sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Cinema: Candelabro italiano

"AL DI LA"


o ano é 1962... o desejo de liberdade






A cansada professora PRUDENCE BELL parte para Roma em busca de aventura e romance, onde seu coração oscilará entre um estudante americano e um descendente de nobres italianos. Desiludida ela retorna para casa, mas o destino lhe reserva uma última surpresa.







Temas Instrumentais italianos do filme de 1962.
Composições: MAX STEINER AND THE CAFÉ MILANO ORCHESTRA.

01 AL DI LA 00:00
02 ARRIVEDERCI ROMA 02:31
03 VOLARE 05:32
04 TARANTELLA 08:16
05 OH MARIE 09:59
06 PRUDENCE 12:36
07 ROME ADVENTURE 14:04
08 SERENADE 16:26
09 MATTINATA 19:09
10 SANTA LUCIA 22:16
11 LOVERS MUST LEARN 24:05
12 COME BACK TO SORRENTO 26:44



IO CHE AMO SOLO TE 
- Sergio Endrigo




IO CHE AMO SOLO TE é uma das mais românticas músicas dos anos sessenta e que combina perfeitamente com o não menos romântico filme " CANDELABRO ITALIANO", embora a música tema do mesmo seja AL DI LÀ. 
Lindos lugares da ITÁLIA, cenas do filme, a peculiar interpretação de SERGIO ENDRIGO e a letra em português compõem este vídeo.



Candelabro Italiano, O 
(Rome Adventure) 1962




Rome Adventure (Brasil: O Candelabro Italiano) é um filme estadunidense de 1962, dos gêneros drama e romance, dirigido e roteirizado por Delmer Daves, baseado no romance Lovers Must Learn, de Irving Fineman.


Troy Donahue ....... Don Porter
Angie Dickinson ....... Lyda Kent
Rossano Brazzi ....... Roberto Orlandi
Suzanne Pleshette ....... Prudence Bell
Constance Ford ....... Daisy Bronson
Al Hirt ....... Al Hirt
Hampton Fancher ....... Albert Stillwell
Iphigenie Castiglioni ....... Condessa
Chad Everett
Gertrude Flynn ....... Mrs. Riggs
Pamela Austin ....... Agnes Hutton
Lili Valenty ....... Angelina
Mary Patton ....... Mrs. Helen Bell
Maurice Wells Mr. Bell


Dormi Contigo Junto Ao Mar Na Ilha

Pablo Neruda







A Noite na Ilha

Dormi contigo toda a noite
junto ao mar, na ilha.
Eras doce e selvagem entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.

Os nossos sonos uniram-se
talvez muito tarde
no alto ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento agita,
em baixo como vermelhas raízes que se tocam.

0 teu sono separou-se
talvez do meu
e andava à minha procura
pelo mar escuro
como dantes,
quando ainda não existias,
quando sem te avistar
naveguei a teu lado
e os teus olhos buscavam
o que agora
— pão, vinho, amor e cólera —
te dou às mãos cheias,
porque tu és a taça
que esperava os dons da minha vida.

Dormi contigo
toda a noite enquanto
a terra escura gira
com os vivos e os mortos,
e ao acordar de repente
no meio da sombra
o meu braço cingia a tua cintura.
Nem a noite nem o sono
puderam separar-nos.

Dormi contigo
e, ao acordar, tua boca,
saída do teu sono,
trouxe-me o sabor da terra,
da água do mar, das algas,
do âmago da tua vida,
e recebi teu beijo,
molhado pela aurora,
como se me viesse
do mar que nos cerca.

- Em "Os Versos do Capitão"


Mundo Dos Poemas 


Se Você Me Esquecer


Se você me esquecer
Eu quero que você saiba uma coisa
Você sabe como é isso
Se eu olhar para para a lua cristalina
No ramo vermelho do outono chegando
Se eu tocar perto do fogo
A cinza impalpável
ou o corpo enrugado do ramo
Tudo me leva a você
Como se tudo oque existe
Aromas, luzes, metais
Fossem pequenos barcos que navegam
em direção aquelas ilhas que esperam por mim
Bem agora, se pouco a pouco você deixar de me amar
Eu devo parar de te amar pouco a pouco
Se de repente você me esquecer
Não olhe para mim
Pois eu já devo ter esquecido você
Se você acha que isso é longo e louco
O vento das bandeiras
que passa através da minha vida
Você decide, Mas lembre-se, se você
Deixar me na costa do coração onde criei raízes
Nesse dia, nessa hora
Eu vou cruzar meus braços
E minhas raízes partirão para procurar outra terra.
Mas se, cada dia, cada hora
Você sentir que está destinada pra mim
Com sua doçura implacável
Se cada dia uma flor, escalar até seus lábios a minha procura
Lembre-se
Em mim todo esse fogo também existe
Em mim nada é extinguido ou esquecido
Meu amor se alimenta do seu amor
E enquanto você viver, eu estarei em seus braços.







Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (9a) - Certamente o senhor não chegará

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

9.

- Certamente o senhor não chegará ao ponto de negar - começou Gavril Ardaliónovitch, dirijindo-se imediatamente a Burdóvskii que se pôs a escutá-lo atentamente, apesar de uma visível agitação, os olhos muito abertos – não tentará nem quererá, de fato, negar que nasceu justamente dois anos depois que sua respeitável mãe se casou com o Sr. Burdóvskii, seu pai. A data do seu nascimento pode ser facilmente comprovada, de modo que a distorção deste fato - tão insultante para o senhor e para sua mãe... no artigo do Sr. Keller, deve ser levada à conta, simplesmente, da superabundância da imaginação do mesmo Sr. Keller: supunha ele, sem dúvida, tornar a reivindicação mais forte, por essa declaração, assim, pois, cooperando em seu interesse. O Sr. Keller diz que antes de publicar lhe leu parte do artigo, mas não todo... e não pode haver dúvida de que não lhe leu esta passagem...
- De fato não leu - interrompeu o boxeador - mas todas as informações me foram dadas por pessoa competente e eu...
- Com licença, Sr. Keller - atalhou Gavríl Ardaliónovitch - permita que eu fale. Asseguro-lhe que já chegarei ao seu artigo. E então o senhor dará as suas explicações; mas o melhor, agora, é tratarmos das coisas em sua sequência natural, Inteiramente por acaso, com o auxílio de minha irmã Varvára Ardalíónovna Ptítsina, obtive de uma sua amiga íntima, a Sra. Zubkóva, viúva que tem uma propriedade no campo, uma carta que lhe escreveu do estrangeiro o Sr. Pavlíchtchev, há vinte e quatro anos. Havendo travado conhecimento com a Sra. Zubkóva, tive ensejo de recorrer também, por sugestão dessa mulher, a um seu parente que fora outrora grande amigo do Sr. Pavlíchtchev, o coronel reformado Viazóvkin. E dele consegui mais outras duas cartas escritas também pelo Sr. Pavlíchtchev, ainda do estrangeiro. Através de tais cartas e dos fatos e datas nelas mencionados, ficou categoricamente provado, sem nenhuma possibilidade de erro ou de dúvida, que ele partira para fora do país um ano e meio antes do senhor nascer, Sr. Burdóvskii, e que fora do país permaneceu durante três anos. Ora, como o senhor bem sabe, sua mãe nunca esteve fora da Rússia. No momento não lhe leio as cartas; já é tarde. Mas se lhe interessa, marque uma hora para conversar comigo, amanhã cedo, se quiser, Sr. Burdóvskii, e traga as suas testemunhas - quantas lhe aprouver e peritos para examinar a caligrafia; estou certo de que o senhor ficará mais do que convencido da veracidade dos fatos expostos. Se assim for, todo o caso, naturalmente, cai por terra e fica liquidado. 

     Isso provocou, outra vez, emoção geral e excitação crescente. Burdóvskii imediatamente se levantou.

- Já que assim é, fui enganado! Enganado não por Tchebárov, mas desde muito antes Não preciso de peritos, não preciso ir ver o senhor, acredito, retiro minha reivindicação. Não concordo em receber os dez mil rublos... Adeus.

