segunda-feira, 2 de junho de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - O Petit Picpus / X - Origem de adoração perpétua

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Sexto — O Petit Picpus

X - Origem de adoração perpétua
     
      Com efeito, o locutório quase sepulcral, de que temos tentado dar uma ideia, é um fato inteiramente local, que não se reproduz com a mesma severidade noutros conventos, especialmente no convento da rua do Templo, que, na verdade, era de outra ordem. Neste convento, os postigos negros eram substituídos por cortinas de cor escura, e o locutório era uma sala soalhada, com cortinas de cassa nas janelas e quadros de toda a espécie pelas paredes entre os quais figurava o retrato de uma beneditina com o rosto descoberto, ramalhetes pintados e até a cabeça de um turco.
      Era no jardim do convento da rua do Templo que se achava o castanheiro da Índia que passava pelo mais belo e maior da França, e que entre o bom povo do século XVIII, tinha a fama de ser o pai de todos os castanheiros do reino.
     Como já tivemos ocasião de dizer, o convento do Templo era ocupado por beneditinas da Adoração Perpétua, beneditinas, porém, muito diferentes das que estavam na obediência de Cister. A ordem da Adoração Perpétua não é muito antiga, pois não remonta a mais de duzentos anos. Em 1649 foi duas vezes e com poucos dias de intervalo, profanado o Santíssimo Sacramento, em duas igrejas de Paris, em S. Sulpício e em S. Jean da Greve, sacrilégio horroroso e raro que encheu de comoção toda a cidade. Ordenou por este motivo o vigário-geral, prior de S. Germano-des-Prés, uma solene procissão, em que todo o seu clero tomou parte, oficiando o núncio do papa.
      Duas senhoras, porém, Madame de Courtin, marquesa de Boucs, e a condessa de Chateauvieux, julgaram insuficiente a expiação. Aquele ultraje, bem. que passageiro, feito ao «augustíssimo sacramento do altar» não saía daquelas duas almas piedosas, parecendo-lhes que não podia ser reparado senão por uma «Adoração Perpétua» em algum mosteiro de freiras. Fizeram ambas, pois, uma em 1652, a outra em 1653, doação de consideráveis quantias à madre Catarina de Bar, chamada do Santíssimo Sacramento, religiosa beneditina, para ela com este piedoso fim, fundar um mosteiro da ordem de S. Bento; a primeira licença para esta fundação foi dada à madre Catarina pelo senhor de Metz, abade de S. Germano com a condição de que nenhuma mulher pudesse ser admitida, sem trazer trezentas libras de pensão, que perfazem seis mil libras de capital». Depois do abade de S. Germano concedeu o rei cartas-patentes, e em 1654, tanto a licença abacial, como as cartas régias, foram homologadas no tribunal de contas e no parlamento.
     Eis aqui a origem e a consagração legal do estabelecimento das beneditinas da Adoração Perpétua do Santíssimo Sacramento em Paris. O seu primeiro convento foi «todo feito de novo» na rua da Cassete à custa de Madame de Boucs e de Madame Chateauvieux.
     Esta ordem, como se vê, não se confundia com as beneditinas chamadas de Cister. O seu superior era o abade de S. Germano-des-Prés, do mesmo modo que o superior das freiras do Sagrado Coração era o geral dos jesuítas, e o das irmãs da caridade o geral dos lazaristas.
      Era também completamente diferente das bernardas do Petit-Picpus, cujo interior acabamos de mostrar. Em 1657 o papa Alexandre VII, por um breve especial, dera autorização às bernardas do Petit-Picpus, para praticarem a Adoração Perpétua à semelhança das beneditinas do Santíssimo Sacramento. As duas ordens, porém, nem por isso deixaram de ficar inteiramente distintas, como dantes.

continua na página 386...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - X - Origem de adoração perpétua
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

sábado, 31 de maio de 2025

Mulher: Las Poetisas del Amor

Cecília Meireles


Mulher ao Espelho




Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena, 
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importo quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus
se morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.


Florbela Espanca
A Mulher II 




Ó mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!

Quantas morrem saudosas duma imagem
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca ri alegremente!

Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doces almas de dor e sofrimento!

Paixão que faria a felicidade
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!



C.G. Victorino
Eu Sou: A Nova Voz Das Mulheres


Vão olhar para meu ventre e dizer que sou sua
Vão olhar para meu corpo e dizer que estou nua

Vão olhar para minha face e me dizer especial
Mas, vou virar o olhar de repulsa
Vão me dizer que sou sem sal

Releve que o vento leva
E o vento leva por gerações
Não vou mais aguentar calada
Mesmo que enfrente multidões

Agora sou dona de mim
Não adianta afirmar que é banal
A mulher é um ser pleno
Não pode ser um ideal

A alma é livre de modelos
Ela é um anexo espacial
Quando me olham e me julgam
Não vou fingir que é normal

A vida de fato é tênue
Para eu levar sua miséria no âmago
Agora que estou acordada
Não vou me render a tiranos
Que seja sua filha, sua mãe,
Que seja sua irmã e sua prima
Que seja na rua, na esquina
O algoz amargura sua vítima

Mas veja que o pranto dos séculos
Parou de sangrar pela dor
A dor das mulheres forçadas
A engolir solidão e temor

Agora acordamos das cinzas
Somos frutos de um mundo opressor
Ninguém mais ficará calada
E sozinha enfrentará a dor

Vão olhar e gritar e bater
Apontar, violentar para temer
Mas agora é a hora do basta
E não mais existirá perdão
Não me calo frente ao soberano
Não mais passará contradição

Mulher sou livre e sou plena
Sou todas as vozes pequenas
Sou nua, de burka, enfeitada
Sou dona do meu coração
Ninguém mais calará o meu pranto
Para sua satisfação.


Televisão: Arnaldo Antunes

SEM CENSURA ESPECIAL 

Arnaldo Antunes

23 de mai. de 2025




Sextou no #SemCensura com um programa especial sobre Arnaldo Antunes! O eterno titã, que passeia pela inquietude do rock e por tranquilas canções de amor, será homenageado pela cantora e compositora Anna Ratto, que acaba de lançar um álbum só com músicas do artista.

Na bancada também recebemos o ex-baixista dos Mutantes, Liminha, que é um dos produtores mais renomados no meio da música e tem muitas histórias com o nosso homenageado.

Cissa Guimarães recebe, ainda, o compositor e pianista pernambucano Vitor Araújo, que percorreu, e ainda percorre, o país ao lado de Arnaldo.

Fechando a bancada, Fabiane Pereira, jornalista especialista em música, participa como debatedora do dia.

O Sem Censura é de segunda a sexta, às 16h, ao vivo, na #TVBrasil e no YouTube!



