em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(s)
continuando...
Enfim, ele acabava de dar uma última pincelada às suas flores; perdi um momento a olhá-las; não havia mérito em fazê-lo, pois sabia que as moças já não se encontravam na praia; porém,
mesmo que acreditasse que elas ali permaneciam e que aqueles minutos de contemplação me
impediriam de alcançá-las, ainda assim olharia o quadro, pois dizia comigo que Elstir se
interessava mais por suas flores do que pelo meu encontro com as moças. O temperamento de
minha avó, temperamento que era exatamente o oposto do meu egoísmo total, entretanto refletia
se no meu. Numa circunstância em que alguém que me fosse indiferente, por quem sempre
fingira afeição ou respeito, arriscasse apenas uma contrariedade, ao passo que eu me visse em
perigo, não faria outra coisa senão sentir pena dele pelo seu desgosto, como se fosse algo
considerável, e encarar meu perigo como coisa insignificante, porque me parecia que, para essa
pessoa, as coisas deveriam se apresentar sob essas proporções. Para dizer as coisas tais como
são, e até indo além disso, não só não lastimava o perigo que corria, mas ia-lhe ao encontro e, no
que se referia aos outros, tentava ao contrário, ainda que houvesse mais probabilidades de que
recaíssem sobre mim, evitar-lhes o perigo. Isto decorre de vários motivos que não me fazem
honra alguma. Um deles é que, enquanto eu não fazia mais que raciocinar, julgava principalmente
apegar-me à vida: toda vez que, no decurso de minha existência, me vi assediado por
preocupações morais ou apenas por inquietações de origem nervosa, às vezes tão pueris que não
teria coragem de narrá-las, se então ocorria uma circunstância imprevista, que para mim
envolveria risco de morte, essa nova preocupação era tão leve, relativamente às outras, que eu a
acolhia com um alívio que chegava à alegria. E assim sucedia que eu, o homem menos corajoso
do mundo, vinha a conhecer essa coisa que, quando eu raciocinava, me parecia tão estranha e
inconcebível à minha natureza: a embriaguez do perigo. Porém, mesmo quando surgisse o perigo,
ainda que mortal, e eu me encontrasse num período da vida inteiramente calmo e feliz, não
poderia, se estivesse com outra pessoa, deixar de pô-la a salvo e assumir o lugar do perigo.
Quando um número bem vasto de experiências terminou por demonstrar que eu agia sempre
assim, e com prazer, descobri, para minha vergonha, que, ao contrário do que sempre julgara e
afirmara, era bastante sensível à opinião alheia. Esse tipo de amor-próprio inconfesso, entretanto,
nada tem a ver com a vaidade e o orgulho. Pois aquilo que pode satisfazer o orgulho ou a vaidade
não me dá prazer nenhum e sempre o repeli. Mas às pessoas a quem consegui esconder
completamente os pequenos méritos, que talvez pudessem lhes dar uma ideia menos mesquinha
a meu respeito, jamais pude negar-me o prazer de lhes mostrar que punha mais cuidado em
afastar a morte de seu caminho do que do meu. Como o meu objetivo é então o amor-próprio e
não a virtude, acho bem natural que em qualquer circunstância elas agissem de outra forma.
Estou bem longe de censurá-las, o que talvez fizesse se fosse movido pela ideia de um dever
que, nesse caso, me parecia obrigatório para elas como para mim. Pelo contrário, considero-as
muito sensatas por preservarem suas vidas, mas não posso deixar de colocar a minha em
segundo plano, o que é especialmente absurdo e culposo desde que julguei reconhecer que a
vida de muitas pessoas, à cuja frente me coloco ao rebentar uma bomba, tem menos valor que a
minha. Além disso, no dia daquela visita a Elstir, ainda estava longe o tempo em que eu tomaria
consciência dessa diferença de valor e não se tratava de nenhum perigo, mas simplesmente de
um sinal prévio do pernicioso amor-próprio: dar a impressão de não conceder, àquele prazer tão
ardentemente desejado, mais importância que a seu trabalho de aquarelista ainda inacabado:
- Afinal ficou pronto o quadro.