     Pegou o gorro e afastou a cadeira para sair.

- Se o senhor pudesse ficar mais um pouco, Sr. Burdóvskii - disse Gavril Ardaliónovitch, detendo-o com brandura e delicadeza -, ao menos uns cinco minutos. É que alguns outros fatos vieram à luz, a tal respeito, e são muito importantes E eu acho que o senhor não os devia ficar ignorando e, decerto, lhe seria muito mais conveniente se o seu caso pudesse ser completamente esclarecido. 

     Burdóvskii sentou-se sem falar, de cabeça baixa, parecendo perdido em cismas. O sobrinho de Líébediev, que se tinha levantado para segui-lo, também se sentou de novo, não tendo, porém, perdido a Sua arrogância, apesar de não poder esconder quanto estava perplexo. Ippolít estava carrancudo, decepcionado e evidentemente atônito, mas deu em tossir tão violentamente que manchou de sangue o seu lenço.
     O boxeador, esse, então, mostrava-se arrasado - O, Antíp! - disse ele amargamente - Já no outro dia... anteontem, te disse que talvez não fosses mesmo filho de Pavlíchtchev!
     Isso provocou gargalhadas gerais, umas mais altas do que outras.

- O fato que o senhor aduziu neste momento, Sr. Keller - agora Gavril Ardaliónovitch imprensava-o -, tem seu valor. Apesar disso, no entanto, eu tenho o direito de argumentar que embora o Sr. Burdóvskii soubesse muito bem a data de seu nascimento, ignorava completamente a circunstância do Sr. Pavlíchtchev residir no estrangeiro onde passava a maior parte de sua vida, só voltando uma vez ou outra à Rússia. De mais a mais o fato dele estar fora naquele tempo não era coisa assim tão importante que obrigasse as pessoas a se recordarem disso vinte anos depois; nem mesmo as pessoas que conheciam bem o Sr. Pavlíchtchev sem falar no Sr. Burdóvskíi que, a essa altura, nem nascido era, o que não quer dizer que fosse ou seja impossível estabelecer a veracidade desse fato. Quanto a mim, devo confessar que foi por mero acaso que coligi tais fatos que podiam muito bem não ter chegado às minhas mãos. O que também prova que essa averiguação pudesse ser quase impossível ao Sr. Burdóvskii e até a Tchebárov, mesmo no caso de a procurarem obter, ou nisso pensarem. Quem sabe até se nem lhes passou isso pela cabeça!
- O senhor dá licença? - aparteou, com irritação, Ippolit. - Para que toda essa lengalenga, se posso perguntar?! O caso já foi esclarecido; concordamos em aceitar o fato mais importante; por que então desenrolar toda essa lengalenga a respeito? Ou quererá o senhor, quem sabe, estadear a sua habilidade em investigações e expor diante de nós e do príncipe as suas extraordinárias qualidades de detetive? Ou está o senhor tentando desculpar e justificar o Sr. Burdóvskii, provando que ele se atrapalhou em toda essa questão por causa de sua ignorância? Veja, porém, que isso é uma imprudência, senhor! Burdóvskii dispensa as suas desculpas e justificações, deixe que lhe diga! Isso lhe é penoso e incomodativo; afinal de contas já basta a posição desastrada em que ele está; e o senhor devia ver e compreender isso. 
- Chega, Sr. Tieriéntiev, chega - disse Gavríl Ardaliónovitch fazendo-o calar-se. - Fique calmo, não se excite; receio que o senhor piore. E lastimo isso. Se prefere, paro aqui, ou antes, tratarei de resumir o mais possível uns tantos fatos que, estou convencido, devem ser plenamente conhecidos - acrescentou reparando no movimento geral de notória impaciência. - Eu apenas quero demonstrar que o Sr. Pavlíchtchev evidenciava esse interesse e bondade para com sua mãe, Sr. Burdóvskii, somente porque ela era irmã de uma serva por quem desde a mocidade ele estava apaixonado. E tanto que certamente acabariam se casando se ela não tivesse morrido repentinamente. Tenho provas da exatidão disso e de certos outros fatos pouco conhecidos ou inteiramente esquecidos. E, mais ainda, posso informá-lo como sua mãe foi tomada aos dez anos pelo Sr. Pavlíchtchev e educada por ele como se fosse sua parenta, como teve à sua disposição um dote considerável e de como os aborrecimentos originados por causa disso partiram dos numerosos parentes por cuja conta certos rumores correram. Chegou-se a pensar que ele se casaria com a sua pupila, acabando ela, porém, em sua livre escolha, se casando (e isso posso provar de maneira taxativa) com um funcionário rural chamado Burdóvskii. Reuni documentações fidedignas que comprovam que seu pai, Sr. Burdóvskii, que não mostrava propensões para o comércio, largou o emprego ao receber o dote de sua mãe, de quinze mil rublos, e se meteu em especulações comerciais, tendo sido enganado; perdeu o seu capital, desandou a beber para esquecer suas mágoas, conseqüentemente caindo doente, e vindo a morrer, por fim, oito anos depois de ter esposado a mãe do senhor. Então, depois disso, ficou ela, segundo o seu próprio testemunho, completamente sem recursos e teria chegado à ruína se não fosse o constante e generoso auxilio do Sr. Pavlíchtchev que lhe concedia seiscentos rublos por ano. Também ficou notório que ele gostava extremamente do senhor quando criança. Pelo que sua mãe me contou, é quase certo que ele gostava do senhor principalmente por causa do seu feitio desventurado de criança miserável, parecendo estropiado e gago. E, como vim a saber em fontes muito seguras, Pavlíchtchev em toda a sua vida sempre teve um sentimento de especial ternura por tudo quanto injustamente fosse flagelado pela natureza, principalmente crianças - fato esse que, a meu ver, é de grande valor no nosso caso. Finalmente, posso garantir que descobri um fato de importância primordial, e que vem a ser o seguinte: a marcada preferência de Pavlíchtchev pelo senhor (e foi mediante os esforços dele que o senhor entrou para o ginásio e recebeu uma educação apropriada) pouco a pouco foi levando os parentes de Pavlíchtchev e os membros de sua casa a imaginarem que o senhor fosse filho dele e que o seu pai tivesse sido enganado. Mas é preciso que se repare bem que tal ideia só avultou e se tornou convicção geral nos últimos dias de vida de Pavlíchtchev, quando toda a parentela dele estava sobressaltada com o seu testamento, estando já os fatos originais esquecidos e até impossibilitada sua averiguação imediata. Sem dúvida, tal ideia também lhe chegou aos ouvidos, tomando conta inteiramente do senhor. Sua mãe, cujo conhecimento tive a honra de fazer, sabia desses boatos. Mas até hoje não sabe (e nem eu lhe disse) que o senhor, seu filho, estivesse dominado por tal suposição. Fui encontrar sua respeitabilíssima mãe em Pskóv, doente e na extrema penúria em que ficara desde a morte de Pavlíchtchev. Disse-me ela, com lágrimas nos olhos, de pura gratidão, que era sustentada apenas pelo senhor. Ela confia muito no seu futuro e crê de modo absoluto em seu triunfo daqui por diante... 
- Mas isso já está ficando intolerável! - berrou o sobrinho de Liébediev, não suportando mais. - Qual é o fim desse romance? 

     E Ippolít o coadjuvou, em um movimento abrupto: - Isso ofende e chega a ser inaudito!
     Só Burdóvskii ficou imperturbável.