Lavar as Mãos - 20 Anos de Castelo Rá-Tim-Bum




Uma
Lava a outra
Lava uma (mão)
Lava a outra (mão)
Lava uma
(Mão)
Lava a outra (mão)
Lava uma

Depois de brincar no chão de areia a tarde inteira
Antes de comer, beber, lamber, pegar na mamadeira

Lava uma (mão)
Lava outra (mão)
Lava uma
Lava outra (mão)
Lava uma

A doença vai embora junto com a sujeira
Verme, bactéria, mando embora embaixo da torneira

Água uma
Água outra
Água uma
(Mão)
Água outra
Água uma

Na segunda, terça, quarta, quinta e sexta-feira
Na beira da pia, tanque, bica, bacia, banheira

Lava uma (mão)
(Mão)
(Mão)
(Mão)

Água uma (mão)
Lava outra (mão)
Lava uma (mão)
Lava outra
Lava uma

Composição: Arnaldo Antunes


Música Infantil - Lavar as mãos    



Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - O Petit Picpus / IX - Um século sob um hábito

 Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Sexto — O Petit Picpus

IX - Um século sob um hábito
     
      Já que tão detidamente viemos a ocupar-nos do que noutro tempo era o convento do Petit-Picpus, ousando abrir uma janela por onde devassássemos o interior daquele discreto asilo, permita-nos ainda o leitor uma pequena digressão estranha à essência deste livro, mas característica e útil, por isso que dá lugar a sabermos que o convento também tem suas figuras originais.
      Havia no pequeno Convento, uma centenária que para ali tinha vindo da abadia de Fontevrault. Antes da revolução pertencera mesmo à boa sociedade. Falava muito do senhor de Miromesnil, guarda dos selos no reinado de Luís XVI e de uma presidenta Duplat, a quem de muito perto conhecera. O seu gosto, a sua vaidade, era vir à baila com estes dois nomes, a propósito de tudo em que se falasse. Além disto, contava maravilhas da abadia de Fontevrault, pintando-a como uma cidade, e dizendo que no mosteiro havia ruas.
     A sua linguagem era um geringonça picarda, que fazia rir as recolhidas. Todos os anos renovava solenemente os seus votos, e na ocasião em que prestava juramento, dizia para o sacerdote: «Monsenhor S. Francisco arrendou-o a Monsenhor S. Julião, Monsenhor S. Julião arrendou-o a Monsenhor S. Eusébio, Monsenhor S. Eusébio arrendou-o a Monsenhor S. Procópio, etc., etc.; do mesmo modo eu lhe arrendo, meu padre».
     E as recolhidas riam não à socapa, mas por baixo do véu, graciosos risinhos abafados que faziam encrespar o sobrolho às madres vocais.
     De uma vez, estando a centenária a contar histórias, disse para as que a ouviam: «No meu tempo os bernardas não ficavam a dever nada aos mosqueteiros». Era um século que falava, mas era o século XVIII. Descrevia o costume dos quatro vinhos usados em Champagne e Borgonha antes da revolução. Quando por alguma cidade de Borgonha ou de Champagne passava qualquer grande personagem, como um marechal de França, um príncipe, um duque, um par, vinha esperá-lo a câmara e após um estirado discurso apresentava-lhe quatro vasos de prata contendo quatro vinhos diferentes. Na primeira taça lia-se esta inscrição: vinho de macaco; na segunda, vinho de leão; na terceira, vinho de carneiro; na quarta, vinho de porco». Estas quatro legendas exprimiam os quatro graus da embriaguez: o da embriaguez que alegra, o da embriaguez que irrita, o da embriaguez que entontece, o da embriaguez que embrutece.
      Tinha ela num armário, fechado à chave, um objeto misterioso que muito esmava, e que não era proibido pela regra de Fontevrault. Não queria que ninguém o visse. Fechava-se na cela, o que a sua regra lhe permitia, e escondia-se todas as vezes que o queria contemplar. Se sentia vir gente pelo corredor tornava a fechar o armário o mais precipitadamente que podia fazê-lo com as suas trêmulas mãos. Mal lhe falavam nisto calava-se, ela que tão amiga de falar era. As mais curiosas viram malogrados os seus esforços em presença do seu silêncio e as mais tenazes em presença da sua obstinação. Era este também um objeto de comentários para todas as ociosas do convento ou para aquelas que andavam aborrecidas. Que seria aquela tão preciosa e secreta coisa que era o tesouro da centenária? Algum livro de santidade, decerto?
     Algum rosário único? Alguma relíquia eficaz? Perdiam-se em conjecturas. Apenas a pobre velha morreu, correram ao armário mais depressa talvez do que convinha e abriram-no. Acharam o misterioso objeto embrulhado numa toalha, como uma patena benzida. Era um prato de Faenza representando uns amores a fugir, perseguidos por uns praticantes de boticário armados de enormes seringas. Abundavam as figuras em caretas e posturas cômicas. A um dos lindos amorinhos já um dos praticantes tinha espetado a atroz seringa. Ele debatia-se, agitava as asinhas, tentando ainda voar, mas o bufão ria com um riso satânico. Agora a moralidade do quadro: o amor vencido pela cólica. Este prato, aliás um tanto curioso e que teve talvez a honra de sugerir uma ideia a Molière, existia ainda em Setembro de 1848; estava à venda num adelo do boulevard Beaumarchais.
     Não queria esta boa velha receber nenhuma visita de fora, porque, dizia ela, era muito triste o locutório.

continua na página 385...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - IX - Um século sob um hábito
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Bloch lhe cortou a palavra)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Primeira Parte

continuando...

     Bloch lhe cortou a palavra.

- Na verdade, - disse ele, respondendo ao que a Sra. de Villeparisis acabara de dizer a respeito do protocolo que regulava as visitas reais -, eu não sabia absolutamente nada disso (como se fosse estranho que o não soubesse). 
- A propósito desse tipo de visitas, sabe da brincadeira estúpida que me fez na manhã de ontem o meu sobrinho Basin? - perguntou a Sra. de Villeparisis ao arquivista. - Em vez de se anunciar, mandou dizer-me que era a rainha da Suécia que desejava me ver. 
- Ah, ele lhe mandou dizer isso sem mais nem menos? É boa! - exclamou Bloch, rebentando numa gargalhada, enquanto o historiador sorria com majestosa timidez. 
- Estava muito espantada, pois fazia poucos dias que regressara do campo; para ter um pouco de sossego, recomendara que não dissessem a ninguém que me encontrava em Paris, e me indagava como a rainha da Suécia já o soubera. - continuou a Sra. de Villeparisis, deixando os convivas espantados de que uma visita da rainha da Suécia não fosse por si só nada de anormal para a anfitriã. 

     Decerto que, se de manhã a Sra. de Villeparisis tinha compulsado com o arquivista a documentação de suas Memórias, naquele momento ensaiava sem querer seu mecanismo e sortilégio sobre um público mediano, representativo daquele em que se recrutariam os seus leitores um dia. O salão da Sra. de Villeparisis podia diferenciar-se de um salão verdadeiramente elegante, de que estariam ausentes muitas das burguesas que ela recebia e onde, em compensação, se veriam algumas das damas brilhantes que a Sra. Leroi acabara por atrair, mas essa nuança não era perceptível em suas Memórias, de onde desaparecem certas relações medíocres que tivera a autora, pois não têm ocasião de serem citadas; e aí não fazem falta visitantes inexistentes, porque, no espaço forçosamente restrito que as Memórias oferecem, podem figurar poucas pessoas, e, se tais pessoas são personalidades principescas, históricas, acha-se alcançada a impressão máxima de elegância que algumas Memórias podem fornecer ao público. No entender da Sra. Leroi, o salão da Sra. de Villeparisis era um salão de terceira categoria; e a Sra. de Villeparisis sofria com o julgamento da Sra. Leroi. Mas hoje quase ninguém mais sabe quem era a Sra. Leroi, seu julgamento se desfez, e é o salão da Sra. de Villeparisis, que a rainha da Suécia frequentava, e que fora frequentado pelo duque de Aumale, pelo duque de Broglie, por Thiers, Montalembert, pelo Monsenhor Dupanloup, que será considerado como um dos mais brilhantes do século XIX por essa posteridade que não mudou desde os tempos de Homero e de Píndaro, e para quem a posição invejável é a de nascimento nobre, real ou quase real, a amizade dos reis, dos líderes do povo, dos homens ilustres.
     Ora, de tudo isto a Sra. de Villeparisis tinha um pouco em seu salão atual e nas recordações, às vezes retocadas de leve, e com auxílio das quais ela o prolongava no passado. Além disso, o Sr. de Norpois, que não era capaz de refazer uma posição sólida para a amiga, em compensação lhe trazia estadistas estrangeiros ou franceses que precisavam dele e sabiam que a única maneira eficaz de cortejá-lo era freqüentar a casa da Sra. de Villeparisis. Talvez a Sra. Leroi também conhecesse essas eminentes personalidades européias. Mas, como mulher agradável e que se esquiva ao tom das pretensiosas, ela evitava falar da questão do Oriente aos primeiros ministros, tanto quanto da essência do amor aos romancistas e aos filósofos. 

