domingo, 31 de agosto de 2025

crônica - um professor bagunceirinho (2)

um professor bagunceirinho (2)

baitasar

aqui estamos, sentados, frente à frente, em silêncio, olha diretamente em meus olhos com seu jeito calmo e inabalável, não tem pressa, penso que se ela não está com pressa, também não preciso estar, para um estranho pode aparentar cautela esse seu talento para acalmar fantasmas, contagia sua paciência e sensatez, anuncia silenciosamente sua conexão profunda com o momento e sua sinceridade, é a força que se revela na tranquilidade, na paz interior sem ingenuidade, no olhar questionador das causas e consequências da realidade

desvio meu olhar, na parede um lembrete:

“a educação é uma inspiração que liberta através da reflexão formativa; professores e professoras, não se intimidem nem se limitem apenas a informar, tenham mais ousadia, criatividade e amorosidade”

meu olhar curioso fica pensativo, acordo lembranças, reviro memórias, infindáveis conversas sobre a escola ser um espaço de resistência e esperança, emancipando emocional e intelectualmente, rompendo paradigmas opressores, estimulando o potencial de cada estudante, formando cidadãos e cidadãs críticas, homens e mulheres éticas e ativas, capazes de atuar na transformação desta sociedade injusta, submissa e egoísta, para outra convivência possível com cidadania justa, livre e solidária, uma camaradagem democrática, acesso à informação, trabalho e empregos bem remunerados, qualificados pela garantia de direitos e deveres, educação, saúde, moradia, segurança, uma escolha consciente pela vida sempre, usando o diálogo para promover o entendimento e respeito às diferenças, formando indivíduos criativos e felizes com suas tomadas de decisões, fortalecendo valores de cidadania desde a infância

lembro discussões antigas sobre a importância de não utilizar o diálogo como arma para desarmar alunos e alunas, essa abordagem sugere a mim uma contradição provocativa, indicando que o diálogo para construção e entendimento também pode ser usado para enfraquecer e desestabilizar, como por exemplo, a manipulação da informação e do discurso das mídias, por interesses pessoais, econômicos e políticos, é preciso estarmos atentos ao diálogo como estratégia para dividir, desinformar ou enfraquecer as pessoas, utilizado de forma hostil para gerar mais conflitos, inseguranças e fragilidades, transformando debates em campos de batalha do ódio e intolerância

precisamos do diálogo como uma ponte de entendimento, empatia e resolução de conflitos, fortalecendo a confiança, o respeito e a solidariedade, com escuta ativa e respeito mútuo, falar e escutar, encorajar vínculos comunitários

é urgente que entendamos que um ambiente de vivência, reflexão e crescimento integral, não é apenas um espaço de transmissão de conteúdos, vou repetir, a escola como um ambiente de vivência, reflexão e crescimento, não é apenas um espaço de transmissão de conteúdos, é fundamental incentivar todos e todas, na escola, a compreenderem nossa realidade social, econômica e política, despertando o senso de responsabilidade e engajamento

desde sempre, acreditei na possibilidade da construção de uma escola diferente – pelo menos, uma escola – voltada à conscientização, inclusão, autonomia, participação, diálogo, alegria, libertação e cidadania com amorosidade

ainda acredito que é possível a libertação do sujeito escravizado pelo medo, arrogância, egoísmo, mentiras e desinformação, não é fácil o desacordo e o enfrentamento com aqueles que replicam ódios e pensamentos fedorentos, uma dissonância constante em nossas vidas, mas nunca foi fácil, nada cai do céu, recordo a greve de 1979, minha primeira greve, movimento deflagrado, no primeiro dia de aula daquele ano letivo, pelos professores e professoras do Rio Grande do Sul, organizados pelo CPERS, o governador Amaral de Souza negava-se a cumprir as promessas assumidas por Synval Guazelli, de quem fora vice na gestão anterior –tivemos vitórias e recuos naqueles anos, conquistamos a organização coletiva e a consciência de classe, o plano de carreira, a paridade entre ativos e inativos, a gestão democrática nas escolas, o 13º salário, reinvindicações que se somaram ao longo das greves que se seguiram –, essa paralisação garantiu a nomeação de 20 mil concursados e 70% de reajuste salarial parcelado, 13 dias de lutas pela escola pública em plena ditadura militar, o medo permanente e real de professoras e professores serem demitidos sumariamente, torturados, desaparecidos, saímos da greve fortalecidos e como medalha de luta recebemos faltas não justificadas dadas em silêncio  

a ditadura militar do silêncio denunciada e enfraquecida pela sineta, seu som clamava por dignidade e respeito

ainda acredito que é possível nos desfazermos das diferentes máscaras que simulam círculos sobre nossas cabeças, repetindo ameaças infames, capturando a atenção e o coração das pessoas, alimentando pensamentos distorcidos e ódios profundos, forças manipuladoras em uma sociedade que muitas vezes aceita a superficialidade dos conteúdos e incentiva o ciclo vicioso da desconfiança, intolerância, com notícias falsas, discursos de ódio, contaminando mentes e corações, espalhando-se como fogo, destruindo e consumindo nossos sabores e letras de amorosidade, uma cafeteria sem conversas animadas

neste cenário, é fundamental buscar a verdade, questionar o que nos é apresentado e resistir às forças que tentam dividir e enfraquecer nossa humanidade, é preciso vencer esse caos de mentiras e construir dia-a-dia um outro jeito de viver mais consciente, justo e amoroso

liberto um suspiro profundo como uma baforada despedaçando minha quietude no vidro fumê

O que foi, Marko?

volto minha atenção à professora Rachel, sinto vontade de sorrir, pedir que ela anuncie com brevidade às paredes e ao mundo dos vivos e mortos, Este é o seu primeiro dia de aposentado, Marko, simples assim, o primeiro dia do resto da minha vida, professor aposentado, inativo, continuo em silêncio, sem ruídos, aguardando o anúncio, pronto para mostrar-me, Eu aposentei!

ela me observa

eu a espreito

sinto que hesita um instante, tento acalmar meu coração que está aos pulos, estou pronto para sorrir, agradecer e aceitar minha jubilação, explicar que é muito bem-vindo esse outro tempo para mim, não irei sentir falta dessa vida de professor – não vou murmurar queixumes de melancolia, quero experimentar essa outra vida com plenitude, apesar das advertências que toda essa rotina diária será difícil de preencher

bobice, quando histórias e conversas terminam, inevitavelmente, começamos outras conversas, outras histórias, a vida se dispersa em outros caminhos, novas escolhas que juntamos e misturamos com segurança, algumas vezes; com embaraço ou com melancolia, outras tantas, e seguimos, é preciso ir em frente, dialogando com a vida e acariciando o coração em algum lugar com aparência agradável, com sorte e resiliência para outros risos e mais voos

sinto que estou sorrindo

Marko, preciso de você, diz sem afobação ou malícia melodramática

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um professor bagunceirinho (2)

sábado, 30 de agosto de 2025

Cinema: Malcolm X

Malcolm X


Descubra a poderosa jornada de Malcolm X (Denzel Washington), um líder afro-americano cuja vida foi marcada por tragédias e transformações. Após perder o pai, um pastor assassinado pela K1ux Kl@n, e ver sua mãe ser internada, Malcolm se tornou um malandro de rua. Sua vida muda drasticamente quando descobre o islamismo na prisão e se torna um fervoroso discípulo de Elijah Mohammed (Al Freeman Jr.).

Como orador do movimento, ele prega contra a opressão, casa-se com Betty Shabazz (Angela Bassett) e se torna uma voz poderosa. Mas é após uma peregrinação à Meca que Malcolm abrandou suas convicções, adotando o nome El-Hajj Malik Al-Shabazz e se convertendo ao islamismo sunita.





Diretor: Spike Lee

Elenco: 
Denzel Washington, 
Albert Hall, 
Angela Bassett

Ano de Lançamento: 1993

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - mesmo que todos os Courvoisiers tivessem ficado)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

     Aliás, mesmo que todos os Courvoisiers tivessem ficado, as frases de Oriane os teriam deixado tanto mais insensíveis quanto os incidentes que em geral os faziam surgir seriam considerados por eles de um ponto de vista inteiramente diverso. Se, por exemplo, faltassem cadeiras numa recepção dada por uma Courvoisier, ou se ela se enganava de nome ao falar a uma visitante que não reconhecera, ou se um de seus criados lhe dirigia uma frase ridícula, a Courvoisier, extremamente aborrecida, vermelha, trêmula de agitação, deplorava semelhante contratempo.
     E, quando recebia um visitante e Oriane devia comparecer, ela dizia num tom ansiosa e imperiosamente interrogativo:

- O senhor a conhece? - temendo, se o visitante não a conhecesse, que sua presença causasse má impressão em Oriane. Mas a Sra. de Guermantes, pelo contrário, extraía de tais incidentes a oportunidade de historietas que faziam os Guermantes rirem às lágrimas, de modo que se era obrigado a invejá-la por sua falta de cadeiras, por ter cometido ou deixar que o criado cometesse uma gafe, por ter recebido em sua casa uma pessoa que ninguém conhecia, como se é obrigado a felicitar-se que os grandes escritores tenham sido mantidos à parte pelos homens e traído pelas mulheres quando suas humilhações e sofrimentos foram, se não o acidente do seu gênero pelo menos a substância de sua obra.

