domingo, 30 de novembro de 2025

Moby Dick: 41 - Moby Dick (b)

Moby Dick

Herman Melville

41 -  Moby Dick

continuando...
      
     Mas, mesmo afastadas as conjeturas sobrenaturais, havia o suficiente na forma terrena e em seu caráter incontestável de monstro para abalar a imaginação com força inusitada. Pois não era tanto sua extraordinária compleição que o distinguia dos outros Cachalotes, mas – como foi dito em outro lugar – uma peculiar fronte enrugada, branca como a neve, e uma corcova alta e branca, em forma de pirâmide. Essas eram suas características proeminentes; os sinais pelos quais, mesmo em mares ilimitados e ignorados pelos mapas, ele revelava sua identidade, a distância, para os que a conheciam.
     O resto de seu corpo estava tão rajado, manchado e marmorizado com esse mesmo tom de mortalha que, afinal, ele ganhou o nome próprio de Baleia Branca; um nome, aliás, plenamente justificado por seu aspecto fulgurante, quando visto deslizando pelo mar azul escuro, ao meio-dia, deixando um rastro lácteo de espuma cremosa no qual cintilavam faíscas douradas.
      Não era sua grandeza insólita, nem sua coloração notável, nem mesmo sua mandíbula inferior deformada que tanto conferiam a ele um terror natural, mas sua perversidade inteligente e sem par que, segundo relatos, ele sempre revelava em seus ataques. Mas, acima de tudo, eram suas retiradas traiçoeiras que talvez amedrontassem mais do que qualquer outra coisa. Pois, quando nadava à frente de seus perseguidores exultantes, com todos os sinais de estar em alerta, ele muitas vezes se virava subitamente e, atacando-os, tanto lhes despedaçava os botes, como os levava em desespero de volta ao navio.
     Várias fatalidades já haviam acometido sua caça. Muito embora desastres parecidos, ainda que pouco falados em terra, não fossem de modo algum estranhos à pescaria; na maior parte dos casos, de tal forma se apresentava a premeditação infernal de ferocidade da Baleia Branca que cada mutilação ou morte causada não era de todo pensada como ataque de um agente irracional.
      Imagine, então, a que ponto de enfurecimento, exaltado e inflamado, o pensamento de seus mais desesperados caçadores foi impelido enquanto, por entre os pedaços de botes triturados e os membros de companheiros dilacerados, eles nadavam para longe dos coágulos brancos da ira demoníaca da baleia sob um sol sereno e exasperador, que continuava a lhes sorrir como se iluminasse um nascimento ou um casamento.
     Seus três botes afundando à sua volta, e os remos e os homens a girar em redemoinhos; um capitão, arrancando uma faca de cordas da proa arrebentada, arremessou-se contra a baleia, como um duelista do Arkansas contra seu adversário, tentando atingir às cegas, com uma lâmina de seis polegadas, a vida profunda da baleia. Esse capitão era Ahab. E foi então que, subitamente, passando por baixo dele com a foice de sua mandíbula inferior, Moby Dick cortou a perna de Ahab, como faria uma ceifadeira com a grama no campo. Nenhum Turco de turbante, nenhum Veneziano ou Malaio mercenário o teria atingido com tanta malícia. Havia poucos motivos para duvidar de que, desde aquele encontro quase fatal, Ahab nutrisse uma violenta sede de vingança contra a baleia, ainda mais terrível porque, em sua morbidez frenética, atribuíra a ela não apenas todos os seus infortúnios físicos, como também seus sofrimentos intelectuais e espirituais. A Baleia Branca nadava diante dele como a encarnação monomaníaca de todos os agentes malignos que alguns homens sentem corroendo-lhes o íntimo, até que lhes reste apenas viver com a metade do coração e do pulmão. Aquela perversidade inatingível que ali esteve desde o princípio; a cujo domínio mesmo os cristãos modernos atribuem a metade dos mundos; que os antigos Ofitas do Oriente reverenciavam com suas imagens demoníacas; – Ahab não desesperava e as adorava como eles; mas, transferindo em delírio tais ideias ao abominado cachalote branco, lançava-se, mesmo mutilado, contra ele. Tudo o que mais enlouquece e atormenta; tudo o que alvoroça a quietude das coisas; toda a verdade com certa malícia; tudo o que destrói o vigor e endurece o cérebro; tudo o que há de sutilmente demoníaco na vida e no pensamento; em suma, toda a maldade, para Ahab, se tornava visível, personificada e passível de ser enfrentada em Moby Dick. Amontoou sobre a corcova branca da baleia toda a cólera e a raiva sentidas por sua raça inteira, desde a queda de Adão; e então, como se seu peito fosse um morteiro, ali fez explodir a granada de seu coração ardente.
     É pouco provável que sua monomania tenha surgido no exato momento da mutilação de seu corpo. Naquele momento, atirando-se contra o monstro, faca na mão, ele apenas liberou uma hostilidade corporal, passional e repentina; e, quando recebeu o golpe que o dilacerou, provavelmente sentiu apenas a dor física da laceração, nada mais. Mas quando, depois desse choque, foi obrigado a voltar para casa e, durante longos meses, dias e semanas, Ahab e a angústia estiveram juntos, deitados numa rede, dobrando em pleno inverno aquele assustador e tormentoso cabo da Patagônia; nesse momento, seu corpo dilacerado e sua alma ferida sangraram juntos; e, assim fundidos, enlouqueceram-no. Foi só então, na viagem de volta para casa, depois do encontro, que a monomania definitiva o arrebatou, o que parece certo devido ao fato de que, de tempo em tempo ao longo do trajeto, ele se mostrou completamente ensandecido; muito embora alijado de uma perna, uma força vital ainda se escondia em seu peito Egípcio, e de tal modo intensificada em seus delírios que seus pilotos foram forçados a amarrá-lo ali mesmo, seguindo viagem enquanto ele vociferava em sua rede. Numa camisa-de-força, ele se balançava com a loucura dos vendavais. E quando passavam por latitudes mais benignas, e o navio de velas desfraldadas navegava por lugares tranquilos, e os delírios do velho pareciam ter ficado aparentemente para trás no cabo Horn, e ele saía de seu covil escuro para a luz e o ar abençoados; mesmo então, quando ele trazia o rosto composto e firme, embora pálido, e transmitia mais uma vez ordens calmas e coerentes; e seus oficiais agradeciam a Deus por aquela loucura maligna ter acabado; mesmo então, Ahab, em seu íntimo, continuava a delirar. A loucura humana é quase sempre felina e muito astuta. Quando pensamos ter acabado, pode ser que apenas tenha se transformado em algo mais sutil. A loucura de Ahab não havia cessado, apenas se condensado; como o Hudson constante, quando aquele nobre nortista corre estreito, mas insondável através das gargantas das Terras Altas. Mas, em sua monomania de correnteza estreita, nem uma gota da ampla loucura de Ahab havia se perdido; do mesmo modo, em sua ampla loucura, nem uma gota de seu grande intelecto natural havia perecido. Aquilo que outrora fora agente vivo se tornava instrumento vivo. Se um tropo tão exaltado é capaz de se sustentar, sua demência própria atacou sua sensatez geral e a venceu, e a trouxe consigo e voltou sua artilharia concentrada inteira contra o alvo de sua própria loucura; de tal modo que, longe de ter perdido a energia, Ahab tinha agora, para aquela finalidade, uma potência mil vezes mais forte do que jamais teve para um fim sensato, quando em juízo perfeito.
      Isto já é muito; ainda assim, o lado mais amplo, mais profundo e mais sombrio de Ahab permanece desconhecido. Mas é inútil vulgarizar profundidades, e toda verdade é profunda. Descendo muito além do coração desse Hotel de Cluny cravado aqui onde estamos agora – embora seja grandioso e maravilhoso, deixemo-lo; – parti, almas nobres e tristes, na direção daquelas enormes salas Romanas, as Termas; onde muito abaixo das torres fantásticas da superfície terrena do homem, sua raiz de grandeza, toda a sua essência apavorante se encontra em posição de confronto; uma antiguidade sepultada sob antiguidades, entronizada nos torsos! Num trono quebrado, os grandes deuses caçoam do rei cativo; mas, como uma Cariátide, ele fica pacientemente sentado, sustentando em sua fronte congelada os entablamentos acumulados dos séculos. Descei, almas altivas e tristes! Interrogai aquele rei orgulhoso e triste! Uma semelhança familiar! Sim, ele vos gerou, jovens realezas exiladas; e apenas por meio de vosso monarca impiedoso vos será revelado o antigo segredo de Estado.
     Ora, em seu coração, Ahab tinha alguns vislumbres, tais como: todos os meus meios são razoáveis; minha motivação e meu objetivo, loucos. No entanto, sem poder para anular, mudar ou evitar o fato; ele sabia que aos olhos da humanidade ele disfarçara durante muito tempo; e, de certo modo, ainda disfarçava. Mas sua dissimulação sujeitava-se apenas à sua perceptibilidade, não à sua determinação. Ainda assim, foi tão bem-sucedido em seu disfarce que, quando por fim sua perna de mármore pisou em terra, nenhum habitante de Nantucket pensou outra coisa, senão que ele estivesse apenas naturalmente triste, e isso, de pronto, devido ao acidente terrível que havia sofrido.
     O relato de seu indiscutível delírio no mar também foi amplamente justificado por uma causa semelhante. E, da mesma forma, as mudanças de seu humor que sempre desde então, até o dia da partida do Pequod para a presente viagem, apareciam estampadas em seu rosto. Também não é improvável que, longe de desqualificar sua aptidão para outra viagem baleeira, considerados os sinais tão sombrios, as pessoas astutas daquela ilha prudente se sentiam inclinadas a dar guarida à ideia de que, por essas mesmas razões, ele estivesse mais capacitado e preparado para uma perseguição tão repleta de fúria e selvageria quanto a sangrenta caça às baleias. Atormentado por dentro e ferido por fora, com as duras presas de uma ideia incurável nele cravadas; alguém como ele, poderiam dizer, parecia ser o homem certo para erguer sua lança e arremessar seu ferro contra a mais terrível de todas as bestas. Ou, se por qualquer razão, o considerassem fisicamente incapaz de combater, ainda assim seria muito competente para, com berros, animar e incitar os outros ao ataque. Mas, seja como for, certo é que, com o desvairado segredo de seu ódio inabalável isolado e trancado em sua alma, Ahab tinha propositadamente embarcado nessa viagem com o único e exclusivo objetivo de perseguir a Baleia Branca. Tivessem alguns de seus antigos camaradas de terra imaginado metade do que ele ocultava dentro de si, com que prontidão suas almas honradas e horrorizadas teriam arrancado o navio desse homem tão demoníaco! Eles queriam uma viagem lucrativa, com o lucro contado em dólares da Casa da Moeda. Ahab estava determinado a conseguir uma vingança audaciosa, implacável e sobrenatural.
     Assim, pois, estava esse velho homem, grisalho e sem Deus, perseguindo com maldições a baleia de Jó ao redor do mundo, comandando uma tripulação composta basicamente de mestiços renegados, náufragos e canibais – também debilitados moralmente pela incompetência da mera virtude ou honradez perdida de Starbuck, pela invulnerável jovialidade, indiferente e despreocupada de Stubb, e pela mediocridade que prevalecia em Flask. Tal tripulação, com tais oficiais, parecia ser especialmente selecionada e reunida por uma fatalidade diabólica para ajudá-lo em sua vingança monomaníaca. Por quais motivos eles reagiram tão vigorosamente à ira do velho – que feitiço diabólico tomou conta de seus espíritos, a ponto de às vezes acreditarem ser sua a raiva de Ahab; e a Baleia Branca, inimiga inatingível, tão sua quanto dele; como é possível – o que a Baleia Branca representava para eles, ou como em sua compreensão inconsciente, de algum modo obscuro e insuspeito, ela parecia ter sido o grande demônio imperceptível dos mares da vida, – para explicar isso tudo, seria necessário ir mais fundo do que Ishmael consegue. O mineiro subterrâneo que trabalha em todos nós, como pode alguém dizer para onde seu cabo conduz somente pelo ruído abafado, nunca estático, de sua picareta? Quem não sente o arrastar irresistível do braço? Que esquife rebocado por um navio de setenta e quatro canhões pode ficar parado? Quanto a mim, cedi ao abandono das circunstâncias e do lugar; e, ainda que estivesse apressado para enfrentar a baleia, não podia ver naquela criatura coisa alguma além da maldade mais fatal.