- O amor? - dissera uma vez em resposta a uma dama pretensiosa que a interrogara: 
"- Que pensa do amor?" 
- O amor? Faço-o muitas vezes, mas nunca falo sobre ele.

     Quando tinha em sua casa celebridades literárias e políticas, contentava-se, como a duquesa de Guermantes, em fazê-las jogar pôquer. Com freqüência, eles gostavam mais disto que das grandes conversas sobre idéias gerais a que os constrangia a Sra. de Villeparisis. Porém, tais conversações, talvez ridículas na sociedade, forneceram às "Lembranças" da Sra. de Villeparisis alguns desses trechos excelentes, dessas dissertações políticas que ficam muito bem nessas Memórias, como em tragédias à moda de Corneille. Aliás, apenas os salões das Sras. de Villeparisis podem passar à posteridade porque as Sras. Leroi não sabem escrever e, mesmo que soubessem, não teriam tempo para tal. E, se as disposições literárias das Sras. de Villeparisis são o motivo do desdém das Sras. Leroi, por sua vez o desdém destas serve singularmente às disposições literárias das Sras. de Villeparisis, proporcionando às damas literatas o lazer que a carreira das letras exige. Deus, que quer que haja alguns livros bem escritos, inspira para tanto esses desdéns ao coração das Sras. Leroi, pois sabe que, se elas convidassem as Sras. de Villeparisis para jantar, estas largariam imediatamente os seus estúdios e mandariam atrelar as carruagens para as oito horas.
     Após um instante entrou, a passo lento e solene, uma velha dama de alta estatura e que, sob o chapéu de palha de aba erguida, entremostrava um penteado monumental à maneira de Maria Antonieta. Eu não sabia então que se tratava de uma das três mulheres que ainda era possível observar na sociedade parisiense, e que, como a Sra. de Villeparisis, sendo de alto berço, tinham sido reduzidas, por motivos que se perdiam na noite dos tempos, e que só poderia ter-nos dito algum velho distinto daquela época, a receber apenas pessoas que ninguém mais desejava acolher em outro lugar. Cada uma dessas damas tinha a sua "duquesa de Guermantes", sua sobrinha brilhante que vinha lhe pagar suas obrigações, mas que não seria capaz de atrair à sua casa a "duquesa de Guermantes" das outras duas. A Sra. de Villeparisis era muito ligada a essas três damas, mas não gostava delas. Talvez a situação destas, tão análoga à sua, lhe mostrasse uma imagem que não lhe era nada agradável. E depois, azedas, literatas, procurando, pela quantidade de sainetes que faziam representar, dar a si mesmas a ilusão de um salão, tinham entre si rivalidades que uma fortuna bastante arruinada no decurso de uma vida pouco tranquila, forçando-as a buscar, a desfrutar do concurso gratuito de um artista, transformava numa espécie de luta pela vida. Além do mais, a dama do penteado à Maria Antonieta, cada vez que via a Sra. de Villeparisis, não podia evitar pensar que a duquesa de Guermantes não ia às suas recepções das sextas. Seu consolo era que a essas sextas jamais faltava, como boa parenta, a princesa de Poix, que era a sua Guermantes, e que nunca ia à casa da Sra. de Villeparisis, embora a Sra. de Poix fosse amiga íntima da duquesa.
     Todavia, do palácio do cais Malaquais aos salões da rua de Tournon, da rua de Ia Chaise e do faubourg Saint-Honoré, um laço tão forte quanto detestado uma as três divindades decaídas, das quais bem que eu gostaria de saber, folheando algum dicionário mitológico da sociedade, que aventura galante, que petulância sacrílega, havia causado a punição. A mesma origem brilhante, a mesma decadência atual, colaborava talvez muito em tal necessidade que as impelia, ao mesmo tempo, a se odiarem e a se frequentarem. E, depois, cada uma encontrava nas outras um modo cômodo de fazer finezas aos visitantes. Como é que estes não julgariam penetrar no faubourg mais fechado quando eram apresentados a uma dama de grandes títulos, cuja irmã havia desposado um duque de Sagan ou um príncipe de Ligne? Tanto que se falava infinitamente mais na imprensa desses pretensos salões do que dos verdadeiros. Mesmo os sobrinhos grã finos, a quem um camarada pedia que o apresentassem na sociedade (Saint-Loup em primeiro lugar), diziam:

"Vou levá-lo à casa da minha tia Villeparisis ou da minha tia X; é um salão interessante." Eles sabiam principalmente que isto lhes daria menos trabalho do que fazer penetrar os tais amigos em casa das sobrinhas ou cunhadas elegantes dessas damas. Os homens muito idosos, as moças que o tinham sabido por eles, disseram-me que essas velhas damas não eram recebidas devido ao desregramento incrível de sua conduta, a qual, quando objetei que isso não era um impedimento à elegância, me foi apresentada como tendo ultrapassado todas as proporções conhecidas hoje. O mau procedimento daquelas damas solenes, que se mantinham sentadas e bem direitas, adquiria, na boca dos que tocavam no assunto, algo que eu não podia imaginar, proporcional à grandeza das épocas pré-históricas, à Idade do Mamute. Em resumo, aquelas três Parcas de cabelos brancos, azuis ou cor-de-rosa tinham contribuído para a ruína de um número incalculável de senhores. Eu pensava que os homens de hoje exagerassem os vícios daqueles tempos fabulosos, como os gregos que formaram Ícaro, Teseu e Hércules com homens pouco diferentes dos que muito tempo depois os divinizaram. Mas só se faz a soma dos vícios de uma criatura quando esta já não está em condições de praticá-los, e quando, pela enormidade do castigo social, que principia a cumprir-se e que é só o que se pode constatar, medimos, imaginamos e exageramos a do crime cometido. Nessa galeria de figuras simbólicas que é a "sociedade", as mulheres verdadeiramente levianas, as Messalinas completas, apresentam sempre o aspecto solene de uma dama de pelo menos setenta anos, altaneira, que recebe a quantos pode, mas não a quem deseja, a cuja casa não admitem ir as mulheres cuja conduta se presta um pouco a falatórios, e à qual o Papa dá sempre a sua "rosa de ouro", e que às vezes escreveu acerca da juventude de Lamartine uma obra premiada pela Academia Francesa.

- Bom dia, Alix. - disse a Sra. de Villeparisis à dama de penteado branco à Maria Antonieta, a tal dama lançava um olhar penetrante sobre a assembleia a fim de ver se não havia naquele salão algo que pudesse ser útil para o seu e que, em tal caso, deveria descobrir por si mesma, pois a Sra. de Villeparisis, sem dúvida, seria bastante maligna para tentar ocultá-lo. Assim é que a Sra. de Villeparisis teve grande cuidado de não apresentar Bloch à velha dama, com receio de que ela fizesse representar o mesmo sainete da sua casa na mansão do cais Malaquais. Com isso, aliás, estava pagando na mesma moeda. Pois a velha dama tivera na véspera em sua casa a Sra. Ristori, que recitara versos, e fora cuidadosa no sentido de que a Sra. de Villeparisis, a quem havia furtado a artista, ignorasse o fato até que estivesse consumado. Para que esta não soubesse do caso pelos jornais, e não ficasse ofendida, vinha ela mesma contá-lo como se não se sentisse culpada. A Sra. de Villeparisis, julgando que minha apresentação não oferecia os mesmos inconvenientes da de Bloch, pôs-me em presença da Maria Antonieta do cais. Esta, fazendo o mínimo de movimentos possível, buscando na velhice aquela linha de deusa de Coysevox que tinha, há muitos anos, encantado a juventude elegante e que falsos homens de letras celebravam agora em rimas forçadas tendo aliás adquirido o hábito do empertigamento altaneiro e compensatório, comum a todas as pessoas a quem uma desgraça particular obriga permanentemente a dar o primeiro passo -, inclinou levemente a cabeça com majestade glacial e, virando-se para o outro lado, não se ocupou mais de mim, como se eu nunca tivesse existido. Sua atitude de duplo objetivo parecia dizer à Sra. de Villeparisis: 

"Veja que mais uma ou outra relação é algo a que não dou nenhuma importância, e que os rapazinhos sob nenhum ponto de vista, sua linguaruda não me interessam."