Logo que saímos, percebi que-como os dias eram mais longos naquela estação ainda não
era tão tarde como supunha; íamos pelo molhe. Quantos ardis empreguei para reter Elstir no
ponto em que achava que as moças ainda podiam passar! Mostrando-lhe os alcantis que se
elevavam bem perto, não cessava de pedir que me falasse deles para fazê-lo esquecer a hora e
obrigá-lo a ficar por ali. Parecia-me ter mais probabilidades de encontrar o grupo das moças se
nos encaminhássemos até o fim da praia.
- Gostaria que víssemos bem de perto estes rochedos. -disse a Elstir, tendo reparado que
uma das moças ia com frequência para aqueles lados. - E, enquanto isso, fale-me de Carquethuit.
Ah, como me agradaria ir a Carquethuit! -acrescentei, sem pensar que o caráter tão novo, que se
manifestava com tanta força no "Porto de Carquethuit" de Elstir, referia-se mais à visão do pintor
que a um mérito especial dessa praia. - Desde que vi esse quadro, é o local que mais tenho
vontade de conhecer, junto com a Ponta do Raz, que por sinal daria uma viagem bem longa
daqui.
- E depois, mesmo que estivesse mais perto, eu lhe aconselharia que fosse de preferência
a Carquethuit-respondeu Elstir. -A Ponta do Raz é admirável, mas afinal sempre é uma grande
falésia normanda ou bretã, que o senhor já conhece; ao passo que Carquethuit é bem diferente
com seus rochedos sobre a praia baixa. Não conheço nada parecido na França; lembra-me antes
de certos aspectos da Flórida. É um lugar curioso e também extremamente selvagem. Fica entre
Clitourps e Nehomme, e sabe muito bem como essas paragens são desoladas; o perfil das praias
é deslumbrante. Aqui, a sua linha litorânea não quer dizer nada; porém lá, nem sei lhe dizer como
é graciosa e suave.
A noite caía; era preciso voltar. Eu acompanhava Elstir à sua casa quando, de repente, tal
como Mefistófeles aparecendo diante de Fausto, surgiram na extremidade da avenida-como uma
simples objetivação irreal e diabólica do temperamento oposto a mim, da vitalidade quase bárbara
e cruel de que era tão destituída a minha fraqueza, meu excesso de sensibilidade dolorosa e de
intelectualismo alguns flocos dessa substância impossível de confundir com qualquer outra,
algumas esporadas do grupo zoofítico das moças, as quais pareciam não me ver, mas na verdade
deveriam estar fazendo a meu respeito um juízo irônico. Sentindo ser inevitável um encontro com
elas, e que Elstir me chamaria, voltei-me de costas como um banhista que vai receber a onda;
parei e, deixando que meu ilustre companheiro seguisse o caminho, fiquei para trás, fingindo um
súbito interesse pela vitrina do negociante de antiguidades diante da qual passávamos naquele
momento; estava satisfeito por dar a impressão de pensar em coisa diversa dessas moças e já
sabia, obscuramente, que, quando Elstir me chamasse para ser apresentado, teria o tipo de olhar
interrogativo que revela não a surpresa, mas o desejo de parecer surpreendido isto porque somos
maus atores ou porque o próximo é um bom fisionomista-e talvez até chegasse a levar o dedo ao
peito como se perguntasse:
"É a mim que estão chamando?", para logo acorrer, a cabeça docilmente inclinada,
obediente, o rosto dissimulando friamente o tédio de ser arrancado à contemplação de velhas
faianças para que me apresentassem a pessoas que não desejava conhecer. Entretanto,
considerava a vitrina à espera do momento em que meu nome, gritado por Elstir, viesse me atingir
como uma bala esperada e inofensiva. A certeza da apresentação a essas moças tivera por
resultado não só fazer-me aparentar indiferença, mas senti-la de verdade. Inevitável daí em
diante, o prazer de conhecê-las foi comprimido, reduzido, pareceu-me bem menor que o de
conversar com Saint-Loup, de jantar com minha avó, de fazer excursões pelas redondezas, as
quais decerto lamentaria ter de abandonar para travar relações com pessoas que pouco se
interessariam por monumentos históricos. Além do mais, o que diminuía o prazer que eu teria não
era somente a iminência, mas a incoerência de sua realização. Leis tão exatas como a da
hidrostática mantêm a superposição das imagens que formamos numa ordem fixa, subvertida pela
proximidade de um acontecimento. Elstir ia chamar-me. Mas não era daquele modo como, várias
