segunda-feira, 21 de abril de 2025

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - n)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva

Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...

     Certa manhã, julguei ver a forma oblonga de uma colina no nevoeiro, sentir o calor de uma taça de chocolate, enquanto me apertava no coração a lembrança da tarde em que Albertine viera me visitar e a beijara pela primeira vez: é que eu acabava de ouvir o soluço do calorífero à águas tinham acendido. E joguei fora, com raiva, um convite da Sra. Verdurin que Françoise trouxera. A impressão que eu tivera, indo jantar pela primeira vez na Raspeliere; e que a morte não fere todas as pessoas na mesma idade, como se impunha com mais força agora que Albertine estava morta, tão jovem, e que Brichot continuava a jantar na casa da Sra. Verdurin, que recebia sempre e receberia talvez durante muitos anos ainda! E logo esse nome de Brichot recordou-me o fim daquele mesmo sarau, em que ele me levara em casa; em que eu vira, de baixo, a luz lâmpada de Albertine. Já pensara nisso outras vezes, porém nunca abordara a lembrança sob o mesmo ângulo. Pois, se nossas lembranças são bem nossas, à maneira dessas propriedades que possuem pequenas portas ocultas que mesmos com frequência desconhecemos, e que alguém da vizinhança nos abre de modo que, ao menos por um lado, em que isso ainda não nos ocorrera, sucede que nos achamos de volta em casa. Então, pensando no vazio que agora haveria de encontrar voltando para casa, de onde a luz se extinguira para sempre; deixando Brichot, julgara sentir tédio; supunha fazer amor por aí afora. Compreendi o que julgara totalmente segura a posse daquela; até mesmo eu que havia negligenciado o calor obrigatoriamente inferior ao supor o que eu avaliava. Compreendi o quanto continha para mim de plenitude de vida; e do que me inebriara por um momento, na noite em que Albertine dormira sob o manto. Compreendi que essa vida que eu levara em Paris, nunca trouxera a realização daquela paz profunda. A conversa que havia tido no último sarau em casa da Sra. Verdurin. Tinha acontecido, aquela conversação que para minha inteligência e, em certas parcelas, fizera à sua inteligência e sua amabilidade – um enternecimento, não é que fossem demais o que acontecera; pois a Sra. de Cambremer não demonstrou sorriso que poderia passar os dias com Elstir, que é sua prima?! - A inteligência de Albertine ficava em mim o que eu denominava a sua experiência, fruto de uma certa sensação que só existe com o tempo; pensava na inteligência de Albertine, saboreava uma lembrança cuja realidade consistia na superioridade objetiva de uma mulher; superior às pessoas de maior inteligência. Porém que as criaturas a quem amamos sejam pra nós superior e se torne para nós ao menos objetivamente, o sabor dos nossos desejos e dos nossos sentidos; apenas um lugar imenso e vago onde conhece o nosso próprio corpo; aonde afluem prazeres, uma silhueta assim tão nítida como de um transeunte. E meu erro talvez fora não ser sempre eu mesmo. Assim como, do ponto de vista só havia considerado as posições diversas do meu rival. Ao longo dos anos ficara surpreso de ver as modificações causadas somente pela convivência; bom seria ter procurado compreender o ser e, talvez, explicando-me então por que ela se obstinava em me ocultar o segredo, teria evitado prolongar, entre nós, com aquele encarniçamento estranho conflito que provocara a morte de Albertine. E eu tinha então, como uma piedade por ela, a vergonha de lhe sobreviver. E, de fato, parecia-me, nas horas em que menos sofria, que de alguma forma me beneficiava pela sua morte, porque uma mulher é de maior utilidade em nossa vida se constitui, em vez de um elemento de felicidade, um elemento de desgosto, e não existe uma só cuja posse mostra-se preciosa como das verdades que ela nos descobre ao nos fazer sofrer nos momentos, em que aproximando a morte de minha avó à de Albertine, tinha a impressão de que minha vida estava manchada por um duplo assassinato que só a covardia da sociedade poderia me perdoar. Sonhara eu ser compreendido Albertine, não ser mal conhecido por ela, acreditando que era uma grandeza ser compreendido, não ser mal conhecido, quando tantos outros poderiam ser melhor. Desejamos ser compreendidos porque desejamos ser amados, e só podemos ser amados porque amamos. A compreensão dos outros é indiferente ao amor importuno. Minha alegria de ter possuído um pouco da inteligência. O coração de Albertine não provinha de seu valor intrínseco, mas de que essa era um grau a mais na posse total de Albertine, posse que fora o meu objetivo; minha quimera desde o primeiro dia em que a tinha visto. Quando falamos da "amabilidade" de uma mulher, talvez não façamos mais do que projetar para fora de nós o prazer que sentimos ao vê-la, como as crianças quando dizem: "minha querida caminha, meu querido travesseirinho, meus queridos espinheirinhos." - aliás, explica por que os homens nunca dizem a propósito de uma mulher que os engana: "Ela é tão amável", dizendo-o com frequência de uma mulher por quem são enganados. A Sra. de Cambremer achava, com razão, que o encanto de Elstir era maior. Mas não podemos julgar do mesmo modo o de uma pessoa que é, como todas as outras, exterior a nós, pintada no horizonte de nosso pensamento; e o de uma outra que, devido a um erro de localização consecutiva à certos defeitos, porém tenaz, alojou-se em nosso próprio corpo, a ponto de que nos perguntamos retrospectivamente se ela não olhou para uma mulher, em certo dia no passeio de um trenzinho à beira-mar, faz-nos sentir os mesmos sofrimentos que um cirurgião que procurasse uma bala em nosso peito. Um simples croissant, que comemos, faz-nos sentir mais prazer que todos os verdelhões, coelhos e perdizes que foram servidos à Luís XV, e a extremidade da grama fremindo a centímetros do nosso olho, enquanto estamos deitados na montanha, ocultar a vertiginosa agulha de um cimo, caso este fique à várias léguas de distância. Além disso, o nosso erro não está em valorizar a inteligência e a amabilidade de uma mulher a quem amamos, por ínfimas que sejam. Nosso erro é o de sermos indiferentes à amabilidade e à inteligência alheia. A mentira só pode nos causar indignação, e a bondade o reconhecimento, que ambos deveríamos precisar excitar em nós, quando vêm da mulher amada, e o desejo físico tem esse poder maravilhoso de atribuir valor à inteligência e bases sólidas à vida moral.
     Jamais voltaria eu a encontrar essa coisa divina: uma criatura com quem eu pudesse conversar sobre tudo, a quem pudesse confiar-me. Confiar-me? E outras pessoas não me haviam mostrado mais confiança que Albertine? Não tivera eu com outras pessoas conversas mais extensas? É que a confiança e a conversa, são coisas medíocres, que importa sejam mais ou menos imperfeitas, se a elas se mistura o amor, o único sentimento divino? 
     Eu revia Albertine sentando-se à pianola, rósea sob os cabelos pretos; sentia em meus lábios, que ela tentava abrir, sua língua, sua língua materna, incomestível, nutritiva e santa, cuja chama e orvalho secretos faziam com que, mesmo que Albertine a fizesse deslizar apenas pela superfície de meu pescoço, de meu ventre, essas carícias superficiais, mas de qualquer modo feitas pelo interior de sua carne, exteriorizado como um tecido que mostrasse o avesso, assumissem, mesmo nos contatos mais externos, como que a misteriosa doçura de uma penetração. Todos esses momentos tão doces, que coisa alguma me devolveria nunca mais, não posso nem sequer dizer que fosse desespero o que sentia ao perdê-los. Para que alguém esteja desesperado, é preciso ter apego ainda a esta vida, que só poderá ser desgraçada. Sentia-me desesperado em Balbec quando vira erguer-se o dia e compreendera que nem mais um só poderia ser feliz para mim. Permanecera tão egoísta desde então, porém o "eu" a que me ligava agora; o "eu" que constituía essas vivas reservas que põem em jogo o instinto de conservação, esse "eu" já não estava entre os vivos; quando pensava em minhas forças, em minha potência vital, no que tinha de melhor, pensava em certo tesouro que possuíra (e que fora o único a possuir, visto que os outros não podiam conhecer com exatidão o sentimento, oculto em mim, que ele me havia inspirado) e que já ninguém poderia me subtrair, pois que não o possuía mais. E, para falar a verdade, eu jamais o possuíra senão porque quisera convencer-me de sua posse. Não apenas cometera a imprudência, ao olhar Albertine com os lábios e ao alojá-la em meu coração, de fazê-la viver dentro de mim, nem essa outra imprudência de misturar um amor familiar com o prazer dos sentidos. Quisera também convencer-me de que nossas relações eram o amor, porque ela me devolvia tão docilmente os beijos que eu lhe dava. E, por ter adquirido o hábito de acreditá-lo, não perdera somente uma mulher que eu amava, mas a mulher que me amava, minha irmã, minha menina, minha terna amante. 
     Em suma, tivera uma felicidade e uma desgraça que Swann não havia conhecido, pois justamente, o tempo todo em que ele amara Odette e fora tão ciumento dela, mal conseguira vê-la, e só dificilmente, em certos dias em que ela se desmarcava à última hora, podia ir à sua casa. Mas depois tivera-a para si, como sua esposa, até morrer. Eu, pelo contrário, enquanto sentia tanto ciúme por Albertine, mais feliz que ainda tivera-a em casa. Na verdade, havia realizado aquilo com que Swann sonhara tantas vezes e que só realizara quando já se lhe tornara indiferente. Mas, não guardara Albertine como ele havia guardado Odette. Ela fugira e esta ocasião não se repete; pois nada, jamais se repete exatamente, e as mais análogas existências, que ao parentesco dos caracteres é à similitude das circunstâncias, podemos ter para apresenta-las como simétricas uma à outra, permanecem opostas nesses pontos. Se perdesse a vida, eu não teria perdido grande coisa; não perderia mais que uma forma oca, o quadro vazio de uma obra-prima. Indiferente ao que, dali em diante, pudesse introduzir aí, porém feliz e orgulhoso em pensar no quadro que contivera, apoiava-me na lembrança daquelas horas tão doces; o tentáculo moral me transmitia um bem-estar que até a aproximação da morte a teria desfeito.
     Como ela corria depressa, em Balbec, para me ver, quando eu mandava buscá-la, demorando-se apenas para perfumar os cabelos a fim de agradar. Estas imagens de Balbec e de Paris, que desse modo eu gostava de rever, eram páginas ainda tão recentes e tão rapidamente viradas de sua curta da vida. Tudo que para mim era apenas lembrança, fora para ela ação; ação precipitada, como de uma tragédia, para uma morte rápida. As pessoas têm um desenvolvimento em nós, mas outro fora de nós (eu bem o sentira naquelas noites em que notava em Albertine um enriquecimento de qualidades, que se devia somente à minha companhia), e os dois não deixam de produzir reações um sobre o outro. Por mais, que procurasse conhecer Albertine, para depois possuí-la inteiramente, não deixava de obedecer à necessidade de reduzir, pela experiência, aos elementos mesquinhos, parecidos com os do nosso eu, o mistério de toda criatura e não pudera sê-lo sem, por minha vez, influir na vida de Albertine.  