     Mas quando, um quarto de hora depois, ela se retirou, aproveitando-se da balbúrdia, segredou-me ao ouvido que comparecesse na sexta-feira seguinte ao seu camarote, onde estaria com uma das três, cujo nome fulgurante aliás ela mesma nascera Choiseul me causou um efeito prodigioso.

- Senhor, creio que deseja escrever algo sobre a Sra. duquesa de Montmorency. - disse a Sra. de Villeparisis ao historiador da Fronda, com esse ar rabugento de que, sem querer, sua grande amabilidade se franzia devido às rugas de aborrecimento, ao despeito fisiológico da velhice, bem como pela afetação de imitar o tom quase camponês da antiga aristocracia. - Vou lhe mostrar o seu retrato, o original da cópia que está no Louvre.

     Ela se ergueu, pousando os pincéis perto de suas flores, e o pequeno avental, que então apareceu à sua cintura e que ela usava para não se sujar com as cores, aumentava ainda mais a impressão quase de uma camponesa que lhe davam o boné e as grossas lentes dos óculos, e contrastava com o luxo de seus empregados, do mordomo que trouxera o chá e os doces, do lacaio de libré a quem tocou a campainha, chamando-o para que iluminasse o retrato da duquesa de Montmorency, abadessa de um dos mais célebres cabidos do Oriente. Todos tinham se levantado. 

- O engraçado, - disse ela - é que nesses cabidos em que nossas tias-avós eram frequentemente abadessas, as filhas do rei da França não teriam sido admitidas. Eram cabidos extremamente fechados. 
- Não admitidas as filhas do rei; e por quê? - indagou Bloch, estupefato. 
- Mas é porque a Casa da França já não possuía bastantes quartéis de nobreza, desde que fez casamentos desiguais.  

     O espanto de Bloch ia aumentando. 

- Casamentos desiguais na Casa da França? Como assim? 
- Aliando-se aos Médicis, ora. - respondeu a Sra. de Villeparisis no tom mais natural. - O retrato é belo, não? E num estado perfeito de conservação. - acrescentou. 
- Minha querida amiga. - disse a dama penteada à Maria Antonieta -, deve lembrar-se de que, quando lhe trouxe Liszt, ele lhe disse que este é que era a cópia. 
- Eu me inclinarei diante de uma opinião de Liszt sobre música, mas não sobre pintura! Além do mais, ele já estava caducando e eu não me lembro de que tenha dito isto alguma vez. Mas não foi você quem me trouxe Liszt. Já tinha jantado umas vinte vezes com ele na casa da princesa de Sayn-Wittgenstein. 

     O golpe de Alix falhara; ela calou-se, permanecendo de pé e imóvel. Corri camadas de pó emplastando-lhe o rosto, este parecia um rosto de pedra. E, como o perfil era nobre, ela se assemelhava, sobre o pedestal triangular e musgoso oculto pelo mantelete, à deusa estragada de um parque. 

- Ah, eis ainda um outro belo retrato. - disse o historiador.  

     A porta se abriu e a duquesa de Guermantes entrou. 

- Alô, bom-dia. - disse-lhe a Sra. de Villeparisis sem mover a cabeça, tirando de um bolso do avental uma mão que estendeu à recém-chegada; e logo deixando de se ocupar dela para se dirigir ao historiador. - É o retrato da duquesa de La Rochefoucauld...

     Um jovem criado de ar arrogante e rosto encantador (mas cortado tão rente para ficar perfeito que seu nariz estava um tanto vermelho e a pele ligeiramente inflamada, como se conservassem traços da recente e escultural incisão) entrou trazendo um cartão numa salva. 

- É aquele senhor que já veio várias vezes para ver a Sra. marquesa. 
- Disse-lhe que eu recebia? 
- Ele ouviu as conversas. 
- Pois bem, faça-o entrar. É um senhor que me apresentaram. - disse a Sra. de Villeparisis. - Disse-me que muito desejava ser recebido aqui. Nunca o autorizei a vir. Mas enfim, são já cinco vezes que ele se incomoda, não convém constranger as pessoas. Senhor. - disse-me ela e o senhor acrescentou, designando o historiador da Fronda -, apresento-lhes a minha sobrinha, a duquesa de Guermantes.

     O historiador inclinou-se profundamente, bem como eu, e, julgando que esse cumprimento devia ser seguido por uma reflexão cordial, seus olhos se animaram e ele se preparava para abrir a boca, porém gelou-o o aspecto da Sra. de Guermantes, que aproveitara a independência de seu torso para lançá-lo adiante com uma polidez exagerada e retraí-lo com justeza, sem que sua fisionomia e seu olhar parecessem ter notado que havia alguém diante deles; depois de ter soltado um leve suspiro, limitou-se a manifestar a nulidade da impressão que lhe produziam a vista do historiador e a minha, executando certos movimentos das narinas com uma precisão que atestava a inércia absoluta de sua atenção ociosa.
     Entrou o visitante inoportuno, encaminhando-se diretamente para a Sra. de Villeparisis com ar ingênuo e fervoroso; era Legrandin. 

- Fico-lhe muito grato por me receber, senhora. - disse ele, sublinhando a palavra muito; - é um prazer de qualidade totalmente rara e sutil que dá a um velho solitário, asseguro-lhe que sua repercussão...

     Parou de repente, ao me ver. 

- Eu estava mostrando a este senhor o belo retrato da duquesa de La Rochefoucauld, esposa do autor das Máximas; veio-me de família.

     Quanto à Sra. de Guermantes, cumprimentou Alix desculpando-se por não ter podido ir visitá-la naquele ano como nos anteriores. 

- Tive notícias suas por meio de Madeleine. - acrescentou. 
- Ela almoçou comigo esta manhã. - disse a marquesa do cais Malaquais, com a satisfação de pensar que a Sra. de Villeparisis jamais poderia dizer outro tanto.

     Nesse meio tempo, eu conversava com Bloch e, receando, pelo que me tinham dito acerca da mudança do pai a seu respeito, que invejasse a minha vida, disse-lhe que a sua devia ser mais feliz. Tais palavras eram de minha parte um simples efeito da amabilidade. Mas elas convencem facilmente de sua boa sorte aqueles que têm muito amor-próprio, ou lhes dão o desejo de convencer os outros disso. 

- Sim, de fato levo uma vida deliciosa. - disse-me Bloch com ar de beatitude. - Tenho três grandes amigos, nem desejaria um outro a mais, uma amante adorável, sou infinitamente feliz. Raro é o mortal a quem o pai Zeus concede tantas venturas.

