segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Curta: Jalebi!

Curta-metragem indiano-australiano premiada


"Uma curta viagem de carro por aplicativo acaba mudando a perspectiva de vida de uma jovem passageira."


não esqueça de clicar nas configurações 
e ativar a tradução das legendas... ou não! você decide...







Roteirista, Diretor, Produtor, Diretor de Fotografia e Editor:
KAILAS PRASANNAN / / kailasprasannan  

Coprodutor e Design de Som:
AUSTIN PAUL /  / austintcp  

Elenco:
VEENA PRAKASH /  / veenaprakash.o  
RAJA VENKATESH
SAURABH BUDHIRAJA /  / saurabhizigs  
JACLYN KAY

Consulte https://www.imdb.com/title/tt31639673 para a lista completa de prêmios e indicações.

Filmado com orgulho em Melbourne, Austrália.

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Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: A Revolução Ante a Estrutura da Impotência(4)

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas

     16. A Revolução Ante a Estrutura da Impotência
          A proximidade geográfica e o surgimento do açúcar de beterraba nos campos da França e da Alemanha, durante as guerras napoleônicas, tornaram os Estados Unidos o principal cliente do açúcar das Antilhas. Já em 1850, os Estados Unidos eram titulares da terça parte do comércio de Cuba, vendiam-lhe e lhe compravam mais do que a Espanha, embora fosse a ilha uma colônia espanhola, e a bandeira das faixas e das estrelas tremulava nos mastros de mais da metade das embarcações que ali aportavam. Por volta de 1859, um viajante espanhol encontrou no interior de Cuba, em remotos povoadinhos, máquinas de costura fabricadas nos Estados Unidos [1]. As principais ruas de Havana foram calçadas com blocos de granito de Boston.
     Quando despontava o século XX, lia-se no Louisiana Planter: “Pouco a pouco, toda a ilha de Cuba vai passando para as mãos de cidadãos norte-americanos, e esse é o meio mais simples e seguro de conseguir sua anexação aos Estados Unidos”. No Senado norte-americano já se falava de uma nova estrela na bandeira; derrotada a Espanha, o general Leonard Wood governava a ilha. Ao mesmo tempo, passavam às mãos norte-americanas as Filipinas e Porto Rico [2]. “A nós nos foram outorgados pela guerra”, dizia o presidente McKinley, incluindo Cuba, “e com a ajuda de Deus e em nome do progresso da humanidade e da civilização, é nosso dever responder a essa grande confiança.” Em 1902, Tomás Estrada Palma teve de renunciar à cidadania norte-americana que havia adotado no exílio: as tropas norte-americanas de ocupação o converteram no primeiro presidente de Cuba. Em 1960, o ex-embaixador norte-americano em Cuba, Earl Smith, declarou perante uma subcomissão do Senado: “Até a subida de Castro ao poder, os Estados Unidos tinham em Cuba uma influência de tal modo irresistível que o embaixador norte-americano era o segundo personagem do país, eventualmente até mais importante do que o presidente cubano”.
     Quando caiu Batista, Cuba vendia quase todo o seu açúcar para os Estados Unidos. Cinco anos antes, um jovem advogado revolucionário havia profetizado acertadamente, diante de quem o julgava pelo assalto ao quartel Moncada, que a história o absolveria; ele dissera em sua vibrante defesa: “Cuba continua sendo uma feitoria produtora de matéria-prima. Nós exportamos açúcar para importar caramelos” [3]. Cuba comprava dos Estados Unidos não só os automóveis e as máquinas, os produtos químicos, o papel e o vestuário, mas também arroz e feijão, alho e cebolas, banha, carne e algodão. Vinham sorvetes de Miami, pães de Atlanta e até ceias de luxo de Paris. O país do açúcar importava cerca da metade das frutas e verduras que consumia, embora apenas a terça parte de sua população ativa tivesse trabalho permanente e a metade das terras das centrais açucareiras fossem extensões baldias onde as empresas nada produziam [4]. Treze engenhos norte-americanos dispunham de mais de 47 por cento da área açucareira total e faturavam ao redor de 180 milhões de dólares por safra. A riqueza do subsolo – níquel, ferro, cobre, manganês, cromo, tungstênio – fazia parte das reservas estratégicas dos Estados Unidos, cujas empresas exploravam os minerais tão só de acordo com as variáveis urgências do exército e da indústria do norte. Em 1958, havia em Cuba mais prostitutas registradas do que operários mineiros [5]. Um milhão e meio de cubanos sofriam desemprego total ou parcial, segundo investigações de Seuret y Pino, citadas por Núñez Jiménez.
     A economia do país movia-se ao ritmo das safras. O poder de compra das exportações cubanas entre 1952 e 1956 não superava o nível de 30 anos antes [6], embora as necessidades de divisas fossem muito maiores. Nos anos 30, quando a crise consolidou a dependência da economia cubana em lugar de contribuir para rompê-la, chegara-se ao cúmulo de desmontar fábricas recém-instaladas para vendê-las a outros países. Quando triunfou a revolução, no primeiro dia de 1959, o desenvolvimento industrial de Cuba era muito pobre e lento, mais da metade da produção estava concentrada em Havana e as poucas fábricas com tecnologia moderna eram telecomandadas dos Estados Unidos. Um economista cubano, Regino Boti, coautor das teses econômicas dos guerrilheiros da serra, cita o exemplo de uma filial da Nestlé que produzia leite condensado em Bayamo: “Em caso de acidente, o técnico telefonava para Connecticut e informava que em seu setor tal ou qual coisa deixara de funcionar. Sem demora recebia as instruções sobre as providências cabíveis e as tomava mecanicamente (...). Se a operação não resolvesse, quatro horas depois chegava um avião com uma equipe de especialistas de alta qualificação que arrumava tudo. Depois da nacionalização já não se podia ligar para pedir socorro, e os raros técnicos que tinham condições de reparar defeitos secundários tinham ido embora.” [7] O testemunho ilustra cabalmente as dificuldades que a revolução encontrou desde que se lançou à aventura de converter a colônia em pátria.
     Cuba tinha as pernas cortadas pelo estatuto da dependência e não lhe foi nada fácil tratar de andar por conta própria. Em 1958, metade das crianças cubanas não ia à escola, mas a ignorância, como várias vezes denunciou Fidel Castro, era muito maior e mais grave do que o analfabetismo. A grande campanha de 1961 mobilizou um exército de jovens voluntários para ensinar todos os cubanos a ler e escrever, e os resultados assombraram o mundo: atualmente, segundo o Escritório Internacional de Educação da UNESCO, Cuba apresenta a menor porcentagem de analfabetos e a maior porcentagem de população escolar, primária e secundária, da América Latina. No entanto, a herança maldita da ignorância não pode ser superada de um dia para outro – tampouco em doze anos. A falta de quadros técnicos capazes, a incompetência da administração, a desorganização do aparato produtivo e a temerosa resistência à imaginação criadora e à liberdade de decisão continuam interpondo obstáculos ao desenvolvimento do socialismo. Mas a despeito de todo o sistema de impotências, forjado por quatro séculos e meio de história da opressão, Cuba está nascendo de novo, com um entusiasmo que não cessa: multiplica suas forças, alegremente, ante os obstáculos.

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
Primeira Parte: A Revolução Ante a Estrutura da Impotência(4)
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[1] JENKS, Leland H. Nuestra colonia en Cuba. Buenos Aires, 1960.
[2] Porto Rico, outra feitoria açucareira, foi aprisionado. Do ponto de vista norte americano, os porto-riquenhos não são suficientemente bons para viver numa pátria própria, ainda que o sejam, sim, para morrer no front do Vietnã em nome de uma pátria que não é a sua. Num cálculo proporcional à população, o “estado livre associado” de Porto Rico tem mais soldados lutando no sudeste asiático do que qualquer estado dos Estados Unidos. Os porto-riquenhos que resistem ao serviço militar obrigatório no Vietnam são enviados aos cárceres de Atlanta, com pena de cinco anos. Ao serviço militar nas fileiras norte-americanas juntam se outras humilhações herdadas da invasão de 1898 e abençoadas por lei (por lei do Congresso dos Estados Unidos). Porto Rico conta com uma representação simbólica no Congresso norte-americano, sem voto e praticamente sem voz. Em troca deste direito, um estatuto colonial: Porto Rico possuía, até a ocupação norte-americana, uma moeda própria, e mantinha um próspero comércio com os principais mercados. Hoje sua moeda é o dólar, e as taxas de sua alfândega são fixadas em Washington, que decide sobre tudo o que se relaciona com comércio externo e interno da ilha. O mesmo ocorre com as relações exteriores, o transporte, as comunicações, os salários e as condições de trabalho. E a Corte Federal dos Estados Unidos é que julga os porto-riquenhos; o exército local integra o exército do norte. A indústria e o comércio estão em mãos de interesses norte-americanos privados. A desnacionalização quis tornar-se absoluta por via da emigração: a miséria compeliu mais de um milhão de porto-riquenhos a buscar melhor sorte em Nova York, ao preço da fratura de sua identidade nacional. Ali, formam um subproletariado que se aglomera nos bairros mais sórdidos.
[3] CASTRO, Fidel. La Revolución Cubana (discursos). Buenos Aires, 1959.
[4] NÚÑEZ JIMÉNEZ, A. Geografía de Cuba. La Habana, 1959.
[5] DUMONT, op. cit.
[6] SEERS, Dudley, IANCHI, Andrés, JOLLY, Richard & NOLFF, Max. Cuba, the Economic and Social Revolution. Chapel Hill, North Carolina, 1964.
[7] KAROL, K. S. Les guérrilleros au pouvoir. L’itinéraire politique de la révolution cubaine. Paris, 1970.

