sábado, 4 de janeiro de 2025

Sabadoooouuuu no Garajão! A vida é bonita

Ace of Base

você 
  pode fazer o que você quiser
segure o dia, não deixe escapar
o que você estará fazendo amanhã
enquanto o sol brilha?
faça o que fizer
siga o seu caminho
não se perca
se precisar olhe para trás,
mas siga em frente
nem mesmo considere desistir
não é opção, não vale a pena
a vida é um rio que nunca se envenena
você encontrará, oooh!
         as peças, peça por peça,
 continue trabalhando
 o seu caminho de volta, querida
continuo queimando por dentro
      eu estou trabalhando
o meu caminho de volta para você, querida
a felicidade não morreu,
ela se esconde
   nas pequenas coisas que a alma responde
    passos firmes
 a vida é um canto
     uma dança
uma esperança



abrindo as portas do garajoão


Beautiful Life




Você pode fazer o que você quiser apenas segure o dia
You can do what you want just seize the day
O que você está fazendo amanhã se tornará
What you're doing tomorrow's gonna
O seu caminho
Come your way
Nem mesmo considere desistir
Don't you ever consider giving up
Você encontrará, oooh!
You will find, oooh

É uma vida bonita, ooohIt's a beautiful life, oooh
É uma vida bonita, ooohIt's a beautiful life, oooh
É uma vida bonita, ooohIt's a beautiful life, oooh
Eu apenas quero ficar aqui do teu lado
I just wanna be here beside you
E assim permanecer até o romper da aurora
And stay until the break of dawn

Dê uma caminhada no parque quando você estiver para baixo
Take a walk in the park when you feel down
Há muitas coisas lá
There's so many things there
Que vão te colocar pra cima
That's gonna lift you up
Veja a natureza em flor, o sorriso de uma criança
See the nature in bloom a laughing child
Que sonho, oooh
Such a dream, oooh

É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
Eu apenas quero ficar aqui do teu lado
I just wanna be here beside you

Oh, sim, tudo certo
Oh, yeah, alright
Eu apenas quero ficar aqui do teu lado
I just wanna be here beside you
E assim permanecer até o romper da aurora
And stay until the break of dawn

Você procura um lugar pra pertencer
You're looking for somewhere to belong
Você fica tão sozinho
You're standing all alone
Procura por alguém pra guiá-lo em seu caminho
For someone to guide you on your way
Agora e para sempreNow and forever

É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
Eu só quero ser alguém
I just wanna be anybody

Nós vivemos de modos diferentes
We're living in different ways
É uma vida bonita
It's a beautiful life
Eu vou te levar a um lugar que eu nunca estive
I'm gonna take you to a place I've never been
Antes, oh! Sim
Before oh, yeah
É uma vida bonita
It's a beautiful life
Eu vou levá-lo em meus braços e voar por aí
I'm gonna take you in my arms and fly away
Com você esta noite
With you tonight

Oh, sim, tudo certo
Oh, yeah, alright
É uma vida bonita
It's a beautiful life
Sim, tudo certo
Yeah, alright
É uma vida bonita
It's a beautiful life

É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
É uma vida bonita
It's a beautiful life

É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
(Oh, sim, tudo certo)
(Oh, yeah, alright)
É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
É uma vida bonita, oooh
It's a beautiful life, oooh
(Oh, sim, tudo certo)
(Oh, yeah, alright)
É uma vida bonita
It's a beautiful life


a gurizada no garajão animando a coreografia

The Spinners 
Working My Way Back





o corpo a corpo do garajão está queimando 
e quem é que você está agarrando está noite
ao invés de mim?
onde está você agora?
agora que preciso de você
lágrimas no chão
nada de rios de lágrimas 
venha para meu oceano


Samantha Sang & Bee Gees - 1977
Emotion





hummmm
é a noite das mulheres
a sensação no garajão é boa
que noite hein...
uma noite especial no garajão
nas luzes do garajão
seu nome será visto
esta é a sua noite


Kool And The Gang 
Ladies' Night




eu tive um sonho incrível no garajão
dancemos juntos
no escuro
brincando
sem jogo de disfarces
minha voz sussurrando
help me

Lionel Richie 
Say You, Say Me




fim de festa
saideira
garota estou indo embora
temos que seguir
a hora está chegando
o trem está partindo
veja em meus olhos
a necessidade das lágrimas
estarei sozinho sem você,
e você?
meu coração está em suas mãos



Styx
Babe





fecha a porta, 
desliga a luz,
alguém quer carona?
não vai
preciso
fica
vem junto


O Cortiço - XXIII: À porta de uma confeitaria

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


XXIII.

     À porta de uma confeitaria da Rua do Ouvidor, João Romão, apurado num fato novo de casimira clara, esperava pela família do Miranda, que nesse dia andava em compras. 
     Eram duas horas da tarde e um grande movimento fazia-se ali. O tempo estava magnífico; sentia-se pouco calor. Gente entrava e saia, a passo frouxo, da Casa Pascoal. Lá dentro janotas estacionavam de pé, soprando o fumo dos charutos, à espera que desocupassem uma das mesinhas de mármore preto; grupos de senhoras, vestidas de seda, faziam lanche com vinho do Porto. Respirava-se um cheiro agradável de essências e vinagres aromáticos; havia um rumor quente e garrido, mas bem-educado; namorava-se forte, mas com disfarce, furtando-se olhares no complicado encontro dos espelhos; homens bebiam ao balcão e outros conversavam, comendo empadinhas junto às estufas; algumas pessoas liam já os primeiros jornais da tarde; serventes, muito atarefados, despachavam compras de doces e biscoitos e faziam, sem descansar, pacotes de papel de cor, que os compradores levavam pendurados num dedo. Ao fundo, de um dos lados do salão, aviavam-se grandes encomendas de banquetes para essa noite, traziam-se lá de dentro, já prontas, torres e castelos de balas e trouxas d’ovos e imponentes peças de cozinha caprichosamente enfeitadas; criados desciam das prateleiras as enormes baixelas de metal branco, que os companheiros iam embalando em caixões com papel fino picado. Os empregados das secretarias públicas vinham tomar o seu vermute com sifão; repórteres insinuavam-se por entre os grupos dos jornalistas e dos políticos, com o chapéu à ré, ávidos de noticias, uma curiosidade indiscreta nos olhos. João Romão, sem deixar a porta, apoiado no seu guarda-chuva de cabo de marfim, recebia cumprimentos de quem passava na rua; alguns paravam para lhe falar. Ele tinha sorrisos e oferecimentos para todos os lados; e consultava o relógio de vez em quando.
     Mas a família do Barão surgiu afinal. Zulmira vinha na frente, com um vestido cor de palha justo ao corpo, muito elegante no seu tipo de fluminense pálida e nervosa; logo depois Dona Estela, grave, toda de negro, passo firme e ar severo de quem se orgulha das suas virtudes e do bom cumprimento dos seus deveres. O Miranda acompanhava-as de sobrecasaca, fitinha ao peito, o colarinho até ao queixo, botas de verniz, chapéu alto e bigode cuidadosamente raspado. Ao darem com João Romão, ele sorriu e Zulmira também; só Dona Estela conservou inalterável a sua fria máscara de mulher que não dá verdadeira importância senão a si mesma.
     O ex-taverneiro e futuro visconde foi, todavia, ao encontro deles, cheio de solicitude, descobrindo-se desde logo e convidando-os com empenho a que tomassem alguma coisa.
     Entraram todos na confeitaria e apoderaram-se da primeira mesa que se esvaziou. Um criado acudiu logo e João Romão, depois de consultar Dona Estela, pediu sanduíches, doces e moscatel de Setúbal. Mas Zulmira reclamou sorvete e licor. E só esta falava; os outros estavam ainda à procura de um assunto para a conversa; afinal o Miranda que, durante esse tempo considerava o teto e as paredes, fez algumas considerações sobre as reformas e novos adornos do salão da confeitaria. Dona Estela dirigiu, de má, a João Romão várias perguntas sobre a companhia lírica, o que confundiu por tal modo ao pobre do homem, que o pôs vermelho e o desnorteou de todo. Felizmente, nesse instante chegava o Botelho e trazia uma noticia: a morte de um sargento no quartel; questão entre inferior e superior. O sargento, insultado por um oficial do seu batalhão, levantara a mão contra ele, e o oficial então arrancara da espada e atravessara-o de lado a lado. Estava direito! Ah! ele era rigoroso em pontos de disciplina militar! Um sargento levantara a mão para um oficial superior!... devia ficar estendido ali mesmo, que dúvida!
     E faiscavam-lhe os olhos no seu inveterado entusiasmo por tudo que cheirasse a farda. Vieram logo as anedotas análogas; o Miranda contou um fato idêntico que se dera vinte anos atrás e Botelho citou uma enfiada deles interminável.
     Quando se levantaram, João Romão deu o braço a Zulmira e o Barão à mulher, e seguiram todos para o Largo de São Francisco, lentamente, em andar de passeio, acompanhados pelo parasita. Lá chegados, Miranda queria que o vizinho aceitasse um lugar no seu carro, mas João Romão tinha ainda que fazer na cidade e pediu dispensa do obséquio. Botelho também ficou; e, mal a carruagem partiu, este disse ao ouvido do outro, sem tomar fôlego:

- O homem vai hoje, sabe? Está tudo combinado! 
- Ah! vai? perguntou João Romão com interesse, estacando no meio do largo. Ora graças! Já não é sem tempo! 
- Sem tempo! Pois olhe, meu amigo, que tenho suado o topete! Foi uma campanha! 
- Há que tempo já tratamos disto!... 
- Mas que quer você, se o homem não aparecia?... Estava fora! Escrevi-lhe várias vezes, como sabe, e só agora consegui pilhá-lo. Fui também à polícia duas vezes e já lá voltei hoje; ficou tudo pronto! mas você deve estar em casa para entregar a crioula quando eles lá se apresentarem... 
- Isso é que seria bom se se pudesse dispensar... Desejava não estar presente... 
- Ora essa! Então com quem se entendem eles?... Não! tenha paciência! é preciso que você lá esteja! 
- Você podia fazer as minhas vezes... 
- Pior! Assim não arranjamos nada! Qualquer dúvida pode entornar o caldo! É melhor fazer as coisas bem feitas. Que diabo lhe custa isto?... Os homenzinhos chegam, reclamam a escrava em nome da lei, e você a entrega - pronto! Fica livre dela para sempre, e daqui a dias estoura o champanha do casório! Hein, não lhe parece? 
- Mas... 
- Ela há de choramingar, fazer lamúrias e coisas, mas você põe-se duro e deixe-a seguir lá o seu destino!... Bolas! não foi você que a fez negra!... 
- Pois vamos lá! creio que são horas. 
- Que horas são? 
- Três e vinte. 
- Vamos indo.

     E desceram de novo a Rua do Ouvidor até ao ponto dos bondes de Gonçalves Dias.

- O de São Clemente não está agora, observou o velho. Vou tomar um copo d’água enquanto esperamos.

     Entraram no botequim do lugar e, para conversar assentados, pediram dois cálices de conhaque.

- Olhe, acrescentou o Botelho; você nem precisa dizer palavra... faça como coisa que não tem nada com isso, compreende? 
- E se o homem quiser os ordenados de todo o tempo em que ela esteve em minha companhia?... 
- Como, filho, se você não a alugou das mãos de ninguém?!... Você não sabe lá se a mulher é ou era escrava; tinha-a por livre naturalmente; agora aparece o dono, reclama-a, e você a entrega, porque não quer ficar com o que lhe não pertence! Ela, sim, pode pedir o seu saldo de contas; mas para isso você lhe dará qualquer coisa... 
- Quanto devo dar-lhe? 
- Aí uns quinhentos mil-réis, para fazer a coisa à fidalga. 
- Pois dou-lhos. 
- E feito isso - acabou-se! O próprio Miranda vai logo, logo, ter com você! Verá!

     Iam falar ainda, mas o bonde de São Clemente acabava de chegar, assaltado por todos os lados pela gente que o esperava. Os dois só conseguiram lugar muito separados um do outro, de sorte que não puderam conversar durante a viagem.
     No Largo da Carioca uma vitória passou por eles, a todo o trote. Botelho vergou-se logo para trás, procurando os olhos do vendeiro, a rir-se com intenção. Dentro do carro ia Pombinha, coberta de joias, ao lado de Henrique; ambos muito alegres, em pândega. O estudante, agora no seu quarto ano de medicina, vivia à solta com outros da mesma idade e pagava ao Rio de Janeiro o seu tributo de rapazola rico.
     Ao chegarem à casa, João Romão pediu ao cúmplice que entrasse e levou-o para o seu escritório.

- Descanse um pouco... disse-lhe. 
- É, se eu soubesse que eles se não demoravam muito ficava para ajudá-lo. 
- Talvez só venham depois do jantar, tornou aquele, assentando-se à carteira.

     Um caixeiro aproximou-se dele respeitosamente e fez-lhe várias perguntas relativas ao serviço do armazém, ao que João Romão respondia por monossílabos de capitalista; interrogou-o por sua vez e, como não havia novidade, tomou Botelho pelo braço e convidou-o a sair.

- Fique para jantar. São quatro e meia, segredou-lhe na escada.

     Já não era preciso prevenir lá defronte, porque agora o velho parasita comia muitas vezes em casa do vizinho.
     O jantar correu frio e contrafeito; os dois sentiam-se ligeiramente dominados por um vago sobressalto. João Romão foi pouco além da sopa e quis logo a sobremesa.
     Tomavam café, quando um empregado subiu para dizer que lá embaixo estava um senhor, acompanhado de duas praças, e que desejava falar ao dono da casa.

- Vou já! respondeu este. E acrescentou para o Botelho: - São eles! 
- Deve ser, confirmou o velho.

     E desceram logo.

- Quem me procura?... exclamou João Romão com disfarce, chegando ao armazém.

     Um homem alto, com ar de estroina, adiantou-se e entregou-lhe uma folha de papel. 
     João Romão, um pouco trêmulo, abriu-a defronte dos olhos e leu-a demoradamente. Um silêncio formou-se em torno dele; os caixeiros pararam em meio do serviço, intimidados por aquela cena em que entrava a polícia.

- Está aqui com efeito... disse afinal o negociante. Pensei que fosse livre... 
- É minha escrava, afirmou o outro. Quer entregar-ma?... 
- Mas imediatamente. 
- Onde está ela? 
- Deve estar lá dentro. Tenha a bondade de entrar...

     O sujeito fez sinal aos dois urbanos, que o acompanharam logo, e encaminharam-se todos para o interior da casa. Botelho, à frente deles, ensinava-lhes o caminho. João Romão ia atrás, pálido, com as mãos cruzadas nas costas. 
     Atravessaram o armazém, depois um pequeno corredor que dava para um pátio calçado, chegaram finalmente à cozinha. Bertoleza, que havia já feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cócoras no chão, escamando peixe, para a ceia do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro.
     Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo.
     Num relance de grande perigo compreendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre: adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.
     Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro.

- É esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraçada a segui-los. - Prendam-na! É escrava minha!

     A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.
     Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.
     E depois embarcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.
     João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos. 
     Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito. 
     Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas.