     Acho que, principalmente, procurava elogiar a si próprio e fazer-me sentir inveja. Talvez também houvesse algum desejo de originalidade em seu otimismo. Ficou evidente que não queria responder as mesmas banalidades de todos:

"Oh, não foi nada, etc." quando, à minha pergunta "Esteve bonita?", a propósito de uma matinê dançante dada em sua casa, e à qual eu não pudera comparecer, respondeu num tom igual e indiferente, como se se tratasse de outra pessoa: 

- Claro que sim, foi muito bonita, não podia ser melhor. Foi de fato deslumbrante. 
- Isso que a senhora nos informa é infinitamente interessante para mim. - disse Legrandin à Sra. de Villeparisis -, pois exatamente dizia comigo outro dia que a senhora marquesa possuía muito dele na viva nitidez das frases, nesse algo que designarei com dois termos contraditórios, a rapidez lapidar e a imortal instantaneidade. Gostaria, esta noite, de tomar nota de todas as coisas que a senhora diz; mas poderei retê-las. Elas são amigas da memória, de acordo com uma frase de Joubert, creio. Nunca leu Joubert? Oh, a senhora marquesa lhe agradaria tanto! Nesta mesma noite me permitiria enviar-lhe suas obras, com muito orgulho de lhe apresentar o seu espírito. Ele não possuía a força da senhora marquesa. Mas era dotado também de muita graça.

     Desejaria ir logo cumprimentar Legrandin, mas ele se mantinha constantemente o mais possível afastado de mim, sem dúvida esperando que eu não ouvisse as lisonjas que, com grande refinamento de expressão, não deixava de dirigir à Sra. de Villeparisis. Ela fez pouco caso, sorrindo, como se ele estivesse gracejando, e voltou-se para o historiador: 

- E esta aqui é a famosa Marie de Rohan, duquesa de Chevreuse, que casou em primeiras núpcias com o Sr. de Luynes. 
- Minha querida, a Sra. de Luynes me faz lembrar Yolande; ela foi ontem lá em casa e, se eu soubesse que a sua vesperal não estava ocupada por ninguém, teria mandado buscá-la. A Sra. Ristori, que chegou de improviso, disse diante da autora uns versos da rainha Carmen Sylva; eram de uma beleza!

"Que perfídia!" pensou a Sra. de Villeparisis. - "Certamente era nisso que estava falando baixinho, outro dia, à Sra. de Beaulaincourt e à Sra. de Chaponay." - Eu estava livre respondeu. - Ouvi a Sra. Ristori nos seus bons tempos; hoje não passa de uma ruína. E depois, detesto os versos de Carmen Sylva. A Ristori veio aqui uma vez, trazida pela duquesa de Aosta, recitar um canto do Inferno de Dante. Aí é que ela é incomparável.

continua na página 89...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Bloch lhe cortou a palavra)
Volume 4
Volume 5
Volume 7

Massa e Poder - O Mar

Elias Canetti


O MAR


      O mar é múltiplo, está em movimento e possui sua densa coesão. Sua multiplicidade são suas ondas: elas a compõem. São incontáveis; quem se encontra no mar está rodeado de ondas por todos os lados. A uniformidade de seu movimento não implica a inexistência de diferenças de tamanho entre elas. As ondas jamais se encontram em repouso absoluto. O vento, vindo de fora, determina-lhes a direção: de acordo com a ordem que ele lhes dá, elas rebentam num ou noutro lugar. A densa coesão das ondas expressa algo que também os homens, quando reunidos numa massa, sentem muito bem: uma condescendência do indivíduo para com os demais que é como se ele fosse os outros, como se não possuísse mais fronteiras a delimitá-lo; uma dependência, pois, de que não há escapatória e, em decorrência disso, uma sensação de força, um ímpeto que todos os outros juntos lhe conferem. A natureza singular dessa coesão entre os homens é desconhecida. Tampouco o mar a explica, mas ele a expressa.
     Além das ondas, no entanto, há ainda um outro elemento múltiplo que é parte do mar: as gotas. Estas, porém, estão isoladas, são apenas gotas; quando não vinculadas entre si, sua pequenez e seu isolamento possuem algo de impotente. São quase nada e despertam um sentimento de compaixão no observador. Mergulhe-se a mão na água, erga-se a mão novamente e contemplem-se as gotas escorrendo isoladas e débeis por ela. A compaixão que se sente é como se elas fossem pessoas desesperadamente sós. As gotas só contam quando não se pode mais contá-las, quando se dissolvem novamente no todo.
      O mar tem uma voz que é bastante mutável e que se ouve sempre. Trata-se de uma voz que soa como milhares de vozes. A ela atribuem-se muitas características: paciência, dor, ira. Mas o que essa voz possui de mais impressionante é sua tenacidade. O mar nunca dorme. Pode ser ouvido continuamente, de dia, de noite, anos a o, décadas; sabe-se que séculos atrás já o ouviam. Em seu ímpeto como em seu protesto, ele lembra a única criatura que com ele compartilha essas qualidades nas mesmas proporções: a massa. O mar possui, contudo, a constância que falta a esta última. Ele não se esvai e desaparece de tempos em tempos: está sempre ali. Nele, o maior e sempre vão desejo da massa — o de permanecer — apresenta-se já realizado.
     O mar abrange tudo e nunca se pode preenchê-lo inteiramente. Todos os rios, torrentes, nuvens, todas as águas da terra poderiam derramar-se sobre o mar e, ainda assim, ele não aumentaria de fato; não teria mudado; ter-se-ia sempre a sensação de que se trata do mesmo mar. É, pois, tão grande, que pode servir de modelo à massa, cujo desejo é crescer sempre mais. Esta poderia tornar-se tão imensa quanto o mar, e é para consegui-lo que ela atrai mais e mais pessoas. Na palavra oceano, o mar encontrou algo como sua dignidade mais solene. O oceano é universal; é ele que chega a todas as partes, que banha todos os países; é nele que, segundo uma antiga concepção, a terra nada. Não fosse o mar impreenchível, a massa não teria um modelo para sua insaciabilidade. Ela poderia não adquirir tanta consciência de seu impulso mais profundo e obscuro: o de atrair mais e mais pessoas. Estendendo-se, porém, naturalmente diante de seus olhos, o oceano confere-lhe um direito mítico a seu inexpugnável ímpeto de universalidade.
     Embora seja mutável em seus afetos — pode acalmar e ameaçar, pode irromper em tempestades —, o mar está sempre ali. Sabe-se onde ele está; sua localização tem algo de aberto, de não oculto. Ele não surge de repente onde antes nada havia. Não possui o caráter misterioso e súbito do fogo; este — um animal impetuoso — assalta as pessoas provindo do nada, de modo que é de se esperar que surja em qualquer parte. Já o mar, somente se pode esperar encontrá-lo onde se sabe com certeza, que ele está.
      Nem por isso se pode dizer, entretanto, que ele não possua segredos. Seu segredo não reside em sua subtaneidade, mas no seu conteúdo. As massas que nele vivem e o preenchem são tão próprias do mar quanto sua evidente constância. Assim, sua magnificência é ainda intensificada pelo pensamento no seu conteúdo — em todas as plantas e animais que ele oculta em enormes quantidades.
     O mar não possui fronteiras internas e não se subdivide em povos e regiões. Ele tem uma única língua, idêntica em toda parte. Não há ser humano, por assim dizer, que se possa excluir dele. É, também, demasiado abrangente para equivaler exatamente a qualquer uma das massas que conhecemos. O mar é, porém, o modelo de uma humanidade saciada em si mesma, na qual desemboca toda a vida e que tudo contém.

continua página 125...
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Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - O Mar
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (2a) - Havia cinco dias que Ippolít se mudara

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte
2.