Émile Zola - Germinal: Terceira Parte - (V.b)

Germinal


Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Terceira Parte

V
continuando...
 
     Maheu enfiou mais uma vez sua picareta e fez uma abertura pela qual já podia se comunicar com os homens que trabalhavam do outro lado. Estes gritaram: acabavam de encontrar Jeanlin desmaiado, as duas pernas quebradas, respirando ainda. Foi o pai que carregou o pequeno no colo. De dentes cerrados, continuou a praguejar: era a única maneira de expressar sua dor. Por sua vez, Catherine e as outras mulheres puseram-se novamente a gritar. 
     Formou-se rapidamente o cortejo. Bébert trouxe Batalha, que foi atrelado aos vagonetes; no primeiro jazia o cadáver de Chicot, carregado por Etienne, no segundo sentou-se Maheu, levando ao colo Jeanlin desacordado, coberto com um pedaço de lã arrancado de uma porta de ventilação. Partiram vagarosamente. Em cada vagonete luzia uma lâmpada, que era como uma estrela vermelha. Atrás, seguiam os mineiros, umas cinquenta sombras em fila. Agora que o cansaço se abatera sobre eles, caminhavam arrastando os pés, escorregando na lama, com a lassidão de um rebanho atacado por uma epidemia. Foi necessária cerca de meia hora para chegarem ao patamar do poço. Parecia que aquela procissão não tinha mais fim, marchando nas entranhas da terra, em meio à escuridão, ao longo de galerias que bifurcavam, davam voltas, espichavam... 
     No patamar do poço, Richomme, que partira adiante, dera ordem para que reservassem um elevador vazio. Pierron embarcou logo os dois vagonetes. Num ficou Maheu com seu filho ferido sobre os joelhos, enquanto no outro Etienne permanecia com o cadáver de Chicot nos braços, para que este não escorregasse. Assim que os operários se amontoaram nos outros andares, o elevador subiu. Levou dois minutos. A água que jorrava do estaqueamento estava gélida; os homens olhavam para cima, impacientes por verem novamente a luz do dia.
     Felizmente, um aprendiz enviado à casa do Dr. Vanderhaghen tinha o encontrado e trazia-o. Jeanlin e o morto foram levados para o quarto dos contramestres, onde, durante o ano inteiro, ardia um grande fogo. Foram colocados ali dois baldes de água quente, prontos para a lavagem dos pés, e, tendo estendido dois colchões no chão, deitaram o homem e o menino. Apenas Maheu e Etienne entraram na peça. Fora, operadoras de vagonetes, mineiros e garotos em busca de notícias formavam um grupo e conversavam em voz baixa.
     O médico, mal examinou Chicot, foi logo dizendo: 

— Acabado! Podem lavá-lo...

     Dois vigias despiram e lavaram com esponja aquele cadáver negro de carvão, ainda sujo do suor do trabalho. 

— A cabeça não tem nada — continuou o doutor, de joelhos sobre o colchão de Jeanlin. — O peito também não... Ah!... foram as pernas que sofreram.

     Ele mesmo despiu a criança, desatou o lenço da cabeça, tirou a jaqueta, a camisa, puxou as calças com uma destreza de ama. E o pobre corpinho surgiu, magro como um inseto, imundo de poeira negra e terra amarela, que o sangue manchava. Como não se distinguia nada, ele também teve de ser lavado. Sob a esponja pareceu ainda mais magro, a carne tão lívida e transparente que se viam os ossos. Era de partir o coração aquela degenerescência final de uma raça de miseráveis, aquele pobre serzinho sofredor, meio esmagado pela queda das rochas. Assim que o lavaram, puderam-se ver as contusões nas coxas, dois traços vermelhos na pele branca.
     Voltando a si, Jeanlin deu um gemido. Em pé ao lado do colchão, de braços caídos, Maheu olhava para o filho. E grossas lágrimas começaram a rolar dos seus olhos. 

— Então tu é que és o pai? — perguntou o doutor, levantando a cabeça. — Pois não chores, bem vês que ele não está morto, antes ajuda me.

     Constatou a existência de duas fraturas simples. Mas a perna direita o preocupava: sem dúvida teria de cortá-la.
     Nesse momento, o engenheiro Négrel e Dansaert, finalmente avisados, chegaram, acompanhados de Richomme. O primeiro escutou os fatos da boca do contramestre com ar exasperado. E explodiu: sempre esses malditos estaqueamentos! Já não dissera cem vezes que por causa disso alguém ia morrer? E aqueles animais ainda falavam em entrar em greve se fossem forçados a dar maior solidez ao estaqueamento! O pior era que a companhia agora pagaria o pato... O Sr. Hennebeau ia ficar bem satisfeito com tudo isso!

— Quem é esse? — perguntou ele a Dansaert, silencioso diante do cadáver que enrolavam num lençol. 
— Chicot, um dos nossos bons operários — respondeu o capataz. — Tem três filhos... Pobre-diabo!

     O Dr. Vanderhaghen ordenou que Jeanlin fosse transportado imediatamente para casa. Deram seis horas, descia o crepúsculo, o defunto também devia ser transportado. O engenheiro deu ordens para que se atrelasse o furgão e trouxessem a maca. O pequeno ferido foi colocado na maca, enquanto metiam no furgão o colchão com o morto.
     A porta permaneciam ainda muitas operadoras de vagonetes, conversando com mineiros que haviam ficado para ver. Quando o quarto dos contramestres foi reaberto, um silêncio se abateu sobre o grupo. Formou-se então um novo cortejo, o furgão à frente, a maca atrás, em seguida a turba. Deixaram o pátio da mina, subiram lentamente a estrada ascendente do conjunto habitacional. Os primeiros frios de novembro tinham desnudado a imensa planície, uma noite lenta a sepultava, como uma mortalha caída do céu lívido.
     Etienne, então, aconselhou em voz baixa Maheu a enviar Catherine para prevenir a mulher, amortecendo assim o golpe. O pai, que seguia a maca, completamente abatido, assentiu com um gesto e a moça saiu correndo, porque já estavam quase chegando. Mas o furgão, essa caixa sombria bem conhecida de todos, já fora notado. Mulheres enlouquecidas iam para as calçadas; três ou quatro, com os cabelos ao vento, corriam angustiadas. Em seguida foram trinta, depois cinquenta, todas estranguladas pelo mesmo terror. Então havia um morto? Quem era? A história contada por Levaque, depois de as ter tranquilizado, lançava-as agora num exagero de pesadelo: não era mais só um homem, eram dez que tinham morrido e o furgão iria trazer, um por um.
     Catherine encontrou sua mãe agitada por um pressentimento. Logo às primeiras palavras balbuciadas, esta gritou: 

— Teu pai morreu!

     Em vão a moça disse que não, falou de Jeanlin. Sem querer ouvir mais, a mulher lançou-se para a rua. E, vendo o furgão que desembocava diante da igreja, ficou muito pálida e caiu desmaiada. Às portas, mulheres, mudas de horror, espichavam o pescoço, enquanto outras seguiam o cortejo, tremendo à ideia de saber em que casa ele pararia.
     O carro passou. Logo atrás, a mulher de Maheu percebeu o marido acompanhando a maca. Quando pousaram a padiola diante da sua porta e ela viu Jeanlin vivo, com as duas pernas quebradas, teve uma reação tão repentina que ficou sufocada pela cólera e só conseguiu gaguejar, os olhos enxutos: 
— Então é isto? Agora eles nos aleijam os filhos... Meu Deus, e as duas pernas!... O que vai ser de mim! 
— Cala a boca! — ordenou o Dr. Vanderhaghen, que tinha vindo para fazer o curativo de Jeanlin. — Preferias que ele tivesse ficado por lá?