continua na página 39...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - n)
Volume 7

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa / VI - Princípio de um enigma

Victor Hugo - Os Miseráveis

Segunda Parte - Cosette

Livro Quinto — Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa

VI - Princípio de um enigma
     
      Achava-se Jean Valjean numa espécie de jardim bastante vasto, mas de aspecto singular, um desses jardins melancólicos que parecem servir só para serem vistos de inverno ou de noite. Era de forma oblonga, com uma rua de grandes choupos no fundo, a cada canto uma mata bastante alta e no meio um espaço sem sombra, em que se distinguia uma grande árvore isolada, em seguida algumas árvores frutíferas torcidas e eriçadas como grossos pés de tojo, canteiros semeados de legumes, um meloal, cujas campainhas brilhavam ao clarão da Lua, e uma pia velha. Aqui e ali viam-se alguns bancos de pedra, que pareciam negros com o musgo que os cobria. As ruas eram orladas por arbustozinhos escuros e muito direitos. Metade do jardim estava coberto de ervas; a outra metade, de uma camada verde de musgo.
     Ao lado de si tinha Jean Valjean o casebre de cujo telhado se servira para descer, um monte de lenha, e por trás deles, mesmo encostada à parede, uma estátua de pedra, cujo rosto mutilado era apenas uma informe máscara aparecendo vagamente por entre a escuridão.
     O casebre era uma espécie de pardieiro em que se distinguiam alguns quartos desmantelados, um dos quais, todo em ruínas, parecia servir de alpendre.
     Para este jardim tinha a casa grande da rua do Muro Direito, que fazia esquina para a viela do Picpus, dois lados em esquadria. Estes lados de dentro ainda eram mais tétricos do que o de fora. Todas as janelas tinham grades, através das quais se não entrevia uma só luz. Nos andares superiores havia cestos como nas prisões. Um dos lados projetava sobre o outro a sua sombra, que dava sobre o jardim como um imenso lençol preto.
     Não se descobria outra casa. O fundo do jardim perdia-se por entre a escuridão e a cerração da neblina. Distinguiam-se, porém, confusamente, alguns muros, que se cruzavam uns pelos outros, como se para lá deles houvesse mais quintais, e os telhados baixos da rua de Polonceau.
     Não se podia imaginar coisa mais erma e solitária do que aquele jardim. Não se via vivalma, o que era muito simples em razão do adiantado da hora, mas é que realmente parecia que aquele sí o não servia para ninguém andar por ele, mesmo à luz do meio dia.
     O primeiro cuidado de Jean Valjean foi procurar os sapatos e calçá-los e em seguida meter-se com Cosette para o alpendre. Quem se evade nunca se julga bem escondido. A criança, que não tinha ainda varrido da lembrança a Thenardier, participava do seu instinto de se ocultar o mais que lhe era possível.
      Cosette tremia e chegava-se para ele. Para lá do muro ouvia-se o sussurro tumultuoso da patrulha a dar busca ao beco e à rua, as coronhadas de armas nas pedras, os apitos que Javert dava para chamar os espias que tinha postado nas imediações do beco e as suas imprecações de envolta com algumas palavras que se não percebiam.
     Ao cabo de um quarto de hora pareceu que todo aquele sussurro tempestuoso principiava a afastar-se. Jean Valjean, que não respirava, pusera também a mão na boca de Cosette.
     O ermo porém em que ele se achava estava tão estranhamente sossegado, que todo aquele assustador ruído, tão furioso e tão próximo, nem por sombras lhe podia incutir medo. Parecia que aquelas paredes eram construídas com as pedras surdas de que fala a Escritura.
     De súbito, no meio deste profundo sossego, elevou-se um novo rumor, um rumor celeste, divino, inefável, que tinha tanto de arrebatador como o outro de horrível. Era um hino saindo das trevas, um arroubo de oração e harmonia na silenciosa e medonha escuridão da noite; vozes de mulheres, mas vozes simultaneamente compostas do acento puro das virgens e do tom ingénuo das crianças, dessas vozes que não são da terra, dessas vozes parecidas com as que os recém-nascidos ouvem ainda e o moribundos ouvem já. Este canto vinha do sombrio edifício que dominava o jardim.
     No momento em que ao longe se perdiam os ecos da algazarra dos demónios, aproximava-se outro rumor, que dir-se-ia as melodias de um coro de anjos no silêncio da noite.
      Jean Valjean e Cosette caíram de joelhos.
     Eles não sabiam o que aquilo era, nem onde estavam, mas ambos conheciam, o homem e a criança, o penitente e o inocente, que se deviam prostrar de joelhos.
      O que aquelas vozes tinham de extraordinário era que apesar de se ouvirem, nem por isso o edifício parecia menos deserto. Formavam como um cântico sobrenatural numa casa desabitada.
     Enquanto as vozes cantavam, Jean Valjean não pensava em coisa alguma. A noite para ele desaparecera, não via senão o céu do mais belo azul. Parecia-lhe sentir as asas que todos temos dentro de nós mesmos.
     Por fim, o cântico extinguiu-se.
     Tinha talvez durado muito tempo. Jean Valjean não teria podido dizê-lo. As horas de êxtase nunca são mais do que um minuto.
     Tudo ficara novamente silencioso. Não havia o mínimo ruído nem na rua nem no jardim. Tudo se desvanecera, tanto o que o ameaçava, como o que o tranquilizava. Não se ouvia senão vento agitando no alto do muro algumas ervas secas, que produziam um murmúrio suavemente lúgubre.

continua na página 352...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - VI - Princípio de um enigma
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - s)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(s)

continuando...