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      Havia cinco dias que Ippolít se mudara para a casa de Ptítsin. E isso se dera naturalmente; sem ter sido preciso romper com Míchkin. Muito pelo contrário, pois se despediram como bons amigos.
     Gavril Ardaliónovitch, que aquela noite se mostrara tão antagônico, viera vê-lo, porém, trazido decerto por alguma ideia repentina e que tratou de realizar; Rogójin também aparecera em visita especial. O próprio príncipe acabou por se convencer que era melhor para o pobre rapaz” sair de sua casa. 
     Mas, por ocasião da mudança, Ippolít manifestara bem claro que se mudava por instâncias de Ptítsin “que, por bondade, lhe arranjara um canto”, e parece que muito íntencionalmente não declarou uma só vez que ia ser hóspede de Gánia, embora tivesse sido este quem em casa de Vária insistira para que o recebessem. Gánia percebeu isso logo depois, e se mostrou magoadíssimo. E não mentiu quando disse à irmã que o doente melhorara. Efetivamente Ippolít parecia um pouco melhor do que antes, e a diferença era visível ao primeiro relance.
     Entrou na sala depois de todos os outros, mostrando na cara um sorriso sarcástico e maligno. Nina Aleksándrovna também entrou muito assustada. Tinha mudado muito nesses seis meses, estando bem mais magra. Desde que se mudara para a casa da filha, depois do casamento desta, pusera de lado, pelo menos aparentemente, qualquer interferência nos negócios dos filhos.
     Kólia estava aborrecido e preocupado porque não conseguia entender muita coisa da “maluquice” do general. “Maluquice” era como ele dizia, não estando ciente dos motivos da última barafunda doméstica. Inquietava-o saber que o pai brigava em toda parte, o dia inteiro, inesperadamente tão mudado que sem dúvida nenhuma não era mais o mesmo homem; e ainda por cúmulo dera em beber sem interrupção antes destes três últimos dias. Viera a saber até que o pai brigara não somente com Liébediev mas mesmo com o príncipe, rompendo de vez. Então resolvera trazer-lhe meia garrafa de vodca, paga do seu bolso.

- Na minha opinião, mãe, é deixá-lo beber - foi dizendo a Nina Aleksándrovna, ao subir a escada. 
- Há uns dias que não toca em uma só gota. Eu até lhe levava na cadeia.

      O general escancarou a porta, empurrando-a, e apareceu no umbral, trêmulo de tanta indignação.

- Senhor - berrou ele, com voz de trovão, para o genro. - Se decidiu, de fato, sacrificar, por um fedelho e ateu, um venerável velho, seu pai, isto é, o progenitor da sua esposa, que serviu ao seu soberano, então fique sabendo que a contar desta hora nunca mais porei os meus pés portas adentro desta casa. Escolha, senhor, escolha imediatamente: ou eu, ou este... parafuso! Sim, um parafuso! Saiu-me sem eu pensar, mas é um parafuso, pois vara a minha alma, sem o menor respeito... Sim, um parafuso!
- Não quereria o senhor dizer um saca-rolhas? atiçou Ippolít. 
- Não, um saca-rolhas, não! Sou eu que estou diante do senhor, eu, um general, e não uma garrafa! Eu tenho condecorações, está ouvindo? - méritos honoríficos... e o senhor não tem nada, ora aí está! Tem de ser ele, ou eu! Resolva, senhor, imediatamente. Imediatamente! - continuava a berrar, furiosamente, para Ptítsin. 

     Nesse momento Kólia aproximou do general uma cadeira, sobre a qual ele se deixou cair, exausto. A constrangida resposta de Ptítsin foi esta:

- O senhor faria melhor em se ir deitar a ver se dormia um pouco... 
- Finja que o ameaça... - disse Gánia à irmã, em voz baixa. 
- Ir deitar? - berrou o general. - Não estou bêbado, senhor. E não admito que me insulte, está ouvindo? Verifico - prosseguiu, levantando-se - que tudo aqui é contra mim. Tudo e todos! Não aguento mais! Vou embora! Mas o senhor pode ficar certo que... 

     Não lhe permitiram acabar. Obrigaram-no a sentar outra vez, pedindo-lhe que se acalmasse. Gánia, furioso, se retirou para um canto. Nina Aleksándrovna tremia e chorava. Foi então que, de dentes arreganhados, muito cinicamente, Ippolít exclamou:

- Mas que foi que eu fiz a este senhor? De que se queixa ele? 
- Não se faça de inocente! - observou-lhe Nina Aleksándrovna, sem lhe dar tempo. - Isso até é vergonhoso para o senhor, em uma situação dessas, meter-se a atormentar um velho. Isso é desumano! 
- Para começar, minha senhora, a que situação se refere? A senhora, pessoalmente, respeito muito... mas... 
- Não passa de um parafuso... Pois não estão vendo? - vociferou o general - Reparem como ele vara o meu coração e a minha alma! Pois querem saber, esse tratante pretendeu que eu acredite no ateísmo! Deixe-me dizer-lhe, seu reles gaiato, que, antes do senhor ter nascido, já eu era cumulado de honras! O senhor não passa de uma minhoca invejosa, cortada em dois pedaços, tossindo e morrendo de despeito e ruindade! Para que Gavril foi meter o senhor aqui? São todos contra mim! Até o meu próprio filho.
- Ora! Deixe de armar tragédias! interveio Gánia. - Faria melhor não nos andar envergonhando a todos, aí pela cidade.
- O quê? Eu te envergonho, seu desaforado? Eu só te dignifico, embora o não mereças! Eu não posso te envergonhar.

     Danou-se a vociferar e não houve meios de contê-lo. Isso levou Gavril também a se desmandar:

- Não fale em honra! - berrou, zangado. 
- Que é que você está dizendo? - trovejou o general, ficando lívido e dando um passo na direção do filho.  
-Estou dizendo que o melhor é eu não abrir a boca... - rugiu Gânia, resolvendo calar-se.

     Ficaram assim, de pé, um diante do outro. O mais furioso era o filho. 

- Gánia, olhe o que está fazendo! - e Nina Aleksándrovna avançou para dominar o filho. Vária interrompeu-os, indignada: 

- Que espetáculo, hein?! Mamãe, fique quieta!- disse, segurando-a. 
- Se não fosse mamãe, o senhor ia ver!... - explicou Gánia, de modo trágico. 
- Vamos, abra a boca! Fale! Não engula! Fale - rugia o general, em absoluto delírio. - Ou falas, ou te amaldiçoo! 
- Hei de me incomodar muito com a sua maldição! De quem é a culpa, se o senhor virou possesso estes últimos oito dias? Oito dias! Está vendo como contei direito? Veja lá, não me faça ir mais longe! Se me dano, conto tudo! Para que foi o senhor daqui fazer discursos na casa dos Epantchín? Que adianta vir depois dizer que é um velho de cabelos brancos, um pai de família? Belo pai, não há dúvida! 
- Gánia!? Cala a boca, maluco! - dizia alto Kólia. - Cala a boca, maluco! 

     Ippolít resolveu insistir, voltando com aquela voz de motejo: 

- Mas insultei como? Em quê? Quero saber: por que é que sou parafuso? Não o ouviram me chamar de parafuso? Eu estava bem sossegado e foi ele quem veio, ainda agora, me falar a respeito de um tal Capitão Ieropiégov. Eu não desejo absolutamente a sua companhia, general. Tenho me fartado de evitar o senhor. De mais a mais, que diabo, convenhamos que não me interessa esse Capitão Ieropiégov. O mais que fiz foi expressar a minha sincera opinião de que esse Capitão Ieropiégov muito possivelmente nunca existiu. Ele então armou um escarcéu.
- E certamente que nunca existiu mesmo! - reforçou Gánia. 

     A expressão estupefata do general, rodando os olhos em volta, demonstrava o pasmo que as palavras do filho, ditas com tão extraordinária franqueza, lhe causavam. No primeiro instante, nem pôde achar palavras. E foi somente quando Ippolít desandou a rir do aparte de Gánia, gritando:

“Escutou, aqui o seu filho também éda opinião que nunca existiu tal pessoa chamada Capitão Ieropiégov”, que o general, completamente desarvorado gaguejou:

- Kapitón Ieropiégov, e não capitão!... Kapitón... Tenente-Coronel reformado Ieropiégov Kapitón. 
- Kapitón? Também nunca existiu nenhum Kapitón! - berrou Gánia, no auge da exasperação. 
- Não houve por quê? - investiu o general, com o sangue a subir-lhe pelo rosto.

