assassinado.

     Ele preparava seu discurso de defesa porque o instante decisivo aproximava-se rapidamente. Besançon e toda a região não falavam senão dessa causa célebre. Julien ignorava esse detalhe, ele pedira que jamais lhe comunicassem esse tipo de coisas.
     Naquele dia, tendo Fouqué e Mathilde querido lhe informar certos rumores públicos capazes, segundo eles, de dar esperanças, Julien os deteve às primeiras palavras.

– Deixem-me com minha vida ideal. Essas pequenas intrigas, esses detalhes da vida real, mais ou menos dolorosos para mim, tirar-me-iam do céu. Morre-se como se pode; quanto a mim, só quero pensar na morte à minha maneira. Que me importam os outros? Minhas relações com os outros vão ser cortadas bruscamente. Por favor, não me falem mais dessa gente: já é o bastante ver o juiz e o advogado.

     Em realidade, ele dizia a si mesmo, parece que meu destino é morrer sonhando. Um ser obscuro como eu, certo de ser esquecido antes de quinze dias, seria muito tolo, convenhamos, em representar a comédia. É singular, no entanto, que eu só tenha conhecido a arte de gozar a vida quando vejo seu fim tão próximo.
     Ele passava esses últimos dias a caminhar pelo estreito terraço do torreão, fumando excelentes charutos que Mathilde mandara buscar na Holanda por um mensageiro, e sem suspeitar que sua aparição era esperada a cada dia por todos os telescópios da cidade. Seu pensamento estava em Vergy. Ele nunca falava da sra. de Rênal a Fouqué, mas duas ou três vezes o amigo lhe dissera que ela se recuperava rapidamente, e essa frase ressoou em seu coração.
      Enquanto a alma de Julien estava quase sempre inteiramente no país das ideias, Mathilde, ocupada com as coisas reais, como convém a um coração aristocrata, fizera avançar a tal ponto a intimidade da correspondência direta entre a sra. de Fervaques e o sr. de Frilair que a importante palavra bispado já fora pronunciada.
     O venerável prelado, encarregado da lista dos benefícios, acrescentou à margem de uma carta da sobrinha: Esse pobre Sorel é somente um desatinado, espero que no-lo restituam.
     Ao ler essas linhas, o sr. de Frilair não se conteve, na certeza de poder salvar Julien.

– Não fosse a lei jacobina que prescreveu a formação de uma lista enorme de jurados, e que não tem outra finalidade real senão evitar toda influência às pessoas bem-nascidas, ele dizia a Mathilde na véspera do sorteio dos trinta e seis jurados da sessão, eu garantiria pelo veredito. Consegui absolver o pároco N...

     Foi com prazer que, no dia seguinte, entre os nomes saídos da urna, o sr. de Frilair encontrou cinco membros da Congregação de Besançon e, entre os que não eram da cidade, os nomes dos srs. Valenod, de Moirod, de Cholin. – Respondo desde já por esses oito jurados, disse ele a Mathilde. Os cinco primeiros são autômatos. Valenod é meu agente, Moirod me deve tudo, de Cholin é um imbecil que tem medo de tudo.
     O jornal divulgou na região os nomes dos jurados, e a sra. de Rênal, para o inexprimível terror do marido, quis ir a Besançon. Tudo o que o sr. de Rênal pôde obter é que ela não deixaria seu leito, a fim de não ter o dissabor de ser chamada em testemunho.
     
– Você não compreende minha posição, dizia o ex-prefeito de Verrières, sou agora liberal da dissidência, como eles dizem; ninguém duvida que esse descarado Valenod e o sr. de Frilair obterão do procurador geral e dos juízes tudo o que puder ser-me desagradável.

     A sra. de Rênal cedeu sem dificuldade às ordens do marido. Se eu comparecesse ao tribunal, ela pensava, daria a impressão de pedir vingança.
     Apesar das promessas de prudência feitas ao diretor espiritual e ao marido, assim que chegou a Besançon ela mesma escreveu a cada um dos trinta e seis jurados:

 “Não comparecerei no dia do julgamento, senhor, porque minha presença poderia prejudicar a causa do sr. Sorel. Não desejo senão uma coisa no mundo e com paixão, é que ele seja salvo. Não duvideis disso: a ideia terrível de que, por minha causa, um inocente foi conduzido à morte envenenaria o resto de minha vida e certamente a abreviaria. Como poderíeis condená-lo à morte, enquanto eu mesma vivo? Não, a sociedade não tem nenhum direito de arrancar a vida, sobretudo de uma criatura como Julien Sorel. Todos, em Verrières, sabem que ele teve momentos de extravio. Esse pobre moço tem inimigos poderosos; porém, mesmo entre seus inimigos (e quantos ele não tem!), qual deles põe em dúvida seus admiráveis talentos e seu conhecimento profundo? Não é uma pessoa ordinária que ireis julgar, senhor. Durante cerca de dezoito meses, todos o conhecemos piedoso, sensato, aplicado; mas duas ou três vezes ao ano ele era acometido de acessos de melancolia que chegavam ao extravio. Toda a cidade de Verrières, nossos vizinhos de Vergy onde passamos o verão, minha família inteira, o próprio sr. subprefeito, reconhecerão sua devoção exemplar; ele sabe de cor a Bíblia inteira. Um ímpio teria se dedicado durante anos a decorar o livro sagrado? Meus filhos terão a honra de vos apresentar esta carta: são crianças. Dignai-vos interrogá-los, senhor, e eles darão sobre esse pobre moço todos os detalhes ainda necessários para vos convencer da barbárie que seria condená-lo. Longe de vingar-me, causaríeis minha morte.
 “O que seus inimigos poderão opor a esse fato? O ferimento que resultou de um desses momentos de loucura que meus próprios filhos notavam em seu preceptor foi tão pouco perigoso que, menos de dois meses depois, permitiu-me vir de Verrières a Besançon. Se eu souber, senhor, que hesitais o mínimo que seja em subtrair à barbárie das leis uma criatura tão pouco culpada, sairei de meu leito, onde me retêm unicamente as ordens de meu marido, e virei lançar-me a vossos pés.
 “Declarai, senhor, que não houve premeditação constante, e não tereis de vos reprovar o sangue de um inocente” etc. etc.
 

continua página 332...

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: A Tranquilidade (XL)
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - O Casebre de Gorbeau / III - Duas desgraças juntas fazem uma ventura

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Quarto — O Casebre de Gorbeau

