sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção V (2)

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção V

SOLUÇÃO CÉTICA DESTAS DÚVIDAS 
SEGUNDA PARTE 

     Não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possa ultrapassar o estoque primitivo de ideias fornecidas pelos sentidos externos e internos, ela tem poder ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir estas ideias em todas as variedades da ficção e da fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série de eventos com toda aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo e um lugar particulares, concebê-los como existentes e descrevê-los com todos os pormenores que correspondem a um fato histórico, no qual ela acredita com a máxima certeza. Em que consiste, pois. a diferença entre tal ficção e a crença? Ela não se localiza simplesmente em uma ideia particular anexada a uma concepção que obtém nosso assentimento, e que não se encontra em nenhuma ficção conhecida. Pois, como o espírito tem autoridade sobre todas as suas ideias, poderia voluntariamente anexar esta ideia particular a uma ficção e, por conseguinte, seria capaz de acreditar no que lhe agradasse, embora se opondo a tudo que encontramos na experiência diária. Podemos, quando pensamos, juntar a cabeça de um homem ao corpo de um cavalo, mas não está em nosso poder acreditar que semelhante animal tenha alguma vez existido. 
     Conclui-se, portanto, que a diferença entre a ficção e a crença se localiza em algum sentimento ou maneira de sentir, anexado à última e não à primeira, que não depende da vontade e não pode ser manipulado a gosto. É preciso que a natureza a desperte como os outros sentimentos; é preciso que ela nasça da situação particular em que o espírito se encontra em cada conjuntura particular. Todas as vezes que um objeto se apresenta à memória ou aos sentidos, pela força do costume, a imaginação é levada imediatamente a conceber o objeto que lhe está habitualmente unido; esta concepção é acompanhada por uma maneira de sentir ou sentimento, diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eis toda a natureza da crença.[1] Visto que nossa mais firme crença sobre qualquer fato sempre admite uma concepção que lhe é contrária, não haveria, portanto, nenhuma diferença entre nosso assentimento ou rejeição de qualquer concepção, se não houvesse algum sentimento distinguindo uma da outra. Se vejo, por exemplo, uma bola de bilhar deslizar em direção de outra numa mesa polida, posso imaginar com clareza que uma parará ao chocar-se com a outra. Esta concepção não implica contradição, porém a sinto muito diferente da concepção pela qual me represento o impulso e a comunicação do movimento de uma bola a outra.
     Se tentássemos uma definição[2] deste sentimento, veríamos, talvez, que se trata de tarefa muito difícil, senão impossível; da mesma maneira como se tentássemos definir a sensação de frio ou a paixão de cólera a uma criatura que nunca teve a experiência destes sentimentos. Crença é o nome verdadeiro e próprio desta maneira de sentir; ninguém jamais se encontra em dificuldade para saber o significado daquele termo, porque cada um está, em todo momento, consciente do sentimento que representa. Sem dúvida, não seria impróprio tentar uma descrição deste sentimento esperando chegar, por este meio, a algumas analogias que poderiam fornecer uma explicação mais perfeita. Digo, pois, que a crença não é nada senão uma concepção de um objeto mais vivo, mais vivido, mais forte, mais firme e mais estável que aquela que a imaginação, por si só, seria capaz de obter. Uso esta variedade de termos, embora tão pouco filosófica, com a única intenção de exprimir este ato de espírito que nos revela realidades, ou que se considera como tal, mais presentes a nós que as ficções, que as faz pensar mais no pensamento e lhes dá uma influência superior às paixões e à imaginação. Desde que concordamos no tocante à coisa, é desnecessário discutir acerca dos termos. A imaginação governa todas as suas ideias e pode uni-las, misturá-las e variá-las de todas as formas possíveis. Pode conceber objetos fictícios em todas as situações de espaço e de tempo. Pode colocá-los de certa maneira diante de nossos olhos com suas próprias cores, exatamente como se houvessem existido. Mas, como é impossível que essa faculdade da imaginação possa jamais, por si mesma, converter-se em crença, é evidente que a crença não consiste na natureza particular ou na ordem da ideias, mas na maneira como o espírito as concebe e as sente. Confesso que é impossível explicar com perfeição este sentimento ou esta maneira de conceber. Podemos usar palavras que expressam algo parecido. Mas o seu nome verdadeiro e próprio, como já dissemos, é crença: termo que cada um compreende suficientemente na vida corrente. Em filosofia, não podemos ir além da seguinte afirmação: crença é qualquer coisa sentida pelo espírito, que distingue as ideias dos juízos das ficções da imaginação. Ela lhes dá maior peso e influência; as faz parecer de maior importância; as reforça no espírito e as estabelece como princípios diretivos de nossas ações. Ouço agora, por exemplo, a voz de uma pessoa conhecida, e o som parece vir do quarto contíguo. Esta impressão dos meus sentidos conduz imediatamente meu pensamento à pessoa e, ao mesmo tempo, a todos os objetos circundantes. Eu os pinto para mim mesmo como existentes atualmente e com as próprias qualidades e relações que já sabia que possuíam. Estas ideias se apoderam de meu espírito mais depressa que as ideias de um castelo encantado. Sinto-as de modo muito diferente, e sua influência é bem maior, em todos os pontos de vista, tanto para produzir prazer e dor como alegria e tristeza.
     Consideremos, pois, esta doutrina em toda a sua extensão e concedamos que o sentimento da crença nada mais é do que uma concepção mais intensa e mais firme do que aquele que acompanha as puras ficções da imaginação, e que esta maneira de conceber nasce de uma conjunção costumeira do objeto com alguma coisa presente à memória e aos sentidos. Não será difícil, creio eu, com estas conjeturas, encontrar outras operações do espírito que lhe sejam análogas e ascender deste fenômeno a princípios ainda mais gerais.
     Já temos observado que a natureza estabeleceu conexões entre as ideias particulares, e que uma ideia, logo que aparece aos nossos pensamentos, introduz sua correlata e dirige nossa atenção na direção dela, mediante um movimento suave e insensível. Estes princípios de conexão ou de associação foram por nós reduzidos a três, a saber: semelhança, contiguidade e causalidade, que são os únicos laços que unem entre si nossos pensamentos e que engendram a série regular de reflexão ou do discurso que, em maior ou menor grau, se realiza entre todos os homens. Ora aqui surge um problema do qual dependerá a solução da presente dificuldade. Admitindo-se que em todas as relações, quando um dos objetos é revelado aos sentidos ou à memória, o espírito não é apenas induzido a conceber seu correlato, mas o concebe de maneira mais firme e mais forte, indagamos se esta nova concepção poderia ser alcançada de outro modo? Parece-nos que é o que ocorre com a crença originada da relação de causa e efeito. Ora, se o mesmo fenômeno se verifica em outras relações ou princípios de associação, poder-se-ia considerá-las uma lei geral ocorrendo em todas as operações do espírito.
     Portanto, podemos constatar, como primeiro experimento em vista de nossos fins atuais, que, quando nos defrontamos com o retrato de um amigo ausente, é evidente que sua ideia nos é avivada pela semelhança, e que toda paixão engendrada por esta ideia — quer de alegria, quer de tristeza — adquire nova força e novo vigor. Para a produção deste efeito, concorrem simultaneamente uma relação e uma impressão presente. Se o retrato não é semelhante ao nosso amigo ou não foi ao menos feito para assemelhar-lhe, jamais faz convergir nosso pensamento para ele; se tanto o retrato como a pessoa estiverem ausentes, embora o espírito possa passar do pensamento de um para o da outra, sente que sua ideia se acha mais enfraquecida do que avivada por esta transição. Sentimos prazer quando vemos o retrato de um amigo; porém, quando ele é retirado, preferimos considerar nosso amigo diretamente a fazê-lo através de sua imagem refletida que é, ao mesmo tempo, distante e obscura.
     As cerimônias da religião católica romana podem considerar-se como exemplos da mesma natureza. Os devotos desta superstição alegam geralmente, desculpando as momices que lhes censuram, que sentem o bom efeito destes movimentos exteriores, de posturas e ações que avivam sua devoção e estimulam seu fervor, que de outro modo seriam enfraquecidos se se dirigissem inteiramente a objetos distantes e imateriais. Representamos os objetos de nossa fé, dizem eles, com símbolos e imagens sensíveis, aproximando-os assim de nós pela presença imediata destes símbolos do que pela mera visão intelectual e contemplativa. Os objetos sensíveis influem com mais vigor sobre a fantasia do que quaisquer outros e comunicam mais depressa esta influência às ideias com as quais se relacionam e se assemelham. Inferirei somente, destas práticas e deste raciocínio, que o efeito da semelhança avivando ideias é bastante comum; e como em todos os exemplos concorrem uma semelhança e uma impressão presente, consideramo-nos fartamente abastecidos de experimentos comprovantes da realidade do princípio precedente.
     Podemos reforçar estas experiências com outras de gênero diferente, considerando os efeitos da contiguidade do mesmo modo que os da semelhança. Certamente, a distância diminui a força de toda ideia, e quando nos aproximamos de um objeto, mesmo se ele não se revela aos nossos sentidos, age sobre o espírito com influência parecida a uma impressão imediata. Pensar num objeto faz convergir imediatamente o espírito ao que lhe é contíguo; porém, é unicamente a presença real de um objeto que o transporta com vivacidade superior. Encontrando-me a poucas milhas de minha casa, qualquer coisa que se relaciona com ela me toca mais de perto do que quando estou a duzentas léguas, embora, mesmo a esta distância, se reflito sobre qualquer objeto situado próximo de meus amigos ou de minha família, esta reflexão produz naturalmente a id5ia deles. Mas, considerando que, neste exemplo, os dois objetos do espírito são apenas ideias e não obstante a fácil transição de uma a outra, esta transição, por si mesma, é incapaz de dotar de vivacidade superior quaisquer id5ias, porque ela carece de uma impressão imediata.[3]
     Ninguém deve duvidar que a causalidade tem influência idêntica às relações de semelhança e de contiguidade. Os supersticiosos afeitos às relíquias dos santos e de personagens sagradas procuram, por esta razão, símbolos ou imagens que possam avivar sua devoção e fornecer-lhes concepção mais íntima e mais forte das vidas exemplares que visam a imitar. Ora, é evidente que uma das melhores relíquias procuradas por um devoto seria um objeto feito pelo próprio santo; e se se consideram suas roupas e móveis sob este prisma, é porque estiveram uma vez à disposição do santo que os tocou e, portanto, os influenciou. Devem, contudo, considerar-se como efeitos imperfeitos e ligados ao santo por uma cadeia de consequências mais curtas do que algumas daquelas pelas quais adquirimos conhecimento sobre sua existência real.
     Supondo, de outro lado, que vos fosse apresentado o filho de um amigo morto ou ausente há muito tempo; certamente, este objeto reviveria num instante sua ideia correlata e faria retomar ao nosso pensamento todas as intimidades e familiaridades passadas, em cores mais vivas do que aquelas que de outro modo vos teriam aparecido. Este é outro fenômeno que parece comprovar o princípio acima mencionado.
     Devemos assinalar que nestes fenômenos sempre se pressupõe a crença no objeto correlato, sem o que a relação não teria nenhum efeito. O retrato exerce influência porque cremos que nosso amigo alguma vez já existiu. A contiguidade com nossa casa não pode jamais estimular nossas ideias sobre ela, a menos que creiamos que a casa realmente existe. Ora, afirmo que esta crença — se se estende além dos dados da memória ou dos sentidos — é de natureza semelhante e surge de causas semelhantes à transição do pensamento e vivacidade da concepção, aqui explicadas. Quando lanço ao fogo um pedaço de lenha seca, meu espírito se vê obrigado imediatamente a conceber que ela aviva em vez de extinguir a chama. Esta transição do pensamento da causa ao efeito não se baseia na razão. Sua origem deriva completamente do hábito e da experiência. Visto que a transição se origina de um objeto presente aos sentidos, este incorpora à ideia ou à concepção da chama mais força e vivacidade do que qualquer devaneio vago e flutuante da imaginação. Esta ideia nasce imediatamente. E o pensamento converge instantaneamente para a ideia, transferindo-lhe toda a força conceptual que deriva da impressão presente aos sentidos. Se uma espada estiver apontada para o meu peito, as ideias de ferimento e dor que a acompanham não me atingem com mais força do que se me apresentam um copo de vinho, e mesmo supondo que por acaso esta ideia surgisse após o aparecimento do último objeto? Mas, o que é que causa uma concepção tão forte, senão unicamente a presença de um objeto, e a transição costumeira para a ideia de outro objeto, que nos acostumamos a juntar com a primeira? Eis toda operação do espírito em todas as nossas conclusões referentes às questões de fato e de existência; e já é uma satisfação encontrar algumas analogias que podem explicá-la. A transição a partir de um objeto presente dá, em todos os casos, força e solidez à ideia com a qual está relacionado.
     Eis, pois, uma espécie de harmonia preestabelecida entre o curso da natureza e a sucessão de nossas ideias; e embora os poderes e as forças que governam a primeira nos sejam totalmente desconhecidos, achamos que nossos pensamentos e nossas concepções se têm sempre desenrolado na mesma sequência que as outras obras da natureza. O costume é o princípio que tem realizado esta correspondência, tão necessária para a conservação de nossa espécie e para o regulamento de nossa conduta em todas as circunstâncias e situações da vida humana. Se a presença de um objeto não despertasse instantaneamente a ideia dos objetos que comumente estão unidos a ele, todo nosso conhecimento deveria limitar-se à estreita esfera de nossa memória e de nossos sentidos, e jamais seríamos capazes de adaptar os meios em vista dos fins ou de empregar nossos poderes naturais para produzir o bem ou evitar o mal. Aqueles que se deliciam na descoberta e na contemplação das causas finais, têm aqui amplo objeto para empregar a sua curiosidade e espanto.
     Acrescentarei reforçando a teoria precedente — que esta operação do espírito, permitindo-nos inferir efeitos semelhantes de causas semelhantes e vice-versa, por ser tão essencial para a conservação de todos os seres humanos, não poderia ser confiada às falazes deduções da razão humana, que é lenta em suas Operações e não se manifesta, em qualquer grau, nos primeiros anos de nossa infância e, no melhor dos casos, no decorrer da vida humana acha-se mais exposta ao erro e ao engano. Conforma-se mais com a sabedoria ordinária da natureza assegurar-se de um ato tão necessário do espírito graças a um instinto ou tendência mecânica, que pode ser infalível em suas operações e pode revelar-se a partir do nascimento da vida e do pensamento e, demais, independe de todas as elaboradas deduções de entendimento. Do mesmo modo que a natureza nos ensinou a usar nossos membros sem esclarecer-nos acerca dos músculos e nervos que os movem, ela também implantou em nós um instinto que impulsiona o pensamento num processo correspondente ao estabelecido entre os objetos externos, embora mantendo-nos ignorantes destes poderes e forças dos quais dependem totalmente o curso regular e a sucessão de objetos.