      Enfim, ele acabava de dar uma última pincelada às suas flores; perdi um momento a olhá-las; não havia mérito em fazê-lo, pois sabia que as moças já não se encontravam na praia; porém, mesmo que acreditasse que elas ali permaneciam e que aqueles minutos de contemplação me impediriam de alcançá-las, ainda assim olharia o quadro, pois dizia comigo que Elstir se interessava mais por suas flores do que pelo meu encontro com as moças. O temperamento de minha avó, temperamento que era exatamente o oposto do meu egoísmo total, entretanto refletia se no meu. Numa circunstância em que alguém que me fosse indiferente, por quem sempre fingira afeição ou respeito, arriscasse apenas uma contrariedade, ao passo que eu me visse em perigo, não faria outra coisa senão sentir pena dele pelo seu desgosto, como se fosse algo considerável, e encarar meu perigo como coisa insignificante, porque me parecia que, para essa pessoa, as coisas deveriam se apresentar sob essas proporções. Para dizer as coisas tais como são, e até indo além disso, não só não lastimava o perigo que corria, mas ia-lhe ao encontro e, no que se referia aos outros, tentava ao contrário, ainda que houvesse mais probabilidades de que recaíssem sobre mim, evitar-lhes o perigo. Isto decorre de vários motivos que não me fazem honra alguma. Um deles é que, enquanto eu não fazia mais que raciocinar, julgava principalmente apegar-me à vida: toda vez que, no decurso de minha existência, me vi assediado por preocupações morais ou apenas por inquietações de origem nervosa, às vezes tão pueris que não teria coragem de narrá-las, se então ocorria uma circunstância imprevista, que para mim envolveria risco de morte, essa nova preocupação era tão leve, relativamente às outras, que eu a acolhia com um alívio que chegava à alegria. E assim sucedia que eu, o homem menos corajoso do mundo, vinha a conhecer essa coisa que, quando eu raciocinava, me parecia tão estranha e inconcebível à minha natureza: a embriaguez do perigo. Porém, mesmo quando surgisse o perigo, ainda que mortal, e eu me encontrasse num período da vida inteiramente calmo e feliz, não poderia, se estivesse com outra pessoa, deixar de pô-la a salvo e assumir o lugar do perigo. Quando um número bem vasto de experiências terminou por demonstrar que eu agia sempre assim, e com prazer, descobri, para minha vergonha, que, ao contrário do que sempre julgara e afirmara, era bastante sensível à opinião alheia. Esse tipo de amor-próprio inconfesso, entretanto, nada tem a ver com a vaidade e o orgulho. Pois aquilo que pode satisfazer o orgulho ou a vaidade não me dá prazer nenhum e sempre o repeli. Mas às pessoas a quem consegui esconder completamente os pequenos méritos, que talvez pudessem lhes dar uma ideia menos mesquinha a meu respeito, jamais pude negar-me o prazer de lhes mostrar que punha mais cuidado em afastar a morte de seu caminho do que do meu. Como o meu objetivo é então o amor-próprio e não a virtude, acho bem natural que em qualquer circunstância elas agissem de outra forma. Estou bem longe de censurá-las, o que talvez fizesse se fosse movido pela ideia de um dever que, nesse caso, me parecia obrigatório para elas como para mim. Pelo contrário, considero-as muito sensatas por preservarem suas vidas, mas não posso deixar de colocar a minha em segundo plano, o que é especialmente absurdo e culposo desde que julguei reconhecer que a vida de muitas pessoas, à cuja frente me coloco ao rebentar uma bomba, tem menos valor que a minha. Além disso, no dia daquela visita a Elstir, ainda estava longe o tempo em que eu tomaria consciência dessa diferença de valor e não se tratava de nenhum perigo, mas simplesmente de um sinal prévio do pernicioso amor-próprio: dar a impressão de não conceder, àquele prazer tão ardentemente desejado, mais importância que a seu trabalho de aquarelista ainda inacabado:

- Afinal ficou pronto o quadro.

     Logo que saímos, percebi que-como os dias eram mais longos naquela estação ainda não era tão tarde como supunha; íamos pelo molhe. Quantos ardis empreguei para reter Elstir no ponto em que achava que as moças ainda podiam passar! Mostrando-lhe os alcantis que se elevavam bem perto, não cessava de pedir que me falasse deles para fazê-lo esquecer a hora e obrigá-lo a ficar por ali. Parecia-me ter mais probabilidades de encontrar o grupo das moças se nos encaminhássemos até o fim da praia.

- Gostaria que víssemos bem de perto estes rochedos. -disse a Elstir, tendo reparado que uma das moças ia com frequência para aqueles lados. - E, enquanto isso, fale-me de Carquethuit. Ah, como me agradaria ir a Carquethuit! -acrescentei, sem pensar que o caráter tão novo, que se manifestava com tanta força no "Porto de Carquethuit" de Elstir, referia-se mais à visão do pintor que a um mérito especial dessa praia. - Desde que vi esse quadro, é o local que mais tenho vontade de conhecer, junto com a Ponta do Raz, que por sinal daria uma viagem bem longa daqui. 
- E depois, mesmo que estivesse mais perto, eu lhe aconselharia que fosse de preferência a Carquethuit-respondeu Elstir. -A Ponta do Raz é admirável, mas afinal sempre é uma grande falésia normanda ou bretã, que o senhor já conhece; ao passo que Carquethuit é bem diferente com seus rochedos sobre a praia baixa. Não conheço nada parecido na França; lembra-me antes de certos aspectos da Flórida. É um lugar curioso e também extremamente selvagem. Fica entre Clitourps e Nehomme, e sabe muito bem como essas paragens são desoladas; o perfil das praias é deslumbrante. Aqui, a sua linha litorânea não quer dizer nada; porém lá, nem sei lhe dizer como é graciosa e suave. 

     A noite caía; era preciso voltar. Eu acompanhava Elstir à sua casa quando, de repente, tal como Mefistófeles aparecendo diante de Fausto, surgiram na extremidade da avenida-como uma simples objetivação irreal e diabólica do temperamento oposto a mim, da vitalidade quase bárbara e cruel de que era tão destituída a minha fraqueza, meu excesso de sensibilidade dolorosa e de intelectualismo alguns flocos dessa substância impossível de confundir com qualquer outra, algumas esporadas do grupo zoofítico das moças, as quais pareciam não me ver, mas na verdade deveriam estar fazendo a meu respeito um juízo irônico. Sentindo ser inevitável um encontro com elas, e que Elstir me chamaria, voltei-me de costas como um banhista que vai receber a onda; parei e, deixando que meu ilustre companheiro seguisse o caminho, fiquei para trás, fingindo um súbito interesse pela vitrina do negociante de antiguidades diante da qual passávamos naquele momento; estava satisfeito por dar a impressão de pensar em coisa diversa dessas moças e já sabia, obscuramente, que, quando Elstir me chamasse para ser apresentado, teria o tipo de olhar interrogativo que revela não a surpresa, mas o desejo de parecer surpreendido isto porque somos maus atores ou porque o próximo é um bom fisionomista-e talvez até chegasse a levar o dedo ao peito como se perguntasse:

"É a mim que estão chamando?", para logo acorrer, a cabeça docilmente inclinada, obediente, o rosto dissimulando friamente o tédio de ser arrancado à contemplação de velhas faianças para que me apresentassem a pessoas que não desejava conhecer. Entretanto, considerava a vitrina à espera do momento em que meu nome, gritado por Elstir, viesse me atingir como uma bala esperada e inofensiva. A certeza da apresentação a essas moças tivera por resultado não só fazer-me aparentar indiferença, mas senti-la de verdade. Inevitável daí em diante, o prazer de conhecê-las foi comprimido, reduzido, pareceu-me bem menor que o de conversar com Saint-Loup, de jantar com minha avó, de fazer excursões pelas redondezas, as quais decerto lamentaria ter de abandonar para travar relações com pessoas que pouco se interessariam por monumentos históricos. Além do mais, o que diminuía o prazer que eu teria não era somente a iminência, mas a incoerência de sua realização. Leis tão exatas como a da hidrostática mantêm a superposição das imagens que formamos numa ordem fixa, subvertida pela proximidade de um acontecimento. Elstir ia chamar-me. Mas não era daquele modo como, várias vezes, na praia ou no meu quarto, imaginara que conheceria as moças. O que ia acontecer era outro evento, para o qual não me achava preparado. Não estava reconhecendo nem o meu desejo nem o seu objeto; quase lamentava ter saído com Elstir. Mas, sobretudo, a contração do prazer que tivera anteriormente se devia à certeza de que nada mais podia subtraí-lo de mim. E esse prazer recuperou toda a sua dimensão, como em virtude de uma força elástica, quando deixou de sofrer a pressão dessa certeza, no momento em que eu, tendo decidido voltar a cabeça, vi que Elstir parado alguns passos adiante, junto das moças, despedia-se delas. A fisionomia da que estava mais perto de mim, cheia e iluminada pelos seus olhares, parecia uma torta em que houvessem reservado um lugar para um pedacinho do céu. Seus olhos, mesmo fixos, davam a impressão de mobilidade, como ocorre nesses dias de muito vento, em que o ar, embora invisível, deixa transparecer a velocidade com que passa sobre o fundo azul. Por um instante os seus olhares cruzaram com os meus, como esses céus viajantes dos dias de tempestade, que se aproximam de uma nuvem mais vagarosa, tangenciam por ela, tocam-na, ultrapassam-na. Mas não se conhecem e se separam um do outro. Assim, nossos olhares se encararam por um momento, cada um ignorando o que continha de promessas e de ameaças para o futuro continente celeste que estava à sua frente. Apenas no momento em que seu olhar pousou bem no meu foi que se turvou ligeiramente, mas sem diminuir a velocidade. Do mesmo modo, numa noite clara, a lua, arrastada pelo vento, passa por detrás de uma nuvem e encobre por um momento o seu brilho, logo reaparecendo. Mas Elstir já deixara as moças sem ter me chamado. Elas tomaram por uma rua transversal e o pintor veio até mim. Tudo estava perdido.

