em busca do tempo perdido
volume III
O Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Capítulo Segundo
Aliás, mesmo que todos os Courvoisiers tivessem ficado, as frases de Oriane os teriam
deixado tanto mais insensíveis quanto os incidentes que em geral os faziam surgir seriam
considerados por eles de um ponto de vista inteiramente diverso. Se, por exemplo, faltassem
cadeiras numa recepção dada por uma Courvoisier, ou se ela se enganava de nome ao falar a
uma visitante que não reconhecera, ou se um de seus criados lhe dirigia uma frase ridícula, a
Courvoisier, extremamente aborrecida, vermelha, trêmula de agitação, deplorava semelhante
contratempo.
E, quando recebia um visitante e Oriane devia comparecer, ela dizia num tom ansiosa e
imperiosamente interrogativo:
- O senhor a conhece? - temendo, se o visitante não a conhecesse, que sua presença
causasse má impressão em Oriane. Mas a Sra. de Guermantes, pelo contrário, extraía de tais
incidentes a oportunidade de historietas que faziam os Guermantes rirem às lágrimas, de modo
que se era obrigado a invejá-la por sua falta de cadeiras, por ter cometido ou deixar que o criado
cometesse uma gafe, por ter recebido em sua casa uma pessoa que ninguém conhecia, como se
é obrigado a felicitar-se que os grandes escritores tenham sido mantidos à parte pelos homens e
traído pelas mulheres quando suas humilhações e sofrimentos foram, se não o acidente do seu
gênero pelo menos a substância de sua obra.
Os Courvoisiers já não eram capazes de se alçar ao espírito de ração que a duquesa de
Guermantes introduzia na vida mundana e o adaptando-a conforme um instinto seguro às
necessidades do momento, fazia dela uma coisa artística, no ponto em que a aplicação
puramente razoável de regras rígidas também teria dado maus resultados, como que desejando
obter êxito no amor ou na política, reproduzisse ao pé da letra em sua própria vida, as façanhas
de Bussy d'Amboise. Se os Courvoisiers davam um jantar íntimo ou um jantar para um príncipe, o
acréscimo de homem de espírito, de um amigo de seus filhos, lhes pareceria uma anomalia capaz
de produzir o pior efeito. Uma Courvoisier, cujo pai fora ministro do Imperador, tendo que dar uma
reunião matinal em honra da princesa Mathilde, deduziu, por espírito de geometria, que só podia
convidar bonapartistas.
Ora, ela quase não os conhecia. Todas as mulheres elegantes de suas relações, todos os
homens agradáveis, foram impiedosamente banidos, porque, por serem legitimistas por opinião ou
ligações, poderiam, segundo a lógica dos Courvoisiers, desagradar à Alteza Imperial. Esta, que
recebia em sua casa a flor do faubourg Saint-Germain, ficou muito espantada quando encontrou
na casa da Sra. de Courvoisier somente uma céledo papa-jantares, viúva de um antigo prefeito do
Império, a viúva do diretor dos Correios e algumas pessoas conhecidas por sua fidelidade a
Napoleão I e pela estupidez e aborrecimento que causavam. Nem assim a princesa Mathilde
deixou de espalhar o generoso e suave esplendor de sua graça soberana sobre aqueles
monstrengos calamitosos que a duquesa de Guermantes evitou convidar quando chegou sua vez
de receber a princesa, e substituiu, sem arrazoados a priori sobre o bonapartismo, pelo mais
previsto ramalhete de todas as beldades, de todos os valores, de todas as celebridades, que uma
espécie de faro, de tato e de perícia lhe fazia sentir que seriam agradáveis à sobrinha do
Imperador, mesmo quando fossem da própria família do rei. Não faltou ali nem sequer o duque
d'Aumale e quando ao se retirar, a princesa, erguendo a Sra. de Guermantes, que lhe fazia
reverência e queria lhe beijar a mão, beijou-a em ambas as faces, foi do fundo do coração que
pôde assegurar à duquesa que nunca havia passado um dia melhor nem assistido a melhor festa.