Continua na página 183...
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Leia também:

Moby Dick: Etimologia, Excertos, Citações
Moby Dick: 1  - Miragens
Moby Dick: 41 -  Moby Dick (b)
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?

O Sol é para todos: 2ª Parte (18a)

Harper Lee

O Sol é para todos

Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto

Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB

SEGUNDA PARTE

18

      Outra voz trovejou no tribunal. 

— Mayella Violet Ewell!

     Uma jovem se encaminhou para o banco das testemunhas. Ao levantar a mão e jurar dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade e que Deus a ajudasse, pareceu frágil. Mas, quando ficou de frente para nós, no banco, voltou a ser quem era: uma moça robusta, acostumada ao trabalho pesado.
    Em Maycomb, era fácil saber quem tomava banho regularmente, em vez de uma vez por ano: o sr. Ewell parecia ter sido escaldado; como se, depois de passar uma noite de molho na água, a pele tivesse ficado sensível sem a proteção das camadas de sujeira. Já Mayella parecia uma moça que gostava de limpeza, e lembrei dos gerânios vermelhos enfileirados no quintal dos Ewell.
     O sr. Gilmer pediu que Mayella contasse aos jurados, com suas próprias palavras, o que tinha acontecido no entardecer de vinte e um de novembro do ano anterior. Com suas próprias palavras, por favor.
     Mayella ficou calada.

— Onde você estava ao entardecer daquele dia? — começou o sr. Gilmer, paciente. 
— Na varanda. 
— Que varanda? 
— Só tem uma, na frente da casa. 
— O que você estava fazendo lá? 
— Nada.

     O juiz Taylor pediu: 

— Apenas conte-nos o que houve. Pode fazer isso, não pode?

      Mayella olhou bem para ele e começou a chorar. Cobriu a boca com as mãos e soluçou. O juiz Taylor deixou-a chorar um pouco, depois disse: 

— Agora chega. Não precisa ter medo de ninguém aqui, basta contar a verdade. Sei que tudo isso é estranho para você, mas não precisa se envergonhar, nem ter medo. Do que está com medo?

     Mayella disse alguma coisa por trás das mãos. 

— O que disse? — perguntou o juiz. 
— Dele — ela respondeu, aos soluços, apontando para Atticus. 
— Do sr. Finch?

      Ela confirmou com a cabeça e disse: 

— Não quero que faça comigo o que fez com papai, tentando mostrar que ele é canhoto…

     O juiz Taylor coçou a densa cabeleira branca. Ficou claro que ele nunca tinha enfrentado um problema como aquele. Perguntou a ela: 

— Quantos anos você tem? 
— Dezenove e meio — respondeu Mayella.

     O juiz Taylor pigarreou e tentou inutilmente tranquilizá-la. 

— O sr. Finch não tem a menor intenção de assustá-la e, caso tivesse, eu o impediria — disse, com voz forte. — Essa é uma das razões por que estou aqui. E você é adulta, sente-se direito e conte… conte-nos o que aconteceu com você. Consegue fazer isso, não consegue?

     Cochichei para Jem: 

— Ela tem algum discernimento?

      Jem olhava atento para Mayella. 

— Não sei ainda. Tem discernimento o suficiente para fazer o juiz ter pena dela, mas pode ser que ela esteja apenas… ah, não sei.

      Depois que se acalmou, Mayella dirigiu um último olhar aterrorizado para Atticus e disse ao sr. Gilmer: 

— Bem, senhor, eu estava na varanda e… ele apareceu e, sabe, tinha um velho armário no quintal que papai trouxe para cortar e usar como lenha… Papai disse para eu cortar enquanto ele estava no bosque, mas eu não estava muito bem disposta, então ele apareceu... 
— Ele quem?

     Mayella apontou para Tom Robinson. 

— Vou ter que pedir que seja mais específica, por favor. O estenógrafo não pode anotar gestos — explicou o sr. Gilmer. 
— Aquele lá — disse ela. — Robinson. 
— O que aconteceu depois? 
— Eu disse a ele: “Venha cá, preto, cortar esse armário com o machado para mim. Dou uma moeda para você.” Ele podia fazer aquilo fácil, com certeza podia. Ele entrou no quintal e fui pegar a moeda, então me virei e, quando percebi, ele estava em cima de mim. Tinha ido correndo atrás de mim. Me segurou pelo pescoço, xingando e dizendo coisas sujas… Lutei e gritei, mas ele não largou o meu pescoço. Bateu em mim várias vezes…

      O sr. Gilmer aguardou Mayella se recompor: o lenço na mão dela estava tão torcido que parecia uma corda suarenta. Quando ela abriu o lenço para secar o rosto, estava todo amassado pelas mãos úmidas. Esperou o sr. Gilmer fazer outra pergunta; como ele não fez, ela continuou: 

— … ele me jogou no chão, me sufocou e se aproveitou de mim. 
— Você gritou? Reagiu? — perguntou o sr. Gilmer. 
— Gritei até não poder mais, chutei e berrei bem alto. 
— O que aconteceu então? 
— Não lembro direito, só lembro de papai na sala me olhando e berrando “quem fez isso com você, quem foi?”. Então eu acho que desmaiei, depois só me lembro do sr. Tate me levantando do chão e me levando até o balde de água.