III - Duas desgraças juntas fazem uma ventura
     
     No dia seguinte, quando amanheceu, ainda Jean Valjean estava junto da cama de Cosette, esperando imóvel que ela acordasse. 
     Jean Valjean sentia penetrar-lhe na alma um sentimento desconhecido. 
     Aquele homem nunca tinha amado.
     Havia vinte e cinco anos que se via só no mundo, sem nunca ter sido pai, amante, marido ou amigo. Nas galés era mau, sombrio, casto, ignorante e insociável. Estava cheio de virgindades o coração daquele velho forçado. Sua irmã e os filhos de sua irmã haviam lhe deixado apenas uma recordação vaga e longínqua, que viera por fim a desvanecer-se quase completamente. Fizera todos os esforços para dar com eles, porém, como nunca o pôde conseguir, esqueceu-os. É assim feita a natureza humana.
      As outras impressões ternas da sua mocidade, se é que as tivera, haviam caído num abismo.
     Quando viu Cosette, quando a tomou, arrebatou e libertou, sentiu revolverem-se-lhe as entranhas. Todo o fogo de que era susceptível o seu coração, toda a intensidade do afeto que podia votar a um ser humano, se lhe despertou, precipitando-se para aquela criança. Acercava-se da cama em que ela dormia e tremia de alegria, experimentava emoções maternas. É uma coisa bem obscura e agradável esse grande e estranho movimento de um coração que principia a amar.
     Pobre coração aquele, que pulsava como novo num peito de velho.
     Como ele, porém, tinha cinquenta e cinco anos e Cosette oito, todo o amor que poderia ter em toda a sua vida fundiu-se numa espécie de clarão inevitável.
     Era aquela a segunda aparição branca que ele encontrava.
     O bispo fizera-lhe nascer no seu horizonte a aurora da virtude; Cosette fazia-lhe nascer nele a aurora do amor.
     Neste deslumbramento decorreram os primeiros dias.
     Pela sua parte, Cose e tornava-se outra também, sem disso dar fé, pobre entezinho! Quando sua mãe a deixou, era tão pequena que já não se lembrava dela.
     Como todas as crianças semelhantes aos rebentos da vinha que a tudo se agarram, Cosette tentara amar, porém não pôde chegar a consegui-lo. Todos a haviam repelido, os Thenardier, os filhos e as outras crianças. Amara o cão, mas este morrera, e após isto, nem pessoas nem coisas se importaram com ela. Lúgubre coisa por nós já indicada, aquela criança aos oito anos tinha o coração frio. Não era por culpa dela, nem porque lhe faltasse a faculdade de amar; ai, era a possibilidade. De modo que, desde o primeiro dia, tudo o que nela pensava e sonhava, principiou a amar aquele velho.
     Experimentava o que nunca sentira uma sensação semelhante à da flor quando desabrocha.
     O próprio Jean Valjean não lhe produzia o efeito de um velho ou de um pobre. 
     Achava-o belo, do mesmo modo que achava bonito o albergue miserável em que estava.
     São efeitos estes produzidos pela aurora, pela infância, pela juventude, pela alegria. Concorre para eles a novidade da terra e a da vida. 
     Não há coisa mais encantadora do que o colorido reflexo da ventura sobre as águas furtadas. Todos nós assim temos no nosso passado uma mansarda azul.
      A natureza, cinquenta anos de intervalo, haviam posto uma separação profunda entre Jean Valjean e Cose e, separação que o destino preencheu. O destino uniu repentinamente e desposou com o irresistível poder aquelas duas existências sem raízes, diferentes pela idade, só pelo luto semelhantes. Efetivamente uma completava a outra. O instinto de Cosette procurava um pai como o instinto de Jean Valjean procurava um filho. Encontrarem-se foi acharem-se. Soldaram-se-lhes as mãos no momento misterioso em que se tocaram. Quando aquelas duas almas se avistaram, reconheceram-se como sendo a necessidade uma da outra e abraçaram-se estreitamente.
     Podia-se dizer, tomando as palavras no sentido mais compreensivo e absoluto, que separados de tudo pela, barreira de um túmulo, Jean Valjean era o viúvo como Cosette era a órfã. Esta situação fez com que Jean Valjean se tornasse de um modo celeste o pai de Cosette.
      E, em verdade, a misteriosa impressão produzida em Cosette, no meio do bosque de Chelles, pela mão de Jean Valjean, ao travar-lhe da dela, por entre a escuridão da noite, não era uma ilusão, mas uma realidade. A entrada daquele homem no destino daquela criança fora a chegada de Deus.
     Por último, acrescentaremos que Jean Valjean escolhera bem o seu asilo, pois estava nele numa segurança que podia parecer completa.
     O quarto com alcova que ele ocupava com Cosette era o que tinha a janela que dava para o boulevard, e como esta era a única que havia na casa, não tinha ele a recear os olhares dos vizinhos, tanto dos lados como da frente. O rés-do-chão da casa número 50 52, espécie de telheiro, em ruínas, servia de guarida a hortelãos e não tinha comunicação com o primeiro andar, pois ficava separado deste pelo soalho, em que não havia alçapão nem escada, sendo como que o diafragma do edifício. O primeiro andar continha como dissemos, muitos quartos e mansardas, só um dos quais era ocupado por uma velha que era quem tratava da casa de Jean Valjean. O resto estava todo por habitar.
     Fora essa velha, ornada com o título de principal locatária, e na realidade encarregada das funções de porteira, quem lhe alugara aquele domicílio em dia de Natal, inculcando se-lhe ele como um rendeiro arruinado pelos vales de Espanha, que pretendia ir para ali morar com uma filhinha. Jean Valjean pagara seis meses adiantados, encarregando a velha de mobilar o quarto e o gabinete do modo que se viu. Fora esta boa mulher quem acendera o fogão e preparara tudo na noite da sua chegada.
     Sucederam-se as semanas. Aqueles dois entes passavam uma existência feliz naquele miserável aposento. 
     Cosette logo pela manhã começava a rir, a brincar e a cantar. As crianças têm o seu canto de manhã como as aves.
     Jean Valjean às vezes travava-lhe da vermelha e engelhada mãozinha e beijava-lha; porém, a pobre criança, afeita a ser espancada, não sabia o que isto queria dizer e retirava-a toda envergonhada. 
     Às vezes tornava-se séria e punha-se a contemplar o seu vestido preto. Cosette já não andava coberta de andrajos, andava de luto; saía da miséria e entrava na vida.
     Jean Valjean começava a ensinar-lhe a ler. Às vezes, quando estava a fazê-la soletrar, lembrava-se de que fora com a ideia de praticar o mal que aprendera a ler nas galés, ideia que aproveitava para ensinar a ler a uma criança, e então o velho forçado sorria com esse sorriso pensativo dos anjos.
     Sentia nisto uma premeditação superior, uma vontade de alguém sem ser o homem, e perdia-se em fundas cogitações. Os bons pensamentos têm seus abismos como os maus.
     A vida de Jean Valjean quase se cifrava em ensinar Cosette a ler e deixá-la brincar, e, além disto, em lhe falar da mãe e fazê-la rezar.
     A pobre criança chamava-lhe pai e não lhe sabia outro nome.
     Jean Valjean passava horas inteiras a vê-la vestir e despir a boneca, a ouvi-la chilrear. Parecia-lhe agora cheia de interesse a vida, afiguravam-se-lhe bons e justos os homens, já não descobria razão nenhuma para não poder chegar a muito velho, agora que aquela criança o amava. Via diante de si um futuro iluminado por Cosette como por uma luz encantadora. Os melhores homens não são isentos de um pensamento egoísta. Jean Valjean lembrava-se às vezes com uma espécie de alegria que talvez ela viesse a ser feia.
      Isto é apenas uma opinião pessoal, mas para dizermos todo o nosso pensamento, no ponto em que se achava Jean Valjean, quando principiou a amar Cosette, não nos parece bem provado que ele não visse necessidade desta revivificação para perseverar no bem. Ele acabava de ver sob novos aspectos a maldade dos homens e a miséria da sociedade, aspectos incompletos, que não mostravam fatalmente senão um lado da verdade, a sorte da mulher resumida em Fantine, a autoridade pública personificada em Javert; voltara às galés, desta vez por haver praticado o bem; tinham-lhe torturado o coração novas amarguras; apossava-se dele outra vez o tédio e o cansaço; até a mesma recordação do bispo tinha talvez um momento de eclipse, para aparecer mais tarde luminosa e triunfante; mas, enfim, esta recordação sagrada ia enfraquecendo. Quem sabe se Jean Valjean estaria em vésperas de perder a coragem e cair de novo? Amou, tornou-se forte. Ah! Porém não estava de novo menos vacilante do que Cosette. Ele protegeu-a e ela fortaleceu-o. Por influência dele, ela pôde caminhar pela senda da vida; por influência dela, ele pôde continuar na virtude. Ele foi o sustentáculo daquela criança e aquela criança foi o seu ponto de apoio. Ó insondável e divino mistério dos equilíbrios do destino!