     Mas a mulher estava cada vez mais violenta em meio às lágrimas de Alzire, Lénore e Henri. Enquanto ajudava a subirem o ferido e dava ao doutor tudo de que ele necessitava, maldizia-se, perguntava onde queriam que ela fosse buscar dinheiro para alimentar doentes. Não chegava o velho, agora também o garoto perdia as pernas! E não cessava de lamentar-se, enquanto outros gritos, lamentações aterradoras, saíam de uma casa próxima: eram a mulher e os filhos de Chicot que choravam sobre o defunto.
     Era noite fechada. Os mineiros, exaustos, comiam enfim sua sopa, no conjunto habitacional mergulhado num silêncio lúgubre, atravessado apenas por aqueles gritos dilacerantes.
     Decorreram três semanas. A amputação fora evitada, Jeanlin conservava ambas as pernas, mas ficara coxo. Depois de um inquérito, a companhia resignara-se a dar um auxílio de cinquenta francos. Além disso, prometera procurar para o pequeno aleijado um emprego na superfície, logo que estivesse restabelecido. Apesar disso, a miséria agravou-se, já que Maheu, de tão abalado, ficou doente e ardeu em febre por alguns dias. Na quinta-feira seguinte, já curado, o homem voltou ao trabalho.
     No domingo à noite, Etienne falou sobre o primeiro de dezembro que se aproximava, preocupado em saber se a companhia executaria sua ameaça naquela data. Ficaram acordados até as dez horas, esperando Catherine, que saíra com Chaval. Como a moça não voltou, a mulher, furiosa, fechou a porta com ferrolho, sem uma palavra. Etienne demorou-se a dormir; nervoso com aquela cama vazia, onde Alzire ocupava tão pouco espaço. 
     Na manhã do dia seguinte Catherine continuou ausente. Somente à tarde, na volta da mina, foi que os Maheu souberam que Chaval decidira que a moça ficaria com ele. O homem fazia cenas tão terríveis, que ela resolvera ir viver com ele. Para evitar falatórios, Chaval demitiu-se bruscamente da Voreux, indo empregar-se na Jean-Bart, o poço do Sr. Deneulin, onde ela o seguiu como operadora de vagonetes. Fora isso, o novo casal continuou morando em Montsou, no Piquette.
     No princípio, Maheu disse que ia esbofetear o homem e trazer a filha de volta para casa a pontapés no traseiro. Depois, resolveu resignar-se: para quê? Era sempre assim, não se podia impedir as mulheres de se amigarem quando tinham vontade. O melhor mesmo era esperar tranquilamente pelo casamento.
     Mas a mulher não via as coisas pelo mesmo prisma. 

— Diga, eu a espanquei quando ela resolveu meter-se com esse Chaval? — gritava ela para Etienne, que a escutava, silencioso e muito pálido. — Vamos, responda! O senhor, que é um homem razoável, responda! Nós a deixamos livre, não foi? Meu Deus, eu sei que todas passam por isso! Veja eu, estava grávida quando casei, mas não fugi da casa dos meus pais, nunca faria essa sujeira de entregar antes da idade o dinheiro dos meus dias de trabalho a um homem que não precisa. Ah, como tenho razão de estar enojada de tudo! Vai chegar o tempo em que não se quererá mais ter filhos...
 
     E, como Etienne continuasse em silêncio, respondendo apenas com movimentos de cabeça, ela insistia: 

— Uma moça que ia aonde queria e todas as noites! Que foi que ele lhe andou metendo na cabeça? Será que não podia esperar que eu a casasse depois de nos ter ajudado a sair do atoleiro em que nos encontramos? Não era assim que ela tinha que agir? Afinal, a gente tem uma filha para que ela trabalhe, não é isso? Mas nós fomos bons demais, nunca devíamos ter permitido que andasse por aí com um homem. Dá-se um dedo e elas tomam logo o braço todo, é sempre assim.

     Alzire aprovava com a cabeça. Lénore e Henri, amedrontados com aquela gritaria, choravam baixinho. A mulher, agora, desfiava seu rosário de desgraças: primeiro Zacharie, a quem tiveram de casar; em seguida o velho Boa-Morte, imobilizado numa cadeira, com os pés inutilizados; depois Jeanlin, que não poderia deixar a cama antes de dez dias, com os ossos ainda mal colados; e finalmente, para cúmulo dos males, a prostituta da Catherine resolvera fugir com um homem! A casa ia por água abaixo, só o pai continuava trabalhando e trazendo dinheiro. Como é que haviam de viver sete pessoas, sem contar Estelle, com os três francos do pai? Ah, o melhor era atirarem-se todos juntos no canal! 

— Não adianta nada estares aí massacrando-te — disse Maheu com voz surda. — Talvez ainda não estejamos tão mal assim.

     Etienne, que olhava fixamente para as pedras do chão, levantou a cabeça e, com os olhos perdidos numa visão do futuro, murmurou: 

— Ah! chegou a hora! chegou a hora!

continua na página 164...
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Terceira Parte - (V.b)
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - O avô e o neto / V - Utilidade de ouvir missa para vir a ser-se revolucionário

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Segundo — O velho burguês

     V - Utilidade de ouvir missa para vir a ser-se revolucionário 
     
          Mário conservara os costumes religiosos que adquirira na infância. Num domingo que fora ouvir missa a S. Sulpício, àquela mesma capela da Virgem onde sua tia o levava quando era pequeno, estando mais distraído e pensativo do que de ordinário, sentara se numa cadeira de veludo de Utrecht, atrás de uma coluna, sem reparar que no recosto da cadeira estava escrito o nome: Mabeuf, sacristão. A missa tinha apenas começado, quando um velho se chegou a ele, dizendo-lhe: 

— Queira desculpar, mas este é o meu lugar.

     Mário ergueu-se apressadamente, e o velho entrou na posse da sua cadeira.
     Terminada a missa, Mário ficou ainda pensativo a alguns passos de distância: o velho aproximou-se novamente e disse-lhe: 

— Peço-lhe que me desculpe tê-lo incomodado no começo da missa e de agora mesmo o tornar a incomodar. O senhor deve ter-me achado importuno, portanto é necessário que lhe dê uma explicação. 
— É inútil, senhor! 
— Não é — tornou o velho — não quero que vá fazendo má ideia de mim. Tenho muita predileção por este lugar. Parece-me que a missa aqui é melhor. Não sabe porquê? Eu lhe digo. Foi neste lugar que eu vi, durante dez anos, de dois em dois ou de três em três meses, regularmente, um pobre e honrado pai, que não tinha outra ocasião nem maneira de ver seu filho, por isso que lhe impediam certos assuntos de família. Aparecia sempre à hora em que sabia trazerem seu filho à missa. O pequenino nem suspeitava que seu pai aqui estivesse; nem mesmo sabia que tinha pai, o pobre inocente. O pai, pela sua parte, conservava-se atrás do pilar, para que o não vissem. Contemplava o filho e chorava; o pobre homem adorava a criancinha. Vi isto muitas vezes. Este lugar ficou como santificado por mim, e acostumei-me a ouvir sempre nele a missa. Prefiro-o à bancada em que devia estar, como sacristão. Tive até algum conhecimento com o infeliz homem. Tinha um sogro, uma tia rica, e não sei que mais parentes que o ameaçavam de deserdar a criança, se ele, que era seu pai, lhe falasse. Sacrificara-se para que o filho pudesse um dia ser rico e feliz. Parece que não consentiam que ele o visse por motivo de opiniões políticas. Eu aprovo que se tenham opiniões políticas; mas há gente que não sabe ter mão nelas. Valha-me Deus! Um homem não é um monstro só porque esteve em Waterloo; não se separa um pai de seu filho por semelhante coisa. Era um coronel de Bonaparte; e julgo que morreu. Residia em Vernon, onde está meu irmão, que é prior, e chamava-se... Tinha assim um nome como Pontmarie ou Montparcy... O que ele tinha também era uma cicatriz no rosto. 
— Pontmercy — disse Mário, empalidecendo. 
— É isso mesmo! Pontmercy. Conhecia-o? 
— Era meu pai!