     Os Courvoisiers já não eram capazes de se alçar ao espírito de ração que a duquesa de Guermantes introduzia na vida mundana e o adaptando-a conforme um instinto seguro às necessidades do momento, fazia dela uma coisa artística, no ponto em que a aplicação puramente razoável de regras rígidas também teria dado maus resultados, como que desejando obter êxito no amor ou na política, reproduzisse ao pé da letra em sua própria vida, as façanhas de Bussy d'Amboise. Se os Courvoisiers davam um jantar íntimo ou um jantar para um príncipe, o acréscimo de homem de espírito, de um amigo de seus filhos, lhes pareceria uma anomalia capaz de produzir o pior efeito. Uma Courvoisier, cujo pai fora ministro do Imperador, tendo que dar uma reunião matinal em honra da princesa Mathilde, deduziu, por espírito de geometria, que só podia convidar bonapartistas.
     Ora, ela quase não os conhecia. Todas as mulheres elegantes de suas relações, todos os homens agradáveis, foram impiedosamente banidos, porque, por serem legitimistas por opinião ou ligações, poderiam, segundo a lógica dos Courvoisiers, desagradar à Alteza Imperial. Esta, que recebia em sua casa a flor do faubourg Saint-Germain, ficou muito espantada quando encontrou na casa da Sra. de Courvoisier somente uma céledo papa-jantares, viúva de um antigo prefeito do Império, a viúva do diretor dos Correios e algumas pessoas conhecidas por sua fidelidade a Napoleão I e pela estupidez e aborrecimento que causavam. Nem assim a princesa Mathilde deixou de espalhar o generoso e suave esplendor de sua graça soberana sobre aqueles monstrengos calamitosos que a duquesa de Guermantes evitou convidar quando chegou sua vez de receber a princesa, e substituiu, sem arrazoados a priori sobre o bonapartismo, pelo mais previsto ramalhete de todas as beldades, de todos os valores, de todas as celebridades, que uma espécie de faro, de tato e de perícia lhe fazia sentir que seriam agradáveis à sobrinha do Imperador, mesmo quando fossem da própria família do rei. Não faltou ali nem sequer o duque d'Aumale e quando ao se retirar, a princesa, erguendo a Sra. de Guermantes, que lhe fazia reverência e queria lhe beijar a mão, beijou-a em ambas as faces, foi do fundo do coração que pôde assegurar à duquesa que nunca havia passado um dia melhor nem assistido a melhor festa.
     A princesa de Parma era Courvoisier pela incapacidade de inovar em matéria social, mas, diversamente dos Courvoisiers, a surpresa que lhe causava permanentemente a duquesa de Guermantes engendrava não como neles a antipatia, e sim a admiração maravilhada. Tal admiração era ainda acrescida devido à cultura infinitamente inferior da princesa. A própria Sra. de Guermantes estava, sob esse aspecto, muito menos avançada do que supunha. Mas bastava que o fosse mais que a Sra. de Parma para impressionar a esta. E, como cada geração de críticos se limita a tomar o caminho oposto das verdades admitidas pelos seus predecessores, bastava à duquesa dizer que Flaubert, esse inimigo dos burgueses, era antes de tudo um burguês, ou que havia muito da música italiana na obra de Wagner, para proporcionar à princesa, sempre à custa de um novo esgotamento, como a alguém que nada em meio à tempestade, horizontes que lhe pareciam inauditos e permaneciam confusos para ela. Estupefação, aliás, diante dos paradoxos proferidos não só a respeito de obras artísticas, mas até sobre pessoas de seu conhecimento, e também a cerca de atos mundanos. Sem dúvida, a incapacidade de a Sra. de Parma separar o verdadeiro espírito (o que a fazia crer no alto valor intelectual de algumas e, sobretudo, de certas Guermantes sobre as quais, a seguir, ficava confusa ao ouvir a duquesa lhe dizer sorrindo que não passavam de simples tolas) era uma das causas da admiração que a princesa experimentava sempre ao ouvir a Sra. de Guermantes julgar as pessoas. Mas havia uma outra e que eu, que conhecia àquela época mais livros que pessoas e melhor a literatura do que a sociedade, me expliquei pensando que a duquesa, vivendo dessa vida mundana, cujo ócio e esterilidade estão, para uma atividade social verdadeira, como, na arte, a crítica está para a criação, estendia às pessoas de seu ambiente a instabilidade de pontos de vista, a sede malsã do raciocinador que, para saciar o seu espírito demasiadamente seco, vai buscar qualquer paradoxo ainda um tanto fresco e não se constrangerá de sustentar a opinião refrigerante de que a mais bela Ifigênia é a de Piccinni e não a de Gluck e, se for preciso, que a verdadeira Pedra é a de Pradon.
     Quando uma mulher inteligente, instruída e espirituosa se casara com um tímido pobre diabo, que era visto raras vezes e nunca se ouvia, a Sra. de Guermantes um belo dia inventava uma volúpia espirituosa não só descrevendo a mulher, mas "descobrindo" o marido. Quanto ao casal Cambremer, por exemplo, se tivesse vivido naquele ambiente, a duquesa decretaria que a Sra. de Cambremer era estúpida e, em compensação, que a pessoa interessante, desconhecida, deliciosa, votada ao silêncio por mulher tagarela, mas tendo mil vezes mais valor que a esposa, era o mesmo, e a duquesa teria experimentado, ao declarar isso, o mesmo gênero de refrigério do crítico que, depois de sessenta anos que se vem admirando o Hernani, confessa preferir-lhe O Leão Amoroso por causa da mesma necessidade doentia de novidades arbitrárias se, desde a mocidade era alimentada uma mulher modelo, uma verdadeira santa, por se haver casado com um patife, um belo dia a Sra. de Guermantes afirmava que esse era um homem leviano, porém de grande coração, que a dureza implacável da mulher levara à verdadeiras inconsequências. Eu sabia que não era apenas entre as obras, na longa série dos séculos, mas até no seio de uma mesma obra, que a crítica se compraz em mergulhar de novo nas sombras o que há muito tempo era radioso, e a fazer sair da sombra o que parece votado à definitiva obscuridade. Não só vira Bellini, Winterhalter, os arquitetos jesuítas e um ebanista da Restauração virem ocupar o lugar de gênios de quem se dizia já estarem cansados, simplesmente porque os ociosos intelectuais já se haviam cansado deles, como estão sempre cansados, estão sempre mandando os neurastênicos; como também vira preferirem em Sainte-Beuve, sucessivamente o crítico e o poeta, Musset renegado quanto aos versos, à exceção de umas pecinhas bem insignificantes, e exacerbado como contista. Sem dúvida, erram certos ensaístas em colocar, acima das cenas mais célebres do Cid e de Polieucto, certa tirada do Mentir - que dá, como um mapa antigo, informações sobre a Paris da época, mas sua predileção, justificada se não por motivos de beleza, ao menos por interesse documental, é ainda por demais racional para a crítica alucinada. Ela troca todo o Moliere por um verso de O Estouvado e, mesmo acharem tedioso o Tristão de Wagner, nele salva uma "bela nota de trompa" no momento em que passam os caçadores. Essa depravação ajudou me a compreender aquela da qual fazia prova a Sra. de Guermantes quando decidi que um homem de sua sociedade, reconhecido por ter um grande coração, porém tolo, era um monstro de egoísmo, mais esperto do que se imaginava; que outro, conhecido por sua generosidade, podia simbolizar a avareza; que uma boa mãe não se incomodava com seus filhos, e que uma mulher que julgava cheia de vícios possuía os mais nobres sentimentos. Ou que estragadas pela nulidade da vida mundana, a inteligência e a sensibilidade da Sra. de Guermantes eram instáveis demais para que, nela pulsa não se sucedesse bem rápido ao entusiasmo (com o risco de novamente sentir-se atraída pelo gênero de espírito que sucessivamente buscara e desprezara) e, para que o encanto que achara em um homem generoso não mudasse, se ele a frequentasse bastante, buscava demais em si mesma direções que era incapaz de lhe dar, numa irritação que julgava produzida pelo seu admirador e que o era unicamente pela impotência em que se está de encontrar um prazer quando se contenta em procurá-lo.