continua na página 339...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - III - Duas desgraças juntas fazem uma ventura
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (5c) - Liébediev anuiu

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
5.

continuando...

     Liébediev anuiu:

- Realmente você está interessado demais na sua pessoa.
- Não estou forçando ninguém a escutar, permitam que lhes diga, senhores. Quem não quiser ouvir pode ir embora.
- Hum! Está mandando a gente embora da casa do outro! comentou Rogójin de modo perfeitamente audível. 
- E se nos levantássemos e fôssemos embora? - propôs Ferdichtchénko, de repente, bem alto. Ele não tinha ousado falar até agora.

     Ippolít baixou os olhos e prontamente agarrou o manuscrito. Mas no mesmo segundo ergueu a cabeça de novo e disse olhando fixamente para Ferdichtchénko, com olhos flamejantes e duas nódoas de sangue nas faces:

 - Tu me detestas, eu sei.

     Houve risadas, mas não de todos. Ippolít enrubesceu ainda mais; e então Míchkin interveio:

- Ippolít, dobre o seu manuscrito e entregue-mo. Vá deitar-se no meu quarto. Conversaremos antes de dormir ou conversaremos amanhã. Mas sob a condição de que nunca mais abra essas folhas. Está feito?

     Ippolít o encarou demonstrando nitidamente um assombro incontido.

- Impossível. Senhores, aqui está uma situação estúpida na qual não sei como deva me comportar! - exclamou, tornando-se cada vez mais febrilmente excitado - Não vou interromper mais a minha leitura. Portanto, se alguém não quer me ouvir, que se vá. 

     Tomou apressadamente um gole da água do copo, fincou os cotovelos sobre a mesa para amparar o rosto e esconder os olhos, e continuou a ler, passando-lhe logo o vexame.