 - Porque, em primeiro lugar, o Sr. Burdóvskii decerto está agora plenamente convencido de que o Sr. Pavlíchtchev o amava por generosidade e não por ser o filho dele. Só este fato já era essencial que o Sr. Burdóvskii soubesse, já que ficou do lado do Sr. Keller, aprovando tudo quanto do artigo lhe foi lido. Digo isto porque considero o Sr. Burdóvskii um homem direito. Em segundo lugar parece que não houve a menor intenção de chantagem e dolo no caso, mesmo da parte de Tchebárov; esse é um ponto importante para mim, também, porque o príncipe, ao falar acaloradamente ainda agora, me mencionou como concordando com a sua opinião de haver um elemento desonesto e trapaceiro no caso. Pelo contrário, houve absoluta boa-fé por parte de todos, e muito embora o Sr. Tchebárov possa ser um grande espertalhão, neste caso ele aparece apenas como um agudo e intrigante advogado. Esperava fazer alto negócio com isso, como advogado, e os seus cálculos não foram apenas agudos e magistrais; foram seguros. Baseava-se ele na correção com que o príncipe se comporta a respeito de dinheiro; baseava-se em sua gratidão e respeito por Pavlíchtchev. E, o que é mais, se baseava principalmente na maneira cavalheiresca com que o príncipe, como mais que notório, cumpre suas obrigações de honra e consciência. Quanto ao Sr. Burdóvskii, pessoalmente, ainda se pode dizer que, graças a certos pendores seus, foi tão trabalhado por Tchebárov e por seus amigos outros, que tomou o caso a peito, fora até do seu interesse moral, porém mais como um serviço à verdade, ao progresso e à humanidade. Agora, pois, após tudo quanto acabo de dizer, se torna mais do que claro que o Sr. Burdóvskii é um homem inocente, sejam quais forem as aparências. E assim, o príncipe, mais prontamente e zelosamente do que antes, lhe vai oferecer seu amistoso auxílio e, de modo particular, essa ajuda substancial a que se referiu agora ao falar sobre escolas e Pavlíchtchev...
- Pare! Agora não, Gavríl Ardaliónovitch, deixe isso para depois... - exclamou o príncipe desapontadíssimo; mas era tarde demais.
- Eu já lhe disse, já lhe disse três vezes - falou Burdóvskii no auge da irritação - que não quero o dinheiro, que não aceito... não quero aceitar... Vou- me embora!

     E já ia a correr pela varanda. Mas o sobrinho de Liébediev o agarrou pela manga e lhe disse ao ouvido qualquer coisa. Imediatamente Burdóvskii voltou e tirando um enorme envelope sem lacre do bolso o arremessou sobre a mesa, na direção do príncipe. 

- Aí está o dinheiro. Como foi que o senhor ousou? Como? O dinheiro! 
- Aqueles duzentos e cinquenta rublos que o senhor teve o desplante de lhe enviar, como uma esmola, por Tchebárov! - explicou Doktorénko. 

     Ao que Kólia comentou: - Mas o artigo dizia cinquenta.

- Fiz mal - declarou o príncipe erguendo-se e indo até Burdóvskii - Confesso que fiz mal, Burdóvskií mas acredite que não mandei isso como esmola. Tenho de reconhecer agora e antes. (O príncipe estava muito angustiado, com um ar exausto e esgotado e as suas palavras eram um pouco desconexas.) Falei em trapaça mas não me referi ao senhor. Eu estava enganado. Disse que o senhor era doente como eu. Mas o senhor não é como eu, o senhor dá aulas.., o senhor sustenta sua mãe. Eu disse que o senhor estava expondo sua mãe à vergonha; mas o senhor a ama, ela mesma o disse... E eu não sabia. Gavríl Ardaliónovitch não me tinha contado tudo. Sou culpado. Cheguei a lhe oferecer dez mil rublos, mas mereço censuras, eu devia ter feito isso de modo diferente, e agora.., isso não pode ser feito, porque o senhor me desdenha...
- Isto é uma casa de loucos! - exclamou Lizavéta Prokófievna.
- Lógico que é uma casa de malucos! - não pôde Agláia deixar de dizer, cortantemente. 

     Mas as palavras delas se perderam na celeuma geral. Todos gritavam e discutiam, alguns seriamente, outros rindo. Iván Fiódorovitch Epantchín estava no auge da indignação e, com um ar de ofendida dignidade, esperava pela mulher. Quem pôs em tudo aquilo a última palavra foi o sobrinho de Liébediev: - Sim, príncipe, tem-se de lhe fazer justiça. O senhor sabe como aproveitar a sua.., ora bem.., doença (para me exprimir polidamente); tal jeito deu o senhor no modo por que ofereceu sua amizade e seu dinheiro, de maneira tão engenhosa, que é impossível agora a um homem de bem receber uma e outra coisa, seja sob que circunstância for. E isso ou é uma demonstraçãozinha de inocência, ou de esperteza... O senhor sabe, melhor do que nós.

- Mas, com licença, senhores! - volveu Gavríl Ardaliónovitch que nesse ínterim tinha aberto o envelope. - Aqui não há duzentos e cinquenta rublos e sim somente cem. Quero, com o que estou dizendo, que não haja mal- entendido.
- Deixe, deixe,.. - exclamou o príncipe, acenando para Gavríl Ardaliónovitch.
- Não! “Deixe”, não!... - E o sobrinho de Liébediev se interpôs. - Esse seu “deixe” é insultante para nós, príncipe. Não estamos escondendo, declaramos abertamente: no envelope há só cem rublos, em lugar de duzentos e cinquenta; nem isso vem a dar no mesmo... 
- De fato não vem a dar no mesmo! - acrescentou Gavríl Ardaliónovitch, com um ar de ingênua perplexidade.
- Queira não nos interromper; não somos nenhum idiota, senhor advogado - redarguiu o sobrinho de Liébediev com desprezo. - Naturalmente que cem rublos não são a mesma coisa que duzentos e cinquenta, nem isso vem a dar no mesmo, mas o que importa é o princípio. O que importa é a iniciativa e lá isso de estarem faltando cento e cinquenta rublos é mero pormenor. O que importa é que Burdóvskii não aceita a sua esmola, Excelência, que a joga em seu rosto e isso tem justamente o sentido de que não faz diferença se são cem ou duzentos e cinquenta. Burdóvskii não aceitou os dez mil rublos, conforme o senhor já escutou; e não teria trazido os cem rublos, em restituição, se fosse desonesto. Os cento e cinquenta rublos ficaram com Tchebárov como pagamento da viagem que fez para se avistar com o príncipe. O senhor pode rir de nossa falta de tirocínio e experiência em negócios; o senhor tentou o mais que pôde nos ridicularizar, mas não ousará chamar-nos de desonestos. Nós nos cotizaremos todos, senhor, para pagar ainda esses cento e cinquenta rublos ao príncipe. Tê-lo-íamos pago, mesmo que fosse só um rublo! Pagaremos com juros. Burdóvskií é pobre. Burdóvskii não tem milhões, e Tchebárov mandou cobrar a sua viagem. Nós esperávamos ganhar a questão... quem não teria feito o mesmo, no lugar dele?  
- Quem não teria?! - exclamou o Príncipe Chtch... 
- Eu acabo perdendo o juízo, aqui! - proferiu Lizavéta Prokófievna. - Isto me faz lembrar - disse a rir, Evguénii Pávlovitch, que desde muito estava prestando atenção em tudo aquilo - uma célebre defesa feita recentemente por um advogado que, enumerando com justificativa a pobreza do seu cliente, desculpando-o por ter assassinado e roubado seis pessoas de uma só vez, repentinamente rematou com algo mais ou menos assim: “Era natural que, ante a uma pobreza, ocorresse ao meu cliente a ideia de assassinar seis pessoas! Sim, porque, afinal de contas, em idêntica situação, a quem não ocorreria a mesma ideia?” Algo mais ou menos deste teor! Muito engraçado. Basta! - fez ver Lizavéta Prokófievna, em um transporte quase de raiva. - Já é tempo de parar com este espetáculo.

O Idiota: Segunda Parte (9a) - Certamente o senhor não chegará
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Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / XVI — Quot libras in duce?

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

XVI Quot libras in duce?