     As variações de julgamento da duquesa não poupavam ninguém, exceto o marido. Somente ele não a havia amado nunca; nele, ela sentira sempre um caráter de ferro, indiferente aos caprichos que ela sentia, desdenhoso de sua beleza, violento, de uma vontade que jamais se dobrava e sob cuja única lei os nervos sabem achar sossego. Por outro lado, o Sr. de Guermantes, perseguindo um mesmo tipo de beleza feminina, mas encontrando-o em amantes frequentemente renovadas, não tinha, tão logo as deixava, e para troçar delas, senão uma só companheira duradoura, idêntica, que o irritava muitas vezes por sua tagarelice, mas que ele sabia que toda a sociedade a considerava a mais bela, mais virtuosa, mais inteligente e mais instruída da aristocracia, uma mulher que ele, Sr. de Guermantes, era muito feliz em ter encontrado, que encobria todas as suas desordens, recebia como ninguém e mantinha o salão deles como o primeiro salão do faubourg Saint-Germain. Esta opinião alheia, ele próprio a partilhava; muitas vezes de mau humor contra a mulher, sentia orgulho dela. Se, tão avarento quanto ostentador, recusava-lhe a menor quantia para obras de caridade, para os criados, fazia questão de que ela tivesse os mais magníficos vestidos e as mais belas parelhas na carruagem. Enfim, buscava ressaltar o valor do espírito de sua mulher. Ora, a cada vez a Sra. de Guermantes acabava de inventar, relativamente aos méritos e aos defeitos, bruscamente invertidos por ela, de um de seus amigos, um novo e saboroso paradoxo, ardia por ensaiá-lo diante de pessoas que soubessem degustá-lo, fazê-los saborear sua originalidade psicológica, e para brilhar sua lapidar malevolência. Sem dúvida essas novas opiniões em geral não continham mais verdade que as antigas, e muitas vezes menos; mas justo o que possuíam de arbitrário e inesperado lhes conferia algo de intelectual que as fazia tão emocionantes de comunicar. Apenas, o paciente sobre quem acabava de se exercer a psicologia da duquesa era geralmente um íntimo, de quem aqueles a quem ela desejava transmitir sua descoberta ignoravam totalmente que não estivesse no auge do favor; e também a reputação que possuía a Sra. de Guermantes de amiga incomparável, sentimental, suave e devotada, tornava difícil principiar o que ela podia, quando muito, intervir em seguida, como que constrangida e forçada, dando a réplica para apaziguar, para contradizer em aparência, para apoiar de fato um comparsa que decidira provocá-la; era exatamente o papel em que excedia o Sr. de Guermantes.
     Quanto às ações mundanas, era ainda um outro prazer, arbitrariamente teatral, que a Sra. de Guermantes experimentava em emitir, sobre elas, juízos imprevistos que fustigavam de surpresas incessantes e deliciosas a princesa de Parma. Porém, esse prazer da duquesa foi menos com ajuda da crítica literária do que segundo a vida política e a crônica particular que tentei compreender qual poderia ser. Os editos sucessivos, contraditórios, pelos quais a Sra. de Guermantes invertia sem cessar os valores no caso das pessoas de seu meio, não lhe bastavam para distraí-la, e ela procurava também, na maneira como dirigia a própria conduta social, de que dava conta em suas menores decisões, desfrutes dessas emoções artificiais, obedecer a esses deveres fictícios que estimulam a sensibilidade das assembléias e se impõem ao espírito dos políticos. Sabe-se que, quando um ministro explica à Câmara que julgou fazer bem seguindo uma linha de conduta que, de fato, parece bem simples ao homem de bom senso que, no dia seguinte, lê no seu jornal o resumo da sessão, tal leitor de bom senso, no entanto, se sente subitamente impressionado e começa a duvidar de ter tido razão ao aprovar o ministro, vendo que o discurso deste foi ouvido em meio a uma viva agitação e pontuado de pressões de censura, como: "É muito grave", pronunciadas por um adepto cujo nome e títulos são tão longos e seguidos de movimentos tão acentuados que, em toda a interrupção, a expressão "é muito grave!" ocupa menos lugar do que um hemistíquio num alexandrino. Por exemplo, quando o Sr. de Guermantes, via que o príncipe des Laumes, tinha assento à Câmara, lia-se às vezes nos jornais de Paris, conquanto fosse principalmente destinado à circunscrição de Méséglise e a fim de mostrar aos leitores que não tinham votado num mandatário inativo e mudo: "Senhor de Guermantes-Bouillon, príncipe des Laumes: Isto é terrível (Muito bem! Muito bem! No centro e em alguns bancos à direita, vivam: exclamações à extrema esquerda.)"
     O leitor de bom senso guarda ainda um vislumbre de fidelidade sábio ministro, mas seu coração e sacudido por novas palpitações às primeiras palavras do novo orador, que responde ao ministro: "O espanto, o estupor, não é dizer demais viva sensação na parte direita do semicírculo, que me causam as palavras deste que ainda é, suponho, membro do governo..." (Tempestade de aplausos; alguns deputados dirigem-se apressadamente para o banco dos ministros; o Sr. subsecretário de Estado de Correios e Telégrafos faz, do seu posto, um sinal afirmativo a cabeça.) Essa "tempestade de aplausos" desfaz as últimas resistências do leitor de bom senso; ele acha insultante para a Câmara, monstruosa, uma forma de proceder que em si mesma é insignificante; se necessário, algum fato normal; por exemplo: querer que os ricos paguem mais que os pobres, esclarecer uma iniquidade, preferir a paz à guerra; ele o achará escandaloso e nele verá uma ofensa a certos princípios em que, na verdade, ainda não havia pensado, princípios que não estão inscritos no coração do homem, mas que emocionam intensamente devido às aclamações que desencadeiam e às maiorias maciças que congregam.
     É preciso, além disso, reconhecer que semelhante sutileza dos políticos, que serviu para me explicar o meio Guermantes e, mais tarde, outros meios, não passa da perversão de uma certa finura de interpretação muitas vezes designada pela locução "ler nas entrelinhas". Se, nas assembleias, há o absurdo pela perversão dessa finura, há estupidez por falta dessa finura no público que leva tudo "ao pé da letra", que não suspeita de uma demissão quando um alto dignitário é dispensado de suas funções "a seu pedido" e que diz consigo: "Não foi exonerado porque ele mesmo pediu demissão"; não imagina uma derrota, quando os russos, com um movimento estratégico, recuam diante dos japoneses para posições mais fortes e previamente preparadas; não enxerga uma recusa quando, tendo uma província pedido independência ao imperador da Alemanha, este lhe concede a autonomia religiosa. É possível, aliás, para retornar a estas sessões da Câmara, que, quando se abrem, os próprios deputados se assemelham ao homem de bom senso que lerá o seu resumo. Sabendo que operários em greve enviaram seus delegados ao ministro, talvez se indaguem ingenuamente: "Ah, bem, que se terão dito? Esperemos que tudo se acomode", no momento em que o ministro sobe à tribuna, em meio ao profundo silêncio que já estimula emoções artificiais. As primeiras palavras do ministro: "Não tenho necessidade de dizer à Câmara que possuo um alto senso dos deveres do governo para não receber essa delegação, de que a autoridade do meu cargo não precisava tomar conhecimento" são um lance teatral, pois era a única hipótese que o bom-senso dos deputados não havia formado. Mas justamente porque se trata de um lance teatral, é acolhido por tais aplausos que só ao cabo de alguns minutos é que o ministro pode se fazer ouvir, esse ministro que receberá, ao voltar à sua cadeira, as felicitações dos colegas. Há tanta emoção como no dia em que ele se esqueceu de convidar para uma grande festa oficial o presidente do conselho municipal, que lhe fazia oposição, e declarou-se que numa e noutra circunstância ele agira como homem de Estado.
     O Sr. de Guermantes, nessa época de sua vida, para grande espanto dos Courvoisiers, fizera muitas vezes parte dos colegas que vinha felicitar o ministro. Mais tarde, ouvi contar que, mesmo num período em que desempenhou um importante papel na Câmara, e que se pensava para num ministério ou numa embaixada, ele era, quando um amigo vinha pedir um favor, infinitamente mais simples, bancava politicamente muito menos o grande personagem do que qualquer outro que não fosse o duque de Guermantes. Pois, se ele afirmava que a nobreza não valia muito, considerava seus colegas como seus iguais, não pensava uma só palavra do que dizia. Buscava, fingia estimar, mas desprezava as situações políticas e, como continuava a ser para si mesmo o Sr. de Guermantes, elas não colocavam em torno a sua pessoa esse estilo empolado dos grandes empregos que faz inacessíveis os outros. Desse modo, seu orgulho protegido contra qualquer golpe, não só as suas maneiras de uma familiaridade ostensiva, mas também o que nele pudesse haver de simplicidade autêntica.
     Para regressar às suas decisões artificiais e emocionantes, como, a dos políticos, a Sra. de Guermantes não menos desconcertava os Guermantes, os Courvoisiers, todo o faubourg e, mais que ninguém, a princesa de Parma, devido aos decretos inesperados, sob os quais sentiam se princípios que tanto mais impressionavam quanto menos se estava prevenido para eles. Se o novo ministro da Grécia dava um baile à fantasia, cada qual escolhia uma, e perguntava-se qual seria a da duquesa. Uma pensava que gostaria de ir fantasiada de duquesa de Borgonha, uma outra dava como provável a fantasia de princesa de Deryabar, uma terceira a de Psiquê. E no fim, tendo uma Courvoisier perguntado: 