“A ideia, prosseguiu ele, de que não vale a pena viver poucas semanas começou a me vir seguramente há um mês, quando eu dispunha apenas desse mês para viver. Mas só passou a me obcecar, creio eu, há três dias atrás, quando passei aquela noite em Pávlovsk. A primeira vez que tal pensamento me arrebatou plenamente eu me achava na varanda do príncipe, na ocasião mesmo em que tentava uma experiência e um julgamento sobre a vida, ainda tolerando ver pessoas e árvores (não nego que me propus, a mim próprio, isso). Exatamente quando me excitei insistindo pelos direitos do ‘meu semelhante’ Burdóvskií, quando ainda sonhava que todos me abririam os braços para me acolher e me pedir perdão pelos erros do mundo e da vida, o mesmo estando eu disposto a fazer com todos! Resumindo, exatamente quando eu me comportei, mais do que nunca, como um rematado imbecil. E foi então que me assaltou esta minha ‘última convicção’. Admirei-me de ter podido viver seis meses sem que ela me tivesse vindo antes. Estava farto de saber que era um tuberculoso sem possibilidade de cura. Quanto a isso nunca procurei me enganar. Compreendia a minha situação, claramente. Mas a verdade é que quanto mais claramente a compreendia mais desejo tinha de que a minha vida se prolongasse. Agarrei-me à vida, queria viver apesar de tudo. Admitindo que eu percebia muito bem a nefanda e obscura fatalidade que estava para me esmagar como a um inseto e, ainda por cima, sem a menor culpa de minha parte, por que foi que, ainda assim, não me insurgi contra a minha involuntária passividade? Por que haveria de querer começar a viver deveras sabendo que estava no fim? Por que tentei isso antes e haveria de tentar então, sabendo que seria inútil optar fosse lá pelo que fosse? Pois se nem ler eu podia, tendo desistido dos livros! Que me adiantava ler, de que me valia aprender por seis meses? Quantas vezes a evidência dessa verificação não me fez jogar os livros para um lado? 
Sim, aquelas paredes de Meyer poderiam contar uma história. Muito poderia eu escrever sobre elas. Não há um pedaço daquelas paredes imundas que eu não tenha estudado. Raios as partam! E todavia ainda me são mais caras do que as árvores de Pávlovsk. Ou melhor: seriam, se tudo já agora não me fosse indiferente.
Lembro-me com que interesse voraz andei, nesse tempo, prestando atenção na vida de todos, coisa com que antes jamais me importara. Quando a doença me impossibilitava de sair, ficava a olhar para a rua, esperando, nervosamente, por entre maldições e pragas, a vinda de Kólia. Tudo, tudo eu esquadrinhava; não me escapulia a menor novidade, fato, palavra. Virei um tagarela, criticava toda gente! Não havia meios, por exemplo, de compreender como é que quem dispõe de tanta vida diante de si, longe estando a morte, não se torna rico (e com efeito ainda hoje não entendo isso!). Conheci um pobre diabo que (segundo me contaram) veio a morrer de fome. Lembro-me de que, ao saber disso, fiquei furioso: minha vontade era ressuscitá-lo, se eu tivesse tal dom, somente para o executar! As vezes, por aquele tempo, eu ficava um pouco melhor, uma semana ou outra, e me dava ao luxo de sair um pouco; mas as ruas me exasperavam a tal ponto que acabava me trancando dentro do quarto, de propósito, dias e dias seguidos, embora pudesse sair como qualquer outra pessoa. Não podia suportar a multidão apressada, barulhenta, preocupada, pensativa, impaciente, desfilando em duplo sentido, atropelando-me pelas calçadas. Por que essa taciturnidade, essa preocupação, esse alarido, esse eterno e teimoso rancor (pois a multidão tem rancor, tem rancor, tem rancor!)? De quem é a culpa se ela é miserável e não sabe como viver, embora tenha sessenta anos de vida pela frente? Por que foi que Zarnítzin se deixou morrer de fome se tinha sessenta anos de vida à sua disposição? Toda a gente mostra os seus andrajos, as suas mãos escalavradas e calosas e grita selvagemente: ‘Trabalhamos que nem bois de arado, somos pobres e famintos que nem cães, ao passo que tantos há por aí que não fazem nada e são ricos!’ (A eterna lamúria!) E por entre a turba que vai e vem desde manhã até à noite, eis que surgem sujeitos lerdos e ranhentos, como esse amanuense suplente, Iván Fomítch Súrikov, ‘fidalgo de nascença’. Que vive no meu quarteirão, em uma mansarda e que me farto de ver com os cotovelos coçados, os botões querendo cair, indo e vindo pelo bairro desempenhando tarefas insignificantes, levando e trazendo recados e sempre a se queixar! É pobre, não tem amigos. passa fome, morreu-lhe a mulher à míngua de remédios, o filhinho morreu enregelado em um inverno destes, a filha já moça é amásia não sei de quem.. Iván Fomítch Súríkov! Sempre a se lastimar, o estupor!... Oh! Nunca senti a menor, a mínima piedade por esses estúpidos e nem sinto agora, digo com orgulho! Por que não é ele um Rothschild? De quem é a culpa se ele não tem milhões como Rothschild, se não tem pilhas e pilhas de fredericos de ouro e de napoleões de ouro, tão altas como estas montanhas que se veem nas festas de carnaval? Pois se está vivo que raio faz ele com tamanho poder como é o da vida? É de quem a culpa se o estupor não compreende isso? 