     O velho sacristão juntou as mãos e exclamou: 

— Logo o senhor é o menino de então! É isso, é; devia ser agora um homem. Pobre criança! Pode dizer que teve um pai bem seu amigo!

     Mário ofereceu o braço ao velho e conduziu-o até sua casa. No dia seguinte disse ao senhor Gillenormand: 

— Fui convidado por alguns amigos para uma caçada; dá-me licença que me ausente por três dias? 
— Por quatro! — respondeu-lhe o avô. — Vai divertir-te.

     E, piscando o olho, disse em voz baixa a sua filha: 

— Alguns amoricos!

continua na página 472...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - V - Utilidade de ouvir missa para vir a ser-se revolucionário
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Sobre a Paciência das Mãos

Elias Canetti

AS ENTRANHAS DO PODER

     Sobre a Paciência das Mãos

      Todas as atividades impetuosas das mãos são vistas como arcaicas. Não é apenas do agarrar com propósito hostil que se esperam subtaneidade e crueldade. São esperadas também, e involuntariamente, de procedimentos que somente se desenvolveram mais tarde, como o golpear, o espetar, o empurrar, o lançar e o atirar, por mais que estes se tenham ramificado e tornado tecnologicamente mais complexos. É possível que sua velocidade e precisão tenham aumentado, mas tanto o seu sentido quanto o seu propósito permanecem ainda os antigos. Para o caçador e o guerreiro, tais atividades tornaram-se importantes; mas elas nada acrescentaram à verdadeira glória da mão humana.
     Sua perfeição, a mão a atingiu por outros caminhos — mais exatamente, em toda parte onde renunciou à violência e à presa. A verdadeira grandeza das mãos reside em sua paciência. Os atos tranquilos e vagarosos da mão criaram o mundo no qual gostaríamos de viver. O oleiro, cujas mãos são capazes de dar forma ao barro, figura como criador bem no começo da Bíblia.
     Mas como é que as mãos tornaram-se pacientes? Como adquiriram a sensibilidade de seus dedos? Uma de suas primeiras atividades de que se tem notícia, e que os macacos adoram, é o coçar a pele dos amigos. Pensa-se que estão procurando alguma coisa, e como, sem dúvida, eles às vezes encontram algo, atribuiu-se a essa atividade um propósito assaz estreito, nada mais do que útil. Na realidade, o que lhes importa é sobretudo a sensação agradável que os pelos na pele proporcionam a cada um dos dedos. Esses exercícios com os dedos são os mais antigos que se conhecem. Eles é que zeram dos dedos o no instrumento que hoje admiramos.

continua página 319...
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Leia também:

Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Sobre a Paciência das Mãos
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

sábado, 6 de dezembro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Mynheer Peeperkorn (Fim) - [a]

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn
(Fim)
...
     Uma cascata não deixa de ser objetivo atraente para excursões, e dificilmente se explica por que Hans Castorp, apesar de sentir inclinação particular pelas quedas-d’água, ainda não visitara o pitoresco salto situado na floresta do vale de Fluela. Essa omissão talvez fosse perdoável durante o tempo em que convivera com Joachim; o rigoroso senso do dever, peculiar ao primo, que não viera para divertir-se, e nunca perdia de vista a finalidade da sua estadia, havia limitado o horizonte de ambos aos arredores próximos do Sanatório Berghof. E depois do decesso de Joachim – sim, também depois dele, as relações entre Hans Castorp e a paisagem alpina haviam guardado, abstraindo os passeios de esqui, o caráter de conservadora monotonia, que contrastava fortemente com o vasto alcance das suas experiências interiores e dos seus afazeres de “regente”. Esse contraste exercia sobre o jovem um encanto que ele, em certo sentido, saboreava com plena consciência. Mesmo assim aprovou vivamente um projeto de excursão de coche até aquele lugar famoso, projeto que um dia foi ventilado no pequeno círculo dos seus amigos, entre as referidas sete pessoas (inclusive ele próprio).
     Nesse ínterim chegara o mês de maio, mês das delícias, segundo as ingênuas cantilenas da planície. Aqui em cima, o ar de maio costumava ser bastante frio e não muito convidativo; mas ao menos podia-se dizer que o degelo estava terminado. Verdade é que diversas vezes no decorrer dos últimos dias haviam caído grossos flocos, mas a neve derretia-se logo, deixando atrás apenas um pouco de umidade. As massas compactas do inverno acabavam de fundir-se, de esvair-se, de desaparecer, com exceção de alguns restos isolados, e o verdor do mundo novamente transitável constituía um convite a todo espírito empreendedor.
     No curso das semanas passadas, as atividades sociais do grupo tinham sido influenciadas pela indisposição do seu chefe supremo, o majestoso Pieter Peeperkorn, cuja febre maligna, lembrança dos trópicos, não queria ceder nem aos efeitos de um clima excepcional, nem aos antídotos de um médico tão competente como era o Conselheiro Behrens. O holandês passara muito tempo na cama, e não somente nos dias em que a quarta reivindicava cruelmente os seus direitos. O baço e o fígado davam-lhe muito trabalho, conforme o médico explicava em particular aos amigos mais chegados do enfermo. Também o estômago não se achava em estado perfeito, e Behrens não se esqueceu de indicar o perigo de um enfraquecimento progressivo, a que estava exposta, sob essas circunstâncias, até mesmo uma constituição tão robusta como a de Peeperkorn.
     Durante todas essas semanas, Mynheer não presidira senão um único festim noturno, e também os passeios em comum tinham sido cancelados, exceção feita de um só, de pouca extensão. Por outra parte – contamos isso aqui entre nós – Hans Castorp experimentava uma espécie de alívio graças a esse afrouxamento dos laços que ligavam o grupo; pois a nova fraternidade com o companheiro de viagem de Mme. Chauchat causava-lhe dificuldades. Nas conversas que ele mantinha com Peeperkorn em presença de terceiros voltavam a aparecer aquela “atitude forçada”, aquela “evitação” e “esquivança”, que o holandês percebera na sua conduta para com Clávdia, e que pareciam ter a sua origem numa obrigação de partilhar a filipina. Hans Castorp servia-se de estranhos circunlóquios para não empregar o tratamento direto, nos casos em que este se impunha. Era o mesmo dilema, ou talvez o dilema inverso, que pesava sobre as palavras que ele trocava com Clávdia na frente de outras pessoas ou apenas do próprio Peeperkorn. Devido à satisfação que este lhe havia dado, esse dilema colocava o jovem entre Cila e Caribdes.
     Mas agora estava na ordem do dia o projeto da excursão à cascata. Peeperkorn em pessoa fixara o itinerário e sentia-se disposto a tentar a empresa. Era o terceiro dia depois de um ataque de quarta, e Mynheer comunicou que tinha a intenção de aproveitá-lo. Não almoçara no refeitório; como nesses últimos tempos acontecia frequentemente, tomara as primeiras refeições no salão do seu apartamento, em companhia de Mme. Chauchat. Mas já na hora do café da manhã Hans Castorp recebera, por intermédio do porteiro coxo, a ordem de se aprontar para um passeio de coche, uma hora depois do almoço, de transmitir essa ordem aos senhores Ferge e Wehsal, e finalmente de comunicar a Settembrini e Naphta que o carro passaria pela sua casa para buscá-los. Além disso devia Hans Castorp arranjar dois landôs para as três da tarde.
     A essa hora encontraram-se diante do portão do Sanatório Berghof. Enquanto Hans Castorp, Ferge e Wehsal esperavam ali os donos do apartamento principesco, distraíram-se acariciando os cavalos, que com os grossos e úmidos beiços pretos lhes tiravam das palmas da mão pedaços de açúcar. Com um pequeno atraso apenas os companheiros de viagem surgiram na escadaria. Peeperkorn, cuja cabeça de rei parecia mais magra, e que trajava um sobretudo comprido, um pouco gasto, deteve-se no patamar, ao lado de Clávdia, tirando o chapéu redondo e macio, e seus lábios articularam um ‘Bom-dia!” inaudível. A seguir apertou as mãos de cada um dos três senhores, que haviam ido ao encontro do casal, até o pé da escada. 

– Meu caro jovem! – disse então dirigindo-se a Hans Castorp e pondo-lhe a mão esquerda sobre o ombro. – Como vais, meu filho? 
– Vou indo aqui muito bem. Obrigado. E desse lado aí, como vão as coisas? – respondeu o jovem.