- De que vais te fantasiar, Oriane? - provocava a única resposta em que não teriam pensado: 
- De coisa nenhuma! E que dava muito trabalho às línguas, como reveladora da opinião de Oriane sobre a verdadeira posição mundana do novo ministro da Grécia e sobre a conduta a adotar a seu respeito, isto é, a opinião que não deveria ter previsto, a saber que uma duquesa "não tinha" que ir ao baile de fantasia desse novo ministro. 
- Não vejo que haja necessidade de ir ao baile do ministro da Grécia, a quem não conheço; não sou grega, e por que iria? Nada tenho a fazer lá - dizia a duquesa. 
- Mas todo mundo vai, parece que será um encanto! - exclamava a Sra. de Gallardon. 
- Mas também é um encanto ficar ao pé da lareira - replicava Sra. de Guermantes.

     Os Courvoisiers não se refaziam do assombro, mas os Guermantes sem imitar, aprovavam: 

- Naturalmente, nem todo mundo está, Oriane, em situação de romper com todos os costumes. Porém, de um lado não se pode dizer que ela esteja errada em querer nos mostrar que exageramos ao nos fazermos tão submissos diante desses estrangeiros que nem sempre se sabe de onde vêm.

     Naturalmente, conhecendo os comentários que uma ou outra atitude não deixavam de provocar, a Sra. de Guermantes sentia tanto prazer em comparecer a uma festa em que não contavam com ela, como em ficar em casa ou ir com o marido ao teatro, numa noite de festa a que "todo mundo" comparecia, ou então, quando pensavam que ela eclipsaria os mais belos diamantes com um diadema histórico, surgir sem uma única joia e com um vestido diverso daquele que julgavam erroneamente ser de rigor. Embora fosse antidreyfusista (sem deixar de crer na inocência de Dreyfus, assim como passava a vida na sociedade acreditando apenas nas ideias), causara sensação imensa, numa recepção em casa da princesa de Ligne; primeiro permanecendo sentada quando todas as damas se ergueram à entrada do general Mercier, e a seguir, levantando-se e chamando ostensivamente seus criados quando um orador nacionalista principiara uma conferência, mostrando assim que não achava que as reuniões mundanas fossem feitas para se falar de política; todas as cabeças se haviam voltado para ela, num concerto da Sexta-feira Santa, em que, apesar de voltaireana, não permanecera, pois achara indecente que pusessem o Cristo em cena. Sabe-se o que é, mesmo para as maiores mundanas, o momento do ano em que começam as festas; a ponto de que a marquesa de Amoncourt, que, por necessidade de falar, mania psicológica, e também por falta de sensibilidade, acabava muitas vezes por dizer asneiras, pudera responder a alguém que tinha vindo dar-lhe os pêsames pela morte do pai, o Sr. de Montmorency: 

- É talvez ainda mais triste que nos ocorra semelhante desgosto no momento em que temos no espelho centenas de convites. -

     Ora bem, nesse momento do ano, quando convidavam para jantar a duquesa de Guermantes, apressando-se com receio de que já estivesse comprometida, ela o recusava pela única razão a que um mundano jamais ocorreria: ia partir em excursão para visitar os lordes da Noruega, que a interessavam. As pessoas da sociedade ficavam estupefatas com aquilo e, sem se preocuparem em imitar a duquesa, sentiam no entanto, com o seu ato, a espécie de alívio que se tem em Kant quando, após a mais rigorosa demonstração do determinismo, descobre-se que acima do mundo da necessidade existe o da liberdade. Toda invenção em que jamais se pensou excita o espírito, mesmo das pessoas que não sabem aproveita-la. A da navegação a vapor era de pouca importância comparada com o seu uso à época sedentária. A idéia de que se podia voluntariamente renunciar a cem jantares e almoços na cidade, a duzentos "chás", a trezentas recepções noturnas, às mais brilhantes segundas da ópera e às terças do "Français", parar de visitar os lordes da Noruega, não pareceu aos Courvoisiers mais explicado que as Vinte mil léguas submarinas, mas comunicou-lhes a mesma sensação de independência e charme. Assim, não havia dia em que não se ouvisse dizer não só "Você conhece a última frase de Oriane?", mas também "Você sabe a última de Oriane?" E da "última de Oriane?", como da última "frase" de Oriane, repetia-se: "É bem de Oriane", "É bem da Oriane", "É pura Oriane". A última de Oriane era, por exemplo, que, tendo que responder nome de uma sociedade patriótica ao cardeal X, bispo de Mâcon (a quem de hábito o Sr. de Guermantes, quando falava dele, chamava de "Senhor de Mascou", pois o duque achava aquilo "França antiga"), como todos pudessem imaginar de que jeito seria a carta e achassem bom o começo: "Eminência" ou "Monsenhor" mas embaraçavam-se diante do resto; a carta de Oriane, para espanto de todos, principiava por "Senhor cardeal" devido a um velho costume acadêmico, ou por "Meu primo", expressão usual entre os príncipes da Igreja, os Guermantes e os soberanos que pediam a Deus que os tivessem a uns e outros "sob Sua santa e digna guarda". Para que se falasse de uma "última de Oriane", bastava que, num espetáculo que comparecia Paris inteira, e onde se representava uma peça muito simpática, como procurassem a Sra. de Guermantes no camarote da princesa de Parma, da princesa de Guermantes e de tantas outras que a tinham convidado, encontravam-na sozinha, de preto, com um chapeuzinho minúsculo numa poltrona a que chegara quando do erguer do pano.

- Ouve-se melhor no caso de uma peça que valha a pena - explicava, para escândalo dos Courvoisiers e deslumbramento dos Guermantes e da princesa de Parma, que descobriam subitamente que o "gênero" de ouvir o começo de uma peça era mais novo, demonstrava mais originalidade e inteligência (o que não era de espantar da parte de Oriane) do que chegar para o último ato após um jantar e uma aparição em um sarau. Tais eram os diferentes gêneros de espanto para os quais a princesa de Parma sabia que poderia preparar-se; propunha uma pergunta literária ou mundana à Sra. de Guermantes, e que faziam que, durante esses jantares na casa da duquesa, a Alteza não se aventurasse sobre o menor assunto a não ser com a prudência inquieta e maravilhosa da banhista que emerge entre duas vagas.

continua na página 213...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
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O Caminho de Guermantes (2a.Parte -  mesmo que todos os Courvoisiers tivessem ficado)
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Émile Zola - Germinal: Primeira Parte - (VI.b) nesse deus repleto e acocorado

Germinal

Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Primeira Parte

VI
 continuando...

      A sala era pequena, de uma nudez clara com suas três mesas e sua dúzia de cadeiras, seu balcão de pinho, do tamanho de um guarda-comida de cozinha. Havia, quando muito, uns dez copos, três garrafas de licor, um garrafão, uma pequena caixa de zinco com torneira de estanho para a cerveja e nada mais, nenhuma imagem, nenhuma prateleira, nenhum jogo. No fogão de ferro fundido, envernizado e brilhante, ardia brandamente uma pazada de hulha. Sobre as lajes, uma camada fina de areia branca absorvi a contínua umidade daquela região encharcada.

— Uma cerveja — pediu Maheu a uma moça gorda e loura, filha de uma vizinha e que às vezes cuidava do estabelecimento. — J. Rasseneur está?

     Abrindo a torneira, ela respondeu que o patrão vinha já Lentamente, de um só trago, o mineiro bebeu metade do copo, para limpar a garganta da poeira que a obstruía. Não ofereceu nada a seu companheiro. Um único freguês, um outro mineiro molhado e lambuzado, estava sentado a uma mesa e bebia sua cerveja em silêncio, com ar de profunda meditação. Um terceiro entrou, foi servido a um gesto que fez, pagou e retirou-se sem dizer palavra.
     Apareceu um homem gordo, de trinta e oito anos, barbeado, de rosto redondo e sorriso bonachão: era Rasseneur, antigo britador que a companhia tinha despedido havia três anos, depois de uma greve. Ótimo operário, falava bem, punha-se à frente de todas as reclamações e acabara sendo chefe dos descontentes. Sua mulher já tinha um pequeno estabelecimento, como muitas mulheres de mineiros; quando foi posto na rua, resolveu ser taberneiro, arranjou dinheiro e estabeleceu-se defronte da Voreux, como numa provocação à companhia. Atualmente sua casa prosperava, tornava-se um ponto de encontro, e ele enriquecia com as cóleras que pouco a pouco insuflara em seus antigos companheiros.

— É o rapaz que eu empreguei esta manhã — explicou Maheu sem mais preâmbulos. — Tens um dos teus dois quartos desocupado e queres dar-lhe crédito por uma semana?

     O rosto largo de Rasseneur ficou subitamente desconfiado. Examinou Etienne com um olhar rápido e respondeu, sem tentar fingir que sentia muito:

— Impossível; meus dois quartos estão ocupados.

     O rapaz esperava por aquela recusa, e no entanto sofreu com ela; espantou-se mesmo com o repentino desgosto que sentia por ter de partir. Mas que importa! Iria embora logo que recebesse os trinta soldos. O mineiro que bebia a uma mesa tinha saído. Outros, um a um, entravam para molhar a garganta e punham-se novamente a caminho com o mesmo passo cansado. Era uma simples lavagem de garganta, sem alegria ou paixão; o mudo saciar de uma necessidade.

— Então, que há de novo? — perguntou num tom misterioso Rasseneur a Maheu, que acabava sua cerveja a pequenos goles.

     Este virou-se e viu que apenas Etienne se encontrava na peça.

— Houve outra briga... por causa do revestimento.