     Já disse que Albertine não me aparecera nesse dia com o mesmo ar com que surgira nos dias precedentes e que, a cada vez, ela devia me parecer diferente. Mas, naquele momento, senti que certas modificações no aspecto, na importância, no tamanho de uma criatura podem se referir à variabilidade de certos estados interpostos entre ela e nós. E um dos que maior papel desempenham nesse caso é a crença em determinada coisa. (Naquela tarde, a crença, depois o desvanecimento da crença, de que ia conhecer Albertine, converteram-na, com segundos de intervalo, em algo quase insignificante, depois infinitamente precioso, a meus olhos alguns anos mais tarde, a crença, depois o desaparecimento da crença, de que Albertine era fiel causaram mudanças análogas.)
     De certo, em Combray, já vira diminuir ou aumentar, conforme as horas; conforme eu entrasse numa ou noutra das duas grandes espécies que repartiam entre si a minha sensibilidade -o desgosto de não estar junto de minha mãe, tão imperceptível de tarde como a luz da lua enquanto brilha o sol e que, quando caía a noite, reinava sozinho em minha alma ansiosa, no lugar onde estavam as lembranças apagadas e recentes. Mas, naquele dia, vendo que Elstir deixava as moças sem ter me chamado, compreendi que as variações de importância que um prazer ou um desgosto assumem a nossos olhos podem referir-se não apenas a essa alternância de dois estados de espírito, mas à mutação de crenças invisíveis, que, por exemplo, nos fazem parecer indiferente a morte, porque a cercaram de uma luz irreal e, assim, nos permitem atribuir grande importância ao fato de irmos a um sarau musical, o qual perderia o seu encanto se, de súbito, pela notícia de que nos irão guilhotinar, a crença que envolve este sarau se dissipasse; é verdade que algo em mim sabia acerca desse papel das crenças: era a vontade; mas esta o sabe em vão se a inteligência e a sensibilidade continuam a ignorá-lo; estas agem de boa-fé quando creem que temos vontade de abandonar uma amante, a qual apenas a vontade sabe que desejamos muito. É que elas são obscurecidas pela crença de que voltaremos a encontrá-la em breve. Mas, quando essa crença se dissipa, quando elas ficam sabendo de repente que tal amante se foi para sempre, então a inteligência e a sensibilidade, tendo perdido o equilíbrio, procedem como loucas, e o ínfimo prazer aumenta ao infinito.
     Variação de uma crença, também vazio do amor, o qual, preexistente e móvel, se detém na imagem de uma mulher simplesmente porque essa mulher será quase impossível de alcançar. Desde então, pensa-se menos na mulher, que dificilmente se evoca, e mais nos meios de conhecê-la. Todo um processo de angústias se desenvolve e basta para fixar nosso amor por ela, objeto apenas conhecido do nosso amor. O amor se torna imenso, e nem imaginamos como é reduzido o lugar que a mulher real nele ocupa.
     E se, de súbito, como no momento em que eu vira Elstir com as moças, acaba a nossa preocupação, a nossa angústia, como se essa angústia fosse todo o nosso amor, parece que o amor se dissipou bruscamente, no momento mesmo em que sua presa está ao nosso alcance, presa em cujo valor não pensamos muito. Que conhecia eu de Albertine?
     Um ou dois perfis diante do mar, certamente menos belos que o das mulheres de Veronese, que eu deveria preferir caso obedecesse a razões puramente estéticas. Ora, que outras razões poderia ter visto que, arrefecida a angústia, só me encontrava com esses mudos perfis, e nada mais possuía? Desde que vira Albertine, fizera todos os dias a seu respeito milhares de reflexões; mantinha, com o que eu denominava Albertine, um diálogo interior em que a fazia perguntar e responder, pensar, agir, e, na série indefinida de Albertines imaginadas que se sucediam em mim hora após hora, a Albertine real, avistada numa praia, só figurava à frente, como criadora de um papel, a estrela, só aparecia nas primeiras em uma longa série de representações. Essa Albertine era quase só uma silhueta; tudo o que se superpunha a ela era de minha invenção, já que, no amor, as nossas contribuições superam mesmo que unicamente do ponto de vista da quantidade - as que provêm da criatura amada. E isto é verdadeiro quanto aos amores mais eficazes. Há os que podem não apenas se formar, porém subsistirem redor de muito pouca coisa - e até entre os que receberam sua aprovação carnal.
     Um antigo professor de desenho de minha avó teve uma filha de uma amante obscura. A mãe morreu pouco depois do nascimento da criança, e o professor teve tal desgosto que não lhe sobreviveu por muito tempo. Nos últimos meses de sua vida, minha avó e algumas senhoras de Combray, que jamais haviam querido fazer sequer uma alusão, diante do professor, àquela mulher, com quem aliás ele não vivera oficialmente e com a qual não tivera muitas relações, pensaram em assegurar o futuro da menina, contribuindo cada uma para lhe proporcionar uma renda vitalícia. Foi minha avó quem o propôs; algumas amigas se fizeram de rogadas; aquela menina valeria a pena o seu interesse, seria mesmo filha de quem se acreditava seu pai? Com mulheres do tipo daquela mãe a gente nunca sabe. Enfim se decidiram. A menina veio à casa para agradecer. Era feia e parecia-se tanto com o velho professor de desenho que dissipou todas as dúvidas; como fosse o cabelo único traço que tivesse de bonito, uma senhora disse ao pai, que a acompanhara:

- Como são lindos os seus cabelos!

     E, pensando que agora a mulher culpada estava morta e o professor a caminho do túmulo, e que não haveria problemas em fazer uma alusão àquele passado que todos sempre tinham fingido ignorar, minha avó acrescentou:

- Deve ser de família. A mãe dela tinha cabelos assim tão lindos?
- Não sei - respondeu ingenuamente o pai. - Nunca a vi sem chapéu. 

     Precisava reunir-me a Elstir. Olhei-me numa vidraça. Além do desastre de não ter sido apresentado, reparei que minha gravata estava torta e que meu chapéu deixava aparecer os cabelos compridos, o que não me caía bem; mas, de qualquer forma, sempre era uma sorte que as moças, mesmo assim, me tivessem visto na companhia de Elstir e, portanto, não pudessem me esquecer; também foi sorte que naquela tarde, e a conselho de minha avó, eu estivesse com o colete bonito, pois pouco faltara para que o substituíssem por um outro, horroroso, e com a minha melhor bengala; porque, se um evento que desejamos jamais ocorre da maneira que pensamos, à falta das vantagens com que julgávamos contar, outras, que não esperávamos, se apresentam e, assim, tudo se compensa; e de tal modo temíamos o pior que, por fim, nos inclinamos a achar que, em conjunto, e tudo pesado, o acaso nos favoreceu.

- Ficaria tão contente em conhecê-las - disse a Elstir quando me aproximei. 
- Então, por que ficou a léguas de distância?

     Foram estas as palavras que pronunciou, não que exprimissem o seu pensamento, visto que, se o seu desejo tivesse sido o de satisfazer o meu, nada mais fácil que chamar-me, mas talvez porque ouvisse frases desse tipo, familiar às pessoas vulgares apanhadas em falta, e porque mesmo os grandes homens são, em certos assuntos, semelhantes às pessoas vulgares, procuram suas desculpas diárias no mesmo repertório que elas, como compram o pão cotidiano no mesmo padeiro; ou então porque tais palavras, que de certa forma devem ser lidas às avessas já que sua letra significa o contrário da verdade, sejam o efeito necessário, o gráfico negativo de um reflexo.

- Elas estavam com pressa.

     Eu, sobretudo, achava que as moças o haviam impedido de chamar alguém que lhes era pouco simpático; não sendo assim, ele teria me chamado, depois de todas as perguntas que lhe fizera sobre elas e do interesse que bem tinha visto que me despertavam.

- Eu lhe falava de Carquethuit - disse-me ele antes que o deixasse à porta de casa. - Fiz um pequeno esboço onde se vê bem melhor o delineamento da praia. O quadro não é mau, mas é outra coisa. Se me permite, dar-lhe-ei esse esboço em nome da nossa amizade-acrescentou, pois as pessoas que nos negam as coisas que desejamos costumam oferecer coisa diversa.
- Gostaria muito de ter uma fotografia desse retrato de Miss Sacripant, se é que possui alguma. Mas o que significa esse nome? - É o de uma personagem de uma opereta idiota, representada pelo modelo do retrato. 
- Não a conheço; o senhor sabe muito bem disto, mas parece que não acredita. - Elstir calou-se. 
- No entanto, deve ser a Sra. Swann antes do seu casamento-disse eu por um desses súbitos e casuais encontros com a verdade, afinal muito raros, mas que bastam, quando ocorrem, para fornecer uma certa base à teoria dos pressentimentos desde que se tenha o cuidado de esquecer todos os erros que a invalidariam. Elstir não respondeu. Era com efeito um retrato de Odette de Crécy. Ela não o quisera conservar por muitos motivos, alguns bem evidentes. Havia outros. O retrato era anterior ao momento em que Odette, disciplinando seus traços fisionômicos, formara com seu próprio rosto e corpo essa criação que, através dos anos, deviam respeitar em suas linhas gerais os cabeleireiros e as modistas, e também a própria Odette, em seu modo de andar, de falar, de sorrir, de colocar as mãos, de olhar e de pensar. Era necessária a depravação de um amante entediado para que Swann preferisse, às numerosas fotografias da Odette que era a sua deslumbrante mulher, a pequena fotografia que tinha em seu quarto e onde, sob um chapéu de palha ornado de amores-perfeitos, se via uma mulher magra e bem feia, de cabelos em tufos e feições pisadas.