     
     O combate de Waterloo é um enigma. É tão obscuro para os que a ganharam, como para os que o perderam. 
     Para Napoleão é um pânico.[1] Blucher não viu nela senão fogo, Wellington nem de leve a compreendeu. Vede os relatórios. Os boletins são confusos, os comentários intrincados. Estes balbuciam, aqueles gaguejam. 
     Jomini divide a batalha de Waterloo em quatro momentos. Mufling corta-a em três peripécias; Charras, conquanto em alguns pontos apreciemos as coisas de outro modo, foi o único que soube abranger, com o olhar penetrante que se lhe nota, os lineamentos característicos daquela catástrofe do génio humano a braços com o acaso divino. Todos os outros historiadores parecem vítimas de certo deslumbramento que os fez andar às apalpadelas. 
     Jornada fulgurante, com efeito, desmoronamento da monarquia militar, que com grande espanto dos reis, arrastou todos os reinos; queda da força, derrota da guerra. 
     Neste acontecimento impregnado de necessidade sobrenatural é nula a parte tomada pelos homens.
     Tirando Waterloo a Wellington e a Blucher, tira-se alguma coisa à Inglaterra e à Alemanha? Não. Nem essa ilustre Inglaterra, nem essa augusta Alemanha entram no problema de Waterloo. Graças ao céu, os povos são grandes fora das lúgubres aventuras da espada. Nem a Alemanha, nem a Inglaterra, nem a França, tiram a sua grandeza de uma bainha. 
     Na época em que Waterloo não era mais do que o tinir de sabres, tinha a Alemanha acima de Blucher, Goethe. E a Inglaterra acima de Wellington, Byron. 
     É próprio do nosso século o vasto aparecimento de ideias, e dessa aurora produzem a Inglaterra e a Alemanha um clarão magnífico. São majestosas porque pensam. A elevação de nível que trazem à civilização é-lhes intrínseca, provêm-lhes de si mesmas, e não de um acidente. O que elas têm de engrandecimento no século XIX, não lhes brotou de Waterloo. Só os povos bárbaros têm súbitas indigestões depois de uma vitória.
     É a vaidade passageira das torrentes engrossadas pela tempestade. 
     Os povos civilizados, sobretudo nos tempos em que estamos, não se elevam nem se rebaixam pela boa ou má fortuna de um capitão. O seu peso específico no género humano resulta de alguma coisa superior a um combate. A sua honra, a sua dignidade, luzes e génio, graças a Deus!, não são algarismos, que esses jogadores, conquistadores e heróis, possam arriscar na lotaria das batalhas. Muitas vezes uma batalha perdida é um progresso adquirido. Menos glória, mais liberdade. Cala-se o tambor, cabe a palavra à razão. É o jogo em que ganha quem perde. Falemos, pois, de Waterloo, friamente por ambos os lados. Demos ao acaso o que é do acaso e a Deus o que é de Deus. O que foi Waterloo? Uma vitória? Não. Uma partida de jogo. Jogo ganho pela Europa e pago pela França.
     Não valia muito a pena de colocar ali um leão. 
     Quanto ao resto, Waterloo é o mais extraordinário encontro que figura na história. Napoleão e Wellington. Não eram dois inimigos eram dois caracteres opostos. 
     Deus, que se apraz com as antíteses, nunca produziu mais frisante contraste, ou confronto mais extraordinário. De um lado a exatidão, a previsão, a geometria, a prudência, a retirada segura, as reservas poupadas, um inalterável sangue-frio, um método imperturbável que se aproveita do terreno, a tática que equilibra os batalhões, a carnificina alinhada a cordão, a guerra dirigida de relógio na mão, coisa alguma entregue voluntariamente ao acaso, a velha coragem clássica e a correção absoluta; do outro a intuição, a predição, a excentricidade militar, o instinto sobrenatural, a flamejante certeza da vista, o não sei quê, que olha como a águia e fere como o raio, uma arte prodígio numa impetuosidade desdenhosa, todos os mistérios de uma alma profunda, a associação com o destino; o rio, a planície, a floresta e a colina empregados, e de certo modo obrigados a obedecer, o déspota tiranizando até o campo de batalha; a fé numa estrela de envolta com a ciência estratégica, engrandecendo-a.
     Wellington era o Bareme da guerra. Napoleão o seu Miguel Ângelo; e desta vez o génio foi vencido pelo cálculo. 
     De ambos os lados se esperava por alguém. Foi o calculista exato o bem sucedido. Napoleão esperava Grouchy, não apareceu. Wellington esperava Blucher, não deixou de vir. 
     Wellington é a guerra clássica tomando a sua desforra. Bonaparte, ainda na sua aurora, encontrando-a na Itália, Abatera-a soberbamente. A velha coruja fugira diante do novel abutre. A táctica velha, fora não somente fulminada, mas escandalizada.
     Quem era esse corso de vinte e seis anos, o que significava o ignorante esplêndido, que tendo tudo contra si, sem víveres, sem munições, sem artilharia, sem calçado, quase sem exército, com um punhado de homens contra enormes massas, precipitando-se sobre a Europa coligada e ganhando absurdamente vitórias impossíveis? Quem era esse recém-chegado à guerra, mostrando a arrogância de um astro? A escola académica militar excomungava-o cedendo-lhe o terreno. Daqui um implacável rancor do velho contra o novo cesarismo, do sabre correto, contra a espada flamejante e do xadrez contra o gênio. 
     No dia 18 de Junho de 1815, esse rancor soltou a sua última expressão, e por baixo de Lodi, de Montebelo, de Montenotte, de Mantua, de Marengo e de Arcole, escreveu Waterloo.
     Triunfo dos medíocres, agradável às maiorias. O destino consentiu esta ironia. 
     Napoleão, na decadência, encontrou diante de si Wurmser moço. 
     Com efeito, para se ter Wurmser, basta embranquecer os cabelos de Wellington. 
     Waterloo é uma batalha de primeira ordem, ganha por um general de segunda. O que é indispensável admirar na batalha de Waterloo, é a Inglaterra; é a firmeza, a resolução e o sangue inglês; o que a Inglaterra ali tem de soberbo, não lhe desagrada, é ela mesma. Não é o seu capitão, é o seu exército. Wellington, extravagantemente ingrato, declara numa carta a lord Bathurst que o seu exército que combateu no dia 18 de Junho de 1815, «era detestável».
     O que pensará disto a sombria acumulação de ossadas no solo de Waterloo? 
     A Inglaterra foi demasiadamente modesta em presença de Wellington. Fazer Wellington tão grande, é tornar a Inglaterra pequena, Wellington não é mais do que um herói como qualquer outro.
     Os escoceses pardos, as guardas a cavalo, os regimentos de Maitland e de Mitchell, a infantaria de Pack e Kempt, a cavalaria de Ponsomby e de Somerset, os Highlanders, tocando a gaita de foles debaixo da metralha, os batalhões de Rylandt, os recrutas completamente novatos, que sabiam apenas o manejo da arma resistindo aos velhos corpos de Essling e de Rivoli, eis o que é grande. 
     Wellington mostrou-se tenaz, foi esse o seu mérito, não lhe contestamos, mas o último dos seus peões ou dos seus cavaleiros mostrou-se tão firme como ele.
     O iron soldado valeu bem o iron duque. Quanto a nós, dirigimos toda a nossa glorificação ao soldado inglês, ao exército inglês e ao povo inglês. 
     Se há troféu pertence à Inglaterra. A coluna de Waterloo seria mais justa, se em vez da figura de um homem, sustentasse entre as nuvens a estátua de um povo. Mas essa grande Inglaterra irritar-se-á, decerto, com o que aqui dizemos. Depois do seu 1688 e do nosso 1789, conserva ainda a sua ilusão feudal. A Inglaterra crê na hereditariedade e na hierarquia.
     Esse povo, que nenhum outro ultrapassa em poder e glória, estima-se como nação, e não como povo. Enquanto povo, subordina-se voluntariamente e toma um lord por uma cabeça. Workman deixa-se açoitar. Todos se recordam da batalha de Inkermann, onde um sargento, que, segundo parece, salvara o exército, não pôde ser mencionado por lord Raglan, porque a hierarquia militar inglesa não permite que se faça menção alguma de qualquer herói, que não seja oficial, ao menos subalterno. 
     O que admirámos acima de tudo, num conflito do gênero de Waterloo, é a prodigiosa habilidade do acaso.
     Chuva noturna, muro de Hougomont, azinhaga de Ohain, Grouchy surdo à artilharia, Napoleão enganado pelo guia, Boulow esclarecido pelo seu; todo este cataclismo é admiravelmente conduzido. 
     Em conclusão, digamo-lo: em Waterloo houve mais carnificina do que batalha. 
     Waterloo é, de todas as batalhas campais, a que apresentou mais limitada frente com tal número de combatentes.
     Napoleão, três quartos de légua, Wellington, meia légua; de cada lado setenta e dois mil combatentes; foi de tão grande espessura que proveio a mortandade. 
     Fez-se este cálculo e estabeleceu-se esta proporção, sobre a perda de homens: Em Austerlitz, franceses, catorze por cento; russos, trinta por cento, austríacos, quarenta e quatro por cento.
     Em Wagram, franceses, treze por cento; austríacos catorze. 
     Na Moskow, franceses, trinta e sete por cento; russos quarenta e quatro por cento. 
     Em Bautzen, franceses, treze por cento; russos e prussianos, catorze por cento. 
     Em Waterloo, franceses, cinquenta e seis por cento; aliados trinta e um por cento. 
     Total em Waterloo, quarenta e um por cento. 
     Cento e quarenta e quatro mil combatentes; sessenta mil mortos. 
     O campo de Waterloo apresenta hoje o sossego peculiar à terra, impassível sustentáculo do homem, e assemelha-se a todas as planícies.
     Contudo, durante a noite, destaca-se dele uma espécie de nevoeiro fantástico, e se algum viajante que por ali passa, olha, escuta e sonha como Virgílio nas funestas planícies de Philippes, é atacado pela alucinação da catástrofe. 
     O medonho 18 de Junho revive; a falsa colina monumento desaparece, esse leão qualquer dissipa-se, o campo da batalha volta à realidade, linhas de infantaria ondulam na planície, galopes furiosos atravessam o horizonte; o sonhador assustado chega a ver o relampejar dos sabres, o cintilar das baionetas, o flamejar das bombas, o monstruoso cruzar do trovão, qual estertor saído de um túmulo, o clamor vago da batalha-fantasma; essas sombras, são os granadeiros; esses clarões são os couraceiros; esse esqueleto é Napoleão, esse outro esqueleto é Wellington; nada disto existe já, e tudo se embate e combate ainda; os barrancos tingem-se de púrpura, as árvores estremecem, a poeira chega até às nuvens, e nas trevas, todas as ferozes elevações, Mont-Saint-Jean, Hougomont, Frischemont, Papelotte e Plencenoit, aparecem coroadas por turbilhões de espectros exterminando-se.