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O Cortiço - XXIII: À porta de uma confeitaria
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   Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
   Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
   Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
   A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
   Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
   Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / I — O que encontra quem vem de Wivelíes

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

I — O que encontra quem vem de Wivelíes 

     O ano passado (1861), por uma bela manhã de Maio, um viajante a pé, o mesmo que conta esta história, dirigia-se de Nivelles para La Hulpe. Seguia a larga estrada calçada, que por entre duas fileiras de árvores, e em contínuas ondulações, conduz àquele último ponto, ora subindo à crista das colinas, que se sucedem umas após outras, ora descendo ao cavado dos vales, aos altos e baixos, como vagas enormes. Já havia passado Lilois e Bois-Seigneur-Isaac, avistando a oeste o campanário de ardósia de Braine-l’Alleud, que tem a forma de um vaso voltado com a boca para baixo, e deixando atrás uma eminência povoada de arvoredo, e na volta de um atalho, onde se via um poste carunchoso sustentando a inscrição: Antiga barreira n.º 4, uma taberna em cuja frente se lia o seguinte letreiro: Echabeau, café particular dos quatro ventos.
     Meio quarto de légua adiante desta estalagem, chegou ao fundo de um valezinho, cortado por um regato, a cujas águas dá passagem um arco praticado no aterro da estrada e onde o raro, mas verde arvoredo que cobre o vale de um lado da calçada, se estende do outro por dilatados prados, continuando em graciosa desordem até Braine-l’Alleud.
     À beira da estrada, do lado direito, ficava uma estalagem, a cuja porta se via um carro de quatro rodas, um grande feixe de varas de lúpulo, uma charrua, uma ruma de mato seco ao pé de uma sebe, uma pouca de cal a fumegar dentro de uma cova quadrada e uma escada deitada ao comprido de um alpendre velho, fechado por um tapamento de palha. Num campo onde ao sabor da viração, volteava um grande cartaz amarelo, provavelmente anunciando o espetáculo de alguns comediantes ambulantes em alguma feira, uma rapariga andava a sachar; da esquina da estalagem, junto de um pântano, onde sobrenadava uma flotilha de patos, partia um carreiro que se entranhava pelo tojo. Deitou o viajante por esse carreiro, e ao cabo de uns cem passos, depois de ter costeado uma parede do século XV, coroada por uma empena aguda de tijolos contrapostos, achou-se em presença de uma grande porta de pedra, construída em arco, com imposta retilínea, no estilo grave de Luís XIV e ornada de dois medalhões lisos. Do frontispício severo em que se abria esta porta partia perpendicularmente uma parede flanqueando-a em ângulo reto. No prado que se estendia em frente da porta jaziam três grades, por entre as quais cresciam à mistura todas as flores de Maio. A porta era fechada por dois batentes decrépitos ornados com um martelo velho e cheio de ferrugem.
     Estava um lindo dia de sol; sobre uma grande árvore, cujos ramos rumorejavam com esse sussurro mal distinto, que mais parece provir dos ninhos que do vento, balouçava-se um passarinho, naturalmente amoroso, descantando em apaixonados gorjeios.
     O viajante curvou-se e pôs-se a examinar uma escavação circular bastante grande, semelhante ao alvéolo de uma esfera, praticada numa pedra no fundo do pé direito da porta. Neste momento abriram-se os batentes que a fechavam e saiu uma aldeã, que, ao ver o viajante e percebendo o que ele estava a examinar, disse-lhe:

— Foi uma bala francesa que fez isso. — E depois acrescentou: — O que ali vê em cima, ao pé daquele prego, é o buraco de uma grande bala que não chegou a atravessar a madeira. 
— Como se chama este lugar? — perguntou o viandante. 
— Hougomont — disse a aldeã. 

     O viajante endireitou-se e deu alguns passos para ir olhar de cima das sebes, de onde por entre as árvores que se destacavam no horizonte avistou um monóculo, e sobre ele o que quer que fosse, que de longe parecia um leão.
     Estava no campo da batalha de Waterloo.

continua na página 237...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - I — O que encontra quem vem de Wivelíes
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (15.2) - enterrados em túmulos trocados