vezes, na praia ou no meu quarto, imaginara que conheceria as moças. O que ia acontecer era
outro evento, para o qual não me achava preparado. Não estava reconhecendo nem o meu
desejo nem o seu objeto; quase lamentava ter saído com Elstir. Mas, sobretudo, a contração do
prazer que tivera anteriormente se devia à certeza de que nada mais podia subtraí-lo de mim. E
esse prazer recuperou toda a sua dimensão, como em virtude de uma força elástica, quando
deixou de sofrer a pressão dessa certeza, no momento em que eu, tendo decidido voltar a
cabeça, vi que Elstir parado alguns passos adiante, junto das moças, despedia-se delas. A
fisionomia da que estava mais perto de mim, cheia e iluminada pelos seus olhares, parecia uma
torta em que houvessem reservado um lugar para um pedacinho do céu. Seus olhos, mesmo
fixos, davam a impressão de mobilidade, como ocorre nesses dias de muito vento, em que o ar,
embora invisível, deixa transparecer a velocidade com que passa sobre o fundo azul. Por um
instante os seus olhares cruzaram com os meus, como esses céus viajantes dos dias de
tempestade, que se aproximam de uma nuvem mais vagarosa, tangenciam por ela, tocam-na,
ultrapassam-na. Mas não se conhecem e se separam um do outro. Assim, nossos olhares se
encararam por um momento, cada um ignorando o que continha de promessas e de ameaças
para o futuro continente celeste que estava à sua frente. Apenas no momento em que seu olhar
pousou bem no meu foi que se turvou ligeiramente, mas sem diminuir a velocidade. Do mesmo
modo, numa noite clara, a lua, arrastada pelo vento, passa por detrás de uma nuvem e encobre
por um momento o seu brilho, logo reaparecendo. Mas Elstir já deixara as moças sem ter me
chamado. Elas tomaram por uma rua transversal e o pintor veio até mim. Tudo estava perdido.
Já disse que Albertine não me aparecera nesse dia com o mesmo ar com que surgira nos
dias precedentes e que, a cada vez, ela devia me parecer diferente. Mas, naquele momento, senti
que certas modificações no aspecto, na importância, no tamanho de uma criatura podem se referir
à variabilidade de certos estados interpostos entre ela e nós. E um dos que maior papel
desempenham nesse caso é a crença em determinada coisa. (Naquela tarde, a crença, depois o
desvanecimento da crença, de que ia conhecer Albertine, converteram-na, com segundos de
intervalo, em algo quase insignificante, depois infinitamente precioso, a meus olhos alguns anos
mais tarde, a crença, depois o desaparecimento da crença, de que Albertine era fiel causaram
mudanças análogas.)
De certo, em Combray, já vira diminuir ou aumentar, conforme as horas; conforme eu
entrasse numa ou noutra das duas grandes espécies que repartiam entre si a minha sensibilidade -o desgosto de não estar junto de minha mãe, tão imperceptível de tarde como a luz da lua
enquanto brilha o sol e que, quando caía a noite, reinava sozinho em minha alma ansiosa, no
lugar onde estavam as lembranças apagadas e recentes. Mas, naquele dia, vendo que Elstir
deixava as moças sem ter me chamado, compreendi que as variações de importância que um
prazer ou um desgosto assumem a nossos olhos podem referir-se não apenas a essa alternância
de dois estados de espírito, mas à mutação de crenças invisíveis, que, por exemplo, nos fazem
parecer indiferente a morte, porque a cercaram de uma luz irreal e, assim, nos permitem atribuir
grande importância ao fato de irmos a um sarau musical, o qual perderia o seu encanto se, de
súbito, pela notícia de que nos irão guilhotinar, a crença que envolve este sarau se dissipasse; é
verdade que algo em mim sabia acerca desse papel das crenças: era a vontade; mas esta o sabe
em vão se a inteligência e a sensibilidade continuam a ignorá-lo; estas agem de boa-fé quando
creem que temos vontade de abandonar uma amante, a qual apenas a vontade sabe que
desejamos muito. É que elas são obscurecidas pela crença de que voltaremos a encontrá-la em
breve. Mas, quando essa crença se dissipa, quando elas ficam sabendo de repente que tal
amante se foi para sempre, então a inteligência e a sensibilidade, tendo perdido o equilíbrio,
procedem como loucas, e o ínfimo prazer aumenta ao infinito.