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Notas:
[1] Hume acrescenta, no “Appendix” do Tratado, um novo elemento para explicar a crença. Salienta que um “segundo erro pode ser encontrado no primeiro livro, página 96, quando digo que duas ideias de um mesmo objeto podem ser discriminadas apenas por seus diferentes graus de força e vivacidade. Acredito que há outra diferença entre as ideias que não podem ser adequadamente compreendidas com aqueles termos. Se tivesse dito que duas ideias de um mesmo objeto podem diferenciar-se apenas por seus diferentes feefing [traduzimos por “maneira de sentir”], estaria bem mais próximo da verdade” (p. 636). Esta nova discussão da natureza da crença ocupa nove das dezessete páginas do “Appendix”, e seu principal aspecto consiste em mostrar que a crença é um feeling. Convém lembrar que, no corpo do Tratado, em nenhum momento a crença é designada como feeling. Tendo, porém, introduzido esse acréscimo no “Appendix”, Hume permanece coerente com a mesma doutrina na Investigação. [N. do T.]
[2] Hume anota que a crença constitui um ato do espírito jamais “explicado por nenhum filósofo” (Tratado, 1, iii, vil, p. 97, nota). Mostra, por exemplo, que não custa muito explicar como uma “pessoa” considera verdadeiras as proposições demonstrativas ou intuitivas, já que quando ela “decide, não apenas concebe as ideias segundo a proposição, mas é necessariamente determinada a concebê-las de um modo específico”(Idem, p. 95). Mas o que é evidente para a demonstração não o é em relação à crença baseada nos raciocínios de causalidade, nos quais a “necessidade absoluta não se verifica, e a imaginação é livre para conceber os dois aspectos da questão” (Ibidem, p. 95). [N. do T.]
[3] “Poderia dizer, ele respondeu, que é uma disposição natural ou não sei qual ilusão que nos deixa intensamente comovidos quando vemos os lugares pelos quais, como nos informaram, homens dignos de memória passaram longo tempo, do que quando nos falam a respeito deles ou lemos alguma coisa escrita por eles? Eu, por exemplo, estou agora comovido. Platão surge em minha mente, e, pelo que sabemos, ele foi o primeiro homem a realizar aqui discussões regulares: estes pequenos jardins, tão próximos de nós, não apenas despertam em mim a lembrança de Platão, mas apresentam, por assim dizer, sua imagem diante de meus olhos. Era aqui que estava Espeusipo, lá Xenócrates e acolá seu discípulo, Polemo, que sentava geralmente naquele lugar. Em verdade, quando vi a sede de nosso Senado (refiro-me à que foi construída por Hostilio e não ao novo prédio, que quase não me comove depois que foi ampliado), pensei em Cipião, Catão e Lélio, mas sobretudo em meu avô. E tão grande o poder dos lugares para despertar recordações que, com muita razão, o treinamento da memória deriva deles” Cícero, De Finibus, v. 2 (Hume). [Trad. por Anoar Aiex].

Poetanda: Fanatismo

Florbela Espanca


Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!..."



MARÍLIA PÊRA lendo o poema FANATISMO, de Florbela Espanca.




e virou música, lembram?...