A princesa de Parma era Courvoisier pela incapacidade de inovar em matéria social, mas,
diversamente dos Courvoisiers, a surpresa que lhe causava permanentemente a duquesa de
Guermantes engendrava não como neles a antipatia, e sim a admiração maravilhada. Tal
admiração era ainda acrescida devido à cultura infinitamente inferior da princesa. A própria Sra.
de Guermantes estava, sob esse aspecto, muito menos avançada do que supunha. Mas bastava
que o fosse mais que a Sra. de Parma para impressionar a esta. E, como cada geração de críticos
se limita a tomar o caminho oposto das verdades admitidas pelos seus predecessores, bastava à
duquesa dizer que Flaubert, esse inimigo dos burgueses, era antes de tudo um burguês, ou que
havia muito da música italiana na obra de Wagner, para proporcionar à princesa, sempre à custa
de um novo esgotamento, como a alguém que nada em meio à tempestade, horizontes que lhe
pareciam inauditos e permaneciam confusos para ela. Estupefação, aliás, diante dos paradoxos
proferidos não só a respeito de obras artísticas, mas até sobre pessoas de seu conhecimento, e
também a cerca de atos mundanos. Sem dúvida, a incapacidade de a Sra. de Parma separar o
verdadeiro espírito (o que a fazia crer no alto valor intelectual de algumas e, sobretudo, de certas
Guermantes sobre as quais, a seguir, ficava confusa ao ouvir a duquesa lhe dizer sorrindo que
não passavam de simples tolas) era uma das causas da admiração que a princesa experimentava
sempre ao ouvir a Sra. de Guermantes julgar as pessoas. Mas havia uma outra e que eu, que
conhecia àquela época mais livros que pessoas e melhor a literatura do que a sociedade, me
expliquei pensando que a duquesa, vivendo dessa vida mundana, cujo ócio e esterilidade estão,
para uma atividade social verdadeira, como, na arte, a crítica está para a criação, estendia às
pessoas de seu ambiente a instabilidade de pontos de vista, a sede malsã do raciocinador que,
para saciar o seu espírito demasiadamente seco, vai buscar qualquer paradoxo ainda um tanto
fresco e não se constrangerá de sustentar a opinião refrigerante de que a mais bela Ifigênia é a de
Piccinni e não a de Gluck e, se for preciso, que a verdadeira Pedra é a de Pradon.
Quando uma mulher inteligente, instruída e espirituosa se casara com um tímido pobre
diabo, que era visto raras vezes e nunca se ouvia, a Sra. de Guermantes um belo dia inventava
uma volúpia espirituosa não só descrevendo a mulher, mas "descobrindo" o marido. Quanto ao
casal Cambremer, por exemplo, se tivesse vivido naquele ambiente, a duquesa decretaria que a
Sra. de Cambremer era estúpida e, em compensação, que a pessoa interessante, desconhecida,
deliciosa, votada ao silêncio por mulher tagarela, mas tendo mil vezes mais valor que a esposa,
era o mesmo, e a duquesa teria experimentado, ao declarar isso, o mesmo gênero de refrigério do
crítico que, depois de sessenta anos que se vem admirando o Hernani, confessa preferir-lhe O
Leão Amoroso por causa da mesma necessidade doentia de novidades arbitrárias se, desde a
mocidade era alimentada uma mulher modelo, uma verdadeira santa, por se haver casado com
um patife, um belo dia a Sra. de Guermantes afirmava que esse era um homem leviano, porém de
grande coração, que a dureza implacável da mulher levara à verdadeiras inconsequências. Eu
sabia que não era apenas entre as obras, na longa série dos séculos, mas até no seio de uma
mesma obra, que a crítica se compraz em mergulhar de novo nas sombras o que há muito tempo
era radioso, e a fazer sair da sombra o que parece votado à definitiva obscuridade. Não só vira
Bellini, Winterhalter, os arquitetos jesuítas e um ebanista da Restauração virem ocupar o lugar de
gênios de quem se dizia já estarem cansados, simplesmente porque os ociosos intelectuais já se
haviam cansado deles, como estão sempre cansados, estão sempre mandando os neurastênicos;
como também vira preferirem em Sainte-Beuve, sucessivamente o crítico e o poeta, Musset
renegado quanto aos versos, à exceção de umas pecinhas bem insignificantes, e exacerbado
como contista. Sem dúvida, erram certos ensaístas em colocar, acima das cenas mais célebres do
Cid e de Polieucto, certa tirada do Mentir - que dá, como um mapa antigo, informações sobre a
Paris da época, mas sua predileção, justificada se não por motivos de beleza, ao menos por
interesse documental, é ainda por demais racional para a crítica alucinada. Ela troca todo o
Moliere por um verso de O Estouvado e, mesmo acharem tedioso o Tristão de Wagner, nele salva
uma "bela nota de trompa" no momento em que passam os caçadores. Essa depravação ajudou
me a compreender aquela da qual fazia prova a Sra. de Guermantes quando decidi que um
homem de sua sociedade, reconhecido por ter um grande coração, porém tolo, era um monstro de
egoísmo, mais esperto do que se imaginava; que outro, conhecido por sua generosidade, podia
simbolizar a avareza; que uma boa mãe não se incomodava com seus filhos, e que uma mulher
que julgava cheia de vícios possuía os mais nobres sentimentos. Ou que estragadas pela
nulidade da vida mundana, a inteligência e a sensibilidade da Sra. de Guermantes eram instáveis
demais para que, nela pulsa não se sucedesse bem rápido ao entusiasmo (com o risco de
novamente sentir-se atraída pelo gênero de espírito que sucessivamente buscara e desprezara) e,
para que o encanto que achara em um homem generoso não mudasse, se ele a frequentasse
bastante, buscava demais em si mesma direções que era incapaz de lhe dar, numa irritação que
julgava produzida pelo seu admirador e que o era unicamente pela impotência em que se está de
encontrar um prazer quando se contenta em procurá-lo.