Variação de uma crença, também vazio do amor, o qual, preexistente e móvel, se detém na
imagem de uma mulher simplesmente porque essa mulher será quase impossível de alcançar.
Desde então, pensa-se menos na mulher, que dificilmente se evoca, e mais nos meios de
conhecê-la. Todo um processo de angústias se desenvolve e basta para fixar nosso amor por ela,
objeto apenas conhecido do nosso amor. O amor se torna imenso, e nem imaginamos como é
reduzido o lugar que a mulher real nele ocupa.
E se, de súbito, como no momento em que eu vira Elstir com as moças, acaba a nossa
preocupação, a nossa angústia, como se essa angústia fosse todo o nosso amor, parece que o
amor se dissipou bruscamente, no momento mesmo em que sua presa está ao nosso alcance,
presa em cujo valor não pensamos muito. Que conhecia eu de Albertine?
Um ou dois perfis diante do mar, certamente menos belos que o das mulheres de
Veronese, que eu deveria preferir caso obedecesse a razões puramente estéticas. Ora, que
outras razões poderia ter visto que, arrefecida a angústia, só me encontrava com esses mudos
perfis, e nada mais possuía? Desde que vira Albertine, fizera todos os dias a seu respeito milhares
de reflexões; mantinha, com o que eu denominava Albertine, um diálogo interior em que a fazia
perguntar e responder, pensar, agir, e, na série indefinida de Albertines imaginadas que se
sucediam em mim hora após hora, a Albertine real, avistada numa praia, só figurava à frente,
como criadora de um papel, a estrela, só aparecia nas primeiras em uma longa série de
representações. Essa Albertine era quase só uma silhueta; tudo o que se superpunha a ela era de
minha invenção, já que, no amor, as nossas contribuições superam mesmo que unicamente do
ponto de vista da quantidade - as que provêm da criatura amada. E isto é verdadeiro quanto aos
amores mais eficazes. Há os que podem não apenas se formar, porém subsistirem redor de muito
pouca coisa - e até entre os que receberam sua aprovação carnal.
Um antigo professor de desenho de minha avó teve uma filha de uma amante obscura. A
mãe morreu pouco depois do nascimento da criança, e o professor teve tal desgosto que não lhe
sobreviveu por muito tempo. Nos últimos meses de sua vida, minha avó e algumas senhoras de
Combray, que jamais haviam querido fazer sequer uma alusão, diante do professor, àquela
mulher, com quem aliás ele não vivera oficialmente e com a qual não tivera muitas relações,
pensaram em assegurar o futuro da menina, contribuindo cada uma para lhe proporcionar uma
renda vitalícia. Foi minha avó quem o propôs; algumas amigas se fizeram de rogadas; aquela
menina valeria a pena o seu interesse, seria mesmo filha de quem se acreditava seu pai? Com
mulheres do tipo daquela mãe a gente nunca sabe. Enfim se decidiram. A menina veio à casa
para agradecer. Era feia e parecia-se tanto com o velho professor de desenho que dissipou todas
as dúvidas; como fosse o cabelo único traço que tivesse de bonito, uma senhora disse ao pai, que
a acompanhara:
- Como são lindos os seus cabelos!
E, pensando que agora a mulher culpada estava morta e o professor a caminho do túmulo,
e que não haveria problemas em fazer uma alusão àquele passado que todos sempre tinham
fingido ignorar, minha avó acrescentou:
- Deve ser de família. A mãe dela tinha cabelos assim tão lindos?