continua na página 269...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - XVI — Quot libras in duce?
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 
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[1] «Uma batalha terminada uma jornada concluída, reparação de medidas mal tomadas a certeza do melhor bom êxito no dia seguinte tudo se perdeu por um momento de terror pânico.» («Napoleon», Dictees de Saint-Helene).

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Muitas vezes, outrora - x)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann

ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust

um amor de swann

III(x) 

continuando...

     Muitas vezes, outrora, ao pensar com terror que algum dia deixaria de amar Odette, resolvera ficar em vigilância e, logo que sentisse que o amor começava a abandoná-lo, apegar-se a ele, retê-lo bem. Mas eis que ao enfraquecimento de seu amor correspondia simultaneamente um enfraquecimento do desejo de permanecer enamorado. Pois a gente não pode mudar, isto é, tornar-se uma outra pessoa e ao mesmo tempo continuar obedecendo aos sentimentos daquela que não mais se é. Às vezes, lendo no jornal o nome de algum homem que supunha ter sido dos prováveis amantes de Odette, tornava a sentir ciúme. Mas era bem leve, e como lhe provava que ainda não emergira completamente daquela época em que tanto sofrera — mas em que também conhecera um modo tão voluptuoso de sentir — e que os acasos do caminho talvez ainda lhe permitissem perceber furtivamente e de longe a sua passada beleza, aquele ciúme antes lhe proporcionava uma agradável excitação, como ao melancólico parisiense que deixa Veneza para voltar à França, um último mosquito vem provar que a Itália e o verão ainda não estão muito longe. Mas, em geral, aquela época tão particular da sua vida de que agora saía, quando ele se esforçava, se não por continuar nela, mas ao menos por ter, enquanto ainda fosse tempo, uma visão nítida daquilo tudo, via que já lhe não era possível; aquele amor que acabava de deixar, desejaria ainda avistá-lo como uma paisagem que fosse desaparecendo; mas é tão difícil a gente desdobrar-se e conceder a si mesmo o espetáculo verídico de um sentimento que já não se possui, que logo o cérebro se lhe obscurecia, ele não via mais nada, desistia de olhar, tirava o lornhão, esfregava-lhe os vidros; e dizia consigo que melhor seria repousar um pouco, que ainda havia tempo, e recolhia-se em seu canto, com essa falta de curiosidade e esse torpor do viajante sonolento que baixa o chapéu sobre os olhos, para dormir, no trem que ele sente que o vai arrastando cada vez mais depressa para longe da terra onde tanto tempo viveu e que prometera a si mesmo não deixar fugir sem lhe dar um último adeus. Também como aquele viajante, ao despertar já em terras de França, quando Swann colheu por acaso a prova de que Forcheville fora amante de Odette, reconheceu que isso não o fazia sofrer, que o amor agora estava longe, e lamentou não haver notado o momento em que desaparecia para sempre. E da mesma forma que, ao beijar Odette pela primeira vez, procurara gravar na memória a face que por tanto tempo ela lhe apresentara e que a lembrança daquele beijo iria transformar, assim desejaria, pelo menos em pensamento, despedir-se, enquanto ela ainda existia, daquela Odette que lhe inspirava amor e ciúme, daquela Odette que lhe causava sofrimentos e que agora não mais tornaria a ver.
     Enganava-se. Devia revê-la ainda uma vez, algumas semanas mais tarde. Foi, enquanto dormia, no crepúsculo de um sonho. Passeava ele com a sra. Verdurin, o dr. Cottard, um jovem de fez a quem não podia identificar, o pintor, Odette, Napoleão III e meu avô, por uma estrada paralela ao mar e que o dominava a pique, ora de muito alto, ora de alguns metros apenas, de maneira que subiam e desciam constantemente; os passeantes que desciam já não eram visíveis aos que ainda subiam, a pouca luz que restava ia enfraquecendo e parecia então que uma noite escura iria baixar imediatamente. Às vezes as vagas saltavam até a borda e Swann sentia na face respingos gelados. Odette lhe dizia que enxugasse o rosto, ele não podia, o que o deixava confuso perante ela, como se estivesse de camisa de dormir. Esperava que não o notassem, devido à obscuridade, mas a sra. Verdurin fitou-o com espanto durante um longo momento enquanto ele via o rosto dela se ir deformando, o nariz alongar-se e aparecerem-lhe grandes bigodes. Virou-se para olhar Odette: suas faces estavam pálidas, com pontinhos vermelhos, os traços repuxados, tinha grandes olheiras, mas fitava-o com uns olhos cheios de ternura, prestes a destacar-se como lágrimas para tombarem sobre ele, e Swann sentia que a amava tanto que desejaria levá-la consigo imediatamente. De repente Odette olhou seu relógio de pulso e disse: “Tenho de ir embora”; fez a todos uma despedida geral, sem chamar Swann à parte, sem lhe dizer onde se encontrariam naquela noite ou num outro dia. Não ousou perguntar-lhe, desejava acompanhá-la, e via-se obrigado, sem se voltar para ela, a responder sorrindo a uma pergunta da sra. Verdurin, mas seu coração batia horrivelmente, ele sentia ódio a Odette, e desejava furar aqueles olhos que tanto amara momentos antes e lacerar aquelas faces sem frescor. Continuava a subir com a sra. Verdurin, isto é, a afastar-se a cada passo de Odette, que descia em sentido inverso. Ao fim de um segundo, fazia muitas horas que ela havia partido. O pintor observou a Swann que Napoleão iii se eclipsara um instante depois dela: “Com certeza estava combinado entre os dois”, acrescentou. “Devem ter-se juntado no fundo da encosta, mas não quiseram despedir-se juntos por causa das conveniências. Ela é sua amante.” O jovem desconhecido pôs-se a chorar. Swann tentou consolá-lo. “Afinal de contas ela tem razão”, disse-lhe Swann, enxugando-lhe os olhos e retirando-lhe o fez para que ele ficasse mais à vontade. “Eu o aconselhei a Odette várias vezes. Para que tanta tristeza? Era mesmo o homem que poderia compreendê-la.” Assim falava Swann a si mesmo, pois o jovem que a princípio não pudera identificar era também ele; como certos romancistas, Swann havia dividido a sua personalidade entre duas personagens: a que estava sonhando e a que ele via diante de si com um fez na cabeça.
     Quanto a Napoleão III, era a Forcheville que alguma vaga associação de ideias, depois certa mudança na fisionomia habitual do barão, e finalmente a fita da Legião de Honra que lhe cruzava o peito, haviam induzido Swann a atribuir-lhe esse nome; mas, na verdade, e por tudo o que a personagem presente no sonho lhe significava e evocava, tratava-se mesmo de Forcheville. Pois, de imagens incompletas e mutáveis, o Swann adormecido tirava conclusões falsas, e aliás momentaneamente com tamanho poder criador que ele próprio se reproduzia por simples divisão, como certos organismos inferiores; com o calor que sentia na palma da mão modelava a mão de um estranho, que supunha estar apertando e, de sentimentos a impressões de que ainda não tinha consciência, fazia nascer peripécias que, por seu encadeamento lógico, introduziriam em dado momento no seu sono a personagem necessária para receber seu amor ou despertá-lo. De súbito baixou uma noite escura, um sino tocou a rebate, passou gente a correr, fugindo das suas casas em chamas; Swann ouvia o rumor das vagas que saltavam e o seu coração que, com a mesma violência, batia de angústia dentro do peito. De repente as palpitações redobraram de velocidade, ele sentiu um sofrimento, uma ânsia inexplicáveis; um camponês cheio de queimaduras lhe gritava de passagem: “Vá perguntar a Charlus aonde Odette foi terminar a noite com o seu camarada, Charlus esteve com Odette antigamente e ela lhe conta tudo. Foram eles que atearam o fogo”. Era o seu criado de quarto que vinha despertá-lo e lhe dizia:

— Senhor, são oito horas, e o cabeleireiro chegou, eu lhe disse que passasse daqui a uma hora.

     Mas essas palavras, penetrando nas ondas do sono em que Swann estava mergulhado, só lhe haviam chegado até a consciência depois de sofrer essa desviação que faz com que no fundo d’água um raio pareça um sol, da mesma forma que, momentos antes, o tinir da campainha, adquirindo no fundo daqueles abismos uma sonoridade de sino em rebate, engendrara o episódio do incêndio. Nisto, o cenário que tinha sob os olhos desfez-se em pó, Swann ergueu as pálpebras, ouviu uma última vez o rumor de uma das vagas do mar que se ia afastando. Tocou a face. Estava seca. E lembrava contudo a sensação da água fria e o gosto do sal. Levantou-se da cama, vestiu-se. Mandara chamar cedo o cabeleireiro porque na véspera tinha avisado por escrito a meu avô que iria de tarde a Combray, pois soubera que a sra. de Cambremer — srta. Legrandin — devia ali passar alguns dias. Associando, na memória, ao encanto daquele rosto jovem, o de uma campina que desde muito não via, deparavam-lhe ambos um atrativo que o decidira a deixar Paris por alguns dias. Como os diferentes acasos que nos põem em presença de certas pessoas não coincidem com o tempo em que nós as amamos, mas, ultrapassando-o, podem suceder antes que ele comece e repetir-se depois que findou, as primeiras aparições que faz em nossa vida um ser destinado a agradar-nos mais tarde assumem retrospectivamente para nós um valor de advertência, de presságio. Dessa maneira se reportara Swann muitas vezes à imagem de Odette encontrada no teatro, naquela primeira noite em que não pensava tornar a vê-la — como recordava agora o sarau da sra. de Saint-Euverte em que tinha apresentado o general de Froberville à sra. de Cambremer. Tão múltiplos são os interesses de nossa vida que não é raro que, numa mesma circunstância, os marcos de uma felicidade que ainda não existe estejam pousados ao lado da agravação de um mal de que sofremos. E sem dúvida poderia isso ter acontecido a Swann em outro lugar que não os salões da sra. de Saint-Euverte. E no caso em que ele se encontrasse noutra parte aquela noite, quem sabe lá que outras venturas e penas não lhe teriam acontecido, que depois se lhe afigurariam inevitáveis! Mas o que lhe parecia ter sido inevitável era o que acontecera, e não estava longe de ver alguma coisa de providencial no fato de ter resolvido ir ao sarau da sra. de Saint-Euverte, porque o seu espírito, desejoso de admirar a riqueza inventiva da vida e incapaz de encarar por muito tempo uma questão difícil, como a de saber o que teria sido preferível, descobria nos sofrimentos que experimentara aquela noite e nos insuspeitados prazeres que então germinavam — e cujo balanço era tão difícil de estabelecer — uma espécie de encadeamento necessário.
     Mas uma hora depois de despertar, quando dava instruções ao cabeleireiro para que o seu penteado não se desarranjasse no trem, tornou a pensar no sonho, reviu, tal como os sentira bem perto de si, a tez pálida de Odette, as suas faces demasiado magras, os traços cansados, os olhos pisados, tudo aquilo que — no decurso das sucessivas ternuras que tinham feito de seu durável amor um longo esquecimento da imagem primeira que recebera de Odette — tinha deixado de notar desde os primeiros tempos da sua ligação e nos quais certamente a sua memória, enquanto ele dormia, fora buscar a sensação exata. E com essa intermitente grosseria que lhe voltava logo que ele não mais sofria e que rebaixava o nível de seu caráter moral, exclamou consigo mesmo: “E dizer que eu estraguei anos inteiros de minha vida, que desejei a morte, que tive o meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não era o meu tipo!”.

continua na página 247...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Muitas vezes, outrora - x)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 7

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Mozart

Requiem KV.626


Desculpe pelo roubo, Milton Ribeiro.


Mozart
- Requiem KV 626
- Böhm 
- Wiener Opernfest, 1955




Mozart - Requiem - Böhm (Wiener Opernfest, 20.11.1955)

Irmgard Seefried · Sopran
Hildegard Rössel-Majdan · Alt
Anton Dermota · Tenor
Gottlob Frick · Bass

Karl Böhm
Wiener Staatsopernchor
Wiener Philharmoniker



"Por pura curiosidade, indagorinha (o Milton publicou esse texto no seu perfil ontem, quarta-feira, 29 de janeiro de 2025, às 18h02, gostei e roubei, simples assim... desculpe pelo roubo, Milton, queria descobrir se os 14 acessos do butekudu baitasar são alongados ou se deixaram vencer pela cintura mole) ouvi duas vezes o Réquiem de Mozart. A primeira na célebre interpretação de Böhm com a Wiener Ph. e depois com o Koopman e a Amsterdam Baroque Orch.

Acho que esta é uma batalha ganha pelos modernos admiradores das coisas antigas. Meus ouvidos afirmam que é mais bonita a versão com instrumentos originais, mais transparente e delicada. Além disso, o estilo de Koopman me parece mais correto ao não ser tão tonitruante e pesado. O molho de Böhm é pesado demais para Mozart, né? E... Se nossas salas de concertos já são museus sonoros, nada mais natural que os timbres originais sejam respeitados, penso. Além disso, os historicamente informados de hoje fazem pilates, são alongados, não têm mais a cintura dura.

Discorde aí na sua casa."