     O sol brilhava. Era um dia lindo, sem nuvens. Mesmo assim tinham agido com acerto vestindo casacões de meia-estação, porque era provável que durante o passeio o frio se tornasse sensível. Também Mme. Chauchat trajava um sobretudo quente, cinturado, de uma fazenda felpuda, com grandes quadrados de xadrez, e com uma gola de pele que lhe cobria os ombros. No chapéu de feltro trazia um véu cor de azeitona, atado por baixo do queixo, e que dobrava as abas em torno do rosto. Ficava tão encantadora com esse chapéu que literalmente fazia sofrer a maioria dos cavalheiros presentes, exceção feita de Ferge, o único que não estava apaixonado por ela. Foram distribuídos os lugares, provisoriamente, já que mais tarde os externos se reuniriam ao grupo, e a indiferença de Ferge teve por conseqüência caber-lhe o assento de costas, no primeiro landô, na frente de Mynheer e de madame, ao passo que Hans Castorp embarcou junto com Wehsal no segundo carro, não sem ter apanhado um sorriso irônico de Clávdia. O vulto frágil do criado malaio também participava da excursão. Com um volumoso cesto, sob cuja tampa apontavam os gargalos de duas garrafas de vinho, e que foi depositado debaixo de um dos assentos de costas do primeiro landô, o homenzinho aparecera atrás dos seus amos, e quando se achava instalado na boleia, com os braços cruzados, deu-se aos cavalos o sinal de partida. Com os freios apertados, os carros começaram a descer pela curva da rampa.
     Também Wehsal notara o sorriso de Mme. Chauchat. Mostrando os dentes cariados, fez comentários acerca dele para Hans Castorp. 

– Viu – perguntou – como ela se riu do senhor, porque tem de ir sozinho comigo? Primeiro o dano, depois o escárnio. Não acha o senhor irritante e repulsivo estar assim a meu lado? 
– Controle-se, Wehsal, e deixe de falar desse jeito miserável – repreendeu-o Hans Castorp. – As mulheres sorriem a qualquer instante, pelo prazer de sorrir. Não vale a pena refletir sobre todos os seus sorrisos. Por que insiste o senhor em rebaixar-se deste modo? Como nós todos, o senhor tem suas qualidades e seus defeitos. Por exemplo, toca bastante bem o Sonho de uma noite de verão, coisa que nem todos sabem fazer. O senhor deveria tocá-lo novamente qualquer dia destes.
– Pois sim! – respondeu o pobre-diabo. – O senhor me fala com muita condescendência e nem sequer percebe o desaforo que está contido no seu consolo e que somente me humilha ainda mais. Para o senhor é fácil dizer essas coisas e reconfortar a gente do alto dos seus tamancos; pois, se hoje se encontra numa situação um tanto ridícula, pelo menos teve a sua vez, Santo Deus, e esteve no sétimo céu! Sentiu os braços dela em torno do pescoço, e tudo aquilo, Santo Deus! me queima a garganta e o fundo do coração quando me volta à memória. E o senhor, com plena consciência do que gozou, pode contemplar desdenhosamente os meus tormentos de mendigo... 
– Não é bonita essa sua maneira de expressar-se, Wehsal. É até sumamente repugnante. Não acho necessário ocultar-lhe esta minha opinião, uma vez que o senhor me tachou de desaforado. E tenho a impressão de que o senhor fala de propósito dessa forma repulsiva. Faz tudo para parecer asqueroso e avilta-se a cada momento. Sua paixão por ela é realmente violenta? 
– É terrível – replicou Wehsal, meneando a cabeça. – São indescritíveis as torturas que sofro pela sede e pela cobiça de possuí-la. Quem me dera dizer que isso será a minha morte! Mas num estado desses não se pode nem viver nem morrer. Enquanto ela estava ausente, comecei a me sentir melhor. Aos poucos consegui me preocupar menos. Mas desde que voltou e a vejo todos os dias, a minha paixão me faz morder o braço e agarrar miragens. Já não sei o que fazer. Uma coisa assim não deveria existir. Mas não é possível desejar que desapareça. Quem sofre de tal paixão não pode ter esse desejo, porque seria o mesmo que desejar que desaparecesse a própria vida, que se amalgamou com a paixão; é coisa que não se pode... Que adiantaria morrer? Depois, sim; com prazer! Nos braços dela; com a maior satisfação! Mas antes, seria absurdo; pois a vida é o desejo, e o desejo é a vida e não pode voltar-se contra si próprio; nisso é que consiste o maldito dilema. E quando digo “maldito”, isto não passa de uma maneira de falar. É como se um terceiro falasse, porque eu mesmo absolutamente não posso ter essa opinião. Há muitos tipos de tormentos, Castorp, e quem está sendo torturado quer se ver livre, quer simplesmente, incondicionalmente, que o soltem. Eis o que é o seu único objetivo. Mas quando se trata da tortura da cobiça carnal, não se pode desejar a libertação, a não ser pelo caminho e sob a condição de a ver saciada. Não há outro meio, por preço algum! Assim são as coisas, e quem não sofre disso não perde tempo com reflexões desse gênero, mas quem sofre chega a ver estrelas e a compreender o Senhor dos Passos. Deus do Céu! Que instituição curiosa é essa de a carne cobiçar tão violentamente uma outra carne, só porque esta não é a própria, mas pertence à alma de outrem! Como é singular esse desejo, e para bem dizer, como é modesto, na sua bondade pudica! É o caso de dizer: se a carne deseja apenas isso, vá lá, que o tenha! Afinal de contas, que é que eu quero, Castorp? Quero, acaso, matá-la? Quero derramar o sangue dela? Quero apenas é acariciá-la! Castorp, meu caro Castorp, desculpe que me lamente dessa forma, mas, afinal, ela poderia muito bem entregar-se a mim! Haveria nisso algo de sublime, Castorp! Eu não sou nenhum animal; à minha maneira, também sou um ser humano! O desejo da carne espalha-se em todas as direções; não tem limites e não se fixa, e por isso o chamamos bestial. Mas quando se concentra numa única criatura, com um rosto humano, então os nossos lábios começam a falar de amor. Mas o que eu desejo não é apenas o torso dela, o manequim de carne que é o seu corpo; pois, se no seu rosto uma coisinha de nada tivesse uma forma diferente, talvez deixasse eu de cobiçar todo o resto do corpo. Assim se vê claramente: o que eu amo é a sua alma e a amo com a alma. Pois o amor ao rosto é o amor da alma ... 
– Mas que é que o senhor tem, Wehsal? Parece fora de si e nem sabe em que tom está falando... 
– Mas, precisamente isso, precisamente isso é a desgraça – prosseguiu o coitado –, a desgraça é ter ela uma alma, ser ela uma criatura humana, dotada de corpo e alma! Ora, a sua alma nada quer saber da minha, e o seu corpo nada do meu. Que miséria, que grandíssima miséria! Daí acontece que o meu desejo está condenado à vergonha, e meu corpo tem de se retorcer eternamente! Por que ela não quer saber de mim, Castorp, nem com o corpo nem com a alma? Por que lhe causa horror o meu desejo? Porventura não sou homem? Um homem repugnante não é homem? Sou homem no mais alto grau; juro que ultrapassaria tudo que já se viu, se ela me abrisse o paraíso dos seus braços, que são tão formosos porque pertencem ao rosto da sua alma! Eu seria capaz de lhe dar todas as volúpias do mundo, Castorp, se se tratasse apenas dos corpos e não das almas também; se não existisse a maldita alma dela, que nada quer saber de mim, mas sem a qual eu não lhe cobiçaria o corpo. E neste nojento dilema dos diabos debato-me eternamente! 
– Psiu, Wehsal! Fale mais baixo! O cocheiro entende o que está dizendo. De propósito não volta a cabeça, mas vejo pelas costas dele que escuta. 
– Ele me entende e escuta; aí está, Castorp! Aí temos novamente aquela coisa, aquela instituição com a sua particularidade e seus característicos. Se eu falasse de palingenesia ou... ou de hidrostática, ele não entenderia patavina; não saberia de que se trata, não escutaria e não mostraria o menor interesse. Pois esses assuntos não são populares. Mas a coisa mais sublime, a mais extrema e a mais secreta, num sentido sinistro, o assunto da carne e da alma, olhe, essa coisa é ao mesmo tempo a mais popular. Todos a entendem, todos podem zombar de quem sofre dela e a quem ela transforma os dias em torturas voluptuosas, e as noites num inferno ignominioso! Castorp, meu caro Castorp, deixe que eu me lamente um pouco; pois que noites são estas que eu tenho! Noite após noite sonho com ela; ah, com quanta coisa dela não sonhei! A garganta e o estômago me queimam, quando recordo. E todos os sonhos terminam assim: ela me esbofeteia, me bate em pleno rosto e às vezes me cospe na cara, me cospe na cara, com o rosto da sua alma crispado de asco, e então acordo, coberto de suor e de vergonha e de volúpia... 
– Muito bem, Wehsal, e agora vamos fazer uma pequena pausa e tomar a decisão de calar a boca até que cheguemos à casa do merceeiro e alguém venha nos fazer companhia. É da minha parte uma sugestão e uma ordem. Não quero ofendê-lo e admito que o senhor se encontra em graves apuros. Mas lá em casa contavam a história de um indivíduo que tinha recebido o seguinte castigo: quando falava, saíam-lhe da boca serpentes e sapos, a cada palavra uma serpente ou um sapo. O livro não rezava o que aquela personagem fazia diante disso, mas sempre fui de opinião que ela deve ter calado a boca. 
– Mas falar é uma necessidade humana, meu caro Castorp – tornou Wehsal melancolicamente –, uma necessidade humana. É preciso desabafar, quando se está em tais apuros. 
– É até um direito que o homem tem, Wehsal, se assim quiser. Mas, a meu ver, existem direitos que sob certas circunstâncias não convém usar. 