Fagner - Fanatismo





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Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (Prefácio - 2)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

Prefácio
     2 - 
          No tocante às provas em si, o fato de este livro haver sido concebido e escrito há tanto tempo não foi tão desvantajoso como se poderia supor, e isto se aplica ao que escrevemos tanto a respeito do totalitarismo nazista como do bolchevista. Uma das estranhezas da literatura sobre o totalitarismo é que as tentativas prematuras por parte de contemporâneos de escrever a sua "história" — que, segundo as regras acadêmicas, deveriam esbarrar na ausência de fontes impecáveis de documentação e no super envolvimento individual — resistem relativamente bem à prova do tempo. A biografia de Hítler por Konrad Heiden e a biografia de Stálin por Boris Souvarine, ambas escritas e publicadas nos anos 30, são em alguns aspectos mais precisas, e em quase todos os aspectos mais relevantes, que as biografias clássicas de Alan Bullock e Isaac Deutscher, respectivamente. Haverá muitas razões para isso, mas uma delas certamente é o simples fato de que o material documentário, em ambos os casos, tendeu a confirmar e a acrescentar ao que já se sabia há muito tempo, através de proeminentes desertores e relatos de outras testemunhas oculares.
     Podemos dizer um tanto drasticamente: não foi preciso o discurso secreto de Nikita Khrushchev para que soubéssemos que Stálin havia cometido crimes, nem que esse homem, que se supunha "loucamente desconfiado", havia decidido confiar em Hitler. Quanto a esse último fato, é a melhor prova de que Stálin «não era louco. Tinha razão de suspeitar de todos os que desejava ou se preparava para eliminar, e estes eram sempre os que ocupavam posição de destaque nos escalões superiores do partido e do governo, e confiava naturalmente em Hitler porque não lhe desejava mal. Quanto ao primeiro fato, as surpreendentes confissões de Khrushchev escondiam muito mais do que revelavam — pela óbvia razão de que tanto ele como os seus ouvintes estavam totalmente envolvidos na verdadeira história. Em consequência, indivíduos eruditos, com o seu amor profissional pelas fontes oficiais, minimizaram a gigantesca criminalidade do regime de Stálin, que, afinal de contas, não consistiu meramente na calúnia e no assassinato de uns poucos milhares de figuras importantes do campo político e literário, "reabilitáveis" postumamente, mas no extermínio de um número literalmente sem conta de milhões de pessoas que ninguém, nem mesmo Stálin, podia acusar de atividades "contra revolucionárias". Foi precisamente por admitir alguns crimes que Khrushchev escondeu a criminalidade do regime como um todo, e é contra essa camuflagem e contra a hipocrisia dos atuais dirigentes russos — todos treinados e promovidos por Stálin — que as gerações mais jovens de intelectuais russos entraram em rebelião quase aberta. Estes sabem tudo o que se pode saber a respeito de "expurgos em massa, e deportação e aniquilação de povos inteiros".[5] Além disso, a explicação de Khrushchev para os crimes que confessou era simplória: a demência de Stálin; mas escondia o aspecto mais característico do terror totalitário, que é desencadeado quando toda a oposição organizada já desapareceu e quando o governante totalitário sabe que já não precisa ter medo. Stálin iniciou os seus gigantescos expurgos não em 1928, quando admitia que "temos inimigos internos", e quando realmente tinha motivos de receio — pois sabia que Bukharin, convencido de que sua política "estava levando o país à fome, à ruína e a um regime policial",[6]  como realmente levou, o comparava a Gengis Khan —, mas em 1934, quando todos os antigos oponentes haviam "confessado os seus erros", e o próprio Stálin, no Décimo Sétimo Congresso do Partido, que ele também chamou de "Congresso dos Vencedores", havia declarado: "Neste Congresso (...) já não há o que provar e, ao que parece, não há ninguém mais a combater".[7]
     No que tange ao nosso conhecimento da era de Stálin, o arquivo de Smolensk, citado acima e publicado por Fainsod, é ainda sem dúvida o mais importante documento, e é deplorável que a primeira seleção, feita ao acaso, não tenha sido ainda seguida de outra mais extensa. A julgar pelo livro de Fainsod, há muito o que aprender no tocante ao período da luta de Stálin pelo poder em meados da década de 20: sabemos agora como era precária a posição do Partido,[8] não somente porque prevalecia no país um ânimo de franca oposição, mas também porque infestavam-no a corrupção e a embriaguez, que quase todas as exigências de liberalização eram acompanhadas de um anti-semitismo declarado[9] e que o esforço de coletivização e eliminação dos kulaks, de 1928 em diante, na verdade interrompeu a NEP, a Nova Política Econômica de Lênin, e com ela a embrionária reconciliação entre o povo e o seu governo.[10] Sabemos também como era feroz a oposição solidária de toda a classe camponesa, que achava "melhor não ter nascido do que aderir aos kolkhoz",[11] e condenava essas medidas, recusando-se a ser classificada em camponeses ricos, médios e pobres, para ser a seguir recrutada para a luta contra os kulaks,[12]  pois havia "alguém pior do que os kulaks, sentado em alguma parte, planejando a campanha de perseguição contra o povo";[13] e que a situação* não era muito melhor nas cidades, onde os trabalhadores se recusavam a cooperar com os sindicatos controlados pelo partido, chamando a gerência de "diabos bem-alimentados", "espiões hipócritas", entre outros epítetos.[14]
     Fainsod aponta, com razão, que esses documentos mostram claramente não apenas "o descontentamento geral", mas também a falta de qualquer "oposição suficientemente organizada" contra o regime como um todo. O que ele deixa de observar, e o que, em minha opinião, é igualmente corroborado pelas provas, é que existia uma alternativa óbvia para a tomada do poder por Stálin e a sua transformação da ditadura unipartidária em domínio total, e essa alternativa era a continuação da Nova Política Econômica tal como havia sido iniciada por Lênin.[15] Além disso, as medidas tomadas por Stálin com a introduçãcuiaPrimeiroílano Qüinqüenal, de 1928, quando o seu controle do partido era quase completo, demonstram que a transformação das classes em massas e a concomitante eliminação da solidariedade grupai são condições sine qua non do domínio total.
     Com relação ao período de inconteste domínio de Stálin, de 1929 em diante, o arquivo" de Smolensk tende a confirmar o que já sabíamos antes através de fontes menos irrefutáveis. Isso se aplica até a algumas de suas estranhas lacunas, especialmente quanto a dados estatísticos. Pois essa falta de dados prova apenas, neste ponto como em outros, que o regime de Stálin era cruelmente coerente: eram tratados como mentiras todos os fatos que não concordassem, ou pudessem discordar, com a ficção oficial, fossem dados sobre as colheitas de trigo, a criminalidade ou as reais ocorrências de atividades "contrarrevolucionárias". Todas as regiões e todos os distritos da União Soviética recebiam os seus dados estatísticos oficiais como recebiam as normas, não menos fictícias, que lhes eram destinadas pelos Planos Qüinqüenais.[16]
     Enumerarei brevemente alguns dos pontos mais importantes que antes apenas podíamos adivinhar, e que agora são confirmados pela prova documentária. Sempre suspeitamos, e agora sabemos, que o regime nunca foi "monolítico", mas "conscientemente construído em torno de funções superpostas, duplicadas e paralelas", e que o que segurava essa estrutura grotescamente amorfa era o mesmo princípio de liderança — o chamado "culto da personalidade" — que encontramos na Alemanha nazista;[17] que o ramo executivo desse governo não era o partido, mas a polícia, cujas "atividades operacionais não eram reguladas através de canais do partido";[18] que as pessoas inteiramente inocentes, as quais o regime liquidava aos milhões, os "inimigos objetivos" na linguagem bolchevista, sabiam que eram "criminosos sem crime";[19] que foi precisamente essa nova categoria, e não os antigos e verdadeiros inimigos do regime — assassinos de autoridades, incendiários ou terroristas —, que reagiu com a mesma "completa passividade" [20] que vimos tão bem na conduta das vítimas do terror nazista. Nunca duvidamos de que o "dilúvio de denúncias mútuas" durante o Grande Expurgo foi tão desastroso para o bem-estar econômico e social do país como foi eficaz para fortalecer o governante totalitário, mas só agora sabemos quão deliberadamente Stálin colocou essa "ominosa cadeia de denúncias em movimento",[21] quando proclamou oficialmente a 29 de julho de 1936: A qualidade inalienável de cada bolchevista nas condições atuais deve ser a capacidade de reconhecer um inimigo do Partido, não importa como ele se disfarce.[22] Pois, tal como a "soluçã,o final" de Hitler significava tornar realmente obrigatório para a elite do partido nazista o mandamento "Matarás", o pronunciamento de Stálin recomendava como regra de conduta para todos os membros do partido bolchevista:

"Levantarás falso testemunho". Finalmente, todas as dúvidas que ainda se poderiam alimentar quanto à verdade da teoria segundo a qual o terror dos anos 20 e 30 foi "o alto preço da dor", exigido pela industrialização e pelo progresso econômico, dissipam-se com esse primeiro documento do verdadeiro estado de coisas, relativo a uma região em particular.[23] O terror não produziu industrialização nem progresso. O que a eliminação dos kulaks, a coletivização e o Grande Expurgo produziram foi a fome, as caóticas condições da produção de alimentos e o despovoamento. As consequências têm sido uma perpétua crise na agricultura, uma interrupção do crescimento populacional e a incapacidade de desenvolver e colonizar o interior da Sibéria. Além disso, como o arquivo de Smolensk mostra em detalhes, os métodos stalinistas de governo conseguiram acabar com toda a competência e know-how técnico que o país havia adquirido após a Revolução de Outubro. Tudo isso é realmente um "preço" incrivelmente alto, cobrado não apenas em dor, pela abertura de vagas no partido e na burocracia do governo para setores da população que, muitas vezes, não eram apenas "politicamente analfabetos".[24] Na verdade, o preço do regime totalitário foi tão alto que ainda não foi inteiramente pago na Alemanha pós-nazista nem na Rússia pós-stalinista.  