     Dava a impressão de que Mayella tinha ficado mais segura depois do depoimento, mas ela não era ousada como o pai, era meio desconfiada, como um gato que olha fixamente enquanto fica balançando o rabo. 

— Você disse que reagiu com toda a sua força? Mordeu e arranhou? — perguntou o sr. Gilmer. 
— Com certeza — ela respondeu, repetindo as palavras do pai. 
— Confirma que ele abusou de você?

      Mayella fez uma careta e temi que ela começasse a chorar outra vez. Mas ela disse: 

— Ele fez o que queria.

      O sr. Gilmer passou a mão na cabeça e com isso chamou a atenção para o calor que fazia. Disse então: 

— Por enquanto, é só, mas não saia daí. Creio que o grande e cruel sr. Finch tem algumas perguntas a fazer — disse o sr. Gilmer cordialmente. 
— O Estado não deve colocar a testemunha contra o advogado de defesa. Pelo menos não por enquanto — avisou o juiz Taylor, sério.

     Atticus levantou-se sorrindo, mas, em vez de ir até o banco das testemunhas, abriu o paletó, enfiou um dedo de cada lado do colete e andou lentamente pela sala até as janelas. Olhou para fora, mas não parecia ter nenhum interesse especial pelo que via, então se virou e voltou ao banco das testemunhas. Graças a anos de experiência, eu sabia que ele estava tentando tomar uma decisão a respeito de algo. 

— Srta. Mayella, não vou tentar assustá-la por enquanto, ainda não. Só quero saber um pouco mais a seu respeito. Quantos anos tem? — perguntou, sorrindo. 
— Já disse ao juiz, tenho dezenove — ela respondeu, indicando a cátedra, ofendida. 
— Tem razão, tem razão, senhorita. Tenha paciência comigo, srta. Mayella, estou ficando velho e minha memória não é mais a mesma. Posso perguntar coisas que já foram ditas, mas mesmo assim responda, por favor. Pode ser? Ótimo.

     A cara de Mayella não dava nenhum sinal de que iria cooperar plenamente com Atticus. Ela o olhava furiosa. 

— Não vou responder nada enquanto ficar zombando de mim — ela disse. 
— Como? — repetiu Atticus, surpreso. 
— Enquanto ficar zombando de mim.

     O juiz Taylor interrompeu: 

— O sr. Finch não está zombando de você. Qual é o problema?

      Mayella olhou para Atticus com os olhos semicerrados, mas disse ao juiz: 

— Ele fica me chamando de srta. Mayella isso, srta. Mayella aquilo. Não admito esse descaramento, e não tenho que aguentar isso, não mesmo.

     Atticus foi mais uma vez até as janelas e deixou o problema por conta do juiz Taylor. Ele não era do tipo que inspira compaixão, mas tive pena dele enquanto tentava explicar: 

— É só o jeito do sr. Finch tratar as pessoas. Trabalhamos juntos nesse tribunal há muitos anos e ele sempre foi gentil com todos. Não está zombando de você, só está querendo ser educado. É o jeito dele — disse o juiz a Mayella.

     Ele se recostou na cadeira e disse: 

— Atticus, vamos continuar o depoimento, e que fique registrado que a testemunha não foi tratada com desrespeito, apesar de sua alegação em contrário.

      Fiquei me perguntando se ela alguma vez já tinha sido chamada de senhora ou de senhorita Mayella na vida. Certamente não, já que se ofendia com uma cortesia normal. Que tipo de vida ela devia levar? Descobri logo. 

— Você disse que tem dezenove anos — continuou Atticus, voltando da janela para a tribuna. — Quantos irmãos e irmãs? 
— Sete — ela respondeu e fiquei pensando se todos seriam como o exemplar que conheci no primeiro dia de aula. 
— Você é a primogênita? A mais velha? 
— Sou. 
— Sua mãe morreu há quanto tempo? 
— Não sei. Há muito tempo. 
— Você foi à escola? 
— Sei ler e escrever como meu pai.

     Mayella parecia o personagem sr. Jingle, de um livro que li. 

— Durante quanto tempo foi à escola? 
— Dois anos, três… não sei.

     Aos poucos comecei a entender a estratégia do interrogatório de Atticus: ao fazer perguntas que o sr. Gilmer não considerou irrelevantes ou impertinentes o bastante a ponto de protestar, Atticus estava aos poucos desenhando para os jurados um retrato da vida doméstica dos Ewell. Assim eles ficaram sabendo que o seguro-desemprego era insuficiente para sustentar a família e havia fortes indícios de que o pai bebesse todo o dinheiro de qualquer forma — ele às vezes passava dias no pântano e voltava doente. Raramente fazia tanto frio que fosse preciso usar sapatos, mas, quando fazia, era possível fazer ótimos sapatos com tiras de pneus velhos. A família usava baldes para pegar a água em um manancial que jorrava num extremo do lixão — eles mantinham a área ao redor limpa e em se tratando de higiene pessoal, era cada um por si. Quem quisesse tomar banho que fosse buscar água. As crianças menores estavam sempre resfriadas e com coceira. De vez em quando, aparecia uma senhora na casa deles e perguntava a Mayella por que ela não ia à escola. Essa senhora anotava a resposta e, como havia duas pessoas na família que sabiam ler e escrever, os outros não precisavam aprender — o pai precisava deles em casa. 

— Srta. Mayella — disse Atticus, sem querer —, uma moça de dezenove anos deve ter amigos. Quem são seus amigos?

     A testemunha franziu o cenho, intrigada. 

— Amigos? 
— É. Não conhece ninguém da sua idade, um pouco mais velho ou mais jovem? Rapazes ou moças? Simples amigos?

     A hostilidade de Mayella, que tinha se reduzindo a uma certa neutralidade, voltou a se inflamar. 

— Está zombando de mim outra vez, sr. Finch?

      Atticus deixou que a pergunta dela servisse de resposta à dele. 

— Gosta do seu pai, srta. Mayella? — foi a pergunta seguinte. 
— Gostar, como assim? 
— Quero dizer, ele é bom para você, é fácil de lidar? 
— Dá para aguentar, a não ser quando… 
— Quando o quê?

     Mayella olhou para o pai, que tinha inclinado a cadeira apoiando-a na balaustrada do tribunal. Ele se empertigou e esperou a resposta. 

— Nada. Eu disse que dá para aguentar.

     O sr. Ewell recostou-se na cadeira de novo. 

— A não ser quando ele bebe? — Atticus perguntou com tanta delicadeza que Mayella concordou. 
— Ele já foi atrás de você? 
— Como assim? 
— Quando está… irritado, ele bate em você?

     Mayella olhou as pessoas em volta, o estenógrafo e o juiz. 

— Responda, srta. Mayella — pediu o juiz Taylor. 
— Meu pai nunca tocou num fio de cabelo meu, nunca — ela garantiu, firme. — Ele nunca pôs a mão em mim.

     Os óculos de Atticus escorregaram um pouco no nariz e ele os empurrou para cima. 

— Já tivemos uma boa conversa, srta. Mayella, agora acho melhor voltarmos ao caso. Declarou que pediu a Tom Robinson para cortar com um machado um… o que era mesmo? 
— Era um armário velho, que tinha gavetas de um lado. 
— Conhecia bem Tom Robinson? 
— Como assim? 
— Sabia quem ele era, onde morava?

continua página 123...
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Leia também:

O Sol é para todos: 2ª Parte (18a)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.

sábado, 29 de novembro de 2025

MPB: Espanhola

Sá & Guarabyra








Por tantas vezes
Eu andei mentindo
Só por não poder
Te ver chorando

Te amo, espanhola
Te amo, espanhola
Se for chorar
Te amo

Te amo, espanhola
Te amo, espanhola
Se for chorar
Te amo

Sempre assim
Cai o dia e é assim
Cai a noite e é assim
Essa Lua sobre mim
Essa fruta sobre o meu paladar

Nunca mais
Quero ver você me olhar
Sem me enxergar em mim
Eu preciso lhe falar
Eu preciso, tenho que lhe contar

Te amo, espanhola
Te amo, espanhola
Se for chorar
Te amo

Te amo, espanhola
Te amo, espanhola
Se for chorar
Te amo

Sempre assim
Cai o dia e é assim
Cai a noite e é assim
Essa Lua sobre mim
Essa fruta sobre o meu paladar

Nunca mais
Quero ver você me olhar
Sem me enxergar em mim
Eu preciso lhe falar
Eu preciso, tenho que lhe contar

Te amo, espanhola
Te amo, espanhola
Pra quê chorar?
Te amo

Te amo, espanhola
Te amo, espanhola
Pra quê chorar?
Te amo

Composição: Guarabyra / Flávio Venturini


A história da música





um eterno alvoroço em teus olhos estrelas maiakóvski
silêncio profundo entre verdades e desencantos



Zé Rodrix, Sá & Guarabyra
Casa No Campo / Caçador De Mim / Espanhola 

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Curta: Rummikub

Curta-metragem de Jorge Furtado


Num fim de semana chuvoso na praia, duas famílias brigam por causa do Rummikub, um jogo de mesa. Alheios às brigas dos pais, surge um casal de amantes. Paralelamente, um conjunto de cogumelos traz um elemento de mistério: seriam eles comestíveis, alucinógenos ou até venenosos? É praticamente certo que vai dar tudo certo.