      Aliás, mesmo que o retrato fosse não anterior, como a fotografia predileta de Swann, à sistematização das feições de Odette em um novo tipo, majestoso e encantador, e sim posterior, bastaria a visão de Elstir para desordenar esse tipo. O gênio artístico procede à maneira dessas temperaturas extremamente elevadas, que têm o poder de dissociar as combinações de átomos e de reagrupá-los segundo uma ordem absolutamente oposta, correspondendo a outro tipo. Toda essa harmonia artificial que a mulher impôs às suas feições e de cuja continuidade ela se assegura todos os dias diante do espelho, mudando a inclinação do chapéu, o alisado do cabelo, a jovialidade do olhar; essa harmonia, a visão do grande pintor a destrói em um segundo e, no seu lugar, procede a um reagrupamento dos traços da mulher de modo a dar satisfação a um certo ideal feminino e pictórico que traz: dentro de si. Da mesma forma, ocorre muitas vezes que, a partir de uma certa idade o olho de um grande pesquisador encontra por toda a parte os elementos necessários para estabelecer as únicas relações que o interessam. Como esses operários e jogadores, que não são pretensiosos e se contentam com o que lhes cai às mãos, poderiam dizer de qualquer coisa: isto serve. Assim, uma prima da princesa de Luxemburgo, beldade das mais altivas, tendo se deixado apaixonar outrora por uma arte que era nova então, pedira ao maior dos pintores naturalistas que fizesse o seu retrato. E logo o olho do pintor achou o que procurava em toda parte. E sobre a tela, no lugar da grande dama, havia uma moça de recados e, por trás dela, um amplo cenário inclinado e cor-de-violeta que lembrava a Praça Pigalle. Mas, mesmo sem chegar a tanto, um retrato de mulher por um grande artista não só não tenderá a satisfazer de modo algum quaisquer exigências da mulher que lhe serviu de modelo como, por exemplo, as que, quando ela começa a envelhecer, a fazem retratar-se em roupas quase de mocinhas que realçam o seu talhe ainda juvenil e a fazem parecer irmã ou até mesmo filha de sua filha (que, se necessário, aparecerá bem mal vestida a seu lado) mas, pelo contrário, porá em relevo as desvantagens que ela procura ocultar e que, como, por exemplo, um tom de febre ou até mesmo um matiz esverdeado, o tentam mais porque têm mais "caráter"; mas são suficientes para decepcionar o espectador comum e reduzir a nada o ideal, cuja armadura a mulher sustentava com tanto orgulho e que a colocava, em sua forma única e irredutível, de fora e acima do resto da humanidade. Agora, decaída, situada fora de seu próprio tipo onde reinava invulnerável, não passa de uma mulher como qualquer outra, cuja superioridade já não nos inspira confiança. De tal modo identificamos esse tipo, não só com a beleza de uma Odette, mas a sua personalidade, sua substância íntima, que, diante do retrato que a despojou de si mesma, somos tentados a exclamar não apenas:

"Como ficou feia!", mas também: "Assemelha-se muito pouco a ela."

     Mal acreditamos que se trate dela. Não a reconhecemos. E, no entanto, ali há uma criatura que bem sentimos já ter visto antes. Mas essa criatura não é Odette; o seu rosto, seu corpo, seu aspecto nos são bem conhecidos. Recordam-nos não a mulher, que nunca se mantinha assim, e cuja postura habitual de modo algum desenhou um tal estranho e provocante arabesco, mas outras mulheres, todas as que Elstir pintou e que sempre, por mais diferentes que fossem gostou de colocar assim de frente, o pé recurvado ultrapassando a saia, o grande chapéu redondo seguro na mão, correspondendo simetricamente, à altura do joelho, que ele encobre, a esse outro disco, visto de frente, o rosto. Enfim, não só um retrato genial desloca o tipo de uma mulher, tal como o estabeleceram a sul coqueteria e sua concepção egoísta da beleza, mas, se é antigo, também não se contenta em envelhecer o original da mesma forma que a fotografia, ou seja, apresentando-o com roupas fora de moda. No retrato, não é apenas a maneira de vestir da mulher que o data, mas também a maneira como o artista o pinta. Esta maneira de pintar, a primeira maneira de Elstir, era a mais terrível certidão de nascimento para Odette, pois fazia dela não somente, como suas fotos da época, a caçula das cocotes então conhecidas, mas também porque tornava seu retrato contemporâneo de um dos numerosos retratos que Manet ou Whistler pintaram com tantos modelos já desaparecidos e que pertencem ao olvido ou à História. 
      A tais pensamentos, silenciosamente ruminados ao lado de Elstir enquanto o acompanhava até em casa, é que me arrastava a descoberta que acabava de fazer com relação à identidade de seu modelo. Ele fizera o retrato de Odette de Crécy. Seria possível que este homem de gênio, este sábio, este solitário, este filósofo de conversação magnífica e que dominava todos os assuntos fosse o pintor ridículo e perverso adotado outrora pelos Verdurin? Perguntei-lhe se os havia conhecido, se por acaso eles não o apelidavam de Sr. Biche. Respondeu-me que sim, sem constrangimento, como se se tratasse de um pedaço já um pouco antigo de sua existência; e não desconfiava da extraordinária decepção que me causou, mas, erguendo os olhos, leu-a no meu rosto. No seu estampou-se um ar de descontentamento. E, como já quase chegáramos à sua casa, um homem de menor inteligência e coração do que ele talvez se despedisse um tanto secamente e, depois, teria evitado encontrar-se comigo. Mas não foi assim que Elstir procedeu; como verdadeiro mestre -e ser um mestre era, talvez, do ponto de vista da criação pura, o seu único defeito, neste sentido da palavra mestre, porque um artista, para penetrar inteiramente na verdade da vida espiritual, deve ser sozinho e não prodigalizar a sua individualidade, mesmo aos discípulos buscava extrair de toda circunstância, fosse relativa a ele ou aos outros, e para melhor ilustração dos jovens, a parte de verdade que ela contivesse. Então, às palavras que poderiam vingar seu amor-próprio, preferiu as que podiam me instruir.

- Não existe homem, por mais sábio que seja - disse-me -, que não tenha, em certa época de sua juventude, pronunciado palavras, ou até levado uma vida, cuja recordação lhe seja desagradável e que ele desejasse ver abolidas. Mas não deve lamenta-la de todo, pois não pode estar seguro de se ter tornado um sábio, na medida em que isso é possível, sem passar por todas as encarnações ridículas ou odiosas que devem precedê-la. Sei que há jovens, filhos e netos de pessoas célebres, a quem os preceptores ensinaram a nobreza de espírito e a elegância moral desde o colégio. Talvez nada se tenha a dizer de suas vidas, poderiam assinar e publicar tudo o que disseram, mas são pobres espíritos, descendentes sem força dos doutrinadores, e cuja sabedoria é negativa e estéril. A gente não herda a sabedoria; é preciso descobri-la por nós mesmos depois de uma trajetória que ninguém pode fazer por nós, e que ninguém nos pode evitar, pois ela é uma forma de ver as coisas. As vidas que o senhor admira, as atitudes que julga nobres, não foram obtidas pelo pai de família ou pelo preceptor; foram precedidas por inícios bem diversos, tendo sido influenciadas pelo que lhes havia em torno, fosse bom ou banal. Representam um combate e uma vitória. Compreendo que já não reconheçamos a imagem do que fomos num primeiro período da vida, a qual, em todo o caso, nos é desagradável. Entretanto, não deve ser renegada, pois trata-se de um testemunho de que temos vivido segundo as leis da vida e do espírito e que dos elementos comuns da vida, da vida dos ateliês, dos grupos artísticos, se se trata de um pintor-extraímos algo que os supera. 

continua na página 185...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - s)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

A Montanha Mágica - Sopa eterna e clareza repentina (c)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 


Capítulo V

Sopa eterna e clareza repentina

continuando...

     Hans Castorp sorriu diante dessa generalização do Sr. Settembrini. A seguir tornou a contemplar, da sua posição de repouso, aquele mundo distante, a esfera familiar à qual fora arrebatado. Recordava, esforçava-se por formar uma opinião imparcial, e a isso a distância animava-o e o tornava capaz. Por fim respondeu:

– Ou se é rico, ou não se é. Tanto pior para os que não o são. Eu? Não sou milionário, mas o que possuo está garantido. Sou independente e tenho de que viver. Mas deixemos de falar de mim. Se o senhor tivesse dito: “É preciso ser rico, lá embaixo”, eu estaria de acordo. Pois quando alguém não é rico ou deixa de sê-lo... ai dele! “Aquele sujeito? Será que ainda tem dinheiro?”, perguntam então, textualmente e com essa mesma cara. Ouvi essas palavras umas quantas vezes, e vejo que se gravaram na minha memória. Agora vejo que as estranhei, embora me fossem familiares, pois do contrário não as recordaria. Que acha o senhor? Não, não creio que, por exemplo, o senhor, um homo humanus, se sentisse bem entre nós. Até eu, que, afinal de contas, me criei ali, fiquei às vezes chocado, como percebo agora, apesar de pessoalmente não ter sofrido com isso. Quem não faz servir nos seus banquetes os mais seletos e os mais caros vinhos não vê a sua casa frequentada e não consegue casar suas filhas. Aquele pessoal é assim. Deitado aqui como estou, e observando as coisas de certa distância, fico mesmo chocado. Que palavras usou o senhor? Fleumáticos e...? Enérgicos. Sim, senhor, mas que significa isso? Isso significa duro, frio. E que significa duro e frio? Significa cruel. A atmosfera, lá embaixo, é cruel, é inexorável. Quando alguém está deitado como eu, e olha as coisas de longe, sente-se horrorizado. 