     Contou o caso. O rosto do taberneiro ficou vermelho; uma cão sangüínea, que lhe saía em chamas pela pele e olhos, inchou-o. Por fim, explodiu:

— Agora sim! Se eles baixarem os salários, estão perdidos.

     A presença de Etienne o incomodava, mas assim mesmo continuou, lançando-lhe de vez em quando olhares oblíquos. Falava cheio de reticências, de subentendidos, citava o diretor, o Sr. Hennebeau, sua mulher, seu sobrinho, o pequeno Négrel, sem contudo os nomear, repetindo que isso não podia continuar assim, que mais dia menos dia ia explodir. A miséria era grande demais, citou as fábricas que estavam fechando, os operários despedidos. Havia um mês que dava mais de três quilos de pão por dia. Na véspera, tinham-lhe dito que o Sr. Deneulin, o proprietário de uma mina vizinha, já não sabia como aguentar. Para completar, acabava de receber uma carta de Lille cheia de detalhes inquietadores.

— Sabes de quem? — murmurou ele. — Daquela pessoa que viste aqui uma noite.

     Nisso foi interrompido; entrou sua esposa, uma mulher alta, magra e nervosa, de nariz comprido e pômulos violáceos. Em política era muito mais radical que o marido.

— A carta de Pluchart! — exclamou ela. — Ah, se aquele estivesse no comando, isto endireitava logo.

     Etienne começara a escutar, a compreender, a se apaixonar por essas ideias de miséria e de desforra. Aquele nome atirado por acaso fê-lo estremecer. Disse alto, quase involuntariamente:

— Eu conheço Pluchart. Olharam-no; teve de acrescentar: — Sim, eu sou operador de máquinas, ele foi meu contramestre em Lille. Um homem capaz; conversei muitas vezes com ele.

     Rasseneur examinou-o novamente: houve no seu rosto um movimento rápido, uma mudança súbita. Por fim disse à mulher:

— Maheu trouxe este senhor, trabalha para ele como operador de vagonetes, quer saber se não há um quarto desocupado em cima e se não poderíamos dar-lhe crédito por uma quinzena.

     O negócio foi fechado em quatro palavras. Havia um quarto, o inquilino partira de manhã. E o taberneiro, cada vez mais exaltado, desabafou tudo, repetindo sempre que só pedia o possível aos patrões, sem exigir, como muitos outros, coisas difíceis de obter. Sua mulher dava de ombros; ela queria seus direitos completos.

— Até amanhã — interrompeu Maheu. — Tudo isso não impede que desçamos à mina, e enquanto se descer haverá gente morrendo Olha para ti, forte e saudável desde que saíste de lá, há três anos.
— É verdade, estou muito melhor — declarou Rasseneur com bonomia.

     Etienne foi até a porta para agradecer ao mineiro que partia; este abanou a cabeça sem dizer palavra e o rapaz ficou ali, vendo-o subir com dificuldade o caminho do conjunto habitacional.
     A Sra. Rasseneur, que estava servindo fregueses, pedira-lhe que esperasse um minuto; em seguida o conduziria ao quarto para lavar-se. Devia ficar? Hesitava novamente, dominado por um mal-estar que o fazia sentir falta da liberdade das estradas abertas, da fome ao sol, sofrida com a alegria de ser dono de si. Parecia-lhe que vivera anos ali, desde a sua chegada ao aterro, no meio da borrasca, até as horas passadas debaixo da terra, arrastando-se pelas galerias escuras. Repugnava-lhe ter de começar; era injusto e demasiado duro; seu orgulho de homem revoltava-se à ideia de ter de ser um animal a quem se cega e esmaga.
     Enquanto Etienne se debatia nessa crise, seus olhos, que vagavam pela planície imensa, foram-na captando. Espantou-se; não imaginara assim o horizonte quando o velho Boa-Morte apontara com o dedo, no fundo das trevas. Clara, diante dele, ali estava a Voreux, numa depressão do terreno, com suas construções de madeira e de" tijolo, a triagem alcatroada, a torre do sino de rebate coberta de ardósia, a casa da máquina e a imensa chaminé de um vermelho pálido, tudo amontoado, de aparência lúgubre. Mas em torno das edificações desenrolava-se o pátio — e ele não o imaginara tão grande —, transformado num lago escuro pelas ondas cada vez maiores do estoque de carvão, eriçado de pontões altos que sustentavam os trilhos dos passadiços, atulhado a um canto com a provisão de madeira, semelhante à colheita de uma floresta ceifada. À direita, o aterro obstruía a vista, colossal como uma barricada de gigantes, já coberto de erva na parte mais antiga, consumido na outra por um fogo interior que ardia havia um ano, soltando uma fumaça espessa, deixando na superfície, entre o cinza esbranquiçado dos xistos e dos arenitos, extensos rastilhos de ferrugem cor de sangue. Depois, desenrolava-se o campo, plantações sem fim de trigo e beterraba ainda sem brotar naquela época do ano; pântanos de vegetação agreste entrecortada de alguns salgueiros definhados; prados longínquos separados por filas esguias de álamos. No fim do horizonte, pequenas manchas brancas indicavam as cidades: Marchiennes ao norte, Montsou ao sul e a leste a floresta de Vandame, orlando o espaço com a linha violácea das suas árvores despojadas. E, sob o céu lívido e de nuvens baixas daquele entardecer de inverno, parecia U todo o negrume da Voreux, toda a poeira esvoaçante da hulha que ia abater-se na planície, enodoando as árvores, saibrando as estradas, juncando a terra.
     Etienne olhava, e o que sobretudo o surpreendia era o canal, o Rio Scarpe - canalizado, que não tinha visto de noite. Da Voreux até Marchiennes, esse canal ia reto, uma fita de prata fosca de duas léguas, uma avenida debruada de árvores altas, correndo acima dos terrenos baixos, deslizando para o infinito com a perspectiva de suas ribanceiras verdes, de sua água pálida por onde escorregavam as popas vermelhas das chatas. Perto da mina havia um cais, barcos atracados que os vagonetes, de cima dos pontões, enchiam diretamente. A seguir, o canal fazia uma curva, cortando obliquamente os pântanos. Toda a alma dessa planície rasa parecia estar ali, nessa água geométrica que a cortava como uma estrada, carreando a hulha e o ferro.
     Os olhos de Etienne subiram do canal para o conjunto habitacional dos mineiros, construído no planalto, e de que distinguia somente as telhas vermelhas; depois voltaram à Voreux, pararam na base da ladeira argilosa, em dois enormes montes de tijolos, fabricados e cozidos ali mesmo. Um ramal da estrada de ferro da companhia passava por trás de uma paliçada, em direção à mina. Os últimos mineiros do desaterro deviam estar sendo descidos. Um único vagão, empurrado por homens, gemia nos trilhos. Aquilo já não era mais o ignoto das trevas, os trovões inexplicáveis, o resplendor de astros ignorados. Ao longe, os altos-fornos e as fornalhas de coque tinham empalidecido com a alvorada. O que continuava, sem descanso, era o escapamento da bomba, respirando com o mesmo fôlego grosso e amplo, a respiração de um monstro, cujo bafo cinzento ele via agora, e que nada podia fartar.
     Repentinamente, Etienne se decidiu. Talvez tenha acreditado estar entrevendo lá no alto, na entrada do conjunto habitacional, os olhos claros de Catherine. Antes talvez fosse um vento de revolta que vinha da Voreux, não sabia. Queria voltar a descer na mina para sofrer e combater; pensava com ódio nessas pessoas de quem falava Boa-Morte, nesse deus repleto e acocorado ao qual dez mil famintos davam sua carne sem nunca o terem visto.

continua na página 64...
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Primeira Parte - (VI.b) nesse deus repleto e acocorado
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - Paris estudado na sua mais tênue parcela / VI - Fragmento de história

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Primeiro — Paris estudado na sua mais tênue parcela