Direção e roteiro: Jorge Furtado
Produção executiva: Nora Goulart, Rita Moraes, Fernando Rodriguez, Luciana Lamberto
Direção de Fotografia: Jacob Solitrenick
Direção de Arte: Rita Faustini
Música: Leo Henkin
Montagem: Giba Assis Brasil
Elenco: 
Alice Braga, 
Pedro Furtado, 
Patsy Cecato, 
Nelson Diniz, 
Elisa Volpato

Platão: O Banquete - Apolodoro e um Companheiro(g)

Apolodoro[1] e um Companheiro


     Tudo isso ela me ensinava, quando sobre as questões de amor discorria, e uma vez ela me perguntou: 

- Que pensas, ó Sócrates, ser o motivo desse amor e desse desejo? Porventura não percebes como é estranho o comportamento de todos os animais quando desejam gerar, tanto dos que andam quanto dos que voam, adoecendo todos em sua disposição amorosa, primeiro no que concerne à união de um com o outro, depois no que diz respeito à criação do que nasceu? E como em vista disso estão prontos para lutar os mais fracos contra os mais fortes, E mesmo morrer, não só se torturando pela fome a fim de alimentá-los como tudo o mais fazendo? Ora, os homens, continuou ela, poder-se-ia pensar que é pelo raciocínio que eles agem assim; mas os animais, qual a causa desse seu comportamento amoroso? Podes dizer-me? 

     De novo eu lhe disse que não sabia; e ela me tornou: 

- Imaginas então algum dia te tornares temível nas questões do amor, se não refletires nesses fatos?
- Mas é por isso mesmo, Diotima - como há pouco eu te dizia - que vim a ti, porque reconheci que precisava de mestres. Dize me então não só a causa disso, como de tudo o mais que concerne ao amor.
- Se de fato - continuou - crês que o amor é por natureza amor daquilo que muitas vezes admitimos, não fiques admirado. Pois aqui, segundo o mesmo argumento que lá, a natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal. E ela só pode assim, através da geração, porque sempre deixa um outro ser novo em lugar do velho; pois é nisso que se diz que cada espécie animal vive e é a mesma - assim como de criança o homem se diz o mesmo até se tornar velho; este na verdade, apesar de jamais ter em si as mesmas coisas, diz-se todavia que é o mesmo, embora sempre se renovando e perdendo alguma coisa, nos cabelos, nas carnes, nos ossos, no sangue e em todo o corpo. E não é que é só no corpo, mas também na alma os modos, os costumes, as opiniões, desejos, prazeres, aflições, temores, cada um desses afetos jamais permanece o mesmo em cada um de nós, mas uns nascem, outros morrem. Mas ainda mais estranho do que isso é que até as ciências não é só que umas nascem e outras morrem para nós, e jamais somos os mesmos nas ciências, mas ainda cada uma delas sofre a mesma contingência. O que, com efeito, se chama exercitar é como se de nós estivesse saindo a ciência; esquecimento é escape de ciência, e o exercício, introduzindo uma nova lembrança em lugar da que está saindo, salva a ciência, de modo a parecer ela ser a mesma. É desse modo que tudo o que é mortal se conserva, E não pelo fato de absolutamente ser sempre o mesmo, como o que é divino, mas pelo fato de deixar o que parte e envelhece um outro ser novo, tal qual ele mesmo era. É por esse meio, ó Sócrates, que o mortal participa da imortalidade, no corpo como em tudo mais o imortal porém é de outro modo. Não te admires portanto de que o seu próprio rebento, todo ser por natureza o aprecie: é em virtude da imortalidade que a todo ser esse zelo e esse amor acompanham.

     Depois de ouvir o seu discurso, admirado disse-lhe: 

- Bem, ó doutíssima Diotima, essas coisas é verdadeiramente assim que se passam? 

     E ela, como os sofistas consumados, tornou-me: 

- Podes estar certo, ó Sócrates; o caso é que, mesmo entre os homens, se queres atentar à sua ambição, admirar-te-ias do seu desarrazoamento, a menos que, a respeito do que te falei, não reflitas, depois de considerares quão estranhamente eles se comportam com o amor de se tornarem renomados e de “para sempre uma glória imortal se preservarem”, e como por isso estão prontos a arrostar todos os perigos, ainda mais do que pelos filhos, a gastar fortuna, a sofrer privações, quaisquer que elas sejam, e até a sacrificar-se. Pois pensas tu, continuou ela, que Alceste morreria por Admeto, que Aquiles morreria depois de Pátroclo, ou o vosso Codro morreria antes, em favor da realeza dos filhos, se não imaginassem que eterna seria a memória da sua própria virtude, que agora nós conservamos? Longe disso, disse ela; ao contrário, é, segundo penso, por uma virtude imortal e por tal renome e glória que todos tudo fazem, e quanto melhores tanto mais; pois é o imortal que eles amam. Por conseguinte, continuou ela, aqueles que estão fecundados em seu corpo voltam-se de preferência para as mulheres, e é desse modo que são amorosos, pela procriação conseguindo para si imortalidade, memória e bem-aventurança por todos os séculos seguintes, ao que pensam; aqueles porém que é em sua alma - pois há os que concebem na alma mais do que no corpo, o que convém à alma conceber e gerar; e o que é que lhes convém senão o pensamento e o mais da virtude? Entre estes estão todos os poetas criadores e todos aqueles artesãos que se diz serem inventivos; mas a mais importante, disse ela, e a mais bela forma de pensamento é a que trata da organização dos negócios da cidade e da família, e cujo nome é prudência e justiça - destes por sua vez quando alguém, desde cedo fecundado em sua alma, ser divino que é, e chegada a idade oportuna, já está desejando dar à luz e gerar, procura então também este, penso eu, à sua volta o belo em que possa gerar; pois no que é feio ele jamais o fará. Assim é que os corpos belos mais que os feios ele os acolhe, por estar em concepção; e se encontra uma alma bela, nobre e bem dotada, é total o seu acolhimento a ambos, e para um homem desses logo ele se enriquece de discursos sobre a virtude, sobre o que deve ser o homem bom e o que deve tratar, e tenta educá-lo. Pois ao contato sem dúvida do que é belo e em sua companhia, o que de há muito ele concebia ei-lo que dá à luz e gera, sem o esquecer tanto em sua presença quanto ausente, e o que foi gerado, ele o alimenta justamente com esse belo, de modo que uma comunidade muito maior que a dos filhos ficam tais indivíduos mantendo entre si, e uma amizade mais firme, por serem mais belos e mais imortais os filhos que têm em comum. E qualquer um aceitaria obter tais filhos mais que os humanos, depois de considerar Homero e Hesíodo, e admirando com inveja os demais bons poetas, pelo tipo de descendentes que deixam de si, e que uma imortal glória e memória lhes garantem, sendo eles mesmos o que são; ou se preferes, continuou ela, pelos filhos que Licurgo deixou na Lacedemônia, salvadores da Lacedemônia e por assim dizer da Grécia. E honrado entre vós é também Sólon pelas leis que criou, e outros muitos em muitas outras partes, tanto entre os gregos como entre os bárbaros, por terem dado à luz muitas obras belas e gerado toda espécie de virtudes; deles é que já se fizeram muitos cultos por causa de tais filhos, enquanto que por causa dos humanos ainda não se fez nenhum.
São esses então os casos de amor em que talvez, ó Sócrates, também tu pudesses ser iniciado; mas, quanto à sua perfeita contemplação, em vista da qual é que esses graus existem, quando se procede corretamente, não sei se serias capaz; em todo caso, eu te direi, continuou, e nenhum esforço pouparei; tenta então seguir-me se fores capaz: deve com efeito, começou ela, o que corretamente se encaminha a esse fim, começar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos, e em primeiro lugar, se corretamente o dirige o seu dirigente, deve ele amar um só corpo e então gerar belos discursos; depois deve ele compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã da que está em qualquer outro, e que, se se deve procurar o belo na forma, muita tolice seria não considerar uma só e a mesma a beleza em todos os corpos; e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho; depois disso a beleza que está nas almas deve ele considerar mais preciosa que a do corpo, de modo que, mesmo se alguém de uma alma gentil tenha todavia um escasso encanto, contente-se ele, ame e se interesse, e produza e procure discursos tais que tornem melhores os jovens; para que então seja obrigado a contemplar o belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim que todo ele tem um parentesco comum, e julgue enfim de pouca monta o belo no corpo; depois dos ofícios é para as ciências que é preciso transportá-lo, a fim de que veja também a beleza das ciências, e olhando para o belo já muito, sem mais amar como um doméstico a beleza individual de um criançola, de um homem ou de um só costume, não seja ele, nessa escravidão, miserável e um mesquinho discursador, mas voltado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o, muitos discursos belos e magníficos ele produza, e reflexões, em inesgotável amor à sabedoria, até que aí robustecido e crescido contemple ele uma certa ciência, única, tal que o seu objeto é o belo seguinte. Tenta agora, disse-me ela, prestar-me a máxima atenção possível. Aquele, pois, que até esse ponto tiver sido orientado para as coisas do amor, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já chegando ao ápice dos graus do amor, súbito perceberá algo de maravilhosamente belo em sua natureza, aquilo mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas anteriores, primeiramente sempre sendo, sem nascer nem perecer, sem crescer nem decrescer, e depois, não de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não, nem quanto a isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo ali feio, como se a uns fosse belo e a outros feio; nem por outro lado aparecer-lhe á o belo como um rosto ou mãos, nem como nada que o corpo tem consigo, nem como algum discurso ou alguma ciência, nem certamente como a existir em algo mais, como, por exemplo, em animal da terra ou do céu, ou em qualquer outra coisa; ao contrário, aparecer-lhe-á ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme, enquanto tudo mais que é belo dele participa, de um modo tal que, enquanto nasce e perece tudo mais que é belo, em nada ele fica maior ou menor, nem nada sofre. Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo. Nesse ponto da vida, meu caro Sócrates, continuou a estrangeira de Mantinéia, se é que em outro mais, poderia o homem viver, a contemplar o próprio belo. Se algum dia o vires, não é como ouro ou como roupa que ele te parecerá ser, ou como os belos jovens adolescentes, a cuja vista ficas agora aturdido e disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam seus amados e sempre estejam com eles, a nem comer nem beber, se de algum modo fosse possível, mas a só contemplar e estar ao seu lado. Que pensamos então que aconteceria, disse ela, se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio divino belo pudesse ele em sua forma única contemplar? Porventura pensas, disse, que é vida vã a de um homem a olhar naquela direção e aquele objeto, com aquilo com que deve, quando o contempla e com ele convive? Ou não consideras, disse ela, que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando?  