- Não sei - respondeu ingenuamente o pai. - Nunca a vi sem chapéu.
Precisava reunir-me a Elstir. Olhei-me numa vidraça. Além do desastre de não ter sido
apresentado, reparei que minha gravata estava torta e que meu chapéu deixava aparecer os
cabelos compridos, o que não me caía bem; mas, de qualquer forma, sempre era uma sorte que
as moças, mesmo assim, me tivessem visto na companhia de Elstir e, portanto, não pudessem
me esquecer; também foi sorte que naquela tarde, e a conselho de minha avó, eu estivesse com o
colete bonito, pois pouco faltara para que o substituíssem por um outro, horroroso, e com a minha
melhor bengala; porque, se um evento que desejamos jamais ocorre da maneira que pensamos, à
falta das vantagens com que julgávamos contar, outras, que não esperávamos, se apresentam e,
assim, tudo se compensa; e de tal modo temíamos o pior que, por fim, nos inclinamos a achar
que, em conjunto, e tudo pesado, o acaso nos favoreceu.
- Ficaria tão contente em conhecê-las - disse a Elstir quando me aproximei.
- Então, por que ficou a léguas de distância?
Foram estas as palavras que pronunciou, não que exprimissem o seu pensamento, visto
que, se o seu desejo tivesse sido o de satisfazer o meu, nada mais fácil que chamar-me, mas
talvez porque ouvisse frases desse tipo, familiar às pessoas vulgares apanhadas em falta, e
porque mesmo os grandes homens são, em certos assuntos, semelhantes às pessoas vulgares,
procuram suas desculpas diárias no mesmo repertório que elas, como compram o pão cotidiano
no mesmo padeiro; ou então porque tais palavras, que de certa forma devem ser lidas às avessas
já que sua letra significa o contrário da verdade, sejam o efeito necessário, o gráfico negativo de
um reflexo.
- Elas estavam com pressa.
Eu, sobretudo, achava que as moças o haviam impedido de chamar alguém que lhes era
pouco simpático; não sendo assim, ele teria me chamado, depois de todas as perguntas que lhe
fizera sobre elas e do interesse que bem tinha visto que me despertavam.
- Eu lhe falava de Carquethuit - disse-me ele antes que o deixasse à porta de casa. - Fiz
um pequeno esboço onde se vê bem melhor o delineamento da praia. O quadro não é mau, mas
é outra coisa. Se me permite, dar-lhe-ei esse esboço em nome da nossa amizade-acrescentou,
pois as pessoas que nos negam as coisas que desejamos costumam oferecer coisa diversa.
- Gostaria muito de ter uma fotografia desse retrato de Miss Sacripant, se é que possui
alguma. Mas o que significa esse nome? - É o de uma personagem de uma opereta idiota,
representada pelo modelo do retrato.
- Não a conheço; o senhor sabe muito bem disto, mas parece que não acredita. - Elstir
calou-se.
- No entanto, deve ser a Sra. Swann antes do seu casamento-disse eu por um desses
súbitos e casuais encontros com a verdade, afinal muito raros, mas que bastam, quando ocorrem,
para fornecer uma certa base à teoria dos pressentimentos desde que se tenha o cuidado de
esquecer todos os erros que a invalidariam. Elstir não respondeu. Era com efeito um retrato de
Odette de Crécy. Ela não o quisera conservar por muitos motivos, alguns bem evidentes. Havia
outros. O retrato era anterior ao momento em que Odette, disciplinando seus traços fisionômicos,
formara com seu próprio rosto e corpo essa criação que, através dos anos, deviam respeitar em
suas linhas gerais os cabeleireiros e as modistas, e também a própria Odette, em seu modo de
andar, de falar, de sorrir, de colocar as mãos, de olhar e de pensar. Era necessária a depravação
de um amante entediado para que Swann preferisse, às numerosas fotografias da Odette que era
a sua deslumbrante mulher, a pequena fotografia que tinha em seu quarto e onde, sob um chapéu
de palha ornado de amores-perfeitos, se via uma mulher magra e bem feia, de cabelos em tufos e
feições pisadas.