Milton Ribeiro


 
Mozart 
- Requiem KV.626
- Koopman, 1989
- Amsterdam Baroque Orchestra




Soprano: Barbara Schlick
Contralto: Carolyn Watkinson
Tenor: Christoph Prégardien
Bass: Harry van der Kamp

Koor van de Nederlandse Bachvereniging
Amsterdam Baroque Orchestra
Conductor: Ton Koopman
Recording: October 1989

00:00 Requiem - Kyrie
06:22 Dies irae
08:01 Tuba mirum
11:26 Rex tremendae
13:14 Recordare
18:43 Confutatis
21:10 Lacrimosa
23:52 Domine Jesu
27:36 Hostias
31:21 Sanctus
32:42 Benedictus
37:36 Agnus Dei - Lux aeterna


Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / XV — Cambronne

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

XV Cambronne
     
     Ao leitor francês que quer ser respeitado não pode ser repetida a frase mais bela que talvez tenham pronunciado lábios franceses. É proibir o sublime ao historiador; nós, porém, infringimos a proibição, apesar de todos os riscos e perigos que possamos correr. 
     Entre aqueles gigantes, houve um titã, que foi Cambronne. 
     O que pode haver de mais grandioso do que pronunciar essa palavra e em seguida morrer! Porque é morrer empregar todos os esforços para o conseguir; porque esse homem não é culpado de ter sobrevivido, a despeito da metralha.
     O homem que ganhou a batalha de Waterloo, não foi Napoleão, derrotado; não foi Wellington, recuando às quatro horas, e sem esperança às cinco; não foi Blucher, que não combateu: o homem que ganhou a batalha de Waterloo foi Cambronne. 
     Fulminar com tal palavra o trovão que nos aniquila, é vencer. 
     Respondendo de semelhante modo à catástrofe, falar assim ao destino, dar aquela base ao leão futuro, arremessar aquela réplica à chuva da noite precedente, ao muro traidor de Hougomont, à azinhaga de Ohain, à demora de Gruchy e à chegada de Blucher, ser a ironia do sepulcro, fazer com que ficasse de pé depois de tudo ter caído, afogar em duas sílabas a coalizão europeia, oferecer aos reis as sentinas já conhecidas dos Césares, fazer da última a primeira das páginas juntando-lhes o relâmpago da França, terminar insolentemente Waterloo com o carnaval, completar Leónidas com Rebelais, resumir esta vitória numa palavra suprema, impossível de se pronunciar, perder o terreno e salvar a história, depois da carnificina ter por si os que riem, é imenso.
     É o insulto ao raio. Este facto atinge a grandeza esquiliana. 
     A palavra de Cambronne produz o efeito de uma fratura. É o arrombamento de um peito pelo desprezo; é a explosão da superabundância do sofrimento. Quem venceu? Foi Wellington? Não. Sem Blucher estava perdido. Foi Blucher? Não. Se Wellington não tivesse começado, Blucher não teria podido acabar. Esse Cambronne, esse transeunte da última hora, esse soldado ignorado, essa insignificância da guerra, conhece a mentira que há numa catástrofe, pungente redobro de dor; e no momento em que estala de raiva, oferecem-lhe o escárnio, a vida! Como deixaria de estoirar!
     Estão ali todos os reis da Europa, os generais felizes; os Júpiteres tonantes contam cem mil soldados vitoriosos, e por trás dos cem mil mais um milhão; as suas peças estão escancaradas e com os morrões acesos, têm debaixo dos pés a guarda imperial e o grande exército, acabam de aniquilar Napoleão, e não resta senão Cambronne; não há para protestar senão este pequeno verme. Mas o verme protestará. Para isto, procurou uma palavra como se procurasse uma espada. Sobrevém-lhe espuma e essa espuma é a palavra procurada. 
     Em presença da vitória sem vitoriosos, aquele desesperado ergue-se; sofre-lhe o peso enorme, mas regista-lhe a nulidade; faz mais do que escarrar-lhe em cima; e, sob a opressão do número, da força e da matéria, encontra na alma uma expressão, o excremento. Repetimo-lo, dizer, fazer, achar uma tal coisa, é ser vencedor. O espirito dos grandes dias entrou no homem desconhecido naquele fatal momento. Cambronne achou a expressão de Waterloo como Rouget de L’Isle achou a Marselhesa, pela visita de sopro que vem de cima.
     Um eflúvio da tempestade divina destaca-se e vem passar atrás destes homens, fá-los estremecer, um entoa o cântico supremo, o outro solta o grito, terrível. Essa palavra de desprezo titânico não a lança Cambronne somente à Europa em nome do império, seria pouco; lança-a ao passado em nome da revolução. Ouve-se e reconhece-se em Cambronne a velha alma dos gigantes. Parece que é Danton falando, ou Kléber rugindo. 
     A palavra de Cambronne respondeu a voz inglesa: Fogo!
     As baterias flamejaram, a colina estremeceu, de todas aquelas bocas de bronze saiu um último e espantoso vómito de metralha; densa nuvem de fumo um pouco esbranquiçado pelos primeiros raios da Lua, toldou o espaço, e quando se dissipou não havia mais nada. Os temíveis restos tinham sido aniquilados, a guarda estava morta As quatro paredes do reduto vivo jaziam por terra, apenas se distinguia num ou noutro ponto, algum estremecimento entre os cadáveres. 
     Foi assim que as legiões francesas, mais grandiosas do que as romanas, expiraram em Mont-Saint-Jean, no solo ensopado em água e sangue, no meio das sombrias searas de trigo, no lugar em que hoje passa, às quatro horas da manhã, assobiando e fustigando alegremente o seu cavalo, o condutor José, que faz o serviço da mala-posta de Nivelles.

continua na página 266...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - XV — Cambronne
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Memórias do Cárcere - Viagens 20