continua página 46...
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Apolodoro e um Companheiro(g)
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Platão (428/7-348/7 a.C.)
     Nasceu em Atenas, por volta de 428/7, e era membro de uma aristocrática e ilustre família. Descendia dos antigos reis de Atenas, de Sólon e era também sobrinho de Crítias (460/403) e Cármides, dois dos "Trinta Tiranos" que governaram Atenas em -404. Lutou na Guerra do Peloponeso entre 409 e 404, e a admiração por Sócrates, que conheceu em algum momento desse período, foi decisiva em sua vida.
     O seu verdadeiro nome era Arístocles, mas devido à sua compleição física recebeu a alcunha de Platão (significa literalmente "ombros largos"). Frequentou com assiduidade os ginásios, obtendo prêmios por duas vezes nos Jogos Istímicos. Começou por seguir as lições de Crátilo, discípulo de Heraclito, e as de Hermógenes, discípulo de Parménides. Em princípio, por tradição familiar deveria seguir a vida política. Contudo, a experiência do governo dos trinta tiranos que governaram Atenas por imposição de Esparta (404-403 a.C.), e da qual fazia parte dois dos seus tios Crístias e Cármides, distanciaram-no desta opção de vida, pelo menos do modo como a política era exercida. O fato que mais o marcou foi a influência que sobre ele exerceu Sócrates, tendo-se feito seu discípulo por volta de 408, quando contava vinte anos. Nele encontrou o mestre, que veio a homenagear na sua obra, fazendo-o interlocutor principal da quase totalidade dos seus diálogos.
     Após a morte de Sócrates, em 399 a.C., Platão realizou inúmeras viagens, travando contato com importantes filósofos e escolas de pensamento suas contemporâneas. Em Megara, travou contato com Euclides e sua escola; no Egito, Sicília e Magna Grécia, aprofundou seus conhecimentos através do contato com a sabedoria egípcia e os ensinamentos eleáticos e pitagóricos, este último especialmente através do encontro com Arquitas de Tarento. De passagem por Siracusa, ligou-se a Díon e Dionísio, tirano de Siracusa. Estas duas personagens desempenharam papel fundamental na posterior vida política de Platão. 
     De volta a Atenas, fundou em 387 a Academia, passando a dedicar-se ao ensino e à composição de sua obra filosófica.
     Em 365 e em 361 esteve novamente em Siracusa, a pedido do amigo Díon, numa tentativa inútil de transformar o jovem Dionísios II (-367/-342), filho e sucessor de Dionísios I, no "reifilósofo" que idealizara. 
     Desiludido com a dificuldade de colocar em prática suas idéias filosóficas, Platão não mais saiu de Atenas. 
     Durante o ultimo período da sua vida continuou a dirigir a Academia, e escreveu o Timeu, O Crítias e As Leis ,que não chegou a acabar falecendo por volta de 347.  
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[1] O interlocutor de Sócrates não está só (N.T.)

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VIII(1.a)