Aliás, mesmo que o retrato fosse não anterior, como a fotografia predileta de Swann, à
sistematização das feições de Odette em um novo tipo, majestoso e encantador, e sim posterior,
bastaria a visão de Elstir para desordenar esse tipo. O gênio artístico procede à maneira dessas
temperaturas extremamente elevadas, que têm o poder de dissociar as combinações de átomos e
de reagrupá-los segundo uma ordem absolutamente oposta, correspondendo a outro tipo. Toda
essa harmonia artificial que a mulher impôs às suas feições e de cuja continuidade ela se
assegura todos os dias diante do espelho, mudando a inclinação do chapéu, o alisado do cabelo,
a jovialidade do olhar; essa harmonia, a visão do grande pintor a destrói em um segundo e, no
seu lugar, procede a um reagrupamento dos traços da mulher de modo a dar satisfação a um
certo ideal feminino e pictórico que traz: dentro de si. Da mesma forma, ocorre muitas vezes que,
a partir de uma certa idade o olho de um grande pesquisador encontra por toda a parte os
elementos necessários para estabelecer as únicas relações que o interessam. Como esses
operários e jogadores, que não são pretensiosos e se contentam com o que lhes cai às mãos,
poderiam dizer de qualquer coisa: isto serve. Assim, uma prima da princesa de Luxemburgo,
beldade das mais altivas, tendo se deixado apaixonar outrora por uma arte que era nova então,
pedira ao maior dos pintores naturalistas que fizesse o seu retrato. E logo o olho do pintor achou o
que procurava em toda parte. E sobre a tela, no lugar da grande dama, havia uma moça de
recados e, por trás dela, um amplo cenário inclinado e cor-de-violeta que lembrava a Praça
Pigalle. Mas, mesmo sem chegar a tanto, um retrato de mulher por um grande artista não só não
tenderá a satisfazer de modo algum quaisquer exigências da mulher que lhe serviu de modelo
como, por exemplo, as que, quando ela começa a envelhecer, a fazem retratar-se em roupas
quase de mocinhas que realçam o seu talhe ainda juvenil e a fazem parecer irmã ou até mesmo
filha de sua filha (que, se necessário, aparecerá bem mal vestida a seu lado) mas, pelo contrário,
porá em relevo as desvantagens que ela procura ocultar e que, como, por exemplo, um tom de
febre ou até mesmo um matiz esverdeado, o tentam mais porque têm mais "caráter"; mas são
suficientes para decepcionar o espectador comum e reduzir a nada o ideal, cuja armadura a
mulher sustentava com tanto orgulho e que a colocava, em sua forma única e irredutível, de fora e
acima do resto da humanidade. Agora, decaída, situada fora de seu próprio tipo onde reinava
invulnerável, não passa de uma mulher como qualquer outra, cuja superioridade já não nos inspira
confiança. De tal modo identificamos esse tipo, não só com a beleza de uma Odette, mas a sua
personalidade, sua substância íntima, que, diante do retrato que a despojou de si mesma, somos
tentados a exclamar não apenas:
"Como ficou feia!", mas também: "Assemelha-se muito pouco a ela."
Mal acreditamos que se trate dela. Não a reconhecemos. E, no entanto, ali há uma criatura
que bem sentimos já ter visto antes. Mas essa criatura não é Odette; o seu rosto, seu corpo, seu
aspecto nos são bem conhecidos. Recordam-nos não a mulher, que nunca se mantinha assim, e
cuja postura habitual de modo algum desenhou um tal estranho e provocante arabesco, mas
outras mulheres, todas as que Elstir pintou e que sempre, por mais diferentes que fossem gostou
de colocar assim de frente, o pé recurvado ultrapassando a saia, o grande chapéu redondo
seguro na mão, correspondendo simetricamente, à altura do joelho, que ele encobre, a esse outro
disco, visto de frente, o rosto. Enfim, não só um retrato genial desloca o tipo de uma mulher, tal
como o estabeleceram a sul coqueteria e sua concepção egoísta da beleza, mas, se é antigo,
também não se contenta em envelhecer o original da mesma forma que a fotografia, ou seja,
apresentando-o com roupas fora de moda. No retrato, não é apenas a maneira de vestir da
mulher que o data, mas também a maneira como o artista o pinta. Esta maneira de pintar, a
primeira maneira de Elstir, era a mais terrível certidão de nascimento para Odette, pois fazia dela
não somente, como suas fotos da época, a caçula das cocotes então conhecidas, mas também
porque tornava seu retrato contemporâneo de um dos numerosos retratos que Manet ou Whistler
pintaram com tantos modelos já desaparecidos e que pertencem ao olvido ou à História.