VI - Fragmento de história
     
     Na época, aliás quase contemporânea em que decorre a ação deste livro, não havia, como hoje, um agente de polícia à esquina de cada rua (bene cio que já não é tempo de discutir); por isso abundavam em Paris as crianças vagabundas. As estatísticas dão uma média de duzentas e sessenta crianças sem asilo, apanhadas anualmente pelas rondas da polícia, nos terrenos abertos, nas casas que se andavam construindo e debaixo dos arcos das pontes. Um destes ninhos, que se tornou famoso, produziu «as andorinhas da ponte de Arcole». E este é, no fim de tudo, o mais desastroso dos sintomas sociais. Todos os crimes do homem começam na vagabundagem da criança.
      Excetuemos, contudo, Paris, Relativamente, e não obstante o que acabamos de lembrar, a exceção é justa. Ao passo que em qualquer outra grande cidade, um rapazinho vagabundo é um homem perdido, ao passo que, em quase toda a parte, o rapaz abandonado a si mesmo, é de certo modo consagrado e votado a uma espécie de imersão fatal nos vícios públicos, que lhe devoram a honestidade e a consciência, o gaiato de Paris, insistimos neste ponto, tão gasto e safado na superfície, conserva-se interiormente quase intacto. É uma coisa magnífica e agradável de registar, e que brilha na esplêndida probidade das nossas revoluções populares: da ideia que satura o ar de Paris, resulta uma certa incorruptibilidade, como da água do oceano resulta o sal.
     Respirar Paris é conservar a alma.
      O que acabamos de dizer, não diminui coisa alguma o aperto de coração que se sente todas as vezes que se encontra uma daquelas crianças, em torno da qual parece ver-se flutuar os fios quebrados da família. Na civilização atual, tão incompleta ainda, não são demasiadamente anormais estas fraturas de famílias, vazando-se nas sombras, não sabendo mais o que é feito de seus filhos, e deixando cair as entranhas pelas ruas e praças públicas. Daqui os destinos obscuros. Chama-se a isto, porque tão triste coisa produziu locução: «ser lançado às pedras (sur lê pavé) de Paris».
      Seja porém dito de passagem: este abandono de crianças não era de todo desanimado pela antiga monarquia.
      Um tanto ou quanto de Egito e de Boémia nas baixas regiões, equilibrava as altas esferas e era útil aos desígnios dos poderosos. O antagonismo ao ensino dos filhos do povo, era dogma. Para que servem as «meias luzes?» Tal era a senha. Ora, a criança errante é corolário da criança ignorante.
     Além disto, quando a monarquia carecia de rapazes, fazia uma colheita pelas ruas e ficava servida.
     No tempo de Luís XVI, para não remontarmos a mais longe, queria o rei, e com razão, criar uma esquadra. A ideia era boa; mas vejamos os meios de a realizar. Não há esquadra possível, se, ao lado do navio de vela, ludibrio do vento, e para o rebocar sempre que seja necessário, não há o navio que vai onde quer, ou seja pelo remo ou pelo vapor; as galés eram naquele tempo para a marinha o que são hoje os vapores.
     Necessitavam-se, pois, galés; mas a galé não se move sem o forçado; por consequência era preciso que houvesse forçados. Colbert fazia apurar pelos intendentes de província e pelos parlamentos, o maior número possível de forçados. A magistratura empregava neste empenho a maior complacência. Se um homem qualquer conservava o chapéu na cabeça ao passar uma procissão, mostrava costumes de huguenote! Galés com ele. Encontrava-se na rua um rapaz, tinha quinze anos, e não sabia onde pernoitar; mandavam-no para as galés.
     Grande reinado, grande século.
     No reinado de Luís XV desapareciam de Paris as crianças; a polícia arrebatava-as, não se sabe para que misterioso emprego. Segredavam-se então com espanto, monstruosas conjecturas acerca dos banhos de púrpura do rei. Barbier fala ingenuamente destas coisas. Sucedia, às vezes, que os esbirros caçadores de crianças, se apoderavam de algumas que tinham pais. Estes, desesperados, corriam sobre os esbirros. Em tais casos, intervinha o parlamento e mandava prender... Quem? Os esbirros? Não, os pais das crianças.

continua na página 440...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - VI - Fragmento de história
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Massa e Poder - Malta e Religião: A festa xiita do Muharram

Elias Canetti

MALTA E RELIGIÃO

      A festa xiita do Muharram

      A partir de uma cisão no islamismo, que ostenta traços inequívocos de uma religião de guerra, nasceu uma religião de lamentação possuidora de um grau de concentração e extremismo não encontrável em parte alguma: a fé dos xiitas. Trata-se da religião oficial do Irã e do Iêmen, bastante disseminada também na Índia e no Iraque.
     Os xiitas acreditam num líder espiritual e temporal de sua comunidade ao qual dão o nome de imã. Sua posição é mais importante do que a do papa. Ele é o portador da luz divina, e é também infalível. Somente o fiel que segue seu imã pode ser salvo. “Aquele que morre sem conhecer o verdadeiro imã de seu tempo, morre como um in el.”
     O imã descende diretamente do profeta. Ali, o genro de Maomé — casado com a filha deste último, Fátima — é considerado o primeiro imã. O profeta confiou a Ali conhecimentos especiais, não revelados a seus outros seguidores, e tais conhecimentos são transmitidos hereditariamente em sua família. Maomé nomeou-o expressamente seu sucessor nos ensinamentos e no comando. Ali é o eleito por disposição do profeta: somente a ele cabe o título de “soberano dos verdadeiros fiéis”. Os filhos de Ali, Hassan e Hussain, herdaram-lhe, então, o ofício: eram os netos do profeta. Hassan foi o segundo e Hussain o terceiro imã. Qualquer outro que se arrogasse alguma soberania sobre os fiéis era um usurpador.
     A história política do islamismo após a morte de Maomé incentivou a construção de uma lenda em torno de Ali e de seus filhos. Ali não foi eleito califa de imediato. Nos primeiros 24 anos que se seguiram à morte de Maomé, esse cargo supremo foi ocupado sucessivamente por três de seus companheiros de luta. Somente depois de morto o terceiro é que Ali chegou ao poder, mas governou apenas por pouco tempo. Numa sexta-feira, durante o serviço religioso na grande mesquita de Kufa, foi assassinado com uma espada envenenada por um opositor fanático. Seu filho mais velho, Hassan, vendeu seus direitos por uma soma de vários milhões de diréns e retirou-se para Medina, onde, passados alguns anos, morreu em consequência de uma vida extravagante.
     Os sofrimentos de seu irmão mais novo, Hussain, tornaram-se o verdadeiro cerne da fé dos xiitas. Comportado e sério, ele era o oposto de Hassan, e vivia uma vida calma em Medina. Embora, com a morte do irmão, ele houvesse se tornado o chefe do xiismo, por um longo tempo Hussain não se deixou envolver em intrigas políticas. Quando, porém, o califa regente morreu em Damasco, e o filho deste pretendeu assumir-lhe a sucessão, Hussain negou-lhe seu respeito. Os habitantes da turbulenta cidade de Kufa, no Iraque, escreveram então a Hussain, convidando-o a visitá-los. Queriam-no como califa; uma vez lá, tudo lhe seria concedido. Hussain pôs-se a caminho, levando consigo a família, as mulheres, as crianças e um pequeno grupo de seguidores. Tinha à frente um longo caminho pelo deserto. Tendo alcançado as proximidades da cidade, esta já o havia abandonado. Seu governante enviou-lhe ao encontro uma vigorosa tropa de cavaleiros, que o intimaram a entregar-se. Hussain negou-se a fazê-lo, e cortaram lhe o acesso à água. Ele e seu pequeno grupo foram cercados. Na planície de Kerbela, no décimo dia do mês de muharram do ano de 680, segundo o nosso calendário, Hussain e os seus, que valentemente se defenderam, foram atacados e derrotados. Com ele tombaram 87 pessoas, dentre estas um grande número de seus familiares e dos de seu irmão. Seu cadáver ostentava as marcas de 33 estocadas de lança e 34 golpes de espada. O comandante das tropas inimigas ordenou a sua gente que cavalgasse sobre o corpo de Hussain. No chão, o neto do profeta foi pisoteado pelos cascos dos cavalos. Sua cabeça foi cortada e enviada para o califa em Damasco, que a golpeou na boca com seu bastão. Presente, um velho companheiro de Maomé advertiu-o: “Guarda teu bastão. Vi a boca do profeta beijar esta boca”.
     As “provações da estirpe do profeta” compõem o verdadeiro tema da literatura religiosa xiita. “Reconhecem-se os verdadeiros membros desse grupo por seus corpos emagrecidos pelas privações, pelos lábios ressequidos pela sede e os olhos molhados pelo choro incansável. O verdadeiro xiita é perseguido e infeliz feito a família por cujo direito luta e sofre. Considera-se quase o ofício da família do profeta sofrer opressão e perseguição.”
     Desde aquele dia fatídico em Kerbela, a história dessa estirpe compõe-se de uma sequência ininterrupta de sofrimentos e opressões. O seu relato em poesia e em prosa é cultivado em uma rica literatura de martirológios. Tais sofrimentos e opressões compõem o objeto das reuniões dos xiitas no primeiro terço do mês de muharram, cujo décimo dia — ashura — é tido como aquele no qual ocorreu a tragédia de Kerbela. “Nossos dias comemorativos são nossas assembleias fúnebres”, assim conclui um príncipe de orientação xiita um poema no qual homenageia as muitas provações por que passou a família do profeta. O que verdadeiramente importa aos fiéis genuínos é chorar, lamentar e enlutar-se pelos infortúnios e perseguições sofridos pela família de Ali e por seu martírio. “Mais comovente do que lágrimas xiitas”, diz um provérbio árabe. “Chorar por Hussain”, afirma um indiano moderno que professa essa fé, “é o preço de nossa vida e de nossa alma; do contrário, seríamos as mais ingratas das criaturas. Até no paraíso choraremos por Hussain [...] O luto por ele é a marca distintiva do islamismo. Para um xiita, é impossível não chorar. Seu coração é uma tumba viva, a verdadeira tumba para a cabeça do mártir decapitado.”
     Emocionalmente, a contemplação da pessoa e do destino de Hussain encontra-se no centro dessa fé. São a principal fonte da qual brota a experiência religiosa. Sua morte foi interpretada como um auto sacrifício voluntário; graças a seu sofrimento, os santos alcançaram o paraíso. A ideia de um intermediário é originalmente estranha ao islamismo. No xiismo, desde a morte de Hussain, ela se tornou predominante.
     O túmulo de Hussain, na planície de Kerbela, rapidamente tornou-se o mais importante local de peregrinação dos xiitas. Quatro mil anjos, chorando dia e noite por ele, circundam-lhe a tumba. Eles vão até a fronteira, ao encontro de cada peregrino, venha este de onde vier. Quem visita esse santuário obtém, em razão desse seu ato, as seguintes vantagens: o teto de sua casa jamais desabará sobre ele; ele jamais morrerá afogado ou queimado; animais selvagens jamais o atacarão. Aquele, porém, que ali ora com genuína fé é premiado ainda com anos adicionais de vida. Seu mérito corresponde ao de mil peregrinações a Meca, mil martírios, mil dias de jejum e mil libertações de escravos. No ano seguinte ao dessa sua visita, diabos e espíritos malignos nada poderão fazer contra ele. Caso morra, será enterrado por anjos e, no dia da ressurreição, levantar-se-á da tumba juntamente com os seguidores do imã Hussain, a quem reconhecerá pela bandeira que este carrega na mão. Em triunfo, o imã conduzirá seus peregrinos diretamente ao paraíso.
     Uma outra tradição afirma que, por mais que tenham pecado, todos os que foram sepultados no santuário de um imã não serão julgados no dia da ressurreição, mas lançados como que por um lençol diretamente no paraíso, onde os anjos, felicitando-os, apertar-lhes-ão a mão.
     Assim, antigos xiitas deitavam-se em Kerbela para morrer. Outros, que haviam sempre morado a uma grande distância da cidade sagrada, deixavam a determinação para que fossem enterrados ali. Há séculos, intermináveis caravanas de mortos vêm da Pérsia e da Índia para Kerbela; a cidade transformou-se num único e gigantesco cemitério.
      A grande festa dos xiitas, onde quer que vivam, acontece nos dias do mês de muharram nos quais Hussain sofreu sua paixão. Durante esses dez dias, toda a nação persa põe-se de luto. O rei, os ministros, os funcionários vestem-se de preto ou cinza. Arrieiros e soldados caminham com a camisa solta e aberta no peito, um grande sinal de pesar. No primeiro dia de muharram, que marca também o início do ano novo, a festa tem início. Do alto de púlpitos de madeira, a paixão de Hussain é narrada. Descrevem-se todos os seus detalhes; nenhum episódio é esquecido. Os ouvintes ficam profundamente comovidos. Seus gritos — “Ó Hussain! Ó Hussain” — fazem-se acompanhar de gemidos e lágrimas. Esse tipo de recitação prolonga-se por todo o dia; os pregadores revezam-se em diversos púlpitos. Durante os primeiros nove dias de muharram, grupos de homens atravessam as ruas com o peito nu e pintado de vermelho ou preto. Arrancam-se os cabelos, infligem-se ferimentos de espada, arrastam pesadas correntes consigo ou apresentam danças selvagens. Lutas sangrentas chegam a ocorrer com pessoas de outras crenças.
     A comemoração atinge o seu ápice no dia 10 de muharram, quando se realiza uma grande procissão, que, originalmente, representava o cortejo fúnebre de Hussain. Em seu centro encontra-se o esquife de Hussain, carregado por oito homens. Cerca de sessenta outros homens, lambuzados de sangue, marcham atrás do esquife, cantando uma canção marcial. Um cavalo os segue — o corcel de guerra de Hussain. Ao final, encontra-se geralmente mais um grupo de uns cinquenta homens, talvez, os quais batem ritmicamente um contra o outro dois bastões de madeira. — O delírio que, nessas festas, se apossa da massa lamentosa é quase inimaginável. Mais adiante, uma descrição oriunda de Teerã dá-lo-á a conhecer.
     As verdadeiras representações da paixão de Hussain, nas quais seus sofrimentos são apresentados em forma dramática, somente se transformaram numa instituição permanente por volta do início do século XIX. Gobineau — que esteve na Pérsia na década de 50 e, posteriormente, ali viveu por um longo período de tempo — deu-nos uma cativante descrição delas.
     Os teatros foram doados por pessoas ricas; os gastos com eles eram considerados obra meritória, mediante a qual o doador “construía para si um palácio no paraíso”. Os maiores abrigavam de 2 mil a 3 mil pessoas. Em Isfahan, encenavam-se espetáculos para mais de 20 mil espectadores. O ingresso era gratuito; todos podiam entrar, desde o mendigo em farrapos até o mais rico senhor. As apresentações tinham início às cinco horas da manhã. Antes da paixão, procissões, danças, sermões e canções ocupavam várias horas. Distribuíam-se refrescos, e os senhores abastados e respeitados consideravam uma questão de honra servir pessoalmente até mesmo os espectadores mais esfarrapados.
     Gobineau descreve duas espécies de irmandades que colaboram nesses eventos.