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção VIII

DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE[1]
PRIMEIRA PARTE

     Seria razoável esperar que acerca das questões que têm sido examinadas e discutidas cuidadosamente desde os primórdios da ciência e da filosofia houvesse, ao menos, acordo entre os disputantes sobre o significado de todos os termos e, transcorridos dois mil anos de inquirições, houvessem passado das palavras para o objetivo verdadeiro e real da controvérsia. Pois não seria mais fácil definir com exatidão os termos empregados no raciocínio e não considerar as definições um mero reflexo de palavras, mas objeto de exame e investigações futuras? Mas se considerarmos o assunto mais de perto, seremos obrigados a tirar uma conclusão oposta, fundada nesta única circunstância: visto que uma controvérsia perdura e continua ainda sem decisão, deve-se presumir que há alguma ambiguidade conceitual e que os adversários atribuem ideias diferentes para os termos empregados na controvérsia. Com efeito, supondo-se que as faculdades espirituais são naturalmente semelhantes em todos os indivíduos —de outro modo nada seria mais infrutífero do que raciocinar e discutir juntos — seria impossível, se os homens atribuíssem as mesmas ideias para os seus termos, que continuassem por tanto tempo a formular opiniões diferentes sobre o mesmo objeto, especialmente se comunicam seus pareceres e cada uma das facções busca argumentos em toda parte a fim de obter a vitória sobre seus antagonistas. Certamente, se os homens enveredam por problemas inteiramente afastados da capacidade humana, tais como os referentes à origem do mundo, à organização do sistema intelectual ou ao reino dos espíritos, podem longa e infrutiferamente discutir sem atingir uma solução conclusiva. Mas, se o problema diz respeito a qualquer objeto da vida diária e da experiência, pensar-se-ia que nada poderia manter o debate indecidido por tanto tempo, exceto algumas expressões ambíguas, que mantêm ainda os adversários à distância, impedindo-os de se porem em íntimo contato.
     Esta tem sido a situação da tão longamente debatida questão da liberdade e da necessidade. E se não estiver muito equivocado, veremos que todos os homens, tanto eruditos como ignorantes, sempre têm sustentado idêntica opinião acerca do assunto a ponto de fazer crer que algumas definições inteligíveis teriam imediatamente posto fim a toda controvérsia. Reconheço que esta questão tem sido bastante agitada por todas as partes e que tem arrastado os filósofos a tal labirinto de sofismas obscuros que não espanta se um leitor amante da tranquilidade queira fazer-se de surdo sobre ela, já que não espera do debate instrução ou entretenimento. Contudo, o tipo de argumentação proposto aqui poderá, talvez, servir para renovar sua curiosidade e, como apresenta inovação, promete, pelo menos, uma solução parcial da controvérsia sem perturbar em demasia sua tranquilidade com raciocínios complicados e obscuros.  
     Pretendo mostrar, portanto, que todos os homens sempre têm estado concordes com as doutrinas da necessidade e da liberdade —segundo qualquer significado razoável que se possa atribuir a estes termos — e que até agora toda a controvérsia tem girado em torno de meras palavras.[2]
     Toda a gente reconhece que a matéria, em todas as suas funções, se acha animada por uma força necessária, e que todo efeito natural está determinado com exatidão pela energia de sua causa, de forma que nenhum outro efeito poderia resultar dela em tais condições particulares. O grau e a direção de cada movimento estão prescritos pelas leis da natureza com tal exatidão, que seria tão difícil fazer surgir um grau ou direção diferente ao que se produz em realidade como fazer nascer uma criatura viva do choque de dois corpos. Portanto, se quisermos conceber uma ideia justa e exata da necessidade, devemos examinar a origem dessa ideia quando a aplicarmos às ações corporais.
     Parece evidente que jamais teríamos chegado à menor ideia de necessidade ou de conexão entre os objetos naturais, se todas as cenas da natureza estivessem continuamente mudando, de modo que não houvesse dois eventos semelhantes e se cada objeto fosse completa mente novo, sem nenhuma similitude com qualquer coisa que foi antes vista. Poderíamos dizer, em tal suposição, que um objeto ou evento resulta de outro e não que um foi produzido pelo outro. A relação de causa e efeito seria completamente desconhecida dos homens. E, por conseguinte, terminariam as inferências e os raciocínios sobre as operações naturais; e a memória e os sentidos seriam as únicas vias de acesso do espírito na apreensão de uma existência real. Portanto, nossa ideia de necessidade e de causa surge inteiramente da uniformidade verificada nas operações da natureza, na qual os objetos semelhantes estão constantemente conjuntados e o espírito é determinado pelo costume a inferir um pelo aparecimento do outro. Estas duas circunstâncias compreendem toda a necessidade que atribuímos à matéria. Além da conjunção constante de objetos semelhantes e da consequente inferência de um para o outro, não temos nenhuma ideia de qualquer necessidade ou conexão.[3]
     Parece, portanto, que todos os homens têm sempre admitido —sem nenhuma dúvida ou hesitação — que estas duas circunstâncias ocorrem em suas ações voluntárias e .nas operações do espírito; conclui-se daqui que todos os homens sempre têm estado de acordo com a doutrina da necessidade e que, até o presente, têm discutido simplesmente por não se terem entendido entre si.
     Podemos certamente satisfazer-nos acerca da primeira circunstância, isto é, da conjunção constante e regular dos eventos similares, com as seguintes considerações. Toda a gente reconhece que há grande uniformidade nas ações humanas em todas as nações e em todas as épocas, e que a natureza humana sempre permanece igual em seus princípios e em suas operações.[4] Os mesmos motivos produzem sempre as mesmas ações; os mesmos eventos resultam das mesmas causas. A ambição, a avareza, o amor-próprio, a vaidade, a amizade, a generosidade e o espírito público, paixões misturadas em vários graus e distribuídas pela sociedade têm sido, desde o começo do mundo, e ainda são, a fonte de todas as ações e empreendimentos que se têm sempre observado entre os homens. Quereis conhecer os sentimentos, as inclinações e o modo de viver dos gregos e dos romanos? Estudai bem o temperamento e as ações dos franceses e dos ingleses: não estareis muito equivocado se transferirdes aos primeiros a maioria das observações que fizestes sobre os segundos. A humanidade é bastante parecida, em todos os tempos e lugares, e a história nada nos informa de novo ou estranho a este respeito. Seu principal papel restringe-se em descobrir os princípios universais e constantes da natureza humana, mostrando-nos os homens em variadas circunstâncias e situações e suprindo-nos de materiais, dos quais podemos formar nossas observações e ficarmos familiarizados com as fontes regulares da ação e da conduta humana. Os relatos de guerras, intrigas, partidos políticos e revoluções são outras tantas coleções de experimentos, por meio dos quais o político ou o filósofo moral fixa os princípios de sua ciência, do mesmo modo que o médico ou o filósofo da natureza se familiariza com a natureza das plantas, dos minerais e de outros objetos externos, pelas experiências que fazem sobre eles. A terra, a água e os outros elementos examinados por Aristóteles e Hipócrates são tão parecidos com aqueles que no presente estão sob nossa observação, como os homens descritos por Políbio e Tácito são semelhantes aos homens que governam atualmente o mundo.
     Se um viajante, ao regressar de um país longínquo, nos descrevesse a existência de homens totalmente diferentes daqueles que temos conhecido, desprovidos totalmente de avareza, de ambição ou de espírito vingativo e reconhecendo apenas o prazer da amizade, da generosidade e do espírito público, descobriríamos imediatamente a falsidade do relato e lhe demonstraríamos que mente, com a mesma certeza como se houvesse acumulado sua narrativa com contos de centauros e dragões, milagres e prodígios. E se quisermos desacreditar alguma falsificação histórica, não devemos usar argumentos mais adequados do que os que provam que as ações atribuídas a uma pessoa são diretamente contrárias à ordem natural das coisas, e que nenhum motivo humano, em tais circunstâncias, jamais poderia tê-la induzido a tal conduta. Devemos suspeitar da veracidade de Quinto Cúrcio, quando descreve a coragem sobrenatural de Alexandre, pela qual ele foi levado a atacar sozinho multidões, e quando descreve sua força e sua atividade sobrenaturais, com as quais pôde resistir-lhes. Deste modo, admitimos facilmente a uniformidade nos motivos e ações humanas, como também nas operações do corpo.
     Daqui, igualmente, deriva a influência benéfica da experiência adquirida por uma longa vida, pela variedade de ocupações e convivência, instruindo-nos acerca dos princípios da natureza humana e regrando tanto nossa conduta fritura como nossa especulação. Por meio deste guia, elevamo-nos ao conhecimento das inclinações e motivos humanos, partindo de suas ações, de suas manifestações e mesmo de seus gestos; e de novo descemos para a interpretação de suas ações graças ao nosso conhecimento de seus motivos e inclinações. As observações gerais armazenadas durante o transcurso da experiência dão-nos o elo condutor da natureza humana, e nos ensinam a desfiar todas as suas complicações. Nem os pretextos e nem as aparências voltam a enganar-nos. Supõe-se que as declarações feitas em público são especiosos disfarces de uma causa. E embora se conceda à virtude e à honra de seu próprio peso e autoridade, este perfeito desinteresse, que é com tanta frequência proclamado, jamais se espera de multidões e partidos políticos, raramente de seus condutores e apenas, às vezes, de indivíduos de qualquer posição ou categoria. Mas, se não houvesse uniformidade nas ações humanas, e se todo experimento que pudéssemos fazer deste gênero fosse irregular e anômalo, seria impossível coletar algumas observações gerais sobre a humanidade e nenhuma experiência, por mais que a reflexão a houvesse assimilado, serviria para algum fim. Porque o velho agricultor é mais hábil em sua profissão do que o jovem principiante, apenas porque há uma certa uniformidade na ação do sol, da chuva e da terra na produção de legumes, e porque a experiência ensina ao que pratica há muito tempo as regras que governam e dirigem estas operações.
     Não devemos, portanto, esperar que esta uniformidade das ações humanas se estenda de tal maneira que todos os homens, nas mesmas circunstâncias, sempre agirão exatamente da mesma maneira, sem fazer nenhuma concessão à diversidade dos caracteres, dos preconceitos e das opiniões. Semelhante uniformidade, em todos os aspectos, não se encontra em nenhuma parte da natureza. Pelo contrário, ao observar a variedade de condutas em diferentes homens, tornamo-nos aptos para formar uma grande variedade de máximas que, sem dúvida, ainda supõem um grau de uniformidade e regularidade.[5]
     Os costumes dos homens são diferentes em épocas e países diferentes? Daqui aprendemos a grande força do costume e da educação, os quais modelam o espírito humano desde sua infância e lhe formam o caráter de modo estável. O comportamento e a conduta de um sexo são muito diferentes dos do outro? Deste modo é que chegamos a conhecer os diferentes caracteres que a natureza tem imprimido nos sexos e que ela mantém com regularidade e constância. As ações de uma mesma pessoa são muito diversas nos diferentes períodos de sua vida, desde sua infância até sua velhice? Isto dá lugar a várias considerações gerais acerca da mudança gradual de nossos sentimentos e inclinações, e das diferentes máximas que prevalecem nas diferentes idades das criaturas humanas. Mesmo os caracteres peculiares de cada indivíduo têm uma uniformidade em sua ação; de outro modo, nosso conhecimento das pessoas e nossa observação de sua conduta jamais nos poderiam ensinar acerca de suas disposições ou servir para dirigir nosso comportamento diante delas.
     Admito que seja possível encontrar ações que parecem não ter conexão regular com quaisquer motivos conhecidos, e que são exceções a todas as regras de conduta que se estabeleceram para o governo dos homens. Mas se desejássemos saber que juízo devemos formar das ações tão irregulares e extraordinárias, poderíamos considerar as opiniões que nutrimos comumente com respeito a eventos irregulares, que aparecem na ordem natural das coisas e nas operações dos objetos externos. Todas as causas não estão conjuntadas aos efeitos usuais com igual uniformidade. Um artesão que somente manipula matéria inerte pode fracassar em seu intento, tanto como o político que dirige a conduta de seres sensatos e inteligentes.
     O homem comum, contentando-se apenas com a aparência das coisas, atribui a incerteza dos eventos a uma incerteza das causas, decorrendo das últimas as frequentes falhas em sua influência habitual, embora não encontrem obstáculos impedindo sua ação. Mas os filósofos, verificando que na maioria dos fenômenos naturais há uma enorme variedade de fontes e princípios ocultos em razão de sua pequenez ou de seu afastamento, consideram que, pelo menos, é possível que a oposição dos eventos não proceda de uma contingência da causa, mas da operação desconhecida de causas contrárias. Esta possibilidade se converte em certeza, quando observam posteriormente, depois de cuidadoso exame, que uma contrariedade de efeitos sempre denuncia uma contrariedade de causas, e procede de sua mútua oposição. Um camponês, não encontrando melhor explicação, para a parada de um relógio, diz que geralmente não funciona bem. Contudo, um artesão percebe facilmente que igual força da mola ou do pêndulo exerce sempre a mesma influência sobre as engrenagens, não produzindo seu efeito habitual, devido talvez a um grão de poeira que detém todo o movimento. Observando vários casos paralelos, os filósofos estabelecem como um princípio que a conexão entre todas as causas e efeitos é igualmente necessária, e que sua aparente incerteza em certos casos decorre da desconhecida oposição de causas contrárias.
     Assim, por exemplo, quando o corpo humano, manifestando os sintomas usuais de saúde ou de doença, desaponta nossa expectativa; quando os medicamentos não atuam com seus poderes habituais; quando eventos irregulares resultam de uma causa determinada, o filósofo e o médico não se surpreendem com isto, nem são jamais tentados a negar — em sua totalidade — a necessidade e a uniformidade daqueles princípios que regulam a organização corporal. Entendem que o corpo humano é uma máquina extremamente complicada; que várias forças desconhecidas nele ocultas se acham afastadas de nossa compreensão; que devemos sempre considerá-lo bastante incerto em seus movimentos; e que, portanto, os eventos irregulares revelados exteriormente não podem constituir prova de que as leis naturais não se processam com a máxima regularidade em suas funções e movimentos internos.