 Oh! Agora já não me importo mais, não me resta tempo nem mesmo para me irritar. Mas então, repito, naquele tempo, ah!... eu me crispava no meu travesseiro, mordia com raiva a orla da minha colcha! E que devaneios, que sonhos, que projetos! Que vontade que me vinha de me ver solto na rua, apenas com os meus dezoito anos, sem roupa, sem teto, completamente abandonado e só, sem trabalho, sem quarto, sem uma côdea de pão, sem um conhecido único, sem parentes de qualquer espécie, largado em uma grande cidade, sentindo fome, desdenhado (quanto mais, melhor!) mas com saúde, pois então haveria de mostrar a todos...
- Que é que eu poderia mostrar...?
Oh, sem dúvida cuidam que ignoro quanto me humilhei a mim próprio, conforme se depreende desta minha “Explicação”. Decerto, um por um, todos me olham como um choramingas que não sabe nada da vida, e esquecem que ainda tenho somente dezoito anos, e que viver do modo por que vivi durante esses seis meses significa o mesmo que já estar com os cabelos grisalhos! Pois riam e digam que isso tudo não passa de contos de fadas. De fato a mim mesmo outra coisa não fiz senão contar histórias da carochinha, enchendo noites a fio com esses contos fantasmagóricos. Ainda hoje não os esqueci. Mas hei de porventura contá-los agora que o tempo das histórias de fadas já acabou, mesmo para mim? Ora, contá-los a quem? Distraía-me com eles porque já tinha visto perfeitamente que me era vedado até mesmo aprender a gramática grega, como me deu na veneta certa vez. ‘Morrerei sem sequer haver chegado à sintaxe’, pensei, logo na primeira página, e joguei o livro para baixo da mesa. Lá ainda deve estar ele, pois proibi Matrióna de o pegar do chão. 
Qualquer pessoa, em cujas mãos esta minha ‘Explicação’ vier a cair, acabará, caso tenha paciência bastante para lhe lançar os olhos, por me considerar como um sujeito maluco, um garoto de escola ou, mais provavelmente ainda, como um homem condenado à morte, propenso por isso a acreditar que todos os demais pensam pouco, pouquíssimo da vida e que não fazem senão dissipá-la à toa, vivendo assaz preguiçosamente, apaticamente, nenhum deles sequer merecendo vivê-la. Bem, protesto contra o meu leitor, pois se equivocou; e esta minha convicção não é de forma alguma uma consequência de estar eu condenado à morte. Pergunte-se a essa gente, pergunte-se o que essa gente toda entende por felicidade. Fique o mundo sabendo que Colombo foi feliz não quando descobriu a América, mas sim quando a estava por descobrir. Em verdade afirmo que o trecho mais alto da sua felicidade foram aqueles três dias antes da descoberta do Novo Mundo, quando a equipagem amotinada e desiludida esteve a ponto de aproar de volta para a Europa. Não era o Novo Mundo que importava, mesmo que de tão real lhe caísse ombros abaixo.  
Colombo morreu sem quase o haver visto direito, e sem saber ao certo o que havia descoberto. É a vida que vale, que importa, a vida e nada mais, o processo, a maneira de descobrir, a tarefa perpétua e imorredoura. E não a descoberta em si, absolutamente. Mas que adianta estar aqui a falar! Decerto o que aqui estou dizendo ou escrevendo não passa de um lugar-comum e me hão de tomar como um colegial desenvolvendo o tema da composição de sabatina. ‘O nascer do sol’. Ou, no máximo, dirão talvez que de fato alguma coisa tinha eu a dizer mas que não soube me ‘explicar’. Acrescentarei, todavia, que sempre no fundo de cada novo pensamento humano, de cada pensamento de gênio ou mesmo de cada pensamento que emerge do cérebro como altíssima centelha, alguma coisa há que não pode ser comunicada aos outros, mesmo que fossem precisos volumes e mais volumes a respeito e que se levasse mais de trinta e cinco anos a querer explicar; alguma coisa que não sai do cérebro, que não pode emergir, que aí fica para sempre intata e incomunicável. Morre-se com ela, sem poder participá-la a quem quer que seja. E todavia bem pode ser que essa seja a ideia mais importante entre todas. Se também eu falhei ao querer transmitir tudo quanto me andou atormentando nestes últimos seis meses, ainda assim cumpre ficar entendido que para chegar a esta minha ‘última convicção’ paguei demasiado caro. Eis o que achei necessário antepor de forma bem explícita à minha ‘Explicação’ e isso por motivos que me concernem”.