Parte III Totalitarismo (Prefácio - 2)
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[5] Às vitimas do Primeiro Plano Qüinqüenal (Piatiletka: 1928-33), estimadas em 9 a 12 milhões de pessoas, é preciso adicionar aproximadamente 3 milhões de executados durante os Grandes Expurgos e de 5 a 9 milhões de deportados. Mas todas essas estimativas ainda parecem situar-se aquém da realidade factual. Prova disso são diversas execuções maciças (como a de milhares de pessoas, descoberta pelos alemães em Vinitsa, que data de 1937 ou 1938) e das quais nada se sabia no Ocidente. Isso reforça a semelhança existente entre os regimes nazista e bolchevista, a despeito das variantes entre esses dois modelos.
[6] Tucker, op. cit., pp. XVII-XVIII.
[7] Citado por Merle Fainsod em How Rússia is ruled, Cambridge, 1959, p. 516. Segundo Abdurakham Avtorkhanov (que, sob o pseudônimo de Uralov, publicou, em 1953, em Londres, o livro The reign of Stálin), numa reunião secreta do Comitê Central do Partido, realizada em 1936, Bukharin teria acusado Stálin de transformar o partido de Lênin em um Estado policial. De qualquer modo, segundo Fainsod (op. cit., pp. 449 ss.), o descontentamento geral era particularmente forte entre os componentes e, até 1928, as greves não eram raras na União Soviética.
[8] "O curioso não é que o Partido fosse vitorioso, mas que ele conseguiu simplesmente sobreviver" (Fainsod, op. cit., p. 38).
[9] Um relato de 1929 menciona violentas manifestações antissemitas durante uma reunião, estando os jovens do Komsomol tacitamente solidários com os atacantes dos judeus (ibid., pp. 49 ss.).
[10] Os relatórios de 1926 falam da diminuição dos participantes nas manifestações "contra-revolucionárias", o que corresponde "à trégua que o regime deu ao campesinato". Comparados aos de 1926, os relatórios de 1929-30 "parecem-se com os comunicados de uma frente de batalha" (ibid.,p. 177).
[11] Ibid., pp. 252ss.
[12] Ibid., especialmente pp. 240 ss. e 446 ss.
[13] Ibid. Todas as declarações desse tipo provêm dos relatórios da GPU; ver especialmente pp. 248 ss. Mas é bastante característico que tais observações tenham se tornado muito menos freqüentes após 1934, o começo do Grande Expurgo.
[14] Ibid.,p. 310.
[15] A literatura sobre esse assunto negligencia em geral tal alternativa, por causa da convicção — compreensível, embora historicamente insustentável — de que houve, de Lênin a Stálin, uma evolução normal. É verdade que Stálin se utilizava de terminologia leninista, mas, como lembra Tucker, "Stálin preencheu os velhos conceitos leninistas com o conteúdo novo, eminentemente stalinista" (Robert C. Tucker: "Stálin, Bukharin and history as conspiracy", em The Great Purge trial, Nova York, 1965, p. XVI). A diferença não consiste apenas na brutalidade — na "loucura" — de Stálin, mas também na insistência totalmente anti-leninista, por parte dele, de que a história se desenrola atualmente sob o signo da conspiração constante contra a revolução.
[16] Ver Fainsod, op. cit., especialmente pp. 365 ss.
[17] Ibid., pp. 93 e 71. É característico constatar que todas as mensagens, em todos os níveis, se referiam às obrigações para com "o camarada Stálin" e jamais para com o regime, o partido ou o país. A semelhança entre os dois sistemas — o nazista e o comunista — transparece da comparação entre as declarações dos chefes nazistas logo após a derrota alemã ("Hitler de nada sabia, os culpados eram os líderes locais, chefes de polícia" etc.) e dos escritores e intelectuais que, como Ilia Ehrenburg, compactuaram com o stalinismo, dizendo depois (cf. Tucker, op. cit., p. XIII) que "Stálin de nada sabia" quanto às atrocidades cometidas, a culpa sendo de tal ou qual chefe de polícia local.
[18] Ibid., pp. 166ss.
[19] As palavras são tiradas do apelo de "um elemento individualista" de 1936: "Não quero ser criminoso sem crime" (p. 229).
[20] Um relatório da GPU, de 1931, sublinha a "completa apatia" e passividade resultantes do terror exercido sobre os inocentes. Ele menciona a diferença entre a resistência inicial, quando um homem, "inimigo do regime", mobilizava dois milicianos no seu aprisionamento, e os aprisionamentos maciços, quando "um miliciano pode conduzir grandes grupos que marcham tranquilamente sem que ninguém sequer tente fugir" (p. 248).
[21] Ibid.,p. 135.
[22] Ibid., pp. 57-8. No tocante à histeria crescente e às denúncias maciças, ver também as pp. 222 e 229 ss. e a deliciosa história da p. 235, onde ficamos sabendo como um dos camaradas estava convicto de que "o camarada Stálin havia tido uma atitude conciliatória frente ap grupo trotskista-zinovievista", uma acusação que, na época, implicava no mínimo a expulsão imediata do partido. Mas ele não teve tal sorte. O orador seguinte acusou-o de ser "politicamente desleal" ao criticar o camarada Stálin, após o que ele prontamente "confessou" seu erro.
[23] Fainsod não é o único autor que tira conclusões desse tipo, embora elas sejam tão incompatíveis com os fatos revelados pelos documentos. O terror e a permanente instabilidade que ele cria permitem manter o totalitarismo, como contribuem também para organizar o sistema de satélites, enquanto a gradativa liberalização da Rússia soviética, embora levasse ao reforço da sua economia, a fez perder o controle tanto sobre os satélites quanto sobre os cidadãos.
[24] Quando, em 1922, os "professores reacionários", isto é, não pertencentes ao partido, foram eliminados, provocando protestos dos estudantes que quiseram manter o corpo docente de alto nível independentemente da filiação política, os expurgos atingiram de imediato os "elementos individualistas" entre os estudantes. Aliás, é provável que um dos alvos dos Grandes Expurgos fosse abrir carreiras à geração jovem criada após a Revolução e sem contato com o passado.

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap I - E esta censura era particularmente estúpida)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra

Capítulo Primeiro
Segunda Parte

continuando...

     E esta censura era particularmente estúpida, pois as palavras francesas, de que somos tão orgulhosos de pronunciar corretamente, não passam elas mesmas de "erros" cometidos por bocas gaulesas que pronunciavam arrevesadamente o latim ou o saxão, não passando a nossa língua da pronúncia defeituosa de algumas outras. O gênio linguístico é o estado vivo, o passado e o futuro do francês, eis o que deveria interessar nos erros de Françoise. A "cerzidora" em vez de "cerzideira" não seria tão curioso como aqueles animais sobreviventes de épocas remotas, como baleia ou a girafa, e que nos mostram os estágios que a vida animal atravessou? 

- E acrescentei - Já que você, depois de tantos anos, ainda não aprendeu, quer dizer que jamais aprenderá. Console-se, pois isto a impede de ser uma excelente pessoa e de preparar às maravilhas: bifes; geleia e mais uma infinidade de coisas. O chapéu que você acha simpático é copiado de um chapéu da princesa de Guermantes que custou quinhentos francos. Aliás, pretendo em breve oferecer um outro ainda mais belo à Srta. Albertine.

     Eu sabia que o que mais podia aborrecer a Françoise, que eu gastasse dinheiro com pessoas de quem ela não gostava. Respondeu-me com algumas palavras que uma brusca sufocação tornou inteligíveis. Quando mais tarde soube que ela sofria do coração, quanto remorso não senti por jamais me recusar ao prazer feroz e estéril de retrucar desse modo às suas palavras! Ademais, Françoise detestava Albertine porque esta, sendo pobre, não poderia aumentar o que Françoise chamava minhas superioridades. Sorria benévola cada vez que eu era convidado pela Sra. de Villeparisis. Em troca, indignava-se por Albertine não praticar a reciprocidade. Eu fora obrigado a inventar supostos presentes dados por esta e em cuja existência Françoise jamais dera o menor sinal de fé. Essa falta de reciprocidade a chocava sobretudo em matéria alimentar. Que Albertine aceitasse jantares de mamãe, se não éramos convidados para ir à casa da Sra. Bontemps (a qual, no entanto, passava a metade do tempo fora de Paris, já que o marido aceitava "postos" como outrora, quando estava farto do ministério), isto lhe parecia da parte de minha amiga uma indelicadeza que ela indiretamente punia, recitando esta quadrinha corrente em Combray: 

Mangeons mon pain, - Je le veux bien. - Mangeons le tien. - Je n'ai plus faim. ["Comamos o meu pão, / Com todo o prazer. /Comamos o teu. /- Já não tenho fome." (N. do T)]  

     Fingi que estava escrevendo. 

- A quem escreve? - perguntou Albertine entrando. 
- A uma bela amiga minha, Gilberte Swann. Não a conhece? 
- Não.  

     Desisti de fazer a Albertine algumas perguntas sobre a sua noitada, sentia que lhe faria censuras e que não teríamos tempo, em vista do adiantado da hora, de nos reconciliarmos o bastante para passar aos beijos e carícias. Assim, foi com eles que eu quis começar desde o primeiro minuto. Além disso, se estava mais calmo, nem por essa razão me sentia feliz. A perda de toda bússola, de toda orientação, que caracteriza a espera, subsiste mesmo após a vinda da pessoa esperada e, substituindo em nós a calma em que imaginávamos a sua chegada com tanto prazer, impede-nos de sentir o menor prazer que seja. Ali estava Albertine; meus nervos destroçados, continuando com sua agitação, esperavam-na ainda. 

- Posso dar-lhe um bom beijo, Albertine? 
- Tantos quantos quiser - disse ela com toda a sua bondade. Eu nunca a vira tão bonita. 
- Mais um ainda? Mas você sabe que isto me dá um prazer imenso. 
- E a mim, ainda mil vezes mais - respondeu ela. - Oh, que linda pasta de papéis você tem aí! 
- Leve-a, dou-lhe como lembrança. 
- Você é tão gentil...