As variações de julgamento da duquesa não poupavam ninguém, exceto o marido.
Somente ele não a havia amado nunca; nele, ela sentira sempre um caráter de ferro, indiferente
aos caprichos que ela sentia, desdenhoso de sua beleza, violento, de uma vontade que jamais se
dobrava e sob cuja única lei os nervos sabem achar sossego. Por outro lado, o Sr. de
Guermantes, perseguindo um mesmo tipo de beleza feminina, mas encontrando-o em amantes
frequentemente renovadas, não tinha, tão logo as deixava, e para troçar delas, senão uma só
companheira duradoura, idêntica, que o irritava muitas vezes por sua tagarelice, mas que ele
sabia que toda a sociedade a considerava a mais bela, mais virtuosa, mais inteligente e mais
instruída da aristocracia, uma mulher que ele, Sr. de Guermantes, era muito feliz em ter
encontrado, que encobria todas as suas desordens, recebia como ninguém e mantinha o salão
deles como o primeiro salão do faubourg Saint-Germain. Esta opinião alheia, ele próprio a
partilhava; muitas vezes de mau humor contra a mulher, sentia orgulho dela. Se, tão avarento
quanto ostentador, recusava-lhe a menor quantia para obras de caridade, para os criados, fazia
questão de que ela tivesse os mais magníficos vestidos e as mais belas parelhas na carruagem.
Enfim, buscava ressaltar o valor do espírito de sua mulher. Ora, a cada vez a Sra. de Guermantes
acabava de inventar, relativamente aos méritos e aos defeitos, bruscamente invertidos por ela, de
um de seus amigos, um novo e saboroso paradoxo, ardia por ensaiá-lo diante de pessoas que
soubessem degustá-lo, fazê-los saborear sua originalidade psicológica, e para brilhar sua lapidar
malevolência. Sem dúvida essas novas opiniões em geral não continham mais verdade que as
antigas, e muitas vezes menos; mas justo o que possuíam de arbitrário e inesperado lhes conferia
algo de intelectual que as fazia tão emocionantes de comunicar. Apenas, o paciente sobre quem
acabava de se exercer a psicologia da duquesa era geralmente um íntimo, de quem aqueles a
quem ela desejava transmitir sua descoberta ignoravam totalmente que não estivesse no auge do
favor; e também a reputação que possuía a Sra. de Guermantes de amiga incomparável,
sentimental, suave e devotada, tornava difícil principiar o que ela podia, quando muito, intervir em
seguida, como que constrangida e forçada, dando a réplica para apaziguar, para contradizer em
aparência, para apoiar de fato um comparsa que decidira provocá-la; era exatamente o papel em
que excedia o Sr. de Guermantes.