O Idiota: Terceira Parte (5c) - Liébediev anuiu
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domingo, 30 de março de 2025

crônica - um mulherão e cinco homens

um mulherão e cinco homens

baitasar

Maurooooooo! – o chamado do portão repetido uma duas três vezes, Por onde andam esses meninos? – não tinha como saber, Rogeeeeerio! Ricaaaardo! – silêncio, nenhuma resposta, desistir não desistia, mas por ora, precisava entrar na sua casa, seguir nas tarefas solitárias de uma boa dona-de-casa, personagem escrita para as mulheres do seu tempo, desde muito tempo, rainha do lar

tinha tarefa rotineira cuidar dos filhos e da casa, junto com um mundo de sentimentos que se chocavam, se entrecruzavam, às vezes, raramente, se expressavam e não eram compreendidos

as conversas com vizinhas donas-de-casa, talvez, pudessem amenizar sua dança silenciosa de lavar e estender as roupas ao sol entre o arvoredo do pátio, todos os dias, nublados ou ensolarados; nos dias chuvosos a rouparia acumulava, até que na urgência algumas eram lavadas no tanque e colocadas penduradas para secarem atrás da geladeira, nestes dias de necessidade imediata precisava reinventar cada canto e fresta da casa

mais um dia todos os dias feito de grandes sentimentos de amor, era preciso lutar todos esses dias para que esse amor não se transformasse em cansaço frio e isolado

ao perfume do café passado o aroma do pão fresco se misturava ao tilintar das xícaras sendo colocadas à mesa, todos os dias – eu esperando o leite ferver na leiteira, a chama azul brilhando o leite borbulhando –, Mauro, não deixa o leite derramar – aviso inútil, sempre ferveu e derramou, Mãe, eu tava cuidando, E como foi que derramou, Não sei, não sei, foi um descuido, Chega, Mauro, senta e toma o café. – restava limpar o leite derramado no fogão e na leiteira, os resmungos dos outros filhos preenchiam o meu silêncio culpado, aquela sinfonia de tarefas começava a tomar forma, vida real e concreta, sacrifício consciente, acreditava que era o quinhão que tinha que pagar pela família que defendia e protegia com unhas e dentes, éramos a ventania do seu amor que ela transformava em brisa acalmava as tempestades transfigurava a realidade, dona de uma família real com cinco homens

dona-de-casa, um título que carregou como um manto pesado, mas que vestia todos os dias solitariamente, sem resmungos de desapreço ou descontentamento, as paredes eram testemunhas das suas lutas e vitórias silenciosas, lágrimas que nunca vi brotarem em seus olhos, entregava a própria pele para demonstrar o amor interior a ela, naqueles dias, jamais me dei conta do seu esforço diário isolado, a vontade de sacrificar toda uma vida, eu achava que deveria ser assim mesmo, os meninos jogando bola e as meninas cuidando da casa

quatro filhos, cada um com seus próprios desatinos desafios convencimentos, organizava um balé sem nenhum ensaio, conforme a música soando a coreografia tomava forma, um precisava de ajuda para se arrumar, outro queria sempre um lanche especial, aquele lá só desejava um colo, até que o alemão acordava no berço, gritava pela teta

depois de espalhar beijos e conselhos ao vento, seguíamos à escola, ela se dedicava à limpeza da casa – arrumação que nunca acabava, um exército de cinco homens embolados nas próprias pernas e deseducados em disciplinas domésticas -, colocava em ordem os brinquedos que se multiplicavam à noite, as roupas jogadas no chão, Um dia tudo ficará ajeitado, murmurava enquanto corria atrás do caçula engatinhando pela casa

quando nosso pai – o quinto homem da casa – chegava do trabalho de consertar balanças, na fábrica de balanças Santo Antônio, ela respirava e sorria, já estávamos de banho tomado e em nossas camas esperando a janta, mais recomendações, Não incomodem o pai de vocês, ele está cansado, preparava a janta junto ao fogão, mais um bocado do seu tempo e do seu amor, quase um ritual, mas agora com um sorriso cansado, Venham comer, servia a comida e escutava as histórias do dia, acredito que era quando seus pensamentos vagavam, imaginando mundos além das paredes da cozinha, em meio as risadas e vozerio daquela infantaria