Cem Anos de SOLIDÃO


Gabriel Garcia Márquez


(15.2)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío


     No começo todo mundo pensou que fosse uma peste. As donas-de-casa se extenuavam de tanto varrer pássaros mortos, sobretudo na hora da sesta, e os homens os jogavam no rio às carradas. No Domingo da Ressurreição, o centenário Padre Antonio Isabel afirmou no púlpito que a morte dos pássaros obedecia à má influência do Judeu Errante, que ele mesmo tinha visto na noite anterior. Descreveu-o como um híbrido do de bode cruzado com fêmea herege, uma besta infernal cujo alento calcinava o ar e cuja visita determinaria a concepção de monstros pelas recém-casadas. Não foram muitos os que prestaram atenção à sua conversa apocalíptica, porque o povo estava convencido de que o pároco tresvariava por causa da idade. Mas uma mulher acordou todo mundo na madrugada de quarta-feira, porque encontrara uns rastos de bípede de casco fendido. Eram tão verdadeiros e inconfundíveis que os que foram vê-los não puseram em dúvida a existência de uma criatura horrível semelhante à descrita pelo pároco e se associaram para montar armadilhas nos quintais. Foi assim que levaram a efeito a captura. Duas semanas depois da morte de Úrsula, Petra Cotes e Aureliano Segundo acordaram sobressaltados com um choro de bezerro descomunal que chegava da vizinhança. Quando se levantaram, já um grupo de homens estava soltando o monstro das afiadas varas que tinham posto no fundo de uma fossa coberta com folhas secas, e ele já deixara de berrar. Pesava como um boi, apesar da sua estatura não ser maior que a de um adolescente, e das suas feridas manava um sangue verde e viscoso. Tinha o corpo coberto por um pelo áspero, cheio de carrapatos miúdos, e a pele petrificada por uma crosta de caracas, mas ao contrário da descrição do pároco, as suas partes humanas eram mais de anjo doente do que de homem, porque as mãos eram limpas e hábeis, os olhos grandes e crepusculares, e tinha nas omoplatas os cotocos cicatrizados e calosos de asas potentes, que deve -riam ter sido desbastadas com machado de lavrador. Penduraram-no pelos tornozelos numa amendoeira da praça para que ninguém ficasse sem vê-lo e quando começou a apodrecer incineraramno numa fogueira, porque não se pôde determinar se a sua natureza bastarda era de animal para jogar no rio ou de cristão para sepultar. Nunca se verificou se na realidade foi por causa dele que morreram os pássaros, mas as recém-casadas não conceberam os monstros anunciados, nem diminuiu a intensidade do calor.
     Rebeca morreu no final desse ano. Argénida, sua criada de toda a vida, pediu ajuda às autoridades para derrubar a porta do quarto onde a sua patroa estava trancada há três dias, e a encontraram na cama solitária, enroscada como um camarão, com a cabeça pelada pela calvície e o polegar metido na boca. Aureliano Segundo se encarregou do enterro e tentou restaurar a casa para vendê-la, mas a destruição estava tão encarniçada sobre ela que as paredes descascavam quando se acabavam de pintar e não houve argamassa bastante grossa para impedir que o mato triturasse o chão e a hera apodrecesse as vigas.
     Tudo estava assim desde o dilúvio. A inércia das pessoas contrastava com a voracidade do esquecimento que pouco a pouco ia consumindo sem piedade as lembranças, ao extremo de por esses tempos, num novo aniversário do tratado de Neerlândia, chegarem a Macondo uns emissários do Presidente da República para entregar finalmente a condecoração várias vezes recusada pelo Coronel Aureliano Buendía e perderam uma tarde inteira procurando alguém que lhes indicasse onde poderiam encontrar algum dos seus descendentes. Aureliano Segundo esteve tentado a recebê-la, pensando que era uma medalha de ouro maciço, mas Petra Cotes persuadiu-o da indignidade quando os emissários já preparavam as comunicações oficiais e os discursos para a cerimônia. Também por essa época voltaram os ciganos, os últimos herdeiros da ciência de Melquíades, e encontraram o povoado tão acabado e seus habitantes tão afastados do resto do mundo que tornaram a entrar nas casas arrastando ferros imantados, como se na verdade fossem a última descoberta dos sábios babilônicos, tornaram a concentrar os raios solares com a lupa gigantesca e não faltou quem ficasse de boca aberta vendo caírem as panelas e rolarem os caldeirões e quem pagasse cinquenta centavos para se assombrar com uma cigana que tirava e botava a dentadura postiça. Um desengonçado trem amarelo, que não trazia nem levava ninguém e que mal se detinha na estação deserta, era a única coisa que restava do trem multitudinário no qual o Sr. Brown enganchava o seu vagão com teto de vidro e poltronas de bispo e dos trens fruteiros de cento e vinte vagões que demoravam uma tarde inteira para passar. Os delegados da Cúria que tinham vindo investigar a comunicação sobre a estranha mortandade dos pássaros e o sacrifício do Judeu Errante encontraram o Padre Antonio Isabel brincando de cabra-cega com as crianças e, pensando que a sua comunicação era produto de uma alucinação senil, levaram-no para um asilo. Pouco depois mandaram o Padre Augusto Ángel, um cruzado da nova fornada, intransigente, audaz, temerário, que tocava pessoalmente os sinos várias vezes por dia para que não se entorpecessem os espíritos e que andava de casa em casa acordando os dorminhocos para que fossem à missa, mas antes de completar um ano já estava vencido também pela negligência que se respirava no ar, pela poeira ardente que envelhecia e obstruía tudo, e pela moleza que causavam as almôndegas do almoço no calor insuportável da sesta.
     Depois da morte de Úrsula, a casa voltou a cair num abandono do qual não a poderia resgatar nem mesmo uma vontade tão resoluta e vigorosa como a de Amaranta Úrsula, que muitos anos depois, sendo uma mulher sem preconceitos, alegre e moderna, com os pés bem firmados na terra, abriu portas e janelas para espantar a ruína, restaurou o jardim, exterminou as formigas ruivas que já andavam em pleno dia pela varanda, e tratou inutilmente de despertar o esquecido espírito de hospitalidade. A paixão claustral de Fernanda construiu um dique intransponível nos cem anos torrenciais de Úrsula. Não só se negou a abrir as portas quando passou o vento árido, como também mandou pregar as janelas com cruzes de madeira, obedecendo à ordem paterna de se enterrar em vida. A dispendiosa correspondência com os médicos invisíveis terminou em fracasso. Depois de numerosos adiamentos, trancou-se no quarto na data e hora marcadas, coberta somente por um lençol branco e com a cabeça para o Norte e, à uma da madrugada, sentiu que lhe taparam a cara com um lenço embebido num líquido gelado. Quando acordou, o sol brilhava na janela e ela tinha uma enorme costura em forma de arco que começava na virilha e terminava no esterno. Mas antes de que cumprisse o repouso prescrito recebeu uma carta desconcertada dos médicos invisíveis, que diziam tê-la revistado durante seis horas sem encontrar nada que correspondesse aos sintomas tantas vezes e tão escrupulosamente descritos por ela. Na realidade, o seu hábito pernicioso de não chamar as coisas pelo nome tinha dado origem a uma nova confusão, pois a única coisa que os cirurgiões telepáticos encontraram foi um caimento de útero que podia ser corrigido com o uso de um pessário. A desiludida Fernanda tentou obter uma informação mais precisa, mas os correspondentes ignotos não tornaram a responder as suas cartas. Sentiu-se tão angustiada pelo peso de uma palavra desconhecida que decidiu amordaçar a vergonha para perguntar o que era um pessário e só então soube que o médico francês se pendurara numa viga três meses antes e tinha sido enterrado contra a vontade do povo por um antigo companheiro de armas do Coronel Aureliano Buendía Então, confiou-se a seu filho José Arcadio e este lhe mandou os pessários de Roma com um folheto explicativo, que ela jogou na privada depois de aprendê-lo de memória para que ninguém viesse a conhecer a natureza dos seus quebrantos. uma precaução inútil, porque as únicas pessoas que viviam casa mal reparavam nela. Santa Sofía de la Piedad vagava numa velhice solitária, cozinhando o pouco que comiam e dedicada quase por completo ao cuidado de José Arcadio Segundo. Amaranta Úrsula, herdeira de certos encantos de Remedios, a bela, ocupava em fazer as suas tarefas escolares o que antes perdia em atormentar Úrsula e começava a manifestar um bom juízo e uma consagração aos estudos que fizeram renascer em Aureliano Segundo a boa esperança que inspirara Meme. Prometera mandá-la terminar os estudos e Bruxelas, de acordo com um costume estabelecido no tempo da companhia bananeira, e essa ilusão levara-o a tentar ver as terras devastadas pelo dilúvio. As poucas vezes em era visto em casa agora, era por causa de Amaranta Úrsula pois com o tempo se tinha transformado num estranho para Fernanda e o pequeno Aureliano ia ficando esquivo e ensimesmado à medida que se aproximava da puberdade. Aureliano Segundo confiava na velhice para abrandar o coração de Fernanda, para que o menino pudesse se incorporar a vida de um povoado onde certamente ninguém se daria o trabalho de fazer especulações desconfiadas sobre a sua origem. Mas o próprio Aureliano parecia preferir a clausura e a solidão e não revelava a menor malícia para conhecer o mundo que começava na porta da rua. Quando Úrsula fez abrir o quarto de Melquíades, ele ficou rondando, bisbilhotando pela porta entreaberta, e ninguém percebeu em que momento terminou vinculado a José Arcadio Segundo por um afeto recíproco. Aureliano Segundo descobriu essa amizade muito tempo depois de iniciada, quando ouviu o menino falando da matança da estação. Aconteceu num dia em que alguém se lamentou na mesa da ruína em que afundara o povoado desde que a companhia bananeira o abandonara e Aureliano contradisse com uma maturidade e um conhecimento de adulto. O seu ponto de vista, contrário à interpretação geral, era que Macondo tinha sido um lugar próspero e bem encaminhado até que o perturbasse, corrompesse e explorasse a companhia bananeira, cujos engenheiros provocaram o dilúvio como um pretexto para fugir aos compromissos com os trabalhadores. Falando de maneira tão racional que a Fernanda pareceu uma paródia sacrílega de Jesus entre os doutores, o menino descreveu com detalhes precisos