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

20

     IGNORO onde me escondi para mudar a roupa. Na véspera, dentro da escuridão leitosa, ter-me-ia podido arranjar facilmente. Fugindo às luzes do centro, buscando as margens obscuras onde fervilhavam sombras vivas, teria conseguido meio de arrancar do corpo os medonhos constrangimentos de lã, insuportáveis naquela temperatura. Com o dia, a vista habituando-se na indecisa claridade que vinha das aberturas superiores e laterais, todos os recantos se devassavam. Pouco a pouco me livrei das peças incômodas, tirei a gravata, o colarinho, o paletó, enquanto prosseguia a conversa com Miguel Bezerra, iniciada à noite, interrompida muitas vezes. Certamente pude expressar-me direito, pois o moço não pareceu descobrir nas minhas palavras nenhum desconchavo; de fato não me inteirava do assunto, as ideias baralhavam-se de maneira lastimosa. O que retive bem naquela manhã foi a causa do desassossego do meu novo camarada ao avistar-me: supusera-me funcionário da polícia..
     Piquei-me. Ora essa! Nunca me passara pela cabeça que tal confusão fosse possível, a franqueza do rapaz me aborrecia. Sim senhor, um tira. Bem vestido, com valise, chapéu de palha, originara desconfiança, e daí a frase repetida sem propósito: – Não somos comunistas. 
     Agora a suspeita se desfazia. Sebastião Hora parolava com José Macedo e Lauro Lago a respeito da Aliança Nacional Libertadora, a princípio sufocada, afinal posta no xadrez; os meus companheiros de Alagoas, apenas entrevistos no quartel, mal examinados nos sacolejos do caminhão, desconhecidos quase todos, começavam a entender-se com a gente do Rio Grande; e, sem chapéu, sem valise, exibindo-me em camisa, despojava-me da feição policial. Naquele momento o meu desejo era evitar a presença de Leonila e Maria Joana, livrar-me dos restos do vestuário pesado. Em tal situação, o recurso melhor seria pedir aos passageiros machos que formassem diante de mim uma espécie de cerca humana e, protegido por ela, despir-me, arranjar-me convenientemente. Devo ter feito isso, não me lembro. Sei que me achei metido no pijama. Dobrei cuidadosamente a calça e o paletó, arrumei-os sobre a maleta e conservei os meus troços à vista, pois eram tudo quanto eu possuía e ali dentro começavam a representar enorme valor.
     Alguém me preveniu de que viajavam conosco vagabundos e ladrões. Retirei da carteira as cédulas, dobrei-as, ocultei-as num compartimento do porta-moedas, guardei a pequena fortuna no bolso do pijama, debaixo do lenço. Ali estava em segurança. Mas não queria desviar-me dos outros bens: de quando em quando precisava certificar-me de que existiam os blocos de papel, os lápis, as cuecas, as meias, as camisas. Tentava-me o desejo de recomeçar as notas interrompidas no quartel, jogar na folha as últimas impressões, atabalhoadas, continuamente dissolvidas. Como era impossível o trabalho, servia-me desses instantes para tirar o frasco e a tesourinha, curar o dedo ferido, pôr no abscesso uma gota de iodo.
     Afastava-me, acercava-me dos grupos, imiscuía-me neles: esforçava-me por decifrar certas particularidades de linguagem e em vão buscara reter as fisionomias, sempre renovadas. Não havia jeito de casar às figuras incompletas os nomes que me chegavam aos ouvidos. João Anastácio. Bem. Esse conseguiu fixar-se. Anteriormente fundia-se com Miguel Bezerra, mas agora se distanciava, e não sei como baralhei pessoas tão diversas. Julgo que me surgiram simultaneamente na atrapalhação da chegada, falaram as duas ao mesmo tempo, quando não. me era possível estabelecer a distinção: olhos vivos, modos inquietos, rosto fino como um focinho de rato; pele macerada, feições imóveis de múmia cabocla. Tipos inconfundíveis, caracteres diferentes. Miguel Bezerra tinha um modo escorregadio de negar, de justificar-se; o outro afirmava, lento e seguro, como se batesse em pregos: nunca vi homem tão afirmativo.
     Essas duas figuras me ficaram gravadas profundamente na lembrança, não por haverem exercido qualquer influência na minha esquisita aventura, mas porque avultaram no rebanho indistinto, durante algumas horas. Depois se afastaram, se diluíram: os hábitos de classe me aproximaram do sujeito gordo e louro que fumava cachimbo, sentado na rede, a sorrir, do rapaz estrábico, de óculos. Importantes, um secretário da Fazenda, outro secretário do Interior, no governo revolucionário de Natal. Propriamente não fora governo, fora doidice: nisto, embrulhados, concordavam todos. Estavam ali dois figurões, dois responsáveis, dois criminosos, porque tinham sido pegados com o rabo na ratoeira. Não me arriscaria a dizer como se chamavam. Macedo e Lauro Lago. Isso, repetido com frequência, me permanecia na memória, mas, se me dirigisse a qualquer deles, trocaria as designações. Falavam-me também num terceiro chefe da sedição, o mais importante, conservado em Natal por não se poder ainda locomover: seviciado em demasia, aguentara pancadas no rim e, meses depois da prisão, mijava sangue. Arrepiava-me pensando nisso. Achava-me ali diante de criaturas supliciadas e, consequentemente, envilecidas. A minha educação estúpida não admitia que um ser humano fosse batido e pudesse conservar qualquer vestígio de dignidade. Tiros, punhaladas, bem: se a vítima conseguia restabelecer-se, era razoável andar de cabeça erguida e até afetar certo orgulho: o perigo vencido, o médico, a farmácia, as vigílias de algum modo a nobilitavam. Mas surra – santo Deus! – era a degradação irremediável. Lembrava o eito, a senzala, o tronco, o feitor, o capitão-de-mato. O relho, a palmatória, sibilando, estalando no silêncio da meia-noite, chumaço de pano sujo na boca de um infeliz, cortando-lhe a respiração. E nenhuma defesa: um infortúnio sucumbido, de músculos relaxados, a vontade suspensa, miserável trapo. Em seguida o aviltamento. É assim na minha terra, especialmente no sertão. Vivente espancado resiste: em falta de armas, utiliza unhas e dentes, abrevia o suplício e morre logo, pois, se sobreviver, estará perdido. Nunca mais o tomarão a sério. É possível que ele esqueça o chicote, precisa esquecer: cá fora tenta reaver os seus insignificantes direitos de cidadão comum. Os outros não esquecem. Aquilo é estigma indelével, tatuagem na alma. Quando estiver desprecatado, julgando-se normal e medíocre, um riso, um gesto, um olhar venenoso o chamarão à realidade, avivarão a lembrança do pelourinho, do rosto cuspido, das costas retalhadas. Afinal aquele tratamento não foi infligido senão para isso. Indispensável aniquilar um inimigo da sociedade. Quem é ele? O assassino? Evidentemente não. Na minha terra uma vida representa escasso valor. A população cresce demais, a agricultura definha na terra magra. Eliminar um cristão significa afastar um concorrente aos produtos minguados, em duros casos serve para restabelecer o equilíbrio necessário. Enfim, cedo ou tarde, a morte se daria; em última análise o matador foi instrumento da Providência. Por isso ela é tabu. Na cadeia da roça não o maltratam, e o júri sem dificuldade o absolve. O que passou passou, a condenação não ressuscita ninguém. O delito máximo é o que lesa a propriedade. Nesse ponto o fatalismo caboclo desaparece: não foi certamente Deus que mandou furtar, o ladrão é responsável. Está visto que não se punem os grandes atentados, mais ou menos legais, origem das fortunas indispensáveis à ordem, mas os pequenos delinquentes sangram nos interrogatórios bárbaros e nunca mais se reabilitam. Não me ocorrera a ideia de que prisioneiros políticos fossem tratados da mesma forma: a palavra oficial dizia o contrário, referia-se a doçura, e não me achava longe de admitir pelo menos parte disso. Um jornalista famoso asseverava que os homens detidos no Pedro 1 bebiam champanhe. Com certeza na doçura e no champanhe havia exagero; não me viera, contudo, a suspeita de que a imprensa e o governo mentissem descaradamente quando isto não era preciso. Provavelmente existia nas prisões certa humanidade, relativa humanidade. Capacitara-me disso, por não me parecer que os atos ferozes fossem úteis. Talvez não estivesse aí o motivo da minha credulidade. Habituara-me de fato, desde a infância, a presenciar violências, mas invariavelmente elas recaíam em sujeitos da classe baixa. Não se concebia que negociantes e funcionários recebessem os tratos dispensados antigamente aos escravos e agora aos patifes miúdos. E estávamos ali, encurralados naquela imundície, tipos da pequena burguesia, operários, de mistura com vagabundos e escroques. E um dos chefes da sedição apanhara tanto que lá ficara em Natal, desconjuntado, urinando sangue.
     Não me abalancei a indiscrições relativamente aos outros – evitei melindrá-los. Teriam pudor, certamente, calar-se-iam se possuíssem as terríveis chagas incuráveis. Meias-palavras, referências vagas, ambiguidades trouxeram-me a convicção de que todos ali, ou quase todos, haviam sido torturados e não conservavam disso nenhuma vergonha. Espantei-me no começo, depois busquei uma explicação. Provavelmente a autoridade considerava os meus novos companheiros pouco mais ou menos iguais aos ladrões. Queriam eliminar os ricos, suprimir a exploração do homem na lavoura e na fábrica. Certo não alcançariam esse objetivo, por enquanto desejavam apenas a distribuição razoável da terra, melhores condições de vida para o trabalhador. Um roubo. E, pegados com armas na mão, nivelavam-se aos bandidos e recebiam suplícios infamantes. Não se julgavam, contudo, humilhados. Porquê? Talvez não supusessem completamente desarrazoada essa justiça bruta e sumária. Eles, como os escravos indolentes e os salteadores, minavam a fortuna, pelo menos pretendiam miná-la. Natural que os proprietários, senhores do Estado, os estigmatizassem, cobrissem de ignomínia. Não lhes feriam somente o corpo tentavam, encharcando-os na lama, no opróbrio, embotar-lhes os espíritos, paralisar-lhes a vontade. Conhecida, porém, essa intenção, muito se reduzia o efeito dela. Realmente havia as dores físicas. E findas as torturas, os corações se desoprimiam.
     Os meus amigos do porão falavam dessas coisas como de fatos normais, distantes, relativos a outras pessoas: de nenhum modo pareciam atingidos por elas. Na verdade, para que o rebaixamento moral se realizasse, deveriam aplicar os castigos a um número pequeno de indivíduos. Alcançando a maioria ou a totalidade, o labéu se atenuava, perdia enfim a consistência. Reportavam-se àquilo como se narrassem um desastre de automóvel, uma operação cirúrgica, sucessos que não poderiam desonrá-los.

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Memórias do Cárcere - Viagens 20
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.