     Assim guardaram silêncio, conforme a ordem de Hans Castorp. Ademais, o coche não tardou a alcançar a casinha coberta de vinhas do merceeiro, onde não os deixaram esperar nem um instante. Naphta e Settembrini já se achavam na rua; o humanista trajava aquela jaqueta puída, forrada de peles, e o jesuíta, um sobretudo amarelo-esbranquiçado, de meia estação, pespontado em toda parte, e que lhe dava aparência de janota. Acenaram uns aos outros. Trocaram cumprimentos, enquanto os carros faziam meia-volta, e os dois senhores embarcaram também. Naphta ocupou o quarto assento do primeiro landô, ao lado de Ferge, ao passo que Settembrini., de humor radiante, transbordando de piadas esplêndidas, se associou a Hans Castorp e Wehsal. Este lhe cedeu o seu lugar no fundo do carro, onde o Sr. Settembrini se instalou com a mais elegante displicência, na atitude de quem costuma passear em corsos.
     E celebrou o prazer de andar de carro, quando o corpo se encontra em confortável estado de repouso e todavia é transportado através de um cenário que sempre se modifica. Demonstrou a Hans Castorp sentimentos de complacência paternal, e até acariciou com palmadinhas a face do pobre Wehsal, enquanto o convidava a esquecer-se do seu próprio eu antipático e de abandonar-se à admiração desse mundo luminoso, que lhe designava num amplo gesto da mão direita, revestida com uma surrada luva de couro.

continua pág 406...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn (Fim) - [a]
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Moby Dick: 42 - A Brancura da Baleia