     Ptítsin e Vária tentaram abrandá-lo:

- Vamos acabar com isso! 

     Kólia tornou a zangar: 

- Cale a boca! Você aí, Gánia, cale a boca! 

     Mas essa intervenção só conseguiu dar tempo ao velho, que se refez.

- Baseado em que diz você que ele nunca existiu? Por que não existiu?
- Ai! Ai! Ai! Não existiu porque não existiu, aí está! E não podia ter existido! E quer saber de uma coisa? Largue-me, estou lhe dizendo! Não adianta me ameaçar. 
- E é meu filho.., o meu próprio filho... quem... ó Deus do Céu! Não existir uma pessoa como Ieropiégov! Ieróchka Ieropiégov!
- Mau! Mau! Agora já é Ieróchka, antes era Kapitóchka! atiçou Ippolít. 
- Kapitóchka, senhor! E não Ieróchka. Kapitón, Kapitón Aleksiéievitch, quero dizer, Kapitón... tenente-coronel a meio soldo, casado com Maria... Maria... Petróvna Su... su... su... Um amigo e camarada... Sutugóva... dos meus tempos de cadete. Por causa dele derramei sangue, protegi-o com meu corpo... mas ele foi morto! Não ter existido uma pessoa como Kapitóchka Ieropiégov! E que pessoa! Ah!... - rugiu o general, como um bárbaro, apesar de saber que aquilo que estava a dizer aos berros não era o que tinha importância naquele momento. 

     Em outra ocasião não haveria de ser isso que o danaria. Talvez até qualquer outra coisa mais insultante, conforme a ocasião, não o pusesse em fúria, assim. Mas, desta vez, tal é o mistério do coração humano, acontecera que uma simples desconsideração, como essa dúvida de ter ou não existido Ieropiégov, exercera o efeito da última gota que derrama o cálice. O velho ficou vermelho, levantou os braços ao céu e bradou: 

- Basta! Maldição! Maldição! Nikolái, traz minha maleta! Vou embora! Vou embora!

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (2a) - Havia cinco dias que Ippolít se mudara
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quinta-feira, 29 de maio de 2025

Massa e Poder - O Fogo

Elias Canetti


O FOGO


     Sobre o fogo, há que se dizer em primeiro lugar que ele é igual em toda parte: seja ele pequeno ou grande, surja aqui ou ali, dure muito ou pouco, em nossa imaginação ele será sempre semelhante, independentemente da ocasião. Para nós, a imagem do fogo é como uma marca — vigorosa, inextinguível e definida. 
     O fogo se propaga; é contagioso e insaciável. A violência com que atinge florestas, estepes e cidades inteiras é uma de suas qualidades mais impressionantes. Anteriormente ao seu desencadeamento, as árvores estavam uma ao lado da outra, as casas enfileiradas, cada uma separada da outra, existindo individualmente. O que, porém, encontrava-se apartado, o fogo une num instante. Os objetos isolados e distintos consomem-se todos nas mesmas chamas. Igualam-se em tamanha medida que desaparecem inteiramente: casas, seres vivos, o fogo os apanha a todos. E é contagioso: a ausência de resistência possível ao contato com as chamas é algo sempre espantoso. Quanto mais vida algo abriga, tanto menos será ele capaz de defender-se do fogo; capaz de fazer-lhe frente é apenas o que há de mais inanimado:, os minerais. Sua veloz desconsideração não conhece fronteiras. Ele quer conter tudo e nunca se dá por satisfeito.
     O fogo pode surgir em qualquer parte. Possui o caráter do súbito. Não surpreende ninguém que aqui ou ali um incêndio principie; em toda parte, está-se preparado para ele. Sua subtaneidade, contudo, é sempre impressionante, e as pessoas põem-se a investigar-lhe as causas. Que, com frequência, não se consiga encontrá-las é algo que contribui para o sentimento reverente que se vincula à ideia do fogo. Este possui uma onipresença secreta; a todo momento e em toda parte ela pode fazer-se visível.
     O fogo é múltiplo. Não se trata apenas do fato de que se tem sempre consciência de que ele existe em muitos, inúmeros lugares. O fogo é múltiplo em si: fala-se em chamas, em labaredas. Nos Vedas, o fogo é chamado “o Agni único, o multiplamente in amado”.
     O fogo é destrutivo; pode ser combatido e domado; ele se extingue. Tem um opositor elementar, a água, que a ele se contrapõe sob a forma de rios e chuvas torrenciais. Tal opositor sempre existiu; com todas as suas múltiplas qualidades, ele lhe é igual. A inimizade de ambos é proverbial: “fogo e água” é a expressão empregada para uma inimizade da mais extrema e irreconciliável natureza. Nas antigas concepções acerca do m do mundo, o vitorioso é sempre um ou outro. O dilúvio põe m a toda vida com a água. A conflagração mundial destrói o mundo com o fogo. Por vezes, figuram ambos numa única e mesma mitologia, moderando-se mutuamente. O homem, porém, nesta sua existência temporal, aprendeu a dominar o fogo. Ele não apenas logra sempre contrapor-lhe a água, como conseguiu também preservar o fogo isolado. Mantém-no preso em fornos e fogões. Alimenta-o da mesma forma como se alimenta um animal; pode fazê-lo morrer de fome e pode sufocá-lo. Com isso, encontra-se já sugerida a última qualidade importante do fogo: ele é tratado como se tivesse vida. Tem uma vida inquieta e se extingue. E se é sufocado aqui, segue vivendo noutras partes.
     Tomando-se em conjunto esses traços particulares do fogo, o que se obtém é um quadro surpreendente: ele é igual por toda parte, propaga se com rapidez, é contagioso e insaciável, pode surgir assaz repentinamente em qualquer parte, é destrutivo, possui um inimigo, extingue-se, tem o aspecto de um ser vivo e é tratado como tal. Todas essas qualidades são, porém, as da massa: seria difícil resumir seus atributos com maior exatidão. Basta que sejam examinados um a um: a massa é igual por toda parte; nas mais diversas épocas e culturas, dentre homens de qualquer origem, língua ou educação, ela é fundamentalmente a mesma. Uma vez surgida, espraia-se com grande violência. Poucos são capazes de resistir-lhe ao contágio; ela quer sempre seguir crescendo; fronteira alguma lhe é imposta a partir de seu interior. A massa pode surgir em qualquer parte onde homens encontrem-se reunidos; sua espontaneidade e subtaneidade são inquietantes. Ela é múltipla e, no entanto, coesa; compõe-na uma quantidade inumerável de pessoas, nunca se sabe ao certo quantas. A massa pode ser destrutiva. Ela é atenuada e domesticada. Busca um inimigo para si. Extingue-se tão repentinamente quanto surgiu, e, amiúde, de forma igualmente inexplicável. E, claro, possui sua própria vida, inquieta e violenta. Tais semelhanças entre o fogo e a massa conduziram a uma estreita amalgamação de ambos. Transformam-se um no outro e podem representar um ao outro. Dentre os símbolos da massa que sempre atuaram na história da humanidade, o fogo é um dos mais importantes e mutáveis. Faz-se necessário, pois, examinar mais detalhadamente algumas dessas relações entre o fogo e a massa.
     Dentre os traços perigosos e constantemente ressaltados da massa, o que chama mais a atenção é a tendência a provocar incêndios. Tal tendência encontra no incêndio de florestas uma importante raiz sua. A floresta, ela própria um antiquíssimo símbolo da massa, é frequentemente incendiada pelos homens, a m de se criar espaço para povoações. Há boas razões para se supor que os homens aprenderam a lidar com o fogo a partir dos incêndios nas florestas. Entre a floresta e o fogo há um vínculo pré-histórico evidente. As lavouras ocupam o lugar das florestas incineradas, e, se as lavouras hão de expandir-se, é sempre a floresta que tem de ser desbravada.
     Os animais fogem da floresta em chamas. O medo em massa é a reação natural, a reação eterna — poder-se-ia dizer — dos animais a um grande incêndio, reação esta que, um dia, foi também a do homem. Este último, porém, apoderou-se do fogo: ele tem o incêndio em suas mãos e não precisa temê-lo. No lugar do velho medo alojou-se seu novo poder, e ambos formaram uma aliança espantosa.
     A massa que outrora fugia do fogo sente-se agora fortemente atraída por ele. É conhecido o efeito mágico dos incêndios sobre homens de toda espécie. Eles não se contentam com os fornos e fogões que cada grupo tem em sua moradia; querem uma fogueira visível de longe, à volta da qual possam reunir-se. Uma notável inversão do velho medo em massa ordena aos homens que, sendo ele grande o suficiente, corram ao local do incêndio, onde sentem um pouco do calor radiante que outrora os unia. Em tempos de paz, são geralmente obrigados a prescindir longamente dessa experiência. Constitui um dos instintos mais poderosos da massa, tão logo tenha ela se formado, criar o seu próprio fogo e apoderar-se da força de atração que ele possui em favor de seu próprio crescimento.
      Todo homem carrega hoje em seu bolso um pequeno resquício dessa antiga e importante relação: a caixa de fósforos. Ela representa uma floresta homogeneizada de troncos isolados, cada um deles provido de uma cabeça inflamável. Poder-se-ia acender vários deles ou todos de uma vez e, assim, produzir artificialmente um incêndio na floresta. As pessoas podem sentir-se tentadas a fazê-lo, mas normalmente não o fazem porque o formato minúsculo de um tal acontecimento privá-lo ia de todo o seu antigo fulgor.
     A atração exercida pelo fogo pode, no entanto, ir bem mais longe. Os homens não apenas correm em sua direção e o rodeiam; antigos costumes fazem também com que eles se equiparem ao fogo. Um dos mais belos exemplos disso é a famosa dança do fogo dos índios navajos.