Quanto às ações mundanas, era ainda um outro prazer, arbitrariamente teatral, que a Sra.
de Guermantes experimentava em emitir, sobre elas, juízos imprevistos que fustigavam de
surpresas incessantes e deliciosas a princesa de Parma. Porém, esse prazer da duquesa foi
menos com ajuda da crítica literária do que segundo a vida política e a crônica particular que
tentei compreender qual poderia ser. Os editos sucessivos, contraditórios, pelos quais a Sra. de
Guermantes invertia sem cessar os valores no caso das pessoas de seu meio, não lhe bastavam
para distraí-la, e ela procurava também, na maneira como dirigia a própria conduta social, de que
dava conta em suas menores decisões, desfrutes dessas emoções artificiais, obedecer a esses
deveres fictícios que estimulam a sensibilidade das assembléias e se impõem ao espírito dos
políticos. Sabe-se que, quando um ministro explica à Câmara que julgou fazer bem seguindo uma
linha de conduta que, de fato, parece bem simples ao homem de bom senso que, no dia seguinte,
lê no seu jornal o resumo da sessão, tal leitor de bom senso, no entanto, se sente subitamente
impressionado e começa a duvidar de ter tido razão ao aprovar o ministro, vendo que o discurso
deste foi ouvido em meio a uma viva agitação e pontuado de pressões de censura, como: "É
muito grave", pronunciadas por um adepto cujo nome e títulos são tão longos e seguidos de
movimentos tão acentuados que, em toda a interrupção, a expressão "é muito grave!" ocupa
menos lugar do que um hemistíquio num alexandrino. Por exemplo, quando o Sr. de Guermantes,
via que o príncipe des Laumes, tinha assento à Câmara, lia-se às vezes nos jornais de Paris,
conquanto fosse principalmente destinado à circunscrição de Méséglise e a fim de mostrar aos
leitores que não tinham votado num mandatário inativo e mudo: "Senhor de Guermantes-Bouillon,
príncipe des Laumes: Isto é terrível (Muito bem! Muito bem! No centro e em alguns bancos à
direita, vivam: exclamações à extrema esquerda.)"
O leitor de bom senso guarda ainda um vislumbre de fidelidade sábio ministro, mas seu
coração e sacudido por novas palpitações às primeiras palavras do novo orador, que responde ao
ministro: "O espanto, o estupor, não é dizer demais viva sensação na parte direita do semicírculo,
que me causam as palavras deste que ainda é, suponho, membro do governo..." (Tempestade de
aplausos; alguns deputados dirigem-se apressadamente para o banco dos ministros; o Sr.
subsecretário de Estado de Correios e Telégrafos faz, do seu posto, um sinal afirmativo a cabeça.)
Essa "tempestade de aplausos" desfaz as últimas resistências do leitor de bom senso; ele acha
insultante para a Câmara, monstruosa, uma forma de proceder que em si mesma é insignificante;
se necessário, algum fato normal; por exemplo: querer que os ricos paguem mais que os pobres,
esclarecer uma iniquidade, preferir a paz à guerra; ele o achará escandaloso e nele verá uma
ofensa a certos princípios em que, na verdade, ainda não havia pensado, princípios que não estão
inscritos no coração do homem, mas que emocionam intensamente devido às aclamações que
desencadeiam e às maiorias maciças que congregam.
É preciso, além disso, reconhecer que semelhante sutileza dos políticos, que serviu para
me explicar o meio Guermantes e, mais tarde, outros meios, não passa da perversão de uma
certa finura de interpretação muitas vezes designada pela locução "ler nas entrelinhas". Se, nas
assembleias, há o absurdo pela perversão dessa finura, há estupidez por falta dessa finura no
público que leva tudo "ao pé da letra", que não suspeita de uma demissão quando um alto
dignitário é dispensado de suas funções "a seu pedido" e que diz consigo: "Não foi exonerado
porque ele mesmo pediu demissão"; não imagina uma derrota, quando os russos, com um
movimento estratégico, recuam diante dos japoneses para posições mais fortes e previamente
preparadas; não enxerga uma recusa quando, tendo uma província pedido independência ao
imperador da Alemanha, este lhe concede a autonomia religiosa. É possível, aliás, para retornar a
estas sessões da Câmara, que, quando se abrem, os próprios deputados se assemelham ao
homem de bom senso que lerá o seu resumo. Sabendo que operários em greve enviaram seus
delegados ao ministro, talvez se indaguem ingenuamente: "Ah, bem, que se terão dito?
Esperemos que tudo se acomode", no momento em que o ministro sobe à tribuna, em meio ao
profundo silêncio que já estimula emoções artificiais. As primeiras palavras do ministro: "Não
tenho necessidade de dizer à Câmara que possuo um alto senso dos deveres do governo para
não receber essa delegação, de que a autoridade do meu cargo não precisava tomar
conhecimento" são um lance teatral, pois era a única hipótese que o bom-senso dos deputados
não havia formado. Mas justamente porque se trata de um lance teatral, é acolhido por tais
aplausos que só ao cabo de alguns minutos é que o ministro pode se fazer ouvir, esse ministro
que receberá, ao voltar à sua cadeira, as felicitações dos colegas. Há tanta emoção como no dia
em que ele se esqueceu de convidar para uma grande festa oficial o presidente do conselho
municipal, que lhe fazia oposição, e declarou-se que numa e noutra circunstância ele agira como
homem de Estado.