e convincentes como o exército metralhara mais de três mil trabalhadores encurralados na estação e como carregara os cadáveres num trem de duzentos vagões e os atirara ao mar. Convencida como a maioria das pessoas da verdade oficial de que não tinha acontecido nada, Fernanda se escandalizou com a ideia de que o menino tivesse herdado os instintos anarquistas do Coronel Aureliano Buendía e ordenou-lhe que se calasse. Aureliano Segundo, pelo contrário, reconheceu a versão do seu irmão gêmeo. Na realidade, apesar de todo mundo considerá-lo louco, José Arcadio Segundo era naquele tempo o habitante mais lúcido da casa. Ensinou o pequeno Aureliano a ler e a escrever, iniciou-o no estudo dos pergaminhos e incutiu-lhe uma interpretação tão pessoal do que significou para Macondo a companhia bananeira que muitos anos depois, quando Aureliano se incorporasse ao mundo, haveria de se pensar que contava uma versão alucinada, porque era radicalmente contrária à falsa que os historiadores tinham admitido e consagrado nos textos escolares. No quartinho isolado, aonde nunca chegou o vento árido, nem a poeira, nem o calor, ambos recordavam a visão atávica de um ancião de chapéu de asas de corvo que falava do mundo de costas para a janela, muitos anos antes que eles nascessem. Ambos descobriram ao mesmo tempo que ali sempre era março e sempre era segunda-feira, e então compreenderam que José Arcadio Buendía não estava tão louco como contava a família e sim que era o único que dispusera de lucidez bastante para vislumbrar a verdade de que também o tempo sofria tropeços e acidentes e podia, portanto, se estilhaçar e deixar num quarto uma fração eternizada. José Arcadio Segundo conseguira, além disso, classificar as letras criptográficas dos pergaminhos. Estava certo de que correspondiam a um alfabeto de quarenta e sete a cinquenta e três caracteres que, separados, pareciam aranhazinhas e carrapatos e que, na primorosa caligrafia de Melquíades, pareciam peças de roupa postas para secar num varal. Aureliano se lembrava de haver visto uma tabela semelhante na enciclopédia inglesa, de modo que a levou ao quarto para compará-la com a de José Arcadio Segundo. Eram iguais, realmente.
     Na época em que teve a ideia da loteria de adivinhações, Aureliano Segundo acordava com um nó na garganta, como se estivesse reprimindo a vontade de chorar. Petra Cotes interpretou isso como um dos tantos transtornos provocados pela má situação e todas as manhãs, durante mais de um ano, pincelava-lhe o céu da boca com mel de abelha e lhe dava xarope de rábano. Quando o nó da garganta se fez tão apertado que lhe custava esforço respirar, Aureliano Segundo visitou Pilar Ternera para ver se ela conhecia alguma erva que lhe trouxesse alívio. A inquebrantável avó, que tinha chegado aos cem anos à frente de um bordelzinho clandestino, não confiou nas superstições terapêuticas, mas consultou as cartas sobre o problema. Viu o cavalo de ouro com a garganta ferida pelo aço do valete de espadas e deduziu que Fernanda estava tentando fazer o marido voltar para casa mediante o desprestigiado sistema de fincar alfinetes no seu retrato, mas provocara-lhe um tumor interno pelo mau conhecimento da feitiçaria. Como Aureliano Segundo não tinha outros retratos além dos do casamento e as cópias estavam completas no álbum familiar, continuou procurando por toda a casa durante as distrações esposa e finalmente encontrou, no fundo do guarda-roupa meia dúzia de pessários nas suas caixinhas originais. Pensando que as rodinhas de borracha vermelha eram objetos de bruxaria, guardou uma no bolso para que Pilar Ternera a visse. Esta não pôde explicar a sua natureza, mas lhe pareceu tão suspeita que por via das dúvidas mandou trazer a meia dúzia e queimou-a numa fogueira que fez no quintal. Para esconjurar o suposto malefício de Fernanda, ordenou a Aureliano Segundo que sangrasse uma galinha choca e a enterrasse debaixo do castanheiro, e ele o fez de tão boa fé que quando acabou de dissimular com folhas secas a terra revolvida já sentia que respirava melhor. Por Outro lado, Fernanda interpretou o desaparecimento como uma represália dos médicos invisíveis e coseu na parte interior da camisola um bolsinho redobrado onde guardou os pessários novos que lhe mandou o filho.
     Seis meses depois de enterrar a galinha, Aureliano Segundo acordou à meia-noite com um acesso de tosse e sentindo que o estrangulavam por dentro com presas de caranguejo. Compreendeu então que, por muitos pessários mágicos que destruísse e muitas galinhas de esconjuro que esfaqueasse, a única e triste verdade era que estava morrendo. Não disse nada a ninguém. Atormentado pelo medo de morrer sem mandar Amaranta Úrsula para Bruxelas, trabalhou como nunca, e em vez de uma, fez três rifas semanais. Desde muito cedo era visto percorrendo o povoado, mesmo nos bairros mais afastados e miseráveis, tentando vender os bilhetinhos com uma ansiedade que só era concebível num moribundo. “Aqui está a Divina Providência”, apregoava. “Não a deixem escapar, que só aparece uma vez em cada cem anos.” Fazia comovedores esforços para parecer alegre, simpático, loquaz, mas bastava ver o seu suor e a sua palidez para saber que não podia com a alma. As vezes se desviava para prédios vazios, onde ninguém o visse, e se sentava um momento para descansar das tenazes que o despedaçavam por dentro. Ainda à meia-noite estava no bairro de tolerância, tentando consolar com prédicas de boa sorte as mulheres solitárias que choravam junto às vitrolas. “Este número não sai há quatro meses”, dizia, ‘mostrando os bilhetinhos. “Não o deixe escapar, que a vida é mais curta do que a gente pensa.” Acabaram por perder-lhe o respeito, por zombar dele, e já nos últimos meses não o chamavam de “Seu” Aureliano, como o tinham feito sempre, mas o chamavam, na sua própria cara, de “Seu” Divina Providência. A sua voz foi-se enchendo de notas falsas, desafinando, e acabou por se apagar num ronco de cachorro, mas ainda assim teve força de vontade para não deixar que decaísse a expectativa pelos prêmios no quintal de Petra Cotes. Entretanto, à medida que ficava sem voz e percebia que em pouco tempo já não poderia suportar a dor, ia compreendendo que não era com porcos e cabritos rifados que a sua filha chegaria a Bruxelas, de modo que concebeu a ideia de fazer a fabulosa rifa das terras destruídas pelo dilúvio, que bem podiam ser restauradas por quem dispusesse de capital. Foi uma iniciativa tão espetacular que o próprio alcaide se ofereceu para anunciá-la por decreto e se formaram sociedades para comprar bilhetes a cem pesos cada um, que se esgotaram em menos de uma semana. Na noite da rifa, os ganhadores fizeram uma festa aparatosa, comparável apenas às dos bons tempos da companhia bananeira, e Aureliano Segundo tocou no acordeão pela última vez as canções esquecidas de Francisco, o Homem, mas já não pôde cantá-las.
     Dois meses depois, Amaranta Úrsula foi para Bruxelas. Aureliano Segundo entregou-lhe não só o dinheiro da rifa extraordinária, mas também o que tinha conseguido economizar nos meses anteriores e o muito escasso que obtivera na venda da pianola, do clavicórdio e de outros cacarecos caídos em desgraça. Segundo os seus cálculos, esses fundos chegavam para os estudos, de modo que só ficava faltando o valor da passagem de volta. Fernanda se opôs à viagem até o último momento, escandalizada com a ideia de que Bruxelas estivesse tão próxima da perdição de Paris, mas se tranquilizou com uma carta que o Padre Ángel lhe deu para uma pensão de jovens católicos dirigida por religiosas, onde Amaranta Úrsula prometeu viver até o final dos estudos. Além disso, o pároco conseguiu que ela viajasse aos cuidados de um grupo de franciscanas que iam para Toledo, onde esperavam encontrar gente de confiança para mandá-la para a Bélgica. Enquanto se adiantava a apressada correspondência que tornou possível esta coordenação, Aureliano Segundo, ajudado por Petra Cotes, ocupou-se da bagagem de Amaranta Úrsula. Na noite em que prepararam um dos baús nupciais de Fernanda, as coisas estavam tão bem arrumadas que a estudante sabia de cor quais eram as roupas e os chinelos de pelúcia com que devia fazer a travessia do Atlântico, e o sobretudo de lã azul com botões de cobre e os sapatos de couro com que devia desembarcar.
     Sabia também como devia andar para não cair n’água quando subisse a bordo pela prancha, que em nenhum momento devia se separar das freiras nem sair do camarote se não fosse para comer e que por nenhum motivo devia responder às perguntas que os desconhecidos de qualquer sexo lhe fizessem em alto-mar. Levava um vidrinho de gotas para enjoo e um caderno escrito pelo próprio punho e letra do Padre Angel, com seis orações para esconjurar a tempestade. Fernanda fabricou-lhe um cinturão de lona para que guardasse o dinheiro e indicou-lhe a forma de usá-lo ajustado ao corpo, de modo que não tivesse que tirá-lo nem mesmo para dormir. Tentou dar-lhe de presente o penico de ouro lavado com água sanitária e desinfetado com álcool, mas Amaranta Úrsula recusou-o temendo que as suas companheiras de colégio zombassem dela. Poucos meses depois, na hora da morte, Aureliano Segundo haveria de se lembrar dela como a vira da última vez, tentando abaixar sem conseguir o vidro empoeirado do vagão de segunda classe, para escutar as últimas recomendações de Fernanda. Vestia um traje de seda cor-de-rosa com um raminho de flores artificiais no broche do ombro esquerdo; os sapatos de couro com fivela e salto baixo, e as meias de seda com ligas elásticas na batata da perna. Tinha o corpo miúdo, o cabelo solto e comprido e os olhos vivos que Úrsula tivera na sua idade, e a forma como se despedia sem chorar, mas também sem sorrir, revelava a mesma força de caráter. Andando junto com o vagão à medida que acelerava e levando Fernanda pelo braço para que não fosse tropeçar, Aureliano Segundo mal pôde corresponder com um aceno de mão, quando a filha lhe mandou um beijo com a ponta dos dedos. Os esposos permaneceram imóveis sob o sol abrasador, olhando como o trem ia se confundindo com o ponto negro do horizonte e de braço dado pela primeira vez desde o dia do casamento. A nove de agosto, antes que se recebesse a primeira carta de Bruxelas, José Arcadio Segundo conversava com Aureliano no quarto de Melquíades e sem que viesse ao caso disse:

— Lembra-te sempre de que eram mais de três mil e que os jogaram ao mar. Em seguida caiu de bruços sobre os pergaminhos e morreu com os olhos abertos. Nesse mesmo instante, na cama de Fernanda, o seu irmão gêmeo chegou ao fim do prolongado e terrível martírio dos caranguejos de ferro que lhe carcomiam a garganta. Uma semana antes voltara para casa, sem voz, sem fôlego, e quase só pele e ossos, com os seus baús errantes e o seu acordeão de perdulário, para cumprir a promessa de morrer junto à esposa. Petra Cotes ajudou-o a juntar as suas roupas e despediu-o sem derramar uma lágrima, mas se esqueceu de lhe dar os sapatos de verniz que ele queria trazer no ataúde. De modo que quando soube que tinha morrido, vestiu-se de negro, embrulhou as botinas num jornal e pediu permissão a Fernanda para ver o cadáver. Fernanda não a deixou passar da porta. 
— Ponha-se no meu lugar — suplicou Petra Cotes. Imagine o quanto eu o amei para aguentar esta humilhação. 
— Não há humilhação que uma concubina não mereça — replicou Fernanda. — De maneira que pode esperar morra outro dos tantos para calçar-lhe estas botinas. 

     Em cumprimento da sua promessa, Santa Sofía de la Piedad degolou com uma faca de cozinha o cadáver de José Arcadio Segundo para se assegurar de que não o enterrassem vivo. Os corpos foram colocados em ataúdes idênticos e ali se viu que tornavam a ser idênticos na morte como tinham até a adolescência. Os velhos companheiros de farra de Aureliano Segundo puseram sobre o caixão uma coroa que tinha uma fita roxa com um letreiro: Afastem-se, vacas, que a vida é curta. Fernanda se indignou tanto com a irreverência mandou jogar a coroa no lixo. No tumulto da última hora os bêbados tristes que o tiraram de casa confundiram os ataúdes e os enterraram em túmulos trocados.

continua página 218...
Cem Anos de Solidão (15.2) - enterrados em túmulos trocados
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Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, A sra. Cottard era modesta - i)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust


um amor de swann


III(i) 


     A sra. Cottard era modesta e falava pouco, mas não carecia de desembaraço quando uma feliz inspiração lhe sugeria uma frase a propósito. Sentia que faria sucesso, o que lhe proporcionava confiança, e sua atitude então era menos para brilhar que para ser útil à carreira do marido. Não deixou, pois, escapar a palavra “salada” que a sra. Verdurin acabava de pronunciar. 

— Não será a salada japonesa — disse ela a meia-voz, voltando-se para Odette.[1] 

     E encantada e confusa com a oportunidade e ousadia de fazer assim uma alusão discreta, mas clara, à nova e retumbante peça de Dumas, explodiu num riso encantador de ingênua, pouco bulhento, mas tão irresistível que ela permaneceu alguns instantes sem poder dominá-lo.

— Quem é essa senhora? Ela tem espírito — disse Forcheville. 
— Não, não é salada japonesa; mas prepararemos uma, se vierem todos jantar sexta-feira. 
— Vou parecer-lhe muito provinciana, senhor — disse a sra. Cottard a Swann —, mas ainda não vi essa famosa Francillon de que todo mundo fala. O doutor foi (lembro-me de que ele disse ter tido o grande prazer de passar a noite em sua companhia) e confesso que não achei razoável que ele adquirisse entradas para ir de novo comigo. Naturalmente que no Théâtre-Français nunca se considera uma noite perdida, os artistas trabalham sempre tão bem, mas como temos amigos muito amáveis (a sra. Cottard raramente pronunciava um nome próprio e contentava-se em dizer “amigos nossos”, “uma de minhas amigas”, por “distinção”, num tom artificial, e com o ar de importância de quem só nomeia a quem quer) que muitas vezes têm camarotes e a boa ideia de nos levar a todas as novidades que valham a pena, estou certa de ver Francillon mais dia, menos dia, e poder assim formar uma opinião. Mas devo confessar que me sinto muito atrasada, pois em todos os salões a que vou só se fala naturalmente nessa maldita salada japonesa. Começa a ficar um pouco cansativo — acrescentou, vendo que Swann não parecia tão interessado, como era de esperar, por tão palpitante atualidade. — Mas deve-se confessar que serve às vezes de pretexto a ideias muito divertidas. Tenho uma amiga que é muito original, embora bonita, e muito requestada, muito em moda e que diz ter mandado preparar a tal salada japonesa, mas com tudo o que Dumas filho indica na peça. Convidou algumas amigas para prová-la. Infelizmente eu não estava entre elas. Mas depois ela nos contou tudo; parece que era uma coisa detestável, fez-nos rir até as lágrimas. Mas bem sabe o senhor que tudo está na maneira de contar — disse ela ao ver que Swann conservava um ar grave.[2]

     E supondo que era talvez porque ele não gostava de Francillon:

— Aliás, acho que vou ter uma decepção. Não creio que se compare a Serge Panine, o ídolo da senhora de Crécy. Ao menos é um assunto que tem fundo, que faz refletir, mas dar uma receita de salada no palco do Théâtre-Français! Ao passo que Serge Panine! De resto, como tudo o que sai da pena de Georges Ohnet, é sempre tão bem escrito! Não sei se o senhor conhece o Mestre ferreiro[3] que eu preferiria ainda a Serge Panine.[4]

— Perdoe-me — disse Swann com um ar irônico —, mas confesso que é quase igual a minha falta de admiração por essas duas obras-primas. 
— É mesmo? Que é que o senhor lhes censura? É mera antipatia? Acha talvez que seja um pouco triste? Aliás, como eu sempre digo, nunca se devem discutir romances nem peças de teatro. Cada qual tem o seu modo de ver, e o senhor pode achar detestável aquilo de que eu mais gosto.

     Foi interrompida por Forcheville, que interpelava Swann. Com efeito, enquanto a sra. Cottard falava de Francillon, Forcheville expressava à sra. Verdurin a sua admiração pelo que ele chamava o pequeno speech do pintor.
 
