O CORTIÇOAluísio AzevedoIX .continuando...
E os elogios não cessavam:
- Rica pequena!...
- É um enlevo olhar a gente pro demoninho!
- É mesmo uma lindeza de criança!
- Uma criaturinha dos anjos!
- Uma boneca francesa!
- Uma menina Jesus!
O pai acompanhava-a comovido, mas solene sempre, parando a todo momento, como em procissão,
à espera que cada qual desafogasse por sua vez o entusiasmo pela criança. Silenciosamente risonho,
com os olhos úmidos, patenteada em todo o seu carão mulato, de bigode que parecia postiço, um ar
condolente e estúpido de um profundo reconhecimento por aquela fortuna, que Deus lhe dera à filha,
enviando-lhe dos céus o ideal das madrinhas.
E, enquanto Jujú percorria a estalagem, conduzida em triunfo, Léonie na casa da comadre, cercada
por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente,
cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a
moral e a virtude. E aquelas mulheres, aliás tão alegres e vivazes, não se animavam, defronte dela, a
rir nem levantar a voz, e conversavam a medo cochichando, a tapar a boca com a mão, tolhidas de
respeito pela cocote, que as dominava na sua sobranceria de mulher loura vestida de seda e coberta
de brilhantes. A das Dores sentiu-se orgulhosa, quando Léonie lhe pousou no ombro a mãozinha
enluvada e recendente, para lhe perguntar pelo seu homem. E não se fartavam de olhar para ela, de
admirá-la; chegavam a examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as salas, apalpar-lhe as meias, levantando-lhe o vestido, com exclamações de assombro à vista de tanto luxo de rendas e bordados. A visita
sorria, por sua vez comovida. Piedade declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a
da Nossa Senhora da Penha. E Nenen, no seu entusiasmo, disse que a invejava do fundo do coração,
ao que a mãe lhe observou que não fosse besta. O Albino contemplava-a em êxtase, de mão no
queixo, o cotovelo no ar. A Rita Baiana levara-lhe um ramalhete de rosas. Esta não se iludia com a
posição da loureira, mas dava-lhe apreço talvez por isso mesmo e, em parte, porque a achava deveras
bonita. “Ora! era preciso ser bem esperta e valer muito para arrancar assim da pele dos homens ricos
aquela porção de jóias e todo aquele luxo de roupa por dentro e por fora!”
- Não sei, filha! pregava depois a mulata, no pátio, a uma companheira; seja assim ou assado, a
verdade é que ela passa muito bem de boca e nada lhe falta: sua boa casa; seu bom carro para passear
à tarde; teatro toda a noite; bailes quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fora da
cidade e dinheirama grossa para gastar à farta! Enfim, só o que afianço é que esta não está sujeita,
como a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É dona das suas ações!
livre como o lindo amor! Senhora do seu corpinho, que ela só entrega a quem muito bem lhe der na
veneta!
- E Pombinha?... perguntou a visita. Não me apareceu ainda!...
- Ah! esclareceu Augusta. Não está ai, foi à sociedade de dança com a mãe.
E, como a outra mostrasse na cara não ter compreendido, explicou que a filha de Dona Isabel ia
todas as terças, quintas e sábados, mediante dois mil-réis por noite, servir de dama numa sociedade
em que os caixeiros do comércio aprendiam a dançar.
- Foi lá que ela conheceu o Costa... acrescentou.
- Que Costa?
- O noivo! Então a Pombinha já não foi pedida?
- Ah! sei...
E a cocote perguntou depois, abafando a voz:
- E aquilo?... Já veio afinal?...
- Qual! Não é por falta de boa vontade da parte delas, coitadas! Agora mesmo a velha fez uma nova
promessa a Nossa Senhora da Anunciação... mas não há meio!
Daí a pouco, Augusta apresentou-lhe uma xícara de café, que Léonie recusou por não poder beber. “Estava em uso de remédios...” Não disse, porém, quais eram estes, nem para que moléstia os
tomava.
- Prefiro um copo de cerveja, declarou ela.
E, sem dar tempo a que se opusessem, tirou da carteira uma nota de dez mil-réis, que deu a
Agostinho para ir buscar três garrafas de Carls Berg.