     Homens e crianças, carregando tochas e precedidos por uma enorme bandeira preta, adentram o teatro em procissão e o contornam cantando. À noite, podem-se ver esses grupos caminhando apressadamente pelas ruas, indo de um teatro para outro. Algumas crianças vêm na frente, gritando com voz estridente: “Ai, Hussain! Ai, Akbar!”. Os irmãos postam-se diante dos púlpitos dos pregadores, cantando e acompanhando seu canto de uma maneira selvagem e bizarra. Com a mão direita, formam uma espécie de concha, golpeando-se violenta e ritmicamente sob o ombro esquerdo. O resultado é um som abafado que, produzido simultaneamente por muitas mãos, faz-se audível a grande distância e é bastante impressionante. Os golpes são ora pesados e lentos, produzindo um ritmo arrastado, ora ligeiros e velozes, causando agitação nos presentes. Uma vez tendo a irmandade dado início a suas atividades, raramente ocorre de o auditório todo não imitá-las. A um sinal de seu chefe, os irmãos todos começam a cantar; golpeiam a si próprios, saltam sem sair do lugar e repetem, com uma voz breve e entrecortada: “Hassan! Hussain!”.
     Uma irmandade de natureza diversa é a dos flagelantes. Estes trazem sua música consigo sob a forma de pandeiros de tamanhos variados. O peito e os pés, eles os mantêm nus, assim como nada usam na cabeça. Compõem-se de homens, às vezes de velhos e às vezes de jovens de doze a dezesseis anos. Nas mãos, carregam correntes de ferro e agulhas pontudas. Alguns têm discos de madeira. Adentram o teatro em procissão e entoam uma litania — de início, muito lentamente — composta de apenas duas palavras: “Hassan! Hussain!”. Acompanham-nos os pandeiros, com batidas cada vez mais velozes. Os que possuem discos de madeira põem-se a batê-los ritmicamente um contra o outro, e todos começam a dançar. Os ouvintes os acompanham com golpes no próprio peito. Passado algum tempo, começam a flagelar-se com suas correntes: de início, devagar e com evidente cuidado; depois, animam-se, e passam a golpear-se com maior força. Todos quantos possuem agulhas espetam-nas nos braços e nas faces; o sangue escorre, a multidão se exalta e põe-se a soluçar, e a excitação aumenta. O chefe do grupo corre para um lado e para outro por entre as leiras de poltronas, encorajando os fracos e segurando os braços dos mais frenéticos. Quando a excitação faz-se demasiada, ele interrompe a música e suspende tudo. É difícil não se sentir afetado por uma tal cena: sente-se simpatia, compaixão e pavor ao mesmo tempo. No momento em que cessa a dança, por vezes veem-se flagelantes erguer os braços para o céu com suas correntes e, com uma voz tão profunda e um olhar tão forte e pio exclamar “Ya, Alá! Ó Deus!”, que se é tomado de admiração pelo modo como todo o seu ser se transfigura.

     Poder-se-ia designá-los uma orquestra do pesar; sua atuação é a de um cristal de massa. A dor que se infligem é a dor de Hussain. Na medida em que a representam, ela se torna a dor de toda a comunidade. Em consequência das batidas no peito, o que todos se põem a fazer, nasce aí uma massa rítmica. Sustenta-a o afeto da lamentação. Hussain foi-lhes arrebatado: pertence agora a todos juntos.
     Mas não são apenas os cristais das irmandades que de agram entre os presentes uma massa de lamentação. Também os pregadores e outros, apresentando-se isoladamente, produzem o mesmo efeito. A m de verificá-lo, ouça-se o que Gobineau vivenciou, na qualidade de testemunha ocular de um tal evento.