— Que facilidade de expressão, que memória tem ele, como raramente encontrei — dissera à sra. Verdurin, quando o pintor se calou. — Quem me dera coisa igual! Daria um excelente pregador. Pode-se dizer que, com o senhor Bréchot, tem a senhora aí dois números que se valem, e até nem sei se, em matéria de falação, este não levaria vantagem ao professor. É mais natural, menos rebuscado. Embora de passagem tenha dito algumas coisas um pouco realistas (mas está no gosto da época), poucas vezes vi segurar a escarradeira com tanto jeito, como dizíamos no regimento, onde eu tinha no entanto um camarada que justamente ele me faz lembrar um pouco. A propósito de qualquer coisa, não sei como exemplificar, deste copo, por exemplo, ele podia falar durante horas; não, é tolice minha, a propósito deste copo, não; mas a propósito da batalha de Waterloo, de tudo o que quiser, e lançava-nos, de passagem, coisas em que a gente jamais teria pensado. Aliás o senhor Swann estava no mesmo regimento; deve tê-lo conhecido. 
— Avista-se seguidamente com o senhor Swann? — indagou a sra. Verdurin. 
— Mas não — respondeu o sr. Forcheville e, como desejava ser agradável a Swann para se aproximar de Odette, não quis perder aquela oportunidade de o lisonjear, referindo-se às suas boas relações, mas isso como homem de sociedade, num tom de crítica cordial, sem que parecesse felicitá-lo por um inesperado sucesso: — Não é, Swann? Que eu nunca vejo você? Também, como fazer para vê-lo? Esse animal está todo o tempo metido com os La Trémoïlle, os Laumes, toda essa gente!… — Imputação tanto mais falsa porquanto fazia um ano que Swann apenas frequentava a casa dos Verdurin. Mas o simples nome de pessoas a quem não conheciam era ali acolhido com profundo silêncio. Temendo a penosa impressão que deviam causar à esposa aqueles nomes de “maçantes”, principalmente quando lançados assim sem nenhum tato à face de todos os fiéis, o sr. Verdurin dirigiu-lhe a furto um olhar de inquieta solicitude. Viu que na sua resolução de não tomar conhecimento, de não se abalar com a novidade que acabavam de dizer-lhe, de não só permanecer muda, mas também surda, como o fingimos quando um amigo faltoso procura insinuar na conversa uma desculpa que pareceríamos aceitar se a ouvíssemos sem protesto, ou quando pronunciam em nossa presença o nome vedado de um ingrato, a sra. Verdurin, para que o seu silêncio não tivesse a aparência de um consentimento, mas do silêncio ignorante das coisas inanimadas, despojara subitamente o rosto de qualquer sinal de vida e motilidade; sua fronte arqueada não era mais que um belo estudo de relevo onde não pudera penetrar o nome daqueles La Trémoïlle com quem Swann andava sempre metido; o nariz que levemente se franzira apresentava uma chanfradura que parecia copiada do natural. Parecia que sua boca entreaberta ia falar. Não passava de um molde de cera, uma máscara de gesso, uma maquete para um monumento, um busto para o Palácio da Indústria, diante do qual o público decerto pararia para admirar como o escultor, ao traduzir a imprescritível dignidade de Verdurin, em contraste com a dos La Trémoïle e dos Des Laumes que, como todos os maçantes do mundo, não estão nada acima deles, conseguira emprestar uma majestade quase papal à brancura e à rigidez do mármore.[5] Mas o mármore acabou por animar-se e deu a entender que era preciso não ser muito delicado de estômago para ir à casa deles, pois a mulher estava sempre embriagada e o marido era tão ignorante que dizia “minúncia” por minúcia. Nem que me pagassem, eu deixaria entrar essa gente em minha casa — concluiu a sra. Verdurin, olhando para Swann com um ar imperioso. 

     Por certo não esperava ela que Swann levasse a sua submissão a ponto de imitar a santa simplicidade da tia do pianista, que acabava de exclamar:

— Está vendo? O que me espanta é que ainda encontrem pessoas que consintam em falar com eles; eu creio que teria medo: quando menos se espera nos pregam alguma! E ainda há gente tão tola que anda atrás deles. 

     Que ao menos respondesse como Forcheville: “Mas é uma duquesa; há gente a quem isso ainda impressiona”, o que pelo menos teria permitido à sra. Verdurin replicar: “Que bom proveito lhes faça!”. Em vez disso, Swann se contentou em rir com um ar que significava que nem sequer poderia levar a sério tamanho disparate. Continuando a lançar olhares furtivos à mulher, o sr. Verdurin via com tristeza e compreensão que ela sentia a cólera de um Grande Inquisidor que não conseguisse extirpar a heresia; e para ver se induzia Swann a uma retratação, visto que a coragem das próprias opiniões sempre parece um cálculo e uma covardia àqueles contra quem se exerce, resolveu interpelá-lo:

— Diga-nos então francamente o que pensa, que não iremos repetir a eles.

     Ao que Swann respondeu:

— Mas não é absolutamente por medo à duquesa (se é dos La Trémoïlle que estão falando). Asseguro-lhes que todos gostam de frequentar sua casa. Não digo que ela seja “profunda” (pronunciou “profunda” como se fora uma palavra ridícula, pois sua linguagem ainda guardava traços de hábitos mentais que certa renovação, assinalada pelo amor da música, lhe fizera momentaneamente perder — algumas vezes externava calorosamente as suas opiniões), mas, com toda a sinceridade, ela é inteligente e o marido um verdadeiro letrado. São pessoas encantadoras.

     Tanto que a sra. Verdurin, vendo que por causa daquele único infiel não conseguiria efetivar a unidade moral do pequeno núcleo, na sua raiva contra aquele teimoso que não via quanto as suas palavras a faziam sofrer, não pôde deixar de bradar-lhe do fundo do coração: 

— Ache o que bem quiser, mas ao menos não nos diga. 
— Tudo depende do que o senhor chama de inteligência — disse Forcheville, que queria brilhar por sua vez. — Vejamos, Swann, que entende por inteligência? 
— Eis aí! — exclamou Odette —, eis aí as grandes coisas de que lhe peço que me fale, mas ele nunca me diz nada. 
— Como não? — protestou Swann. 
— Nada… nada… 
— Nada é peixe — disse o doutor. 
— A inteligência para você — tornou Forcheville — é a tagarelice mundana, as pessoas que sabem insinuar-se? 
— Acabe de uma vez para que possam mudar o seu prato — disse a sra. Verdurin num tom ríspido, dirigindo-se a Saniette, que parara de comer, absorto nas suas reflexões. E talvez um pouco envergonhada do tom que tomara: — Não faz mal, esteja a gosto, se eu falo assim é por causa dos outros, porque isso impede de servir os novos pratos. 
— Há — disse Brichot, martelando as sílabas — uma definição muito curiosa da inteligência nesse bom anarquista do Fénelon… 
— Escutem! — disse a Forcheville e ao doutor a sra. Verdurin —, ele vai dar-nos a definição da inteligência por Fénelon.[6] Muito interessante, não é todos os dias que se tem ocasião de aprender uma coisa dessas.

     Mas Brichot esperava que Swann desse antes a sua. Este não respondeu e, esquivando-se, fez gorar a brilhante justa que a sra. Verdurin se regozijava de oferecer a Forcheville.

— Naturalmente, é o que se dá comigo — disse Odette, amuada —, é bom que eu saiba que não sou a única pessoa que ele não julga à altura. 
— Esses de La Trémouaille que a senhora Verdurin nos apresentou como tão pouco recomendáveis — indagou Brichot, articulando com força — descendem acaso daqueles que essa boa esnobe da Madame de Sévigné se felicitava de conhecer, porque isso a elevava no conceito de seus campônios?[7] É verdade que a marquesa tinha um outro motivo, e que devia ser o principal, pois, literata como era até a medula, colocava acima de tudo a matéria escrita. Ora, no diário que enviava regularmente à filha, era a senhora de La Trémouaille, muito bem documentada pelo seu elevado parentesco, quem fazia a política estrangeira. 
— Não, não creio que seja da mesma família — disse ao acaso a sra. Verdurin. Saniette, que desde que entregara precipitadamente ao mordomo o seu prato ainda cheio, mergulhara num silêncio meditativo, saiu afinal de seu mutismo para contar, rindo-se, a história de uma ceia que fizera com o duque de La Trémoïlle e durante a qual ficara evidenciado que este não sabia que George Sand era o pseudônimo de uma mulher. Swann, que simpatizava com Saniette, julgou que deveria oferecer-lhe detalhes sobre a cultura do duque, que demonstrassem que tal ignorância era materialmente impossível da sua parte; mas de súbito estacou, acabava de compreender que Saniette não tinha necessidade daquelas provas e sabia que a história era falsa pelo simples motivo de que acabava de inventá-la. Aquele excelente homem amargurava-se de que os Verdurin o achassem tão aborrecido; e como tinha consciência de que estivera mais sem graça que de costume, não quisera que o jantar findasse sem ter dito alguma coisa divertida. Capitulou tão depressa, fez uma cara tão mortificada ao ver que falhara o efeito com que contava e respondeu a Swann num tom tão covarde para que este não se encarniçasse numa refutação agora inútil: “Está bem, está bem; em todo caso, mesmo que me engane, acho que não é nenhum crime”, que Swann desejaria poder dizer-lhe que a história era verdadeira e gostosíssima. O doutor, que os ouvira, teve a ideia de que seria o caso de dizer: “Se non è vero”, mas não estava seguro das palavras e receou atrapalhar-se.[8] 

     Depois do jantar, Forcheville dirigiu-se ao doutor.