A vista dos copos, liberalmente cheios, formou-se um silêncio enternecido. A cocote distribuiu-os
por sua própria mão aos circunstantes, reservando um para si. Não chegavam. Quis mandar buscar
mais; não lho permitiram, objetando que duas e três pessoas podiam beber juntas.
- Para que gastar tanto?... Que alma grande!
O troco ficou esquecido, de propósito, sobre a cômoda, entre uma infinita quinquilharia de coisas
velhas e bem tratadas.
- Quando você, comadre, agora me aparece por lá?... quis saber Léonie.
- Pra semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a comadre tem precisão de alguma... podese aprontar com mais pressa...
- Então é bom mandar-me toalhas e lençóis... Camisas de dormir, é verdade! também tenho poucas.
- Depois d’amanhã está tudo lá.
E a noite ia-se passando. Deram dez horas. Léonie, impaciente já pelo rapaz que ficara de ir buscá-la,
mandou ver se ele por acaso estaria no portão, à espera.
- É aquele mesmo que veio da outra vez com a comadre?...
- Não. É um mais alto. De cartola branca.
Correu muita gente até à rua. O rapaz não tinha chegado ainda. Léonie ficou contrariada.
- Imprestável!... resmungou. Faz-me ir sozinha por ai ou incomodar alguém que me acompanhe!
- Por que a comadre não dorme aqui?... lembrou Augusta. Se quiser, arranja-se tudo! Não passará
bem como em sua casa, mas uma noite corre depressa!...
Não! não era possível Precisava estar em casa essa noite: no dia seguinte pela manhã iriam procurá-la muito cedo.
Nisto chegou Pombinha com Dona Isabel. Disseram-lhes logo à entrada que Léonie estava em casa
do Alexandre, e a menina deixou a mãe um instante no número 15 e seguiu sozinha para ali, radiante
de alegria. Gostavam-se muito uma da outra. A cocote recebeu-a com exclamações de agrado e
beijou-a nos dentes e nos olhos repetidas vezes.
- Então, minha flor, como está essa lindeza! perguntou-lhe, mirando-a toda.
- Saudades suas... respondeu a moça, rindo bonito na sua boca ainda pura.
E uma conversa amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se, isolando-as de todas as outras.
Léonie entregou à Pombinha uma medalha de prata que lhe trouxera; uma tetéia que valia só pela
esquisitice, representando uma fatia de queijo com um camundongo em cima. Correu logo de mão
em mão, levantando espantos e gargalhadas.
- Por um pouco que não me apanhas... continuou a cocote na sua conversa com a menina. Se a
pessoa que me vem buscar tivesse chegado já, eu estaria longe. - E mudando de tom, a acarinhar-lhe
os cabelos: - Por que não me apareces!... Não tens que recear: minha casa é muito sossegada... Já lá
têm ido famílias!...
- Nunca vou à cidade... É raro! suspirou Pombinha.
- Vai amanhã com tua mãe; jantam as duas comigo...
- Se mamãe deixar... Olha! ela ai vem. Peça.
Dona Isabel prometeu ir, não no dia seguinte, mas no outro imediato, que era domingo. E a palestra
durou animada até que chegou, daí a um quarto de hora, o rapaz por quem esperava Léonie. Era um
moço de vinte e poucos anos, sem emprego e sem fortuna, mas vestido com esmero e muito bem
apessoado. A cocote, logo que o viu aproximar-se, disse baixinho à menina:
- Não é preciso que ele saiba que vais lá domingo, ouviste?
Jujú dormia. Resolveram não acordá-la; iria no dia seguinte.
Na ocasião em que Léonie partia pelo braço do amante, acompanhada até o portão por um séquito de
lavadeiras, a Rita, no pátio, beliscou a coxa de Jerônimo e soprou-lhe à meia voz:
- Não lhe caia o queixo!...
O cavouqueiro teve um desdenhoso sacudir d’ombros.
- Aquela pra cá nem pintada!
E, para deixar bem patente as suas preferências, virou o pé do lado e bateu com o tamanco na canela
da mulata.
- Olha o bruto!... queixou-se esta, levando a mão ao lugar da pancada. Sempre há de mostrar que é
galego!
Continua página 57...
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Leia também:
O Cortiço - IX: E os elogios não cessavam
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Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.