     O teatro está superlotado. Estamos no final de junho e sufocamos sob a imensa tenda. A multidão serve-se de refrescos. Um dervixe sobe ao palco e canta um hino. As pessoas acompanham-no com golpes no peito. Sua voz não é propriamente arrebatadora; o homem parece cansado. Não causa impressão alguma, e a cantoria esmorece. O homem parece senti-lo; ele para, desce do palco e desaparece. A calma volta a reinar. Então, um soldado alto e pesado, um turco com uma voz tonitruante, toma repentinamente da palavra e põe-se a bater no próprio peito com ressonantes golpes, cada vez mais violentos. Um outro soldado, turco também, pertencente a outro regimento, mas tão esfarrapado quanto o primeiro, encarrega-se da resposta. Com precisão, reiniciam-se os golpes no peito. Durante 25 minutos, a massa ofegante é arrebatada por esses dois homens e golpeia-se terrivelmente. O canto monótono e de ritmo forte os extasia. Golpeiam-se tanto quanto podem; ressoa um barulho abafado, profundo, regular e incessante, mas nem todos se contentam com ele. Um jovem negro, com um aspecto de carregador, levanta-se em meio à multidão sentada. Joga seu boné no chão e põe-se a cantar com toda a sua voz, enquanto, com os dois punhos, esmurra a própria cabeça raspada. Ele estava a uns dez passos de mim, de modo que pude acompanhar-lhe os movimentos todos. Seus lábios foram perdendo a cor; quanto mais ele perdia a cor, mais se animava; gritava e batia feito numa bigorna. Continuou fazendo aquilo por mais uns dez minutos. Os dois soldados, porém, já não aguentavam mais; estavam molhados de suor. Tão logo suas vozes precisas e poderosas deixaram de conduzi-lo e arrebatá-lo, o coro começou a hesitar e perder-se. Uma parte das vozes se calou, e o negro, qual lhe faltasse agora todo apoio material, fechou os olhos e desabou sobre seu vizinho. Todos pareciam sentir muita compaixão e respeito por ele. Puseram-lhe gelo na cabeça e levaram lhe água aos lábios. Mas ele desmaiara, e um certo tempo foi necessário para fazê-lo voltar a si. Já refeito, agradeceu suave e polidamente a todos os que o haviam ajudado.
     Tão logo alguma paz foi restabelecida, um homem num traje verde subiu ao palco. Não havia absolutamente nada de inusitado em sua pessoa; parecia um vendedor de especiarias vindo de algum bazar. Fez, então, um sermão sobre o paraíso, cuja grandeza descrevia com veemente eloquência. Para adentrá-lo, não bastava ler o Corão do profeta. “Não basta fazer tudo o que esse livro sagrado recomenda; não basta vir ao teatro para chorar, como vocês fazem diariamente. Suas boas ações, vocês têm de praticá-las em nome de Hussain e por amor a ele. Hussain é que é o portão do paraíso; é Hussain quem sustenta o mundo; é Hussain quem traz a salvação. Gritem: Hassan, Hussain!”
     A multidão toda gritou: “Ó Hassan, ó Hussain!”.
     “Muito bem. Agora, mais uma vez!” 
     “Ó Hassan, ó Hussain!” 
     “Roguem a Deus para que ele sempre conserve vocês no amor a Hussain. Vamos, roguem a Deus!” 
     Toda a massa ergue os braços para o alto a um só movimento e grita, com uma voz abafada e firme: “Ya, Alá! ó Deus!”.

     A paixão propriamente dita, que se segue a esse longo e agitado introito, compõe-se de uma série livre de quarenta a cinquenta cenas. Todos os acontecimentos são narrados aos profetas pelo anjo Gabriel, ou antevistos em sonhos, antes de serem representados no palco. O que quer que aconteça é algo já sabido dos espectadores; o que importa não é a tensão dramática, conforme nós a entendemos, mas a total participação. Todos os sofrimentos de Hussain — os tormentos da sede, uma vez que lhe cortaram o acesso à água, e os episódios durante a batalha, até sua morte — são descritos de maneira fortemente realista. Somente os imãs, os santos, os profetas e os anjos cantam. Figuras detestadas como o califa Yazid, que ordenou a morte de Hussain, e o assassino Shamir, que lhe desferiu o golpe fatal, não podem cantar: estes apenas declamam. Pode ocorrer de a monstruosidade de seus atos os subjugar. Nesse caso, irrompem em lágrimas enquanto pronunciam suas palavras malignas. Não há aplauso; as pessoas choram, gemem ou golpeiam a própria cabeça. A excitação dos espectadores atinge tamanha intensidade que não raro tentam linchar as personagens vis, os assassinos de Hussain. Perto do final, é mostrado de que forma a cabeça cortada do mártir é trazida até a corte do califa. No meio do caminho, os milagres sucedem-se. Um leão curva-se profundamente ante a cabeça de Hussain. O cortejo detém-se junto a um mosteiro cristão: ao divisar a cabeça do mártir, o abade abjura sua fé e converte-se ao islamismo.
     A morte de Hussain não foi em vão. Quando da ressurreição, a chave do paraíso ser-lhe-á confiada. O próprio Deus determina: “O direito da intercessão é exclusivamente dele. Hussain, por minha graça especial, é para todos o mediador”. O profeta Maomé entrega a Hussain a chave do paraíso e diz: “Vai, tu, e salva das chamas todo aquele que, em vida, derramou ao menos uma lágrima por ti; todo aquele que, de algum modo, te ajudou; todo aquele que empreendeu uma peregrinação até teu santuário ou lamentou por ti; e todo aquele que por ti escreveu versos trágicos. Leva cada um deles contigo ao paraíso”.
      Nenhuma fé jamais conferiu maior ênfase à lamentação. Ela constitui o mais elevado mérito religioso, superior em muito a qualquer outra boa ação. Justifica-se, decerto, falar-se aqui em uma religião de lamentação.
     Seu paroxismo, porém, esse tipo de massa não o atinge nos teatros, durante a encenação da paixão. Envolvendo meio milhão de pessoas, o “dia do sangue”, nas ruas de Teerã, foi descrito por uma testemunha da forma como se segue. Dificilmente poder-se-á encontrar relato mais sinistro e contundente.

     Tomadas pelo delírio, 500 mil pessoas cobrem a cabeça de cinzas e batem com a testa no chão. Desejam submeter-se ao martírio voluntário, querem matar-se em grupos e mutilar-se refinadamente. As procissões das corporações sucedem-se, uma atrás da outra. Como se compõem de pessoas que conservaram ainda um vestígio de razão — isto é, o instinto da autopreservação humana —, seus participantes apresentam-se vestidos normalmente.
     Faz-se um grande silêncio; às centenas, surgem homens trajando camisas brancas, o rosto em êxtase voltado para o céu.
     Destes homens, vários estarão mortos, muitos mutilados e desfigurados ao anoitecer, e suas camisas brancas, tingidas de vermelho, transformar-se-ão em mortalhas. Tais seres já não pertencem mais à terra. Suas camisas grosseiramente talhadas deixam à vista apenas o pescoço e as mãos — rostos de mártires, mãos de assassinos.
     Sob gritos de encorajamento e contagiados por seu delírio, outros lhes entregam sabres. Sua excitação torna-se, então, assassina; eles giram em círculos sobre si mesmos e brandem sobre a cabeça as armas que lhes foram dadas. Seus gritos encobrem os da massa. Para suportar a dor, têm de mergulhar num estado de catalepsia. Com passos de autômatos, caminham para a frente, para trás, para os lados, sem nenhuma ordem aparente. A cada passo, golpeiam compassadamente a própria cabeça com os sabres serrilhados. O sangue escorre. As camisas tingem-se de um vermelho-escarlate. A visão do sangue intensifica ao máximo a confusão em suas mentes. Alguns desses mártires voluntários desabam, brandindo seu sabre para todos os lados. De suas bocas seladas o sangue começa a escorrer. Em seu frenesi, acabaram por cortar veias e artérias, morrendo ali mesmo, antes que a polícia tenha tempo de transportá-los para um pronto-socorro, instalado atrás das portas fechadas de uma loja.
      Insensível aos golpes dos policiais, a massa fecha-se sobre tais homens, acolhendo-os e arrastando-os para uma outra parte da cidade, onde o banho de sangue prossegue. Nem uma única pessoa preserva sua clareza mental. Os que não têm eles próprios coragem para derramar seu sangue oferecem coca aos outros, para fortalecê-los, incitando-os por meio desse expediente e de imprecações.
     Mártires despem suas camisas, consideradas abençoadas, dando-as àqueles que levam consigo. Outros, que de início não se incluem entre as vítimas voluntárias, descobrem subitamente sua sede de sangue. Exigem armas, arrancam suas roupas e infligem-se ferimentos pelo corpo.
     Por vezes, abre-se uma lacuna na procissão: um dos participantes cai no chão, exausto. A lacuna é prontamente preenchida; a massa fecha-se sobre o desafortunado, chuta-o com os pés e o pisoteia.
     Não há destino mais belo do que morrer em plena ashura; os portais dos oito paraísos encontram-se escancarados para os santos, e todos buscam entrar.
     Os soldados em serviço, aos quais cabe cuidar dos feridos e manter a ordem, são tomados pela excitação da massa. Livram-se de seu uniforme e mergulham eles próprios no banho de sangue.
     O delírio toma conta das crianças também, até mesmo das bem pequenas: ao lado de uma fonte, uma mãe, inebriada de orgulho, aperta contra o peito o filho que acabou de mutilar-se; um outro chega correndo e gritando: arrancou fora um olho e, passados uns poucos instantes, arranca também o outro; os pais o contemplam enlevados.

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Massa e Poder - Malta e Religião: A festa xiita do Muharram
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."