Os navajos do Novo México preparam uma enorme fogueira em torno da qual dançam a noite toda. Entre o pôr e o nascer do sol, onze atos definidos são representados. Tão logo desaparece o disco solar, seus promotores adentram a clareira dançando freneticamente. Apresentam-se quase nus e com o corpo pintado; os cabelos longos, eles os deixam movimentar-se livremente. Carregam bastões de dança com penachos na ponta e, em saltos frenéticos, aproximam-se das elevadas chamas. Esses índios dançam de uma forma desajeitadamente contida, meio de cócoras, meio rastejando. Na realidade, a fogueira é tão quente que os dançarinos têm de serpentear pelo chão afim de aproximar-se suficientemente do fogo. O que querem é pôr fogo nas penas que adornam os bastões de dança. Um disco, representando o sol, é alçado ao alto, e em torno dele tem prosseguimento a dança frenética. Cada vez que o disco é baixado e reerguido uma nova dança principia. Perto do pôr do sol, as cerimônias sagradas aproximam-se já de seu fim. Homens pintados de branco adiantam-se e acendem pedaços de cascas na brasa já a se extinguir; depois, numa caçada selvagem, põem-se novamente a saltar em torno do fogo, lançando fagulhas, fumaça e chamas pelo próprio corpo. Saltam verdadeiramente em meio às brasas, confiando na argila branca que lhes há de proteger o corpo de queimaduras mais graves.

      Dançam, pois, o próprio fogo; transformam-se nele. Seus movimentos são os das chamas. Aquilo que têm nas mãos e acendem deve causar a impressão de que eles próprios estão queimando. Por fim, dispersam as últimas fagulhas da brasa até o sol nascer e receber deles o fogo que dele os dançarinos haviam recebido ao findar-se o dia anterior.
     Aqui, portanto, o fogo é ainda uma massa viva. Assim como, em suas danças, outros índios transformam-se em búfalos, os navajos representam o fogo ao dançar. O fogo vivo no qual eles se transformam tornar-se-á para os pósteros um mero símbolo da massa.
      Para cada símbolo da massa que se conhece é possível identificar a massa concreta da qual ele se nutre. Nesse campo, não se depende tão só de suposições. A tendência do homem para tornar-se fogo, para reativar esse antigo símbolo, é igualmente forte em culturas posteriores e mais complexas. Cidades sitiadas, já sem nenhuma esperança de que o bloqueio a elas seja levantado, frequentemente ateiam fogo em si mesmas. Reis e suas cortes, acossados inapelavelmente, incineram-se. Exemplos disso encontram-se tanto nas antigas culturas do Mediterrâneo quanto entre os índios e chineses. A Idade Média, que acreditava no fogo do inferno, contenta-se com hereges isolados, que ardem em lugar do público reunido a sua volta: ela manda seus representantes para o inferno, por assim dizer, e cuida para que eles ardam de fato. Uma análise do significado que o fogo assumiu em diversas religiões seria do maior interesse. Contudo, ela só teria algum valor se minuciosa, razão pela qual há que se guardá-la para mais tarde.
     Correto, porém, afigura-se investigar de imediato o significado dos atos incendiários impulsivos para o indivíduo que os comete, para aquele que se encontra realmente isolado, não pertencendo à esfera de uma convicção religiosa ou política qualquer.
     Kräpelin descreve o caso de uma mulher solitária e já de mais idade que, ao longo de sua vida, provocou cerca de vinte incêndios, os primeiros quando ainda criança. Por seis vezes ela é acusada de ter provocado incêndios, passando mais de 24 anos de sua vida na prisão. “Se ao menos isto ou aquilo fosse reduzido a cinzas”, ela pensa consigo. Trata-se de uma ideia fixa. Particularmente quando ela carrega fósforos nos bolsos, algo a compele ao ato, como um poder invisível. Importa lhe assistir ao incêndio, mas ela confessa também de bom grado o que fez, e, aliás, de modo assaz minucioso. Desde cedo, ela deve ter vivenciado o fogo como um meio de atrair as pessoas. Sua primeira visão da massa foi, provavelmente, a aglomeração em torno de um incêndio. O fogo pôde, então, facilmente passar a representar para ela a própria massa. À inculpação e à autoinculpação compele-a o sentimento de que todos a estão observando. Isso é o que ela quer; transforma-se, assim, ela própria no fogo que todos estão olhando. Sua relação com o ato incendiário tem, portanto, um caráter duplo. Por um lado, ela deseja ser parte da massa que olha fixamente para o fogo. Este está presente simultaneamente em todos os olhos, reunindo-os sob uma poderosa compulsão. Em razão de sua miserável história pregressa, que desde cedo a isolou, ela não dispõe de oportunidade alguma de se integrar a uma massa, menos ainda ao longo dos intermináveis períodos em que esteve presa. Então, uma vez terminado esse primeiro processo — o do incêndio —, e ameaçando a massa escapar-lhe de novo, ela a mantém viva subitamente metamorfoseando-se ela própria no fogo. Isso se dá de uma maneira bastante simples: ela confessa ter causado o incêndio. Quanto mais minucioso o seu relato, quanto mais ela tiver a dizer a respeito, tanto mais longamente será olhada, e tanto mais longamente será ela própria o fogo.
      Casos dessa espécie não são tão raros quanto se pensa. Ainda que nem sempre sejam tão extremos, eles fornecem, do ponto de vista do indivíduo isolado, a comprovação irrefutável da conexão entre a massa e o fogo.

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Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - O Fogo
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."