O Sr. de Guermantes, nessa época de sua vida, para grande espanto dos Courvoisiers,
fizera muitas vezes parte dos colegas que vinha felicitar o ministro. Mais tarde, ouvi contar que,
mesmo num período em que desempenhou um importante papel na Câmara, e que se pensava
para num ministério ou numa embaixada, ele era, quando um amigo vinha pedir um favor,
infinitamente mais simples, bancava politicamente muito menos o grande personagem do que
qualquer outro que não fosse o duque de Guermantes. Pois, se ele afirmava que a nobreza não
valia muito, considerava seus colegas como seus iguais, não pensava uma só palavra do que
dizia. Buscava, fingia estimar, mas desprezava as situações políticas e, como continuava a ser
para si mesmo o Sr. de Guermantes, elas não colocavam em torno a sua pessoa esse estilo
empolado dos grandes empregos que faz inacessíveis os outros. Desse modo, seu orgulho
protegido contra qualquer golpe, não só as suas maneiras de uma familiaridade ostensiva, mas
também o que nele pudesse haver de simplicidade autêntica.
Para regressar às suas decisões artificiais e emocionantes, como, a dos políticos, a Sra.
de Guermantes não menos desconcertava os Guermantes, os Courvoisiers, todo o faubourg e,
mais que ninguém, a princesa de Parma, devido aos decretos inesperados, sob os quais sentiam
se princípios que tanto mais impressionavam quanto menos se estava prevenido para eles. Se o
novo ministro da Grécia dava um baile à fantasia, cada qual escolhia uma, e perguntava-se qual
seria a da duquesa. Uma pensava que gostaria de ir fantasiada de duquesa de Borgonha, uma
outra dava como provável a fantasia de princesa de Deryabar, uma terceira a de Psiquê. E no fim,
tendo uma Courvoisier perguntado:
- De que vais te fantasiar, Oriane? - provocava a única resposta em que não teriam
pensado:
- De coisa nenhuma! E que dava muito trabalho às línguas, como reveladora da opinião de
Oriane sobre a verdadeira posição mundana do novo ministro da Grécia e sobre a conduta a
adotar a seu respeito, isto é, a opinião que não deveria ter previsto, a saber que uma duquesa
"não tinha" que ir ao baile de fantasia desse novo ministro.
- Não vejo que haja necessidade de ir ao baile do ministro da Grécia, a quem não conheço;
não sou grega, e por que iria? Nada tenho a fazer lá - dizia a duquesa.
- Mas todo mundo vai, parece que será um encanto! - exclamava a Sra. de Gallardon.
- Mas também é um encanto ficar ao pé da lareira - replicava Sra. de Guermantes.
Os Courvoisiers não se refaziam do assombro, mas os Guermantes sem imitar,
aprovavam:
- Naturalmente, nem todo mundo está, Oriane, em situação de romper com todos os
costumes. Porém, de um lado não se pode dizer que ela esteja errada em querer nos mostrar que
exageramos ao nos fazermos tão submissos diante desses estrangeiros que nem sempre se sabe
de onde vêm.
Naturalmente, conhecendo os comentários que uma ou outra atitude não deixavam de
provocar, a Sra. de Guermantes sentia tanto prazer em comparecer a uma festa em que não
contavam com ela, como em ficar em casa ou ir com o marido ao teatro, numa noite de festa a
que "todo mundo" comparecia, ou então, quando pensavam que ela eclipsaria os mais belos
diamantes com um diadema histórico, surgir sem uma única joia e com um vestido diverso
daquele que julgavam erroneamente ser de rigor. Embora fosse antidreyfusista (sem deixar de
crer na inocência de Dreyfus, assim como passava a vida na sociedade acreditando apenas nas
ideias), causara sensação imensa, numa recepção em casa da princesa de Ligne; primeiro
permanecendo sentada quando todas as damas se ergueram à entrada do general Mercier, e a
seguir, levantando-se e chamando ostensivamente seus criados quando um orador nacionalista
principiara uma conferência, mostrando assim que não achava que as reuniões mundanas fossem
feitas para se falar de política; todas as cabeças se haviam voltado para ela, num concerto da
Sexta-feira Santa, em que, apesar de voltaireana, não permanecera, pois achara indecente que
pusessem o Cristo em cena. Sabe-se o que é, mesmo para as maiores mundanas, o momento do
ano em que começam as festas; a ponto de que a marquesa de Amoncourt, que, por necessidade
de falar, mania psicológica, e também por falta de sensibilidade, acabava muitas vezes por dizer
asneiras, pudera responder a alguém que tinha vindo dar-lhe os pêsames pela morte do pai, o Sr.