     Ficaríamos para sempre curados do romantismo, se, para se pensar naquela a qual amamos, procurássemos ser aquele que seremos quando não mais amamos. O porta-papéis, a bolinha de ágata de Gilberte, tudo isso recebeu outrora a sua importância apenas de um estado puramente interior, visto; agora eram para mim um porta-papéis e uma bolinha quaisquer.
     Perguntei a Albertine se não queria beber. 

- Parece-me que laranjas e água - disse-me ela - Seria perfeito.  

     Assim, pude destacar com seus beijos aquele frescor que me parecia superior a eles, na casa da princesa de Guermantes. E a laranja espremida na água parecia entregar, à medida que ia bebendo, a vida secreta de seu amadurecimento, sua feliz mistura contra certos estados desse corpo humano que pertence a um reino diverso, sua impotência em fazê-lo viver, mas em compensação os jogos irrigadores pelos quais lhe podia ser favorável, sem mistérios revelados; desfruta à minha sensação, mas de modo algum à minha inteligência.
     Depois que Albertine saiu, lembrei-me que prometera à Swann escrever à Gilberte e achei mais gentil fazê-lo imediatamente. Foi sem emoção, e como que escrevendo a última linha de um tedioso dever de aulas; que tracei sobre o envelope o nome de Gilberte Swann com que outrora cobrira meus cadernos para dar-me a ilusão de que me correspondia com ela. E eu, se era eu quem antigamente escrevia esse nome, agora a tarefa estava entregue, pelo hábito, a um desses numerosos secretários de que ela se utiliza. Aquele podia, com tanto mais calma, escrever o nome de Gilberte visto que, posto em mim recentemente pelo hábito, recém-colocado a serviço, não conhecera Gilberte e sabia apenas, sem emprestar realidade nenhuma a essas palavras, porque me ouvira falar delas, que se tratava de uma jovem da qual estivera enamorado. Não podia acusá-lo de secura. O indivíduo que eu era agora dela era a "testemunha" mais bem escolhida para compreender o que ela própria havia sido. O porta-papéis e a bolinha de ágata tinham-se tornam, simplesmente para mim, relativamente a Albertine, o que haviam sido à Gilberte, o que teriam sido para toda criatura que não tivesse lançada sobre eles o reflexo de uma chama interior. Mas agora, havia em mim uma nova perturbação, que alterava, por sua vez, o verdadeiro poder das coisas e das palavras. E, como Albertine me dissesse, ainda para me agradecer: 

- Gosto tanto de turquesas! - respondi-lhe: 
- Não deixe morrer estas que estou confiando-lhe-, assim como às pedras, o futuro da nossa amizade, que no entanto, não era mais capaz de inspirar a Albertine um sentimento do quanto fora de conservar aquele que me unira outrora a Gilberte.

     Aconteceu por essa época um fenômeno que só merece ser mencionado porque se encontra em todos os períodos importantes da História. No momento mesmo em que eu escrevia à Gilberte, o Sr. de Guermantes, mal tendo regressado do baile à fantasia, ainda adornado com seu capacete, pensava que no dia seguinte se veria forçado a estar oficialmente de luto, e decidiu antecipar em oito dias a estação de águas que deveria fazer. Quando voltou, três semanas depois (e para adiantar, visto que apenas acabo de escrever a minha carta à Gilberte), os amigos do duque que o tinham visto, tão indiferente a princípio, tornar-se um antidreyfusista furioso, ficaram mudos de surpresa ao ouvi-lo (como se a estação de águas não tivesse agido unicamente na bexiga) responder-lhes: 

- Pois bem, o processo será revisado e ele vai ser absolvido; não se pode condenar um homem contra o qual nada existe. Já viram alguma vez um gagá como Froberville? Um oficial preparando os franceses para a matança (quer dizer, para a guerra)! Época estranha! -

     Ora, nesse intervalo o duque de Guermantes conhecera na estação de águas três senhoras encantadoras (uma princesa italiana e suas duas cunhadas). Ouvindo-as dizer algumas palavras sobre os livros que liam, sobre uma peça que se representava no Cassino, o duque de súbito compreendera que tinha a haver-se com mulheres de intelectualidade superior e com quem, como dizia, não dispunha de forças. Nem por isso ficara menos contente de ser convidado pela princesa para jogar bridge. Porém mal chegara à casa desta, como lhe dissesse, no fervor de seu antidreyfusismo sem matizes: 

- Pois bem, não nos falam mais da revisão do famoso Caso Dreyfus -, grande fora a sua estupefação ao ouvir a princesa e as cunhadas afirmarem: 
- Nunca esteve tão próxima a revisão. É impossível manter na prisão quem nada fez. 
- Há?

     Há balbuciara a princípio o duque, como diante da descoberta de uma alcunha esquisita, que fosse usada numa casa para ridicularizar alguém que até então julgasse inteligente. Mas ao cabo de alguns dias, como por covardia e espírito de imitação a gente grita: 

- Olá, Jojotte! - sem saber por quê, a um grande artista a quem ouvimos chamar desse modo naquela casa, o duque, ainda bem constrangido pelo novo costume, entretanto dizia: 
- De fato, se não há nada contra ele. -

     As três damas encantadoras achavam que ele não se acostumava muito rápido e o maltratavam um pouco. 

- Mas no fundo, nenhuma pessoa um pouco inteligente poderia acreditar que houvesse algo contra ele. 

     De cada vez que surgia um fato "esmagador" contra Dreyfus, e o duque, julgando que aquilo iria convertê-las, vinha anunciá-lo, as três damas encantadoras riam muito e não tinham problemas, com uma grande finura de dialética, em mostrar-lhe que o argumento era sem valor e inteiramente ridículo. O duque voltara a Paris como um dreyfusista enraivecido. E com certeza nós não pretendemos que as três damas encantadoras fossem naquele caso mensageiras da verdade. Mas é de notar que a cada dez anos, quando se deixou um homem cheio de uma verdadeira convicção, ocorre que sendo inteligente, uma solitária dama encantadora entre no seu caminho e que ao fim de alguns meses o conduza à opiniões contrárias. Nesse ponto há muitos países que se comportam como o homem; muitos países aos quais deixaram cheios de ódio contra um povo e passados seis meses, mudaram de sentimento e desfizeram suas alianças.
     Durante algum tempo não vi mais Albertine, mas continuei, a visitar à Sra. de Guermantes, que já não falava à minha imaginação, ao palácio das fadas e suas residências, tão inseparáveis delas como, do molusco que fabricou e nela se abriga, a valva de nácar ou de esmalte, ou o torreão guarnecido de ameias de sua concha. Eu não saberia classificar melhor; sendo a dificuldade do problema tão insignificante, como impossível não de resolver, mas também de colocar. Antes da dama, era preciso abordar o palácio das fadas. Ora, uma recebia todos os dias após o almoço de verão; mesmo antes de chegar a sua casa, era necessário baixar a capota do fiacre, tão intenso era o sol, cuja lembrança, sem que eu me dê conta, ia entrar na impressão total. Pensava unicamente em ir ao CoaraIa-Reine; na verdade, antes de chegar à reunião de que um homem desconhece teria talvez zombado, eu sentia, como numa viagem pela Itália, um deslumbramento, um deleite de que o palácio não mais se separaria-: minha memória. Ademais, devido ao calor da estação e da hora, fechara hermeticamente os postigos nos vastos salões retangulares do andar térreo onde recebia. No princípio eu não reconhecia bem a dona de suas visitas, nem mesmo a duquesa de Guermantes que, com sua voz rouca, me pedia que fosse sentar-me junto dela, numa poltrona Beauvais que representava O Rapto de Europa. Depois distinguia, nas redes, as amplas tapeçarias do século XVIII que representavam barcos com mastros floridos de malvas-rosas, sob as quais eu me achava, não como no palácio do Sena, mas de Netuno, à margem do rio Oceano, onde a duquesa de Guermantes se transformava numa espécie de divindade da água. Não acabaria mais, se fosse enumerar todos os salões diferentes deste. Este exemplo basta para mostrar que eu incluía, nos juízos mundos de impressões poéticas que nunca levava em consideração no mundo de calcular o total, de modo que, quando avaliava os méritos de um salão, nunca era exato. Claro que essas causas de erro estavam longe de serem as únicas, mas não tenho mais tempo, antes de minha partida para Balbec (onde, para minha infelicidade, vou fazer uma segunda temporada que também seria a última), de iniciar pinturas da alta sociedade que terão seu lugar bem interiormente. Digamos apenas que àquela primeira falsa razão (minha relativamente frívola e que fazia supor o apego à sociedade) de minha carta à Gilberte e da volta aos Swann que ela parecia indicar, poderia Odette acrescentar tão inexatamente uma segunda. Não pensei até agora nos aspectos diferentes que a sociedade apresenta para uma mesma pessoa, senão supondo que o mundo não muda: se a mesma dama que não conhece ninguém vai à casa de todos, e uma outra, que desfrutava de uma posição dominante é desprezada, sentimo-nos tentados a ver nisso unicamente os altos e baixos puramente pessoais que, de quando em vez, trazem a uma mesma sociedade, em virtude de especulações na Bolsa, uma ruína estrondosa ou um enriquecimento inesperado. Ora, não é somente isso. Numa certa medida, as manifestações mundanas (muito inferiores aos movimentos artísticos, às crises políticas, à evolução que leva o gosto do público para o teatro de ideias, e depois para a pintura impressionista, para a música alemã e complexa, depois para a música russa e simples, ou para as ideias sociais, as ideias de justiça, a reação religiosa, o sobressalto patriótico, são entretanto o seu reflexo remoto, partido, incerto, perturbado e mutável. De forma que até mesmo os salões não podem ser pintados numa imobilidade estática que, até agora, pôde ser conveniente ao estudo dos caracteres, os quais deverão também ser como que apanhados em um movimento quase histórico. O gosto pelas novidades, que leva os homens da sociedade, mais ou menos sinceramente ávidos de se informarem sobre a evolução intelectual, a frequentarem os meios em que podem segui-la, fá-los habitualmente preferir alguma dona-de casa até então inédita, que representa ainda bem frescas as esperanças de mentalidade superior, tão murchas e ressequidas nas mulheres que exerceram durante muito tempo o poder mundano, daquelas de quem conhecem os pontos fracos e fortes e que já não lhes falam à imaginação. E assim, cada época acha-se personificada em mulheres novas, num novo grupo de mulheres que, estreitamente ligadas ao que aguça as curiosidades mais novas, parecem, na sua toilette, surgir apenas naquele momento, como uma espécie desconhecida provinda do último dilúvio, beldades irresistíveis de cada novo Consulado, de cada novo Diretório. Porém, muitas vezes as novas donas de casa são simplesmente, como certos estadistas em seu primeiro ministério mas que há quarenta anos batiam em todas as portas sem que lhes abrissem, mulheres que não eram conhecidas da sociedade, mas que nem por isso recebiam menos, há muito tempo, e à falta de melhor, alguns "raros íntimos". Decerto, nem sempre era este o caso e quando, com a prodigiosa florescência dos balés russos, sucessivamente reveladora de Bakst, de Nijinski, de Benois, do gênio de Stravinski, a princesa Yourbeletieff, jovem madrinha de todos esses novos grandes homens, apareceu trazendo na cabeça uma imensa e trêmula aigrette, desconhecida das parisienses e que elas todas procuraram imitar; pôde-se crer que essa maravilhosa criatura fora trazida pelos russos em suas bagagens inumeráveis e como se fosse o seu mais precioso tesouro; mas, quando a seu lado, em seu proscênio, virmos assistir todas as apresentações dos "Russos", como uma verdadeira fada, tão desconhecida da aristocracia, a Sra. Verdurin, poderemos responder às pessoas da sociedade, que facilmente supuseram a Sra. Verdurin fora desembarcada com a trupe de Diaghilev, que esta senhora já existira em espécie bem diversa e passara por avatares diferentes, de que aquele não disse senão pelo fato de ser o primeiro que afinal trazia, daí em diante assessorado e em marcha cada vez mais rápida, o sucesso durante tanto tempo infrutiferamente esperado pela Patroa. Quanto à Sra. Swann, de fato a atividade que ela representava não tinha o mesmo caráter coletivo. Seu mundo cristalizara-se em torno de um homem, um moribundo, que havia passado quase de súbito, na ocasião em que seu talento se esgotava, da obscuridade à glória retumbante. Era imensa a admiração pelas obras de Bergotte. Ele passava o dia inteiro sendo exibido na casa da Sra. Swann, que superava um homem influente: 