     Settembrini ouviu-o, meneando a cabeça. Continuou assim, até que Hans Castorp chegasse a um término provisório da sua crítica e cessasse de falar. Depois disse com um suspiro:

– Não quero disfarçar as formas particulares que a crueldade natural da vida assume no seio da sociedade do seu país. Seja como for, a acusação de crueldade é uma acusação bastante sentimental. Lá embaixo, o senhor dificilmente a teria empregado, por receio de parecer ridículo perante si mesmo. Com toda a razão abandonou o seu uso aos covardes da vida. Que o senhor se sirva dela agora revela esta desambientação que eu não gostaria de ver intensificar-se, pois quem se habitua ao emprego de tais qualificativos pode facilmente acabar ficando perdido para a vida e para a forma de existência que lhe é inata. Sabe o senhor, meu caro engenheiro, o que quer dizer “estar perdido para a vida”? Eu, sim, sei. Vejo isso todos os dias aqui. Ao cabo de seis meses, o mais tardar, o jovem que chega aqui (e são quase sempre jovens os que chegam) já não tem outra coisa na cabeça que não o flerte e a temperatura. E depois de um ano, quando muito, nunca mais será capaz de pensar em outra coisa e julgará “cruel”, ou melhor, defeituoso e ignorante qualquer outro pensamento. O senhor gosta de histórias. Eu poderia contar-lhe algumas. Poderia falar-lhe de certo filho e marido que passou onze meses aqui, e a quem conheci. Era um pouco mais velho que o senhor, acho eu, talvez até bastante mais velho. Como ele melhorasse aqui, deram-lhe alta, a título de experiência, e o homem voltou aos braços dos seus. Não eram tios; eram a mãe e a esposa. Durante todo santo dia ficava deitado com o termômetro na boca, e não sabia falar de outra coisa. “Vocês não compreendem isso”, dizia. “É preciso ter vivido lá em cima para saber como as coisas devem ser. Aqui embaixo não existem os conceitos básicos.” Essas queixas só terminaram quando a mãe decidiu o caso. “Volte lá para cima”, disse ela. “Você não presta para mais nada.” E ele voltou mesmo, regressou à “sua terra”. Pois o senhor deve saber que chamam isso aqui de “nossa terra”, os que viveram algum tempo aqui. O homem alienara-se completamente da esposa. Ela não tinha os “conceitos básicos” e preferiu renunciar. Entendeu que ele encontraria na “sua terra” uma companheira com os mesmos “conceitos básicos” e lá ficaria.

     Hans Castorp escutara distraidamente. Tinha ainda o olhar cravado na lâmpada cintilante no quarto branco, como em busca da distância. Riu-se um tanto atrasado e disse:

– Ele falou da “sua terra”? Realmente, isso é mesmo um pouco sentimental, como o senhor o qualificou. Pois é, o senhor conhece inúmeras historietas. Eu continuava pensando naquilo que dizíamos, pouco atrás, sobre a dureza e a crueldade. São coisas que, nesses últimos dias, me passaram pela cabeça diversas vezes. Veja, a gente precisa ter uma pele bastante grossa para concordar completamente com a mentalidade do pessoal lá de baixo, na planície, e com perguntas como “Será que ele ainda tem dinheiro?” e com a cara que as acompanha. Quanto a mim, nunca deixei de achar isso pouco natural, embora não seja, propriamente, um homo humanus. Percebo agora que sempre impliquei com esse comportamento. Talvez haja uma relação entre essa minha atitude e a minha tendência inconsciente para a doença. Eu mesmo ouvi como o Behrens percutiu os lugares antigos, e agora afirma ele ter encontrado um pequeno foco recente. Essa descoberta surpreendeu-me um pouco, não há como negá-lo, e todavia não posso dizer que me espantei muito. Nunca me senti firme como um rochedo, e como meus pais morreram tão cedo... Sou órfão de pai e mãe, desde criança, sabe? 

     A cabeça, os ombros e as mãos do Sr. Settembrini esboçaram um gesto contínuo, que, de uma forma jovial e polida, devia representar a pergunta: “Pois então? E daí?”

– O senhor é escritor – prosseguiu Hans Castorp –, é literato. Deve, portanto, ter experiência disso e compreender que, sob essas circunstâncias, não se pode ter um espírito muito bruto e achar perfeitamente natural a crueldade da gente – das pessoas comuns, sabe?, que passeiam e riem e ganham dinheiro e enchem a pança... Não sei se me expressei...

     Settembrini fez uma reverência.

– O senhor quer dizer – explanou – que o contato prematuro e repetido com a morte produz uma disposição fundamental da alma que nos torna sensíveis e melindrosos no que se refere às durezas e às crueldades da indiferente vida coletiva, ou, digamos, ao seu cinismo. 
– Exatamente! – gritou Hans Castorp com sincero entusiasmo. – Uma formulação admirável! O senhor pôs os pontos nos ii, Sr. Settembrini. “Com a morte...” Eu sabia que o senhor, como literato... 

     Settembrini estendeu o braço, inclinando a cabeça para um lado e fechando os olhos, num gesto belo e suave, destinado a interromper o jovem e a pedir-lhe mais uns instantes de atenção. Manteve-se durante vários segundos assim, mesmo depois de Hans Castorp já se ter calado. Este aguardava com certo acanhamento o que aconteceria. Finalmente reabriu os olhos negros, os olhos de tocador de realejo, e disse:

– Permita-me. Permita-me, engenheiro, que lhe diga e inculque que a única maneira sadia e nobre, aliás, também, como acrescento expressamente, a única maneira religiosa de encarar a morte é compreendê-la e senti-la como uma parte, como um complemento, como uma condição inviolável da vida, ao invés de – o que seria o contrário de sadio, nobre, sensato e religioso -separá-la espiritualmente da vida, de pô-la em oposição a ela e de usá-la como argumento contra ela. Os antigos adornavam os seus sarcófagos de símbolos da vida e da procriação, e até de símbolos obscenos. Para religiosidade antiga frequentemente coincidiam o sagrado e o obsceno. Esses homens sabiam honrar a morte. A morte é venerável como berço da vida, como regaço da renovação. Mas, separada da vida, torna-se um fantasma, um bicho-papão, e coisa pior ainda. Pois a morte como potência espiritual independente é sumamente devassa, seu atrativo perverso é, sem dúvida, muito forte, e seria, também sem a mínima dúvida, a mais horrorosa aberração do espírito humano querer simpatizar com ela. 

     Nesse ponto calou-se o Sr. Settembrini. Parou ao chegar a essa generalização e terminou num tom decidido. Levava o assunto a sério, e não falara só para manter a conversação. Evitara dar ao interlocutor uma oportunidade para apanhar o fio e replicar, e, baixando a voz ao fim das suas afirmações, fizera um ponto final. Permanecia sentado, a boca fechada, as mãos postas no colo, mantendo cruzadas as pernas revestidas com a calça de tecido xadrez, e limitando-se a fazer bambolear o pé de cima, que fitava com um olhar severo.
     Diante disso, Hans Castorp ficou calado também. Recostando-se no travesseiro de plumas, voltou a cabeça para a parede e tamborilou levemente as pontas dos dedos sobre o acolchoado. Era como se tivesse recebido uma lição, como se o houvessem chamado à ordem e mesmo repreendido. No seu silêncio havia qualquer coisa de obstinação pueril. A interrupção da conversa estendeu-se por bastante tempo. 
    Finalmente, o Sr. Settembrini reergueu a cabeça e disse com um sorriso:

– O senhor se lembra, engenheiro, de que já tivemos uma discussão semelhante, ou até a mesma? Naquela ocasião – acho que foi durante um passeio – falávamos sobre a doença e a estupidez, cuja combinação o senhor considerava paradoxal, e isso devido ao respeito que devotava à doença. Eu qualifiquei esse respeito de desatino sinistro, com o qual se desonra o pensamento humano, e para grande prazer meu, o senhor não me pareceria totalmente avesso a levar em conta as minhas objeções. Tratamos também da neutralidade e da incerteza intelectual da mocidade, da sua liberdade de escolha, da sua tendência para fazer experiências com todo tipo de pontos de vista, e constatamos que não era nem lícito nem necessário considerar tais experiências opções definitivas, válidas para o resto da vida. Quer o senhor... – e o Sr. Settembrini, com um sorriso, inclinou-se para a frente, na cadeira, com os pés juntos no chão e com as mãos comprimidas entre os joelhos, avançando levemente a cabeça, numa posição oblíqua... – quer o senhor permitir-me também no futuro... – prosseguiu, e na sua voz vibrava uma ligeira emoção – que o auxilie um pouco nas suas tentativas e experiências e que exerça uma função de corretivo, quando porventura houver o perigo de determinações funestas?
– Mas como não, Sr. Settembrini! – respondeu Hans Castorp, apressando-se a abandonar a sua atitude tímida e um tanto recalcitrante. Cessou de tamborilar sobre o acolchoado e dirigiu se ao visitante com amabilidade um tanto perplexa: – Acho sumamente gentil da sua parte... Pergunto-me, de fato, se eu... Quer dizer, se no meu caso... 
Sine pecunia, sabe? – citou o Sr. Settembrini, levantando-se. – Não quero ser menos generoso do que os outros. – Riram-se ambos. Ouviu-se abrir a porta de fora, e um momento após girou a maçaneta da porta interior. Era Joachim que voltava da reunião da noite. Ao ver o italiano, corou, como acontecera a Hans Castorp pouco antes, e a pele tostada do seu rosto adquiriu um matiz mais escuro. 
– Ah, tem visita – disse. – Que bom para você! Fiquei retido lá embaixo. Obrigaram-me a jogar uma partida de bridge. É o que chamam de bridge, oficialmente – acrescentou, dando de ombros. – Em realidade era outra coisa. Ganhei cinco marcos... 
– Tomara que você não pegue esse vício! – disse Hans Castorp. – Hum, hum... O Sr. Settembrini fez-me passar o tempo agradavelmente, enquanto eu esperava pela sua volta. “Agradavelmente” é aliás uma expressão pouco própria que, a rigor, se pode aplicar ao seu falso bridge. Não, o Sr. Settembrini ocupou-me o tempo de um modo muito mais elevado... Uma criatura decente deveria fazer todos os esforços para sair daqui o mais depressa possível, mesmo porque vocês já começaram a entregar-se à jogatina... Mas, a fim de ter oportunidade de ouvir o Sr. Settembrini com mais frequência, e para deixar-me ajudar pela sua conversa, quase desejaria ter febre por um tempo indefinido e ficar preso aqui... Qualquer dia acabarão por dar-me uma irmã muda, para que eu não possa enganá-los. 
– Eu repito, engenheiro, que o senhor é um pândego – disse o italiano. Despediu-se do modo mais cortês. Ficando a sós com o primo, Hans Castorp deu um suspiro. 
– Que mestre-escola! –- exclamou... – Um mestre-escola humanista, não há como negar. A cada instante me corrige, ora por meio de historietas, ora de forma abstrata. E a conversa com ele leva a tantos assuntos diferentes! Eu nunca teria pensado que se pudesse falar sobre eles ou mesmo compreendê-los. E se o tivesse encontrado lá embaixo, na planície, tenho certeza de que não os compreenderia – acrescentou. 

     Àquela hora, Joachim costumava permanecer algum tempo em companhia do primo. Sacrificava para isso dois ou três quartos de hora do seu repouso noturno. Às vezes jogavam xadrez na mesinha de Hans Castorp; Joachim trouxera um jogo e um tabuleiro. Depois, ia buscar seus apetrechos e, com o termômetro na boca, instalava-se na sacada, enquanto também Hans Castorp tomava a temperatura pela última vez, ao acompanhamento de música ligeira, cujos sons subiam de longe ou de perto através do vale perdido na noite. Às dez horas terminava o repouso. Ouvia-se Joachim; ouvia-se também o casal da mesa dos “russos ordinários”... E Hans Castorp deitava-se de lado, à espera do sono.
     A noite representava a metade mais difícil da jornada, pois Hans Castorp despertava freqüentemente e não raras vezes permanecia acordado durante longas horas, fosse porque o calor anormal de seu sangue o impedia de dormir, fosse porque sua disposição e sua capacidade para o adormecimento eram diminuídas devido à sua existência constantemente horizontal. Em compensação, as horas de sono vinham animadas por sonhos variados e cheios de vida, sonhos nos quais podia continuar devaneando depois de desperto. Se o dia se tornava breve pela múltipla subdivisão, à noite era a monotonia amorfa do progresso das horas o que produzia o mesmo efeito. Quando chegava a manhã, constituía uma distração observar como o quarto pouco a pouco se tornava cinzento e se revelava, como os objetos se salientavam e depunham o véu que os envolvera, e como a luz lá fora se acendia com um esplendor ora alegre ora avermelhado e turvo. E assim, inopinadamente, vinha outra vez o momento em que o massagista, batendo à porta com seu enérgico punho, anunciava o reinicio do programa do dia.
     Hans Castorp não levara um calendário na viagem, e por isso nem sempre tinha noção exata das respectivas datas. De tempos em tempos pedia ao primo informações a esse respeito, mas Joachim tampouco andava bem orientado nesse sentido. Os domingos, principalmente o do concerto bimensal, o segundo que Hans Castorp passava ali em cima, constituíam, todavia, pontos de referência. Uma coisa era certa: que nesse ínterim o mês de setembro avançara consideravelmente e estava próximo do meio. Desde que Hans Castorp se achava na cama, o tempo frio e nublado dera lugar, lá fora no vale, a uns belos dias de fim de verão, inúmeros dias desses, uma série inteira, de modo que Joachim entrava todas as manhãs de calças brancas no quarto do primo, que não podia reprimir uma sensação de sincera contrariedade, uma contrariedade de sua alma e de seus jovens músculos, diante do fato de se ver impedido de desfrutar um tempo maravilhoso assim. A meia voz dizia até que era uma vergonha deixá-lo inaproveitado. Mas, para acalmar-se, raciocinava então que, mesmo que se levantasse, não poderia passar esse tempo de modo mais prazenteiro, visto a experiência lhe proibir excesso de movimento. E a ampla e escancarada porta da sacada oferecia-lhe, pelo menos, um sabor do brilho quente do ar livre. 
     No entanto, ao final do prazo que lhe fora imposto, o tempo mudou novamente. Do dia para a noite tornou-se brumoso e frio. O vale desapareceu numa nevada úmida, e o hálito seco da calefação a vapor encheu o quarto. Assim estava o dia em que Hans Castorp, à visita matinal dos médicos, lembrou o conselheiro áulico de que fazia três semanas desde que se acamara, e pediu licença para levantar-se. 

– Puxa! Já terminou? – disse Behrens. – Deixe ver! Realmente é exato. Meu Deus, como a gente envelhece! Bem, durante todo esse tempo o senhor não fez grandes progressos. Como? Ontem esteve normal? Sim, com exceção da temperatura das seis da tarde. Pois então, Castorp, não quero ser cruel. Vou devolvê-lo à sociedade humana. Levante-se e passeie, meu amigo. Dentro dos limites indicados, naturalmente! Dentro em breve faremos um retrato do seu interior. Tome nota! – acrescentou ao sair, dirigindo-se ao Dr. Krokowski, enquanto com o polegar enorme apontava por cima do ombro para Hans Castorp e fitava o assistente pálido, com os olhos azuis, injetados e lacrimosos... E Hans Castorp abandonou o “estábulo”.

     Com a gola do sobretudo levantada e com galochas nos pés, voltou a acompanhar o primo até o banco ao lado do curso de água, e no regresso, não sem ventilar o problema de saber por quanto tempo o Dr. Behrens o teria deixado na cama, se ele mesmo não o tivesse avisado do fim do prazo. E Joachim, com olhar melancólico, abriu a boca como para proferir um lamento desesperado, e fez no ar um gesto indefinido.  

continua pág 132...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Sopa eterna e clareza repentina (c)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (7c) - É difícil descrever a cena

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
7.

continuando...
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      É difícil descrever a cena tragicômica que se seguiu. O pasmo geral no primeiro momento foi instantaneamente segui do por uma gargalhada. E uma boa parte do grupo não pôde conter um acesso de hilaridade ante aquela situação grotesca.
     Ippolít soluçava com repelões que pareciam histéricos, torcendo as mãos, voltando-se para este, para aquele, até mesmo para Ferdichtchénko de quem acabou por segurar ambas as mãos jurando que se tinha esquecido, “sim, esquecido completamente e não de propósito”, de meter a cápsula; que “estava com todas elas ali no bolso do colete, mais de uma dúzia (mostrou-as a todos, voltando-se bem). Mas que não as colocara antes receando uma possível explosão na algibeira”.
     Investiu para Keller, pediu ao príncipe e a Evguénii Pávlovitch que fizessem com que aquele lhe devolvesse a pistola, pois haveria de lhes mostrar a todos, sim, a todos que “tinha honra, honra...”, que não era um desavergonhado, não! E acabou caindo exangue, sendo levado para o escritório de Míchkin.
     Liébediev, cuja bebedeira passara instantaneamente com o choque, tratou de mandar vir um médico, permanecendo ele em pessoa ao lado do paciente, com a filha, o filho, Burdóvskii e o general. Vendo Ippolít ser carregado completamente sem sentidos, Keller, estatelado no meio da varanda, posição que repetiu daí a segundos no meio do escritório, fez a seguinte declaração, muito exaltado, destacando palavra por palavra, com um timbre que ninguém poderia deixar de ouvir:

- Senhores, se alguém se atrever na minha presença a insinuar sequer que a cápsula foi esquecida intencionalmente, dando assim a entender que tudo não passou de uma farsa deste infeliz moço, tem de se haver comigo!

     Tal desafio não mereceu resposta. Já agora os convivas tinham mais era pressa de ir embora. Ptítsin, Gánia e Rogójin saíram juntos. O príncipe ficou muito surpreendido de Evguénii Pávlovitch. ou por esquecimento, ou deliberadamente, se retirar sem o colóquio marcado para depois de tudo. 