Moby Dick

Herman Melville

42 -  A Brancura da Baleia
      
      O que a baleia branca era para Ahab, foi sugerido; o que era, por vezes, para mim, resta ainda dizer.
      À parte as considerações mais óbvias a respeito de Moby Dick, que ocasionalmente despertavam apreensões na alma de qualquer um, havia um outro pensamento, ou melhor, um horror impreciso e inominável a seu respeito que, às vezes, superava todo o resto por sua intensidade; e tão místico e alheio à expressão, como era, que chego a desesperar de tentar colocá-lo em forma compreensível. Era a brancura da baleia que, acima de tudo, me pasmava. Mas como posso ter a esperança de me explicar aqui? E, contudo, de modo difuso e aleatório, explicar-me é preciso, ou todos esses capítulos podem reduzir-se a nada.
     Ainda que em muitos objetos naturais a brancura realce com refinamento sua beleza, como se lhe transmitisse alguma virtude própria, como nos mármores, camélias e pérolas; e ainda que várias nações tenham reconhecido de algum modo uma proeminência real desse matiz sobre os demais; mesmo os antigos e poderosos reis de Pegu colocando o título de “Senhor dos Elefantes Brancos” acima de todas as outras atribuições magniloquentes de domínio; e os modernos reis de Sião desfraldando o mesmo quadrúpede branco como a neve em seu estandarte real; e a flâmula de Hanover mostrando uma única figura, a de uma montaria branca como a neve; e o poderoso Império Austríaco, herdeiro Cesáreo da Roma soberana, tendo como cor imperial o mesmo matiz; e ainda que essa proeminência se aplique à própria raça humana, concedendo ao homem branco o domínio ideal sobre toda tribo escura; e ainda que, além disso tudo, a brancura tenha até significado alegria, pois entre os romanos uma pedra branca marcava um dia de júbilo; e ainda que em outras mortais simpatias e simbologias este mesmo matiz seja o emblema de coisas nobres e tocantes – a inocência das noivas, a benignidade da velhice; ainda que entre os peles-vermelhas da América presentear com um cinturão branco de conchas, o wampum, fosse a mais profunda penhora da honra; e ainda que em muitos climas o branco represente a majestade da Justiça no arminho do Juiz e contribua para o fausto diário de reis e rainhas transportados por corcéis brancos como o leite; e ainda que nos mistérios mais elevados das religiões mais augustas tenha se tornado o símbolo do imaculado e do poder divino; entre os Persas adoradores do fogo, a chama branca bifurcada sendo a mais sagrada do altar; e nas mitologias gregas, o Poderoso Jove encarnando um touro branco como a neve; e ainda que para o nobre Iroquês o sacrifício do Cachorro Branco sagrado no meio do inverno fosse de longe o ritual mais sagrado de sua teologia, sendo essa criatura imaculada e fiel considerada a oferenda mais pura que podiam enviar ao Grande Espírito, junto aos votos anuais de sua própria fidelidade; e ainda que diretamente da palavra Latina para branco todos os padres Cristãos derivem o nome de uma parte de sua veste sagrada, a alva ou túnica, usada embaixo da batina; e ainda que nas pompas sacras da fé Romana, o branco seja especialmente usado para a comemoração da Paixão do Senhor; e ainda que na visão de São João o manto branco seja dado aos redimidos, e os vinte e quatro anciãos estejam vestidos de branco diante do grande trono branco, e o Santíssimo, que ali se senta branco como a lã; mesmo a despeito dessa reunião de associações a tudo que é encantador, respeitável e sublime, insinua-se algo furtivo na ideia mais íntima desse matiz, que incute mais de pânico na alma do que o vermelho que amedronta o sangue.
     Essa qualidade furtiva é que faz com que a idéia de brancura, quando divorciada de associações benévolas, e em par com um objeto terrível, agrave o terror ao seu limite mais extremo. Veja o urso polar, e o tubarão branco dos trópicos; que outra coisa senão sua brancura lisa ou encarquilhada faz com que sejam os horrores transcendentes que são? É essa brancura horripilante que transmite uma suavidade abominável, mais repugnante do que terrível, à satisfação muda e maligna de seu aspecto. De modo que nem o tigre, de garras ferozes em seu manto heráldico, consegue abalar tanto a coragem quanto o urso, ou o tubarão, de branca mortalha.{a}
     Pense no albatroz, de onde vêm aquelas nuvens de alumbramento espiritual e de pálido pavor, em meio às quais esse fantasma branco plana em todas as imaginações? Não foi Coleridge quem primeiro lançou o feitiço; mas a grandiosa, laureada e nunca lisonjeira Natureza divina.{b}
     A história mais famosa em nossos anais do Oeste e nas tradições indígenas é a do Corcel Branco das Pradarias; um magnífico cavalo branco como o leite, de olhos grandes e cabeça pequena, peito amplo, e com a dignidade de mil monarcas em seu porte altivo e desdenhoso. Foi o Xerxes eleito de todos os enormes bandos de cavalos selvagens, cujas pastagens, naquele tempo, tinham por único limite as montanhas Rochosas e os Alleghanies. Com sua liderança flamejante comandava-os para o oeste como a estrela eleita que todas as noites traz consigo legiões de luzes. A cascata reluzente de sua crina e o cometa recurvo de sua cauda investiam-no com adornos mais resplandecentes do que poderiam lhe oferecer os melhores artesãos de ouro e prata. Uma aparição imperial e arcangélica naquele mundo do ocidente não decadente, que aos olhos dos velhos armadores e caçadores fazia reviver a glória dos tempos primevos, quando Adão caminhava majestoso como um deus, enfunado e destemido como esse cavalo poderoso. Quer marchasse entre os seus ajudantes e marechais à frente das inúmeras coortes que serpenteavam interminavelmente pelas planícies, como um Ohio; quer pastasse com seus súditos, dando voltas por toda parte até o horizonte, o Corcel Branco, a galope, os passava em revista, com suas narinas quentes se avermelhando através de sua brancura leitosa e fresca; sob qualquer aspecto que se apresentasse, para os Índios mais corajosos era sempre objeto de respeito e trêmula reverência. Também não se pode questionar, a julgar pelos registros lendários sobre esse nobre animal, que era especialmente sua brancura espiritual que assim o revestia de divindade; e que essa divindade, embora inspirasse adoração, ao mesmo tempo reforçava um certo terror inominável.
     Mas há outros exemplos nos quais a brancura perde toda essa glória estranha e acessória que envolve o Corcel Branco e o Albatroz.
     O que há no Albino de tão repugnante e muitas vezes terrível, que ele é por vezes odiado por seus próprios amigos e parentes! É a brancura que o cobre, algo que se expressa pelo nome que carrega. O Albino é tão bem feito quanto qualquer outro homem – não tem uma deformidade substantiva –, e, no entanto, seu aspecto de brancura absoluta torna-o mais estranhamente medonho do que o mais horrível dos abortos. Por que será?
      Tampouco em outros aspectos a Natureza, por seus meios menos palpáveis, mas não por isso menos maliciosos, deixou de juntar às suas forças esse régio atributo do terrível. Por seu aspecto nevado, o fantasma de luvas dos Mares do Sul foi denominado Branca Tormenta. Tampouco, em certos casos históricos, a arte da maldade humana deixou de lado a ação de um auxiliar tão poderoso. Como reforçou o efeito daquela passagem de Froissart, quando, mascarados com o símbolo alvo de sua facção, os desesperados Chapéus Brancos de Ghent assassinaram seu bailio na praça do mercado!
     Nem tampouco, em algumas coisas, a experiência hereditária comum a toda a humanidade deixou de testemunhar o aspecto sobrenatural desse matiz. Não se pode duvidar de que a característica visível no aspecto de um defunto que mais assusta o observador é a palidez marmórea que ali jaz; como se de fato aquela palidez fosse tanto o emblema da consternação no outro mundo, como da atribulação mortal neste daqui. E da palidez dos defuntos emprestamos o matiz expressivo das mortalhas com as quais os envolvemos. Nem mesmo em nossas superstições deixamos de jogar o mesmo manto nevado sobre os nossos fantasmas; todos os espectros surgem em meio a uma neblina branca como leite – Sim, enquanto estes terrores nos assaltam, acrescentemos que mesmo o rei dos terrores, quando personificado pelo evangelista, cavalga um cavalo branco.
     Portanto, ainda que ele, sob outras paixões, simbolize qualquer coisa grandiosa ou graciosa por meio do branco, nenhum homem pode negar que, em seu significado ideal mais profundo, essa cor invoca na alma uma aparição peculiar.
      Mas ainda que sobre este ponto não haja dissenso, como o homem o explica? Pareceria impossível analisá-lo. Será que podemos, então, citando alguns casos nos quais essa questão da brancura – que embora provisoriamente despida, total ou parcialmente, de todas as associações diretas que nos levem ao reconhecimento do terror, ainda exerce sobre nós o mesmo feitiço, contudo modificado; – podemos, dessarte, ter a esperança de lançar alguma luz sobre uma pista casual que nos conduza à causa oculta que buscamos?
      Tentemos. Mas, num assunto como esse, sutileza demanda sutileza, e sem usar a imaginação nenhum homem consegue acompanhar um outro por estes salões. E embora, sem dúvida, pelo menos algumas das impressões imaginativas prestes a ser apresentadas possam ter sido sentidas por grande parte dos homens, talvez poucos deles tivessem plena consciência então, e, por isso, talvez não sejam mais capazes de lembrá-las agora.
     Por que, para o homem de imaginação sem brida que conhece apenas vagamente as características desse dia, a simples menção do Domingo Branco cria em sua fantasia uma longa procissão silenciosa e sombria de peregrinos caminhando lentamente, deprimidos e cobertos de neve recém caída? Ou para os broncos, brutos protestantes do centro dos Estados Unidos, por que a referência ocasional a um frade ou a uma freira vestidos de branco invoca uma estátua sem olhos na alma?
     Ou o que é que, além das tradições de guerreiros e reis atirados ao calabouço (que não explicam isso inteiramente), torna a Torre Branca de Londres tão mais fértil na imaginação do norte-americano de província, do que outras estruturas históricas, vizinhas – a torre Byward, ou mesmo a Bloody? E as torres ainda mais sublimes, as Montanhas Brancas de New Hampshire, de onde, em certas disposições de humor, vem aquela alucinação gigantesca na alma à simples menção de seu nome, enquanto a ideia da Serra Azul da Virgínia é repleta de sonhos meigos, orvalhados e difusos? Ou por que, a despeito de todas as latitudes e longitudes, o nome do Mar Branco exerce uma impressão tão fantasmagórica sobre a imaginação, enquanto o Mar Amarelo nos embala com pensamentos mortais de tardes longas, brilhantes e amenas sobre as ondas, seguidas dos mais agradáveis e indolentes poentes? Ou então, para escolher um exemplo totalmente irreal, endereçado à fantasia, por que, ao ler os antigos contos de fadas da Europa Central, o “homem pálido e alto” das florestas de Hartz, cujo palor imutável desliza silenciosamente pelo verde dos arvoredos – por que esse fantasma é mais terrível do que todos os demônios barulhentos de Blocksburg?
      Tampouco é, unicamente, a recordação de seus terremotos, destruidores de catedrais; nem o estampido de seus mares frenéticos; nem a secura de seus áridos céus que nunca chovem; nem a visão de seu vasto campo de torres inclinadas, cúpulas alquebradas e cruzes derrubadas (como as vergas inclinadas das frotas ancoradas); nem suas avenidas suburbanas onde as paredes das casas se empilham umas sobre as outras, como um baralho em desordem – não são essas coisas isoladamente que fazem de Lima, cidade sem lágrimas, a mais estranha e triste que tu poderias ver. Pois que Lima vestiu o véu branco; e existe um horror supremo na brancura de sua desgraça. Antiga como Pizarro, essa brancura mantém suas ruínas sempre novas; não admite o verdor alegre da ruína completa; espalha por toda sua fortificação destruída a palidez rígida de uma apoplexia que corrige suas próprias distorções.
     Bem sei que, na opinião da maioria, não se admite que o fenômeno da brancura seja o agente principal a realçar o terror dos objetos já em si terríveis; nem para as mentes sem imaginação há algo de terrível naquelas aparências, cujo horror, para um outro tipo de mente, consiste quase que exclusivamente nesse fenômeno, ainda mais quando se apresenta sob uma forma que se aproxime do silêncio ou da universalidade. O que quero dizer com essas duas afirmações talvez possa ser elucidado pelos seguintes exemplos.
     Primeiro: O marujo, quando se aproxima da costa de terras desconhecidas, se à noite escuta o rugir das ondas, fica vigilante, e sente um palpitar que lhe aguça as faculdades; mas, em circunstâncias muito similares, espere vê-lo ser chamado a sair da rede para contemplar seu navio velejando no mar noturno de uma brancura leitosa – como se, vindos dos promontórios das cercanias, bandos de ursos brancos de pelos alisados nadassem à sua volta, e então ele sente um medo mudo e supersticioso; a mortalha espectral das águas embranquecidas lhe é tão terrível quanto um verdadeiro fantasma; em vão o comando lhe assegura que ainda estão longe das águas rasas; coração e leme ambos baixam; e ele não descansa até que esteja outra vez sobre águas azuis. Mas que marujo diria: “Senhor, não foi tanto o medo de bater nos rochedos submersos que me deixou agitado, mas o medo daquela brancura hedionda”?
      Segundo: Para o Índio nativo do Peru, a contínua visão dos Andes e seus baixeiros de neve não transmite pavor, exceto, talvez, pelo simples imaginar da eterna desolação congelada que reina em altitudes tão vastas, e a ideia natural do terror que seria perder-se em solidões tão inóspitas. O mesmo sucede com o homem das florestas do Oeste, que com uma relativa indiferença contempla uma pradaria sem limites coberta pela neve, nem sombra de árvore ou galho que quebre o transe imóvel da brancura. Já não é assim com o marinheiro diante do cenário dos mares Antárticos; no qual, às vezes, por um ardil infernal de prestidigitação das potências do ar e do gelo, tremendo e a ponto de naufragar, em lugar de avistar um arco-íris que pudesse lhe trazer conforto e esperança em sua desgraça, vê o que parece um cemitério imenso que range à sua frente com seus monumentos de gelo inclinados e cruzes estilhaçadas.
     Mas, dizes tu, julgo que este capítulo alvaiadado sobre a brancura é apenas uma bandeira branca desfraldada por um espírito covarde; tu te rendeste à melancolia, Ishmael.
     Diga-me, então, por que esse potro jovem e forte, criado num vale pacífico de Vermont, longe dos animais predadores – por que é que se atrás dele se agitar, no dia mais ensolarado, uma veste feita de búfalo, de tal modo que ele nem a possa ver, mas apenas sentir seu cheiro animal almiscarado –, por que ele irá se sobressaltar, resfolegar e começar a patear a terra com os olhos esbugalhados num frenesi assustado? Não há nele recordação de ataques de criaturas selvagens de sua terra verde setentrional, de modo que o estranho almíscar que sente não pode suscitar lembranças de coisa alguma associada à experiência de perigos anteriores. O que sabe esse potro da Nova Inglaterra sobre os bisões negros do distante Oregon?
      Não! Mas aqui se vê, mesmo num animal que não fala, o instinto do conhecimento do demonismo no mundo. Ainda que a milhares de milhas do Oregon, quando sente aquele almíscar selvagem, as manadas de bisões que chifram e atacam se tornam tão presentes como o são para o abandonado potro selvagem das pradarias, que naquele instante pode estar sendo pisoteado na poeira.
     Assim, então, as ondulações sufocadas do mar leitoso; o ruído triste do gelo dos festões das montanhas; os deslocamentos melancólicos da neve amontoada na pradaria; para Ishmael, tudo isso é equivalente ao agitar a veste de búfalo para o potro assustadiço!
     Embora ninguém saiba onde ficam essas coisas inomináveis cujos sinais místicos oferecem essas indicações, tanto para mim quanto para o potro, algures tais coisas devem existir. Embora em muitos de seus aspectos o mundo visível pareça ser feito de amor, as esferas invisíveis foram feitas de medo.
     Mas ainda não resolvemos a magia dessa brancura, e nem sabemos por que tem um apelo tão poderoso na alma; e ainda mais estranha e muito mais prodigiosa – por que, como vimos, é ela simultaneamente o símbolo mais significativo das coisas espirituais, o próprio véu da Divindade Cristã; e, contudo, o agente intensificador nas coisas que mais aterrorizam a humanidade.
     Será que, por sua indefinição, ela obscurece os vácuos e as imensidões impiedosas do universo, e dessa forma nos apunhala pelas costas com a idéia da aniquilação quando contemplamos as profundezas brancas da Via Láctea? Ou será que o branco, em sua essência, não é uma cor, mas a ausência visível de cor, e, ao mesmo tempo, a fusão de todas as cores; será que são essas as razões pelas quais existe um espaço em branco, repleto de significado, na ampla paisagem das neves – um ateísmo sem cor e de todas as cores do qual nos esquivamos? E quando consideramos a outra teoria dos filósofos naturais, segundo a qual todas as outras cores terrenas – todos os adornos imponentes ou atraentes –, os tons suaves do céu e da floresta no crepúsculo; sim, e o veludo dourado das borboletas, e a borboleta dos lábios das moças; tudo isso não passa de ilusões sutis, que não são em verdade inerentes às substâncias, mas apenas formas exteriores; de tal modo que toda a Natureza deificada se pinta como a prostituta, cuja sedução cobre apenas a câmara mortuária dentro de si; e se formos mais além, e imaginarmos que o místico cosmético que produz cada um de seus matizes, o grande princípio da luz, permanecesse sempre branco ou sem cor em si, e se agindo sem mediação sobre a matéria tocasse todos os objetos, mesmo as tulipas e as rosas, com sua própria tinta ausente – pensando nisso tudo, o universo paralisado quedaria leproso diante de nós; e como os viajantes obstinados na Lapônia, que se recusam a usar lentes coloridas ou corantes nos olhos, assim também o condenado infiel se vê cego diante da monumental mortalha branca que envolve toda a perspectiva à sua volta. E de todas essas coisas a baleia albina é o símbolo. Surpreende-te ainda a ferocidade da caçada?