- Eu lhe falarei; e ele vai lhe escrever um artigo. -

     De resto, ele estava em condições de fazê-lo, e até mesmo de redigir um pequeno ato para a Sra. Swann. Mais perto da morte, andava pouco menos mal do que no tempo em que vinha saber notícias da minha avó. É que grandes sofrimentos físicos lhe haviam imposto um regime; a doença é o mais ouvido dos médicos: à bondade e ao saber fazem-se amenas promessas; ao sofrimento, obedece-se.
     Decerto o pequeno clã dos Verdurin possuía atualmente um ressentimento muito mais vivo que o salão ligeiramente nacionalista, ainda mais literário, e sobretudo bergótico, da Sra. Swann. O pequeno clã era de fato o centro ativo de uma longa crise política que chegara a seu máximo de intensidade: o dreyfusismo. Mas as pessoas da sociedade eram na maioria de tal modo anti revisionistas, que um salão dreyfusista parecia algo tão impossível como, em outra época, um salão da Comuna. A princesa Caprarola, que travara conhecimento com a Sra. Verdurin durante uma grande exposição que esta organizara, bem que lhe fora fazer uma longa visita na esperança de desencaminhar alguns elementos interessantes do pequeno clã e agregá-los a seu próprio salão, visita no decurso da qual a princesa (representando em miniatura as duquesas de Guermantes) tomavam em contrapartida das opiniões recebidas, declarara idiotas as pessoas do mundo, o que a Sra. Verdurin achara de uma grande coragem. Mas essa coragem não iria mais tarde ao ponto de ousar, sob o fogo dos olhares das damas nacionalistas, saudar a Sra. Verdurin nas corridas de Balbec. Quanto à Sra. Swann, ao contrário, os antidreyfusistas lhe agradeciam o ser "bem pensante", o que lhe atribuía um duplo mérito, por ser casada com um judeu. Não obstante, as pessoas que jamais tinham ido à sua casa imaginavam que ela recebia somente alguns israelitas obscuros e alunos de Bergotte. Assim, classificam-se mulheres muito mais qualificadas que a Sra. Swann no último degrau da escala social, ou por causa de suas origens, ou porque não gostam de jantares na cidade e dos saraus onde nunca são vistas, o que é falsamente atribuído ao fato de que não teriam sido convidadas, seja porque elas nunca falam de suas amizades mundanas, mas apenas de arte e literatura, seja porque as pessoas escondem o fato de que vão à casa delas, ou então ocultam que as recebem para não se mostrarem impolidas com os outros; enfim, por mil razões que acabam por fazer de tal ou qual dentre elas, aos olhos de alguns, a mulher que não se recebe. Assim ocorria com Odette. A Sra. d'Épinoy, por ocasião de uma subscrição que desejava fazer para a Patrie française, tendo de ir visitá-la, como teria entrado na casa de sua vendedora, aliás convencida de que só encontraria rostos, nem sequer desprezíveis, mas desconhecidos, estacou diante da porta que se abrira não para o salão que imaginava, mas para uma sala mágica onde, como que devido a uma mudança à vista numa féerie, reconheceu nas figurantes sedutoras, meio estendidas nos divãs, sentadas em poltronas, chamando a dona da casa pelo seu nome de batismo, as altezas e duquesas que ela própria, princesa d'Épinoy, tinha muita dificuldade em atrair à sua própria casa, e às quais naquele momento, sob os olhos benévolos de Odette, o marquês du Lau, o conde Louis de Turenne, o príncipe Borghese e o duque d'Estrées, trazendo laranjada e bolinhos, serviam de criados e escanções. Como a princesa d'Épinoy colocava, sem se aperceber de tal, a qualidade mundana no interior das criaturas, viu-se obrigada a desencarnar a Sra. Swann e a reencarná-la em uma mulher elegante. A ignorância da vida real que levam as mulheres que não a expõem nos jornais estende assim sobre certas situações (contribuindo desse modo para diversificar os salões) um véu de mistério. Quanto a Odette, no começo, alguns homens da mais alta sociedade, curiosos de conhecer Bergotte, tinham estado em sua casa para um jantar íntimo. Ela tivera o tato, recentemente adquirido, de não divulgá-lo; ali eles encontravam talvez recordação do "pequeno núcleo", do qual Odette, desde o cisma, conservara as tradições a mesa posta, etc.. Odette levava-os com Bergotte, a quem isto aliás acabava de matar, às estreias interessantes. Eles falaram dela a algumas mulheres do seu mundo capazes de se interessar com tanta novidade. Estavam elas persuadidas de que Odette, íntima de Bergotte, mais ou menos havia colaborado em suas obras, e a julgavam mil vezes mais inteligente que as mulheres mais notáveis do Faubourg, pelo mesmo motivo porque punham toda sua esperança política em certos republicanos legítimos como o Sr. De o Sr. Deschanel, ao passo que viam a França no abismo se fosse chamado ao pessoal monarquista a quem não recebiam para jantar, aos Charlus aos Doudeauville, etc. Esta mudança da posição de Odette cumpriu-se a parte dela com uma discrição que a tornava cada vez mais rápida e secreta mas não a deixava absolutamente suspeitar do público, inclinado pelas crônicas do Gaulois o progresso ou a decadência de um salão de modo que um dia, no ensaio geral de uma peça de Bergotte dado numa das salas mais elegantes em benefício de uma obra de caridade, foi um verdadeiro lance teatral quando se viu, no camarote da frente, que era o outro, virem sentar-se, ao lado da Sra. Swann, a Sra. de Marsantes e que, pelo apagamento progressivo da duquesa de Guermantes (faltando honrarias e anulando-se ao menor esforço), estava se tornando a leoa, a rainha da época: a condessa Molé. "Quando nem adivinhávamos quando e havia começado a subir, disseram de Odette, no momento em que, se viu entrar a condessa Molé no camarote, "ela atingiu o último degrau." De maneira que a Sra. Swann podia crer que era por esnobismo que eu me reaproximara de sua filha. Odette, apesar de suas brilhantes amigas, nem por isso deixou de ouvir a peça com extrema atenção, como se estivesse ali apenas para escutá-la, da mesma maneira como antigamente atravessava o Bois por higiene e para fazer exercício. Homens que outrora eram menos solícitos em redor chegaram-se ao balcão incomodando a toda a gente, para suspenderem-se à sua mão a fim de se aproximar do círculo imponente que ela se cercava. Odette, com um sorriso antes de amabilidade que de ironia, respondia pacientemente às suas perguntas, afetando mais calma do que pensavam e que era talvez sincera, pois tal exibição não passava de exibição tardia de uma intimidade habitual e discretamente oculta. Por detrás daquelas três damas, atraindo todas as atenções, estava Bergotte cercado pelo príncipe de Agrigento, pelo conde Louis de Turenne e pelo marquillo de Bréauté. E é fácil compreender que, para os homens que eram recebidos em toda parte e que não mais podiam esperar uma superestimação senão da busca de originalidade, essa demonstração que pensavam dar de seus valor ao se deixarem atrair por uma dona-de-casa tida como grande intelectual e junto a quem esperavam encontrar todos os dramaturgos e romancistas em voga, era mais viva e excitante do que aqueles saraus em casa da princesa de Guermantes, que, sem nenhum programa ou atração nova sucediam-se há tantos anos, mais ou menos iguais ao que tão longamente descrevemos. Naquele grande mundo dos Guermantes, de onde a curiosidade se afastava um pouco, as novas modas intelectuais não se enganavam em divertimentos à sua imagem, como nessas pecinhas de Bergotte escritas para a Sra. Swann, como nas verdadeiras sessões de Salvação pública (se a alta sociedade pudesse interessar-se pelo Caso Dreyfus) onde, na casa da Sra. Verdurin, se reuniam Picquart, Clemenceau, Zola, Reinach e Labori. Gilberte também contribuía para a situação da mãe, pois um tio de Swann acabava de lhe deixar cerca de oitenta milhões, o que fazia com que o faubourg Saint-Germain começasse a pensar nela. O reverso da medalha era que Swann, de resto agonizante, professava opiniões dreyfusistas, porém isto não prejudicava a mulher e até lhe prestava serviço. Não a prejudicava porque diziam: 