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[1] Os dois níveis explicativos da causalidade (veja-se nota 50, seção VII) são circunscritos e elucidados pelo princípio mais geral da necessidade. Julgamo-la assim pelo fato de iluminar e fundamentar tanto a causalidade, como todas as disciplinas compreendidas pela ciência da natureza humana. E deste modo que a causalidade se instala como princípio explicativo dos fenômenos humanos. A uniformidade insita-nos fenômenos naturais (base de toda inferência causal) é retomada e situada na raiz dos fenômenos humanos, com o fim de descortinar a ideia de necessidade e de justificar a inferência causal na ciência do homem. É com justeza, portanto, que Hume inseriu, após a explicitação da ideia de conexão necessária, a seção intitulada “Da liberdade e da necessidade: deu continuidade lógica aos argumentos baseados no raciocínio causal. Hume inicia pelo estudo da ideia de “necessidade’, pois dela irradia, além da causalidade e da ciência moral, o esclarecimento da ideia de “liberdade”. [N. do T.]
[2] Do mesmo modo que na sétima seção (nota 39), Hume recorre ao método exposto na segunda seção: busca da impressão originária da ideia de necessidade. [N. do T.]
[3] O cerne da pesquisa humana consiste, de um lado, em mostrar que a mesma uniformidade se observa tanto nas “ações voluntárias e nas operações do espírito” como nas “operações dos corpos” e, de outro lado, em consequência desta constatação, podemos levantar inferências a respeito de umas como de outras. [N. do T.]
[4] O dogma da uniformidade da natureza (quer física, quer humana), era o “fato central e dominante da história intelectual da Europa durante duzentos anos — do fim do século XVI ao fim do século XVII" (A. O. Levejoy, “Deism and Classicism”, in Essays on the History of Ideas, Baltimore, 1948, p. 81). Hume adota este dogma e o emprega como uma das ideias centrais de sua filosofia. [N. do T.]
[5] Não é cabível, no entanto, usar indiscriminadamente o critério da uniformidade das ações humanas e supor, no entender de Hume, que todos os homens, em situações semelhantes, sempre agirão da mesma maneira, sem levar em conta as diferenças individuais, devidas ao ambiente, à educação e ao caráter peculiar a cada homem. [N. do T.]

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VIII(1.a)

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Samba: Verdade chinesa

Emílio Santiago





Era só isso que eu queria da vida
Uma cerveja, uma ilusão atrevida
Que me dissesse uma verdade chinesa
Com uma intenção de um beijo doce na boca

A tarde cai, noite levanta a magia
Quem sabe a gente vai se ver outro dia
Quem sabe o sonho vai ficar na conversa
Quem sabe até a vida pague essa promessa

Muita coisa a gente faz
Seguindo o caminho que o mundo traçou
Seguindo a cartilha que alguém ensinou
Seguindo a receita da vida normal

Mas o que é vida afinal?
Será que é fazer o que o mestre mandou?
É comer o pão que o diabo amassou
Perdendo da vida o que tem de melhor

Senta, se acomoda, à vontade, 'tá em casa
Toma um copo, dá um tempo que a tristeza vai passar
Deixa, pra amanhã tem muito tempo
O que vale é o sentimento e o amor que a gente tem no coração

Era só isso que eu queria da vida
Uma cerveja, uma ilusão atrevida
Que me dissesse uma verdade chinesa
Com uma intenção de um beijo doce na boca

A tarde cai, noite levanta a magia
Quem sabe a gente vai se ver outro dia
Quem sabe o sonho vai ficar na conversa
Quem sabe até a vida pague essa promessa

A tarde cai, noite levanta a magia
Quem sabe a gente vai se ver outro dia
Quem sabe o sonho vai ficar na conversa
Quem sabe até a vida pague essa promessa

Mas o que é vida afinal?
Será que é fazer o que o mestre mandou?
É comer o pão que o diabo amassou
Perdendo da vida o que tem de melhor

Senta, se acomoda, à vontade, 'tá em casa
Toma um copo, dá um tempo que a tristeza vai passar
Deixa, pra amanhã tem muito tempo
O que vale é o sentimento e o amor que a gente tem no coração

Senta, se acomoda, à vontade, 'tá em casa
Toma um copo, dá um tempo que a tristeza vai passar
Deixa, pra amanhã tem muito tempo
O que vale é o sentimento e o amor que a gente tem no coração

Senta, se acomoda, à vontade, 'tá em casa
Toma um copo, dá um tempo que a tristeza vai passar
Deixa, pra amanhã tem muito tempo
O que vale é o sentimento e o amor que a gente tem no coração

Senta, se acomoda, à vontade, 'tá em casa
Toma um copo, dá um tempo que a tristeza vai passar

Compositores: Carlos De Carvalho Colla / Gilson Vieira Da Silva

Artista: Emílio Santiago
Data de lançamento: 1990
Álbum: Aquarela Brasileira 3
Gêneros: MPB, Samba e Pagode, Axé


OABRJ lamenta morte do compositor e advogado Carlos Colla
13/01/2023

Autor de sucessos como "Bye Bye Tristeza" formou-se em Direito antes de se dedicar à música


A OABRJ, por meio de sua Comissão de Direitos Autorais, Direitos Imateriais e Entretenimento (Cdadie), lamenta profundamente a morte do músico e advogado Carlos Colla nesta sexta-feira, dia 13. O compositor, que fora submetido a uma cirurgia por causa de dois aneurismas na aorta abdominal, sofreu uma parada respiratória e morreu, aos 78 anos, no Rio de Janeiro.

Nascido em 5 de agosto de 1944, em Niterói, Colla se formou em Direito e chegou a exercer a profissão antes de se dedicar inteiramente à música. O compositor teve mais de 2 mil canções gravadas, principalmente por Roberto Carlos, que imortalizou o sucesso "Falando sério". Outras composições incluem "Sonho por sonho", gravada pela dupla Leandro e Leonardo; "Tô deixando você", sucesso na voz de Chitãozinho e Xororó, e "Bye, Bye Tristeza", hit da cantora Sandra de Sá.

A morte do compositor foi confirmada por seu filho Carlos Colla Jr. A filha do compositor, Dani Colla, ocupa atualmente o cargo de coordenadora da Cdadie da Seccional.