A tais pensamentos, silenciosamente ruminados ao lado de Elstir enquanto o
acompanhava até em casa, é que me arrastava a descoberta que acabava de fazer com relação à
identidade de seu modelo. Ele fizera o retrato de Odette de Crécy. Seria possível que este homem
de gênio, este sábio, este solitário, este filósofo de conversação magnífica e que dominava todos
os assuntos fosse o pintor ridículo e perverso adotado outrora pelos Verdurin? Perguntei-lhe se os
havia conhecido, se por acaso eles não o apelidavam de Sr. Biche. Respondeu-me que sim, sem
constrangimento, como se se tratasse de um pedaço já um pouco antigo de sua existência; e não
desconfiava da extraordinária decepção que me causou, mas, erguendo os olhos, leu-a no meu
rosto. No seu estampou-se um ar de descontentamento. E, como já quase chegáramos à sua
casa, um homem de menor inteligência e coração do que ele talvez se despedisse um tanto
secamente e, depois, teria evitado encontrar-se comigo. Mas não foi assim que Elstir procedeu;
como verdadeiro mestre -e ser um mestre era, talvez, do ponto de vista da criação pura, o seu
único defeito, neste sentido da palavra mestre, porque um artista, para penetrar inteiramente na
verdade da vida espiritual, deve ser sozinho e não prodigalizar a sua individualidade, mesmo aos
discípulos buscava extrair de toda circunstância, fosse relativa a ele ou aos outros, e para melhor
ilustração dos jovens, a parte de verdade que ela contivesse. Então, às palavras que poderiam
vingar seu amor-próprio, preferiu as que podiam me instruir.
- Não existe homem, por mais sábio que seja - disse-me -, que não tenha, em certa época
de sua juventude, pronunciado palavras, ou até levado uma vida, cuja recordação lhe seja
desagradável e que ele desejasse ver abolidas. Mas não deve lamenta-la de todo, pois não pode
estar seguro de se ter tornado um sábio, na medida em que isso é possível, sem passar por todas
as encarnações ridículas ou odiosas que devem precedê-la. Sei que há jovens, filhos e netos de
pessoas célebres, a quem os preceptores ensinaram a nobreza de espírito e a elegância moral
desde o colégio. Talvez nada se tenha a dizer de suas vidas, poderiam assinar e publicar tudo o
que disseram, mas são pobres espíritos, descendentes sem força dos doutrinadores, e cuja
sabedoria é negativa e estéril. A gente não herda a sabedoria; é preciso descobri-la por nós
mesmos depois de uma trajetória que ninguém pode fazer por nós, e que ninguém nos pode
evitar, pois ela é uma forma de ver as coisas. As vidas que o senhor admira, as atitudes que julga
nobres, não foram obtidas pelo pai de família ou pelo preceptor; foram precedidas por inícios bem
diversos, tendo sido influenciadas pelo que lhes havia em torno, fosse bom ou banal.
Representam um combate e uma vitória. Compreendo que já não reconheçamos a imagem do
que fomos num primeiro período da vida, a qual, em todo o caso, nos é desagradável. Entretanto,
não deve ser renegada, pois trata-se de um testemunho de que temos vivido segundo as leis da
vida e do espírito e que dos elementos comuns da vida, da vida dos ateliês, dos grupos artísticos,
se se trata de um pintor-extraímos algo que os supera.
continua na página 185...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - s)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7