- Ele é esclerosado, idiota, a gente não liga para ele, só a sua mulher é que importa, e ela é encantadora. -

     Porém até o dreyfusismo de Swann era útil à Odette. Entregue a si mesma, ela talvez fizesse às mulheres elegantes concessões que a perderiam. Ao passo que nas noites em que arrastava o marido para jantar no faubourg Saint-Germain, Swann, ficando ferozmente no seu canto, não se constrangia em dizer em voz alta, caso visse Odette fazer-se apresentar a alguma dama nacionalista: 

- Ora, Odette, você está louca. Peço-lhe que fique quieta. Seria uma baixeza de sua parte fazer-se apresentar a anti-semitas. Eu a proíbo. -

     As pessoas mundanas, a quem todos acorrem, não estão acostumadas a tanto orgulho nem a tamanha falta de educação. Pela primeira vez viam alguém que se julgava "mais" que elas. Comentavam-se esses resmungos de Swann, e os cartões dobrados choviam na casa de Odette. Quando esta estava de visita à casa da Sra. d'Arpajon, criava-se um vivo e simpático movimento de curiosidade. 

- Não se aborreceu por tê-la apresentado? - dizia a Sra. d'Arpajon. - Ela é muito gentil. Foi Marie de Marsantes quem me deu a conhecê-la. 
- Não, pelo contrário, parece que ela é o que há de mais inteligente; é encantadora. Eu até desejava encontrá-la. Diga-me onde ela mora. -

continua na página 63...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I -  E esta censura era particularmente estúpida)
Volume 6
Volume 7

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Cinema: Meu Vizinho Adolf

Meu Vizinho Adolf

América do Sul, 1960. O senhor Polsky - um solitário e mal-humorado sobrevivente do Holocausto -vive uma vida pacata em uma cidadezinha. Até que um homem misterioso se muda para a casa ao lado, e Polsky começa a achar que seu novo vizinho é Adolf Hitler. Inconformado, ele começa a se aproximar do possível Hitler, tudo com a intenção de trazê-lo à justiça.
 




𝑵𝒐𝒎𝒆 𝒅𝒐 𝑭𝒊𝒍𝒎𝒆: Meu Vizinho Adolf
𝑫𝒊𝒓𝒆𝒄̧𝒂̃𝒐: Leon Prudovsky

𝑬𝒔𝒕𝒓𝒆𝒍𝒂𝒏𝒅𝒐:

Abel Alzate - Funcionário do Conselho
Beatriz Ramirez - Secretária
Danharry Colorado Cortes - Carteiro
Daniel Andreas Schmutte - Auxiliar alemão
David Hayman - Mr. Marek Polsky
David Mejia - Auxiliar alemão
Dorian Alexis Zuluaga Seguro - Guarda de segurança
Dorota Liliental - Mãe
Eyvar Fardi - Agente do Mossad
Jaime Correa - Chefe do Conselho
Jan Szugajew - Jovem Mr. Polsk
Juan Carlos Ruiz - Livreiro
Kineret Peled - Escritório de Inteligência
Lukas Herbert Blei - Auxiliar alemão
Maria Juzwin - Lili
Olivia Silhavy - Frau Kaltenbrunner
Radosław Chabowski - Polsky's Brother
Rafael Gallo - Auxiliar alemão
Tomasz Sobczak - Especialista em Arte
Udo Kier - Mr. Hermann Herzogr

Gêneros: Comédia, Drama
Duração: 1h 36m
Produtoras: 2-Team Productions, Film Produkcja
Direção de arte: Juan Carlos Acevedo

Roteirista: Leon Prudovsky
Roteirista: Dmitry Malinsky

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Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: Ruínas de Potosí: A Semana Santa dos Índios Termina sem Ressurreição[10]