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Leia também:

Moby Dick: Etimologia, Excertos, Citações
Moby Dick: 1  - Miragens
Moby Dick: 42 -  A Brancura da Baleia
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?
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{a} Com referência ao Urso polar, é possível ser argumentado por aquele que de bom grado queira ir ainda mais fundo nesse assunto que não é a brancura, tomada em separado, que agrava a intolerável hediondez do animal; porque, analisada, a hediondez agravada, pode-se dizer, origina-se da circunstância de que a ferocidade irresponsável da criatura está investida no tosão da inocência celestial e do amor; e assim, se juntarmos duas emoções tão diferentes em nossas mentes, o Urso polar nos assusta com esse contraste tão pouco natural. Mas, mesmo que isso tudo seja verdade; se não pela brancura, não se sentiria um terror tão intenso.
     Quanto ao tubarão branco, o aspecto fantasmal, branco e deslizante da calma dessa criatura, quando considerada em seus humores normais, corresponde estranhamente à mesma qualidade do quadrúpede polar. Essa peculiaridade é mais bem percebida pelos franceses, pelo nome que consagram a tal peixe. A missa romana dos mortos começa com Requiem eternam (repouso eterno), de onde vem Requiem, a denominar a própria missa e todas as demais músicas fúnebres. Portanto, aludindo à imobilidade de morte, silenciosa e branca desse tubarão, e à mortalidade branda de seus hábitos, os franceses chamam no de Requin. [N. A.]
{b} Lembro-me do primeiro albatroz que vi. Foi durante uma longa tormenta, nas águas turbulentas dos mares antárticos. Do meu turno da manhã, embaixo, subi para o convés nublado; e lá, projetado no convés principal, vi uma coisa magnífica, em suas penugens de brancura imaculada, e com um bico adunco e sublime como um nariz romano. De vez em quando arquejava suas grandes asas de arcanjo, como se cobrisse uma arca sacrossanta. Fantásticas palpitações e vibrações agitavam-no. Ainda que o corpo não estivesse ferido, soltava gritos, como o espectro de um rei em angústia sobrenatural. Em seus olhos estranhos e inexpressivos pensei ver segredos que chegavam até Deus. Como Abraão diante dos anjos, inclinei-me; aquela coisa branca era tão branca, suas asas tão vastas, e naquelas águas de perpétuo exílio, eu perdera as memórias que trouxera a reboque de tradições e cidades. Durante algum tempo fiquei admirando aquele prodígio emplumado. Não sei dizer, só sugerir, as coisas que, então, passavam pela minha cabeça. Mas por fim despertei e me virando perguntei a um marinheiro que pássaro era aquele. Um goney, ele respondeu. Goney! Nunca tinha ouvido esse nome antes; seria possível que aquela coisa gloriosa fosse totalmente desconhecida pelos homens da terra? Não! Mas algum tempo depois descobri que goney era o nome que os marinheiros davam ao albatroz. De modo que não havia possibilidade de a Balada insana de Coleridge ter relação com as minhas impressões místicas, quando vi o pássaro em nosso convés. Pois naquela ocasião ainda não tinha lido a Balada, nem sabia que pássaro era o albatroz. Contudo, ao dizer isso, não faço senão conferir indiretamente um pouco mais de brilho aos já em si brilhantes méritos do poema e do poeta.
     Afirmo, então, que em sua brancura maravilhosa se esconde principalmente o segredo do feitiço; uma verdade ainda mais evidente por esse solecismo que é o de haver aves chamadas albatrozes cinza; e essas, vi-as muitas vezes, mas nunca com a mesma emoção que senti quando vi a ave Antártica.
      Mas como essa criatura mística tinha sido apanhada? Não espalhe, que eu conto: com anzol e linha traiçoeiros, enquanto a ave flutuava sobre o mar. Por fim, o Capitão transformou-a num mensageiro; amarrando em seu pescoço uma etiqueta de couro, na qual estava escrita a data e a posição do navio; e depois a soltando. Mas não duvido que a etiqueta de couro, destinada aos homens, tenha sido tirada no Céu, quando a ave branca voou para se juntar ao alado, evocado e adorado querubim! [N. A.]