- Mas o senhor não pretendia conversar comigo depois que todos se fossem? 
- De fato, de fato - disse Evguénii Pávlovitch sentando-se já agora e fazendo o príncipe se sentar ao seu lado. - Mas prefiro adiar nossa conversa. Confesso-lhe que toda esta cena me pôs indisposto, e o mesmo lhe deve ter acontecido. Estou com a cabeça confusa. De mais a mais, o que desejo conversar é assunto muitíssimo importante para qualquer de nós dois. E que, príncipe, pela primeira vez na vida quero agir de modo estritamente correto, isto é, agir sem nenhum motivo subentendido. Ora, neste momento, depois de tudo quanto se passou, me sinto incapaz de fazer direito seja o que for; e o mesmo decerto há de lhe acontecer... Assim pois... conversaremos mais tarde. Quem sabe até se ao tratarmos do assunto após estes três dias que preciso ficar em Petersburgo, ele já não estará muito mais fácil para nós ambos? 

     Feito o quê, tornou a se levantar, ficando assim esquisito se haver sentado pouco antes. O príncipe achou mesmo que Radómskii estava irritado, com uma expressão hostil no olhar, coisa que não havia antes.

- Naturalmente vai para perto do rapaz, agora?... 
- Vou sim... Fiquei apreensivo. 
- Ora! De quê? Ele viverá não três semanas, mas o dobro; poderá mesmo melhorar muito, aqui. Mas a melhor coisa a fazer é descartar-se dele. 
- Quem sabe se eu próprio não o induzi a esse gesto tresloucado, deixando de lhe dar conselhos?... Não vá ele julgar que eu não acredite que tenha querido se matar, mesmo... E, a propósito, Evguénii Pávlovitch, que acha? 
- Não pense nisso. Só mesmo um bom coração como o seu se pode inquietar. Pode ser que haja casos destes, mas na vida real jamais soube de quem se matasse somente com o propósito de receber aplausos ou por despeito de não os ter recebido. Tampouco creio que se trate de uma exibição de pusilanimidade. Seja o que for, o melhor é o príncipe se livrar dele assim que puder, ainda hoje. 
- Acha que tornará a tentar contra a vida? 
- Não, já agora não o fará. Mas fique em guarda contra esses nossos Lacenaires de segunda mão. Não se esqueça de que o crime é, via de regra, a válvula de escapamento desses indivíduos nulos. revoltados, ávidos e impetuosos. 
- Será ele um Lacenaire? 
- A essência é a mesma, embora o empolado seja diferente, talvez. Não tenha dúvidas de que esse indivíduo não seja capaz de dar cabo de uma dúzia de pessoas simplesmente como uma ..façanha” conforme ele próprio o disse durante a leitura da tal “Explicação”. Essa espécie de ameaça contida em tais palavras, vai me obrigar a andar de olho atento, doravante. Perdi o sono...
- Não terá o senhor ficado nervoso em excesso? 
- Ora, príncipe, o senhor é uma criatura formidável. Então não o julga, depois de tudo isso, capaz de matar uma dúzia de pessoas? 
- Francamente, não sei responder. Tudo isso é muito estranho; mas... 
- Está bem, como queira, como queira! - concluiu Evguénii Pávlovitch, contrafeito.
- Aliás, o senhor não é criatura que se deixe atemorizar. O que importa é que não seja uma das doze! 
- Não me parece que ele venha a matar ninguém - disse Míchkin olhando para Evguénii Pávlovitch, mas com o pensamento longe.

     Evguénii Pávlovitch deu uma risada significativa, - Adeus. Já é tempo de ir embora. Chegou a reparar que ele legou a Agláia Ivánovna uma cópia, ou o original da “Explicação”?

- Reparei, sim. Fez-me espécie... 
- Tanta como no caso dos doze candidatos à morte?...

     E, rindo outra vez, Evguénii Pávlovitch se retirou.
     Uma hora depois disso, isto é, entre três e quatro da madrugada, o príncipe resolveu dar uma volta pelo parque. Tentara dormir, mas as violentas pancadas do coração não haviam deixado. A casa já voltara à tranquilidade. O pobre rapaz pegara no sono. O médico que o examinou declarara não haver perigo nenhum. Liébediev, Kólia e Burdóvskii se tinham deitado no mesmo quarto para se revezarem em guarda. Portanto, não havia nada a temer. Mas a intranquilidade de Míchkin crescia sempre. Percorreu o parque, olhando distraído para tudo quanto o rodeava. Espantou-se quando viu que havia chegado à rotunda existente diante da estação. E só reconheceu o local pelo coreto de música e pelos bancos encarreirados diante das estantes. Aquele cenário lívido o impressionou. Regressando, tomou o atalho por onde viera na véspera com as Epantchiná, até que chegou perto do banco verde marcado como local do encontro. Sentou-se e imediatamente deu uma gargalhada, logo ficando indignado consigo mesmo. Invadiu-o de novo a tristeza. Que vontade de ir embora! Mas, para onde? Em uma árvore, por cima da sua cabeça, um passarinho chilreava: começou a procurá-lo por entre as folhas. Nisto o passarinho voou e o príncipe, por analogia, se recordou da música no “ardente raio de sol” sobre que escrevera Ippolít, “e que sabia que tinha direito a comparticipar do festival da vida e tomava parte no coro geral, só ele sendo um banido de tudo”. Antes, ao ouvir a frase, se impressionara; e agora se estava lembrando dela.
     Repentinamente, evocações de coisas antigas, já desde muito sedimentadas, começaram a tumultuar dentro dele logo se pondo a rodeá-lo. Sim, fora na Suíça, no primeiro ano, logo no começo. Não passava então de um idiota. Não sabia sequer falar direito... muitas vezes ficando apatetado diante das pessoas.
      Certa vez subia pelo flanco de uma montanha, por um dia claro e ensolarado. E caminhou horas e horas, com o espírito avassalado por uma ideia difusa e pertinaz. Diante dele, o céu como um esmalte; embaixo, o lago; e, em toda a volta, o horizonte luminoso e ilimitado parecendo não ter fim. Pusera-se a contemplá-lo demoradamente, tomado de angústia. E agora se lembrava muito bem que havia estendido as mãos para aquele azul infinito e radioso, derramando lágrimas. O que o torturava então era sentir-se totalmente fora de tudo aquilo. Que festival era aquele? Que significava aquele imenso e eterno espetáculo sempre renovado e que o atraíra sempre, desde a mais longínqua infância, mas no qual jamais pudera tomar parte? Cada manhã o mesmo sol deslumbrante! Todos os dias o mesmo arco-íris como um diadema sobre a cascata! Todas as tardes a geleira fulgurando envolta em púrpura ao fundo do horizonte! “Cada diminuta mosca que zunia ao redor dele no ardente raio do sol tinha a sua parte no coro, sabia o seu lugar, gostava, e era feliz!” Cada folha de relva cresce e é feliz. Tudo tem a sua trajetória, cada coisa sabe que possui um itinerário e por ele adiante envereda por entre hosanas! Não há quem não saia de manhã com uma canção e não volte ao crepúsculo, cantando... Só ele não sabe nada, não compreende nada, nem homens, nem sons. Não comparticipa de nada, é um banido. Oh! Naturalmente que não dissera se servindo de palavras, sua interrogação tendo sido apenas mental. Era um sofrimento mudo de quem não atina com um enigma; mas agora lhe parecia que havia dito tudo aquilo com as mesmas palavras de Ippolít, a ponto da frase relativa à mosca parecer sua, Ippolít o havendo plagiado, tomando-a das suas lágrimas e dos seus pensamentos de então. Tamanha certeza teve disso que enquanto refletia, seu coração acelerava o ritmo.
     Sentado naquele banco, adormeceu, com o queixo sobre o peito: mas a agitação perdurava. Já no limiar do sono o envolveu a noção de que Ippolít mataria uma dúzia de pessoas; e sorriu ante o absurdo dessa hipótese. Circundava-o uma claridade deslumbrante: em toda a volta só havia sossego quebrado apenas pelo sussurro das folhas que tomavam a solidão e a luminosidade maiores. Sonhou uma porção de coisas. Sonhos agitados que de momento a momento lhe produziam estremeções. Por último lhe apareceu uma mulher. Reconheceu-a. E reconhecê-la era torturante. Sabia o seu nome. Reconhecê-la-ia em qualquer lugar; mas - que coisa estranha – o seu rosto de agora não era o mesmo que conhecia antes, e isso lhe ocasionava uma relutância perturbadora em reconhecê-la como sendo a mesma. O rosto dessa criatura deixava transparecer tal remorso, tamanho pavor que parecia uma criminosa cruel correndo depois de haver cometido um crime hediondo. Pelas faces brancas lhe deslizavam lágrimas. Passando por ele pôs o dedo na boca advertindo-o que não dissesse nada e a seguisse com a maior precaução. Vê-la, assim, fez gelar seu coração. Nada, nada, absolutamente nada sobre a face da terra o induziria a acreditar que ela fosse uma criminosa. Mas percebeu que estava para suceder algo de terrível que lhe iria arruinar a vida para sempre. Aquela mulher ansiava por lhe mostrar qualquer coisa no parque, não longe dali. Ergueu-se para a seguir. E repentinamente escutou, bem próximo, o som alegre de uma risada cristalina, ao mesmo tempo que certa mão o tocava. Segurou essa mão, apertou-a com força... e acordou. Diante dele, rindo, estava Agláia.

O Idiota: Terceira Parte (7c) - É difícil descrever a cena
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