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

Febre do ouro, febre da prata

     10. A Semana Santa dos Índios Termina sem Ressurreição
          No princípio de nosso século, os donos dos pongos, índios dedicados ao serviço doméstico, ainda os alugavam, oferecendo-os pelos jornais de La Paz.
     Até a revolução de 1952, que devolveu aos índios bolivianos o pisoteado direito à dignidade, os pongos dormiam ao lado do cachorro e comiam as sobras da comida dele, e se curvavam para dirigir a palavra a qualquer um de pele branca. Os indígenas tinham sido bestas de carga para levar nos ombros a bagagem dos conquistadores: as cavalgaduras eram escassas. Em nossos dias, contudo, ainda podem ser vistos, em todo o altiplano andino, carregadores aimarás e quíchuas a carregar fardos até com os dentes, em troca de um pão seco. A pneumoconiose tinha sido a primeira enfermidade profissional da América; hoje, quando os mineiros bolivianos completam 35 anos de idade, já seus pulmões se negam a continuar funcionando: o implacável pó de sílica impregna a pele do mineiro, vinca-lhe o rosto e as mãos, aniquila seus sentidos de olfato e paladar, conquista-lhe os pulmões, endurece-os e por fim o mata.
     Os turistas adoram fotografar os indígenas do altiplano vestidos com suas roupas típicas. Ignoram, por certo, que a atual vestimenta indígena foi imposta por Carlos III em fins do século XVIII. Os trajes femininos que os espanhóis obrigaram as índias a usar eram cópias dos vestidos regionais das lavradoras estremenhas, andaluzas e bascas, e outro tanto ocorre com o penteado das índias, repartido ao meio, imposto pelo vice-rei Toledo. O mesmo não ocorre com o consumo de coca, que não nasceu com os espanhóis: já existia no tempo dos incas. A coca, no entanto, era distribuída com parcimônia; o governo incaico a monopolizava e só permitia seu uso para fins rituais ou para o duro trabalho nas minas. Os espanhóis estimularam intensamente o consumo da coca. Era um esplêndido negócio. No século XVI, em Potosí, gastava-se tanto em roupas europeias quanto em coca para os oprimidos. Em Cuzco, 400 mercadores espanhóis viviam do tráfico de coca; nas minas de prata de Potosí entravam anualmente 100 mil cestos com 1 milhão de quilos de folhas de coca. A igreja arrecadava impostos da droga. O inca Garcilaso de la Vega nos conta, em seus “comentários reais”, que a maior parte da renda do bispo, dos cônegos e demais ministros da igreja de Cuzco provinha dos dízimos sobre a coca, e que o transporte e a venda deste produto enriqueciam muitos espanhóis. Com as escassas moedas que obtinham em troca do trabalho, os índios compravam folhas de coca em vez de comida: mastigando-as, podiam suportar melhor as mortais tarefas impostas, ainda que ao preço de abreviar a vida. Além da coca, os indígenas consumiam aguardente, e seus amos se queixavam da propagação de “vícios maléficos”. Nesta altura do século XXI, os indígenas de Potosí continuam mascando coca para matar a fome e se matar, e continuam queimando as tripas com álcool puro. São as estéreis desforras dos condenados. Nas minas bolivianas, os operários ainda chamam de mita o seu salário.
      Desterrados em sua própria terra, condenados ao êxodo eterno, os indígenas da América Latina foram empurrados para as zonas mais pobres, as montanhas áridas ou o fundo dos desertos, à medida que avançava a fronteira da civilização dominante. Os índios padeceram e padecem síntese do drama de toda a América Latina – a maldição de sua própria riqueza. Quando se descobriram os areais de ouro do rio Bluefields, na Nicarágua, os índios carcas foram rapidamente desalojados de suas terras ribeirinhas, e esta é também a história dos índios de todos os vales férteis e de todos os subsolos ricos do rio Bravo para o sul. As matanças de indígenas, que começaram com Colombo, nunca cessaram. No Uruguai e na Patagônia argentina, os índios foram exterminados no século passado por tropas que os buscaram e os encurralaram nos matos ou no deserto, para que não estorvassem o avanço organizado dos latifundiários de gado [1]. Os índios yaquis, do estado mexicano de Sonora, foram submergidos num banho de sangue para que suas terras, ricas de recursos minerais e férteis para o cultivo, pudessem ser vendidas sem inconvenientes a diversos capitalistas norte-americanos. Os sobreviventes foram deportados para as plantações de Yucatán. Assim, a península de Yucatán se converteu não só no cemitério dos indígenas maias que tinham sido seus donos, como também na tumba dos índios yaquis, que vinham de longe: no princípio do século, os 50 reis do sisal dispunham de mais de 100 mil escravos indígenas em suas plantações. Apesar de sua fortaleza física – é uma raça de formosos gigantes –, dois terços dos yaquis morreram durante o primeiro ano de trabalho escravo [2]. Em nossos dias, a fibra de sisal só pode competir com seus substitutos sintéticos graças ao nível de vida marcadamente baixo de seus operários. As coisas mudaram, claro, mas não tanto quanto se pensa, ao menos para os indígenas de Yucatán: “As condições de vida desses trabalhadores muito se assemelha ao trabalho escravo”, diz o professor Arturo Bonilla Sánchez [3]. Nas encostas andinas próximas de Bogotá, o peão indígena é obrigado a cumprir jornadas gratuitas de trabalho para que o fazendeiro lhe permita cultivar, em noites enluaradas, sua própria parcela: “Os antepassados desse índio cultivavam livremente, sem contrair dívidas, o solo rico do planalto, que a ninguém pertencia. Ele trabalha de graça para assegurar o direito de cultivar a pobre montanha” [4].
     Atualmente, não se salvam nem sequer os indígenas que vivem isolados nos esconsos da selva. No princípio do século, ainda sobreviviam 230 tribos no Brasil; desde então desapareceram 90, apagadas do planeta por obra e graça das armas de fogo e dos micróbios. Violência e doença, batedores da civilização: o contato com o homem branco, para o indígena, continua sendo o contato com a morte. As disposições legais que, desde 1537, protegem os índios do Brasil, voltaram-se contra eles. De acordo com os textos de todas as constituições brasileiras, são “os primitivos e naturais senhores” das terras que ocupam. Ocorre que, quanto mais ricas são essas terras virgens, mais grave se torna a ameaça que pende sobre suas vidas; a generosidade da natureza os condena à espoliação e ao crime.
     A caça aos índios foi desencadeada, nos últimos anos, com furiosa crueldade; a maior floresta do mundo, gigantesco espaço tropical aberto à lenda e à aventura, converteu-se, simultaneamente, no cenário de um novo sonho americano. Em ritmo de conquista, homens e empresas dos Estados Unidos avançaram sobre a Amazônia como se fosse um novo Far West. Essa invasão norte americana incendiou como nunca a cobiça dos aventureiros brasileiros. Os índios morrem sem deixar rastro e as terras são vendidas em dólares aos novos interessados. O ouro e outros minerais de valor, a madeira e a borracha, riquezas cujo valor comercial os nativos ignoram, aparecem vinculadas aos resultados de cada uma das escassas investigações que se procederam. Sabe-se que os indígenas foram metralhados desde helicópteros e pequenos aviões, que lhes foi inoculado o vírus da varíola, que foi lançado dinamite sobre suas aldeias e que lhes foram presenteados açúcar misturado com estricnina e sal com arsênico. O próprio diretor do Serviço de Proteção aos Índios, designado pela ditadura de Castelo Branco para sanear a administração, foi acusado, com provas, de cometer 42 tipos diferentes de crimes contra os índios. O escândalo veio a público em 1968.
     A sociedade indígena de nossos dias não existe no vazio, fora do marco geral da economia latino-americana. É verdade que há tribos ainda encerradas na floresta amazônica e comunidades isoladas do mundo no altiplano andino e em outras regiões, mas no geral os indígenas estão incorporados ao sistema de produção e ao mercado de consumo, embora de forma indireta. Participam, como vítimas, de uma ordem econômico-social em que desempenham o duro papel de os mais explorados entre os explorados. Compram e vendem boa parte das escassas coisas que consomem e produzem, através de intermediários poderosos e vorazes que cobram muito e pagam pouco; são diaristas nas plantações, a mão de obra mais barata, e soldados nas montanhas; gastam seus dias trabalhando para o mercado mundial ou lutando a serviço de seus vencedores. Em países como a Guatemala, por exemplo, eles são o eixo da vida econômica nacional: ano após ano, ciclicamente, abandonam suas terras sagradas, terras altas, minifúndios do tamanho de um cadáver, para emprestar 200 mil braços às colheitas de café, algodão e açúcar nas terras baixas. Os empreiteiros os transportam em caminhões, como gado, e nem sempre a necessidade decide: às vezes decide a aguardente. Os empreiteiros contratam uma orquestra de marimbas e deixam o álcool correr à larga: quando o índio desperta da borracheira, já o acompanham as dívidas. Ele vai pagá-las em terras quentes que não conhece, e dali regressará ao cabo de alguns meses, talvez com alguns centavos no bolso, talvez com tuberculose ou impaludismo. O exército colabora com eficácia na tarefa de convencer os remissos [5].
     A expropriação dos indígenas – usurpação de suas terras e de sua força de trabalho – foi e é simétrica ao desprezo racial, que por sua vez se alimenta da objetiva degradação das civilizações destruídas pela conquista. Os efeitos da conquista e todo o ulterior e longo tempo de humilhações despedaçaram a identidade cultural e social que os indígenas tinham alcançado. No entanto, essa identidade triturada é a única que persiste na Guatemala [6]. Persiste na tragédia. Na Semana Santa, as procissões dos herdeiros dos maias apresentam terríveis exibições de masoquismo coletivo. Eles arrastam pesadas cruzes, participam passo a passo da flagelação durante a interminável subida do Gólgota; com gemidos de dor, converte-se Sua morte e Seu sepultamento no culto da própria morte e do próprio sepultamento, a aniquilação da formosa vida remota. A Semana Santa dos índios guatemaltecos termina sem ressurreição.

Primeira Parte: Ruínas de Potosí: A Semana Santa dos Índios Termina sem Ressurreição[10]
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[1] Os últimos charruas, que até 1832 sobreviviam furtando novilhos nas campinas selvagens do norte do Uruguai, foram traídos pelo presidente Fructuoso Rivera. Alijados da mata cerrada que lhes dava proteção, desmontados e desarmados com falsas promessas de amizade, foram abatidos num paradouro chamado Boca del Tigre: “Os clarins ordenaram a degola”, conta o escritor Eduardo Acevedo Díaz (jornal La Época, 19 de agosto de 1890), “a horda se revolveu desesperada, caindo um atrás do outro seus jovens guerreiros, como touros feridos na nuca”. Vários caciques morreram. Os poucos índios que conseguiram furar o cerco de fogo vingaram-se depois. Perseguidos pelo irmão de Rivera, armaram-lhe uma emboscada e o crivaram de lanças juntamente com seus soldados. O cacique Sepe “cobriu com alguns nervos do cadáver a ponta de sua lança”.
Na Patagônia argentina, em fins do século, os soldados recebiam gratificações pela apresentação de cada par de testículos. O romance de David Viñas Los dueños de la tierra (Buenos Aires, 1959) começa com a caça aos índios: “Porque matar era como violar alguém. Algo bom. Agradava: era preciso correr, gritava se, suava-se e depois se sentia fome (...). Os disparos agora se espaçavam. Certamente algum corpo de índio tinha restado enforquilhado num daqueles buracos, com uma mancha negra entre as coxas”.
[2] TURNER, John Kenneth. México bárbaro. México, 1967.
[3] BONILLA SÁNCHEZ, Arturo. “Un problema que se agrava: la subocupación rural”. In: Vários autores. Neolatifundismo y explotación. De Emiliano Zapata a Anderson Clayton & Co. México, 1968.
[4] DUMONT, René. Tierras vivas. Problemas de la reforma agraria en el mundo. México, 1963.
[5] GALEANO, Eduardo. Guatemala, país ocupado. México, 1967.
[6] A decomposição religiosa dos maias-quichés começou com a colônia. A religião católica só assimilou alguns aspectos mágicos e totêmicos da religião maia, na vã tentativa de submeter a fé indígena à ideologia dos conquistadores. O esmagamento da cultura original abriu passo ao sincretismo, e assim são recolhidos na atualidade, por exemplo, testemunhos da involução relativamente àquela evolução alcançada: “Dom Vulcão necessita de carne humana bem tostadinha”. BÖCKLER, Carlos Guzmán & HERBERT, Jean-Loup. Guatemala: una interpretación histórico-social. México, 1970.

Poetando: Não! Só Quero A Liberdade

Fernando Pessoa

(Álvaro de Campos)


Não! Só quero a liberdade!
Amor, glória, dinheiro são prisões.
Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles?
Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo.
Quero respirar o ar sozinho,
Não tenho pulsações em conjunto,
Não sinto em sociedade por quotas,
Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim.

Onde quero dormir? No quintal...
Nada de paredes — ser o grande entendimento —
Eu e o universo,
E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fatos
Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos,
O grande abismo infinito para cima
A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara,
Onde só os olhos — outro céu — revelam o grande ser subjectivo.

Não quero! Dêem-me a liberdade!
Quero ser igual a mim mesmo.
Não me capem com ideais!
Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras!
Não me façam elogiável ou inteligível!
Não me matem em vida!

Quero saber atirar com essa bola alta à lua
E ouvi-la cair no quintal do lado!
Quero ir deitar-me na relva, pensando "Amanhã vou buscá-la"...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
" Amanhã vou buscá-la ao quintal"
Buscá-la ao quintal
Ao quintal
ao lado...


11-8-1930

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 136.

 



| Poema com narração de Mundo Dos Poemas


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Aniversário / Não! Só Quero A Liberdade / O Amor