de Montmorency:
- É talvez ainda mais triste que nos ocorra semelhante desgosto no momento em que
temos no espelho centenas de convites. -
Ora bem, nesse momento do ano, quando convidavam para jantar a duquesa de
Guermantes, apressando-se com receio de que já estivesse comprometida, ela o recusava pela
única razão a que um mundano jamais ocorreria: ia partir em excursão para visitar os lordes da
Noruega, que a interessavam. As pessoas da sociedade ficavam estupefatas com aquilo e, sem
se preocuparem em imitar a duquesa, sentiam no entanto, com o seu ato, a espécie de alívio que
se tem em Kant quando, após a mais rigorosa demonstração do determinismo, descobre-se que
acima do mundo da necessidade existe o da liberdade. Toda invenção em que jamais se pensou
excita o espírito, mesmo das pessoas que não sabem aproveita-la. A da navegação a vapor era
de pouca importância comparada com o seu uso à época sedentária. A idéia de que se podia
voluntariamente renunciar a cem jantares e almoços na cidade, a duzentos "chás", a trezentas
recepções noturnas, às mais brilhantes segundas da ópera e às terças do "Français", parar de
visitar os lordes da Noruega, não pareceu aos Courvoisiers mais explicado que as Vinte mil léguas
submarinas, mas comunicou-lhes a mesma sensação de independência e charme. Assim, não
havia dia em que não se ouvisse dizer não só "Você conhece a última frase de Oriane?", mas
também "Você sabe a última de Oriane?" E da "última de Oriane?", como da última "frase" de
Oriane, repetia-se: "É bem de Oriane", "É bem da Oriane", "É pura Oriane". A última de Oriane
era, por exemplo, que, tendo que responder nome de uma sociedade patriótica ao cardeal X,
bispo de Mâcon (a quem de hábito o Sr. de Guermantes, quando falava dele, chamava de
"Senhor de Mascou", pois o duque achava aquilo "França antiga"), como todos pudessem
imaginar de que jeito seria a carta e achassem bom o começo: "Eminência" ou "Monsenhor" mas
embaraçavam-se diante do resto; a carta de Oriane, para espanto de todos, principiava por
"Senhor cardeal" devido a um velho costume acadêmico, ou por "Meu primo", expressão usual
entre os príncipes da Igreja, os Guermantes e os soberanos que pediam a Deus que os tivessem
a uns e outros "sob Sua santa e digna guarda". Para que se falasse de uma "última de Oriane",
bastava que, num espetáculo que comparecia Paris inteira, e onde se representava uma peça
muito simpática, como procurassem a Sra. de Guermantes no camarote da princesa de Parma, da
princesa de Guermantes e de tantas outras que a tinham convidado, encontravam-na sozinha, de
preto, com um chapeuzinho minúsculo numa poltrona a que chegara quando do erguer do pano.
- Ouve-se melhor no caso de uma peça que valha a pena - explicava, para escândalo dos
Courvoisiers e deslumbramento dos Guermantes e da princesa de Parma, que descobriam
subitamente que o "gênero" de ouvir o começo de uma peça era mais novo, demonstrava mais
originalidade e inteligência (o que não era de espantar da parte de Oriane) do que chegar para o
último ato após um jantar e uma aparição em um sarau. Tais eram os diferentes gêneros de
espanto para os quais a princesa de Parma sabia que poderia preparar-se; propunha uma
pergunta literária ou mundana à Sra. de Guermantes, e que faziam que, durante esses jantares na
casa da duquesa, a Alteza não se aventurasse sobre o menor assunto a não ser com a prudência
inquieta e maravilhosa da banhista que emerge entre duas vagas.
continua na página 213...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - mesmo que todos os Courvoisiers tivessem ficado)
Volume 7