— Ela não deve ter sido feia, a senhora Verdurin, e depois é uma mulher com quem se pode conversar, e para mim isso é tudo. Evidentemente começa a virar pipa. Mas a senhora de Crécy, aí está uma mulherzinha que tem um ar inteligente, ah!, caramba!, vê-se logo que essa tem um olho de lince! Estamos falando da senhora de Crécy — disse ele ao sr. Verdurin que se aproximava. — Acho que como corpo… 
— Antes encontrá-lo na minha cama que encontrar o diabo — disse precipitadamente Cottard, que desde alguns instantes esperava em vão que Forcheville tomasse fôlego para aplicar aquele velho chiste, temeroso de perder a oportunidade se a conversa tomasse outro rumo, e que ele disse com esse excesso de espontaneidade e segurança com que se procura mascarar a frieza e nervosismo inseparáveis de um recitativo. Forcheville, que conhecia o chiste, o entendeu e riu com gosto. Quanto ao sr. Verdurin, não regateou sua hilaridade, pois encontrara havia pouco um meio de simbolizá-la, muito diverso do que usava a mulher, mas igualmente simples e claro. Mal começava a fazer o movimento de cabeça e de ombros de quem não pode mais se conter, logo se punha a tossir como se, rindo demasiado forte, se houvesse engasgado com o fumo do cachimbo. E, conservando-o sempre no canto da boca, prolongava indefinidamente o simulacro de sufocação e de hilaridade. De modo que ele e a senhora Verdurin, a qual, em frente, ouvindo o pintor contar-lhe uma história, fechava os olhos antes de precipitar o rosto nas mãos, tinham ambos o aspecto de duas máscaras de teatro que figurassem diferentemente a alegria.

     O sr. Verdurin fez aliás muito bem em não retirar o cachimbo da boca, pois Cottard, que tinha necessidade de afastar-se um instante, disse a meia-voz uma frase aprendida há pouco e que repetia sempre que tinha de ir ao mesmo local: “Preciso ir falar um instante com o duque de Aumale”, de sorte que recomeçou o acesso de tosse do sr. Verdurin.[9]  

— Anda, retira o cachimbo da boca, bem vês que vai afogar-te retendo o riso dessa maneira — disse a sra. Verdurin, que vinha oferecer licores. 
— Que homem encantador o seu marido! Tem espírito como quatro — declarou Forcheville à sra. Cottard. — Obrigado, minha senhora. Um veterano como eu nunca recusa uma pinga. 
— O senhor de Forcheville acha Odette encantadora — disse o sr. Verdurin à mulher. — Pois precisamente ela teria muito gosto em almoçar um dia com o senhor. Vamos combinar isso, mas Swann não deve sabê-lo. O senhor compreende, ele tem um gênio que esfria tudo. Isso naturalmente não impedirá que o senhor venha jantar, esperamos que apareça muitas vezes. Agora, com o bom tempo que vai chegar, jantaremos seguidamente ao ar livre. Não lhe desagrada jantar no Bois? Muito bem, será uma grande gentileza da sua parte. — E você aí, não vai trabalhar no seu ofício?! — gritou ela ao pianista, para mostrar, ao mesmo tempo, diante de um novato da importância de Forcheville, o seu espírito e o seu domínio tirânico sobre os fiéis. 
— O senhor de Forcheville estava a me falar mal de ti — disse a sra. Cottard ao marido, quando este voltou ao salão. 

     E o doutor, ainda com a ideia da nobreza de Forcheville que o procurava desde o início do jantar, lhe disse:

— Estou tratando atualmente de uma baronesa, a baronesa Putbus. Os Putbus estiveram nas Cruzadas, não é? Possuem na Pomerânia um lago dez vezes maior que a praça da Concórdia. Tem uma artrite seca, é uma mulher encantadora. Aliás, creio que ela conhece a senhora Verdurin.

     Isso permitiu que Forcheville, quando um momento depois se viu a sós com a sra. Cottard, completasse o juízo favorável que formara a respeito de seu marido. 

— E depois tem uma palestra interessante, vê-se que conhece muita gente. O que não sabem esses médicos! 
— Vou tocar a frase da sonata para o senhor Swann — disse o pianista. 
— Que ao menos não seja a “serpent à sonates”! — disse o sr. Forcheville, para armar efeito. 

     Mas o dr. Cottard, que nunca ouvira esse trocadilho, não o compreendeu e supôs houvesse engano da parte de Forcheville. Aproximou-se vivamente para retificá-lo.

— Não, não é “serpent à sonates” que se diz, é “serpent à sonnettes” — esclareceu, num tom zeloso, impaciente e triunfal.

     Forcheville explicou-lhe o trocadilho.[10] O doutor enrubesceu.

— Confesse que é engraçado, doutor… 
— Oh!, eu o conhecia há muito tempo — retrucou Cottard. 

continua na página 176...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Como tudo o que cercava Odette - h)
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, A sra. Cottard era modesta - i)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] A tímida mulher do dr. Cottard refere-se à receita de salada que aparece na peça Francillon, de Alexandre Dumas Filho, salada japonesa composta de batatas, mexilhão e trufas “cozidas no champanhe”. [n. e.]
[2] A opinião de que o salão Verdurin respirava o verdadeiro gosto pela arte começa a mudar com o ciúme de Swann por Forcheville. Este, por sua vez, passa a encenar a admiração pela espirituosidade e sapiência vertiginosa dos convivas. [n. e.]
[3] Outra peça do mesmo autor de Serge Panine, Georges Ohnet, extraída de seu romance homônimo, que obteve enorme sucesso no Gymnase-Dramatique, em 1883. [n. e.]
[4] Dramalhão já citado páginas antes como uma das paixões artísticas de Odette. [n. e.]
[5] Construído para a Exposição de 1885, o Palácio da Indústria passou a servir em seguida ao Salão Anual de Arte Moderna. Em 1900 ele seria demolido, dando lugar ao Petit Palais e ao Grand Palais. [n. e.]
[6] Em seu Traité de l’existence et des attributs de Dieu, Fénelon (1651-1715) define a inteligência “real nas criaturas” como manifestação da “inteligência universal” de Deus. Ele não chega a ser um “anarquista”, como quer Forcheville, mas propunha modelos utópicos de sociedade em Les aventures de Télémaque (1699) e se opunha ao absolutismo, em sua Lettre à Louis XIV. [n. e.]
[7] Alusão a uma carta de Madame de Sévigné a sua filha, datada do dia 13 de novembro de 1675. [n. e.]
[8] O doutor não consegue chegar ao fim do provérbio italiano “Se non è vero, è bene trovato”, que significa “Se não é verdade, é bem achado”. [n. e.]
[9] O dr. Cottard erra no emprego da gíria que significava na época “fazer amor”. [n. e.]
[10] “Serpent à sonates” era o apelido da marquesa de Saint-Paul, excelente pianista, mas sem papas na língua. [n. e.]