muitos anos se passaram até perceber o eco vazio que ela sentia em sua rotina, lavar cozinhar passar limpar cuidar amar, tudo isso se refletia sobre suas próprias ambições, sonhos que foram deixados para trás no altar maternidade dedicação familiar

queria ser mais que uma sombra que passava pelas tarefas diárias – nunca notadas nem elogiadas, tarefas secretas –, uma mulher forte e realizada, uma mulher realizando suas próprias aspirações, não apenas a mãe esposa que estava sempre ali, presa em uma dança diária repetitiva, onde cada passo batia nos mesmos compassos, foi uma revolucionária, nos permitiu graduar como homens, li em algum lugar que quando o extraordinário se torna cotidiano, é a revolução

sabia que não estava sozinha nessa jornada, muitas mulheres dançavam – e dançam, posso estar equivocado, mas acredito que não estou mentindo – a mesma coreografia, entregando-se aos seus papéis, e, embora quisesse algo mais, havia também um conforto na repetição, nas pequenas conquistas do dia a dia: um filho aprendia a ler, uma refeição feita com carinho, um olhar cúmplice com seu homem no final de um dia cansativo, Aqui ninguém se rende.

entre altos e baixos, mamãe continuava sua dança, cheia de carinho e desafios, em cada tarefa havia uma semente do que ela era e do que poderia ser, florescendo timidamente sob a luz dos nossos olhares, em cada risada encontrava esperança, mesmo na solidão daqueles dias iguais

tempo demais se passou até compreender sua força e sua história, sinto o vazio das palavras que não disse para essa mulher repleta de risos e chamados urgentes

sozinha com seu sorriso gentil no rosto, entre a bagunça das manhãs dos seus cinco homens, as folhas das árvores, a sequência das tarefas, o chão para ser limpo, a nossa roupa suja para lavar no tanque, esfregando torcendo escutando o rádio de pilha, o almoço, depois os pratos empilhados na pia, a manhã rapidamente se dissolvendo em tardes intermináveis, o relógio avançando, silêncio, escapamos para a outra vida lá fora

a casa respirava entre as paredes

a solidão das horas pode ser uma visitante constante, o som da vida lá fora, o zumbindo do ônibus subindo a lomba – quando estava lotado, vez que outra, empacava no meio da subida, os passageiros e passageiras desciam e caminhavam até o topo, o ônibus se arrastava para cima, quando também chegava no topo as pessoas subiam e a viagem seguia –, as vozes da vizinhança, o mundo gira, mas dentro da casa tudo parecia imutável

acho que mamãe também conversou com as paredes, creio que conheciam seu toque e sua voz, isso não me traz conforto, mas melancolia, não enxerguei tantas amarras que a prenderam em sua vida, amarras de amor, por certo, quero acreditar, mas também de solidão

preciso acreditar que quando voltávamos da escola, a casa ganhava vida, nossas vozes misturavam-se aos cheiros da comida já preparada, depois, saíamos para jogar bola nas várzeas da vila, por toda à tarde, não escutávamos seus chamados, Maurooooo, Rogeeeeerio, Ricaaaaardo!

não sei se havia beleza nos detalhes ou pequenas vitórias, mas ainda sinto o amor que foi construído dia após dia, entre a solidão inevitável daqueles dias e as alegrias compartilhadas

lembro mamãe com as mãos sempre ocupadas, hoje sei que seus pensamentos voavam muito longe das tarefas exaustivas e da solidão que a acompanhou, culpo-me por não ter querido perceber isso tudo, bem antes de hoje, minha mãe

as suas risadas se misturam com suas lágrimas em mim, preciso acreditar que nunca a tratamos como parte da mobília, sem perceber seus olhos cansados, ansiosos por mais que as tarefas diárias de dona da casa

as roupas amontoadas para dobrar a louça suja na pia a vassoura o pano de pó a mãe a esposa a mulher

um mulherão

em meio aos meus dias repetidos sem minha mãe, descobri sua história, olho para o quadro à minha frente, vocês dois sorrindo abraçados, ensinando que até podemos viver separados uns dos outros, é uma escolha, mas pode não ser o melhor jeito de viver, demorei demais para dizer, Minha mãe, eu te amo.

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