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Gilson Vieira da Silva, conhecido artisticamente por Gilson (Macau, 1 de agosto de 1952) é um cantor, compositor e produtor musical brasileiro. Radicado desde 1966 no Rio de Janeiro, é irmão do também cantor Nazareno Vieira, falecido em 2012, e dedica-se atualmente à função de produtor musical.

Notabilizou-se a partir de 1976, com "Casinha Branca", composta por Joran (seu principal parceiro de composições) e Marcelo, que integrou a trilha sonora da telenovela Marrom Glacê, de 1979. A música, que fez parte do primeiro LP, um compacto simples batizado com o nome do cantor, permaneceu nas paradas de sucesso durante um ano, e foi regravada por diversos artistas, como Fábio Jr. Roberta Campos e Maurício Mattar, com destaque para a interpretação de Maria Bethânia, que a incluiu no CD Maricotinha ao vivo - 35 Anos de Carreira, em 2002. O cantor, compositor e baterista inglês Jim Capaldi por meio de cover adaptou a canção para o inglês em "Old Photographs".

Compôs outros sucessos, como “Verdade Chinesa” (parceria com Carlos Colla gravada por Emilio Santiago), “Fim de Solidão” (parceria com Carlos Colla e Joran gravada por José Augusto) e “I Love You” (gravada por Adriana).

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Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 1[c]- As Massas)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

Uma Sociedade Sem Classes
     1 - As Massas

continuando...
 
          A atomização da massa na sociedade soviética foi conseguida pelo habilidoso uso de repetidos expurgos que invariavelmente precediam o verdadeiro extermínio de um grupo. A fim de destruir todas as conexões sociais e familiares, os expurgos eram conduzidos de modo a ameaçarem com o mesmo destino o acusado e todas as suas relações, desde meros conhecidos até os parentes e amigos íntimos. A "culpa por associação" é uma invenção engenhosa e simples; Jogo que um homem é acusado  os seus antigos amigos se transformam nos mais amargos inimigos: para salvar a própria pele, prestam informações e acorrem com denúncias que "corroboram" provas inexistentes, a única maneira que encontram de demonstrarem a sua própria fidelidade. Em seguida, tentam provar que a sua amizade com o acusado nada mais era que um meio de espioná-lo e delatá-lo como sabotador, trotskista, espião estrangeiro ou "fascista. Uma vez que o mérito é "julgado pelo número de denúncias apresentadas contra os camaradas",[34] é óbvio que a mais elementar cautela exige que se evitem, se possível, todos os contatos íntimos — não para evitar que outros descubram os pensamentos secretos, mas para eliminar, em caso quase certo de problemas futuros, a presença daqueles que sejam obrigados, pelo perigo da própria vida, à necessidade de arruinar a de ou trem. Em última análise, foi através do desenvolvimento desse artifício, até os seus máximos e mais fantásticos extremos, que os governantes bolchevistas conseguiram criar uma sociedade atomizada e individualizada como nunca se viu antes, e a qual nenhum evento ou catástrofe poderiam por si só ter suscitado. Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos^ movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Essa exigência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomarem o poder e decorre da alegação, já contida em sua ideologia, de que a organização abrangerá, no devido tempo, toda a raça humana. Contudo, onde o governo totalitário não é preparado por um movimento totalitário (como foi o caso da Rússia em contraposição com a Alemanha nazista), o movimento tem de ser organizado depois, e as condições para o seu crescimento têm de ser artificialmente criadas de modo a possibilitar a lealdade total que é a base psicológica do domínio total. Não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais — de família, amizade, camaradagem — só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento, pertencem ao partido.
     A lealdade total só é possível quando a fidelidade é esvaziada de todo o seu conteúdo concreto, que poderia dar azo a mudanças de opinião. Os movimentos totalitários, cada um ao seu modo, fizeram o possível para se livrarem de programas que especificassem um conteúdo concreto, herdados de estágios anteriores e não-totalitários da sua evolução. Por mais radical que seja, todo objetivo político que não inclua o domínio mundial, todo programa político definido que trate de assuntos específicos em vez de referir-se a "questões ideológicas que serão importantes durante séculos" é um entrave para o totalitarismo. A grande realização de Hitler ao organizar o movimento nazista — que ele gradualmente construiu a partir de um pequeno partido tipicamente nacionalista formado por gente obscura e meio louca — é que ele liberou o movimento do antigo programa do partido, não por mudá-lo ou aboli-lo oficialmente, mas simplesmente por recusar-se a mencioná-lo ou discutir os seus pontos.[35] Nesse aspecto, como em outros, a tarefa de Stálin foi muito mais difícil: o programa socialista do partido bolchevista era uma carga muito mais incômoda[36]que os 25 pontos do programa do partido nazista redigidos por um economista amador e político maluco.[37] Mas Stálin, após haver abolido as facções do partido, conseguiu finalmente o mesmo resultado, através dos constantes ziguezagues da linha partidária comunista e da constante reinterpretação e aplicação do marxismo, o que esvaziava a doutrina de todo o seu conteúdo, já que não era possível prever o rumo ou ação que ela ditaria. O fato de que o mais perfeito conhecimento do marxismo e do leninismo já não servia de guia para a conduta política — e de que, pelo contrário, só era possível seguir a linha do partido se se repetisse a cada manhã o que Stálin havia dito na véspera — resultou naturalmente no mesmo estado de espírito, na mesma obediência concentrada, imune a qualquer tentativa de se compreender o que se estava fazendo, expressa pelo engenhoso lema de Himmler para os homens da SS: "Minha honra é a minha lealdade''.[38]
     A falta de um programa partidário, ou o fato de se ignorá-lo, não é, por si só, necessariamente um sinal de totalitarismo. O primeiro a considerar programas e plataformas como desnecessários pedaços de papel e embaraçosas promessas, não condizentes com o estilo e o ímpeto de um movimento, foi Mussolini com a sua filosofia fascista de ativismo e inspiração no próprio momento histórico.[39] Todo líder da ralé é caracterizado pela mera sede de poder e pelo desprezo à "tagarelice" quando se pergunta o que pretende fazer com ele. O verdadeiro objetivo do fascismo era apenas a tomada do poder e a instalação da "elite" fascista no governo. O totalitarismo jamais se contenta em governar por meios externos, ou seja, através do Estado e de uma máquina de violência; graças à sua ideologia peculiar e ao papel dessa ideologia no aparelho de coação, o totalitarismo descobriu um meio de subjugar e aterrorizar os seres humanos internamente. Neste sentido, elimina a distância entre governantes e governados e estabelece uma situação na qual o poder e o desejo de poder, tal como os entendemos, não representam papel algum ou, na melhor das hipóteses, têm um papel secundário.
     Essencialmente, o líder totalitário é nada mais e nada menos que o funcionário das massas que dirige; não é um indivíduo sedento de poder impondo aos seus governados uma vontade tirânica e arbitrária. Como simples funcionário, pode ser substituído a qualquer momento e depende tanto do "desejo" das massas que ele incorpora, como as massas dependem dele. Sem ele, elas não teriam representação externa e não passariam de um bando amorfo; sem as massas, o líder seria uma nulidade. Hitler, que conhecia muito bem essa interdependência, exprimiu-a certa vez num discurso perante a SA: "Tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o que eu sou, sou somente através de vocês".[40] Infelizmente nossa tendência é dar pouca importância a declarações deste tipo ou interpretá-las erradamente. Na tradição política do Ocidente,[41] a ação é definida em termos de dar e executar ordens. Mas esta ideia sempre pressupôs alguém que comanda, que pensa e deseja e, em seguida, impõe o seu pensamentos o seu desejo sobre um grupo destituído de pensamento e de vontade — seja por meio da persuasão, da autoridade ou da violência. Hitler, porém, era da opinião de que até mesmo "o pensamento (...) [só existe] em virtude da formulação ou execução de uma ordem",[42] eliminando assim, mesmo teoricamente, de um lado a diferença entre pensar e agir e, do outro, a diferença entre governantes e governados. 
     Nem o nacional-socialismo nem o bolchevismo jamais proclamaram uma nova forma de governo ou afirmaram que o seu objetivo seria alcançado com a tomada do poder e o controle da máquina estatal. Sua ideia de domínio — a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida[43] — é algo que nenhum Estado ou mecanismo de violência jamais pôde conseguir, mas que é realizável por um movimento totalitário constantemente acionado. A tomada do poder através dos instrumentos de violência nunca é um fim em si, mas apenas um meio para um fim, e a tomada do poder em qualquer país é apenas uma etapa transitória e nunca o fim do movimento. O fim prático do movimento é amoldar à sua estrutura o maior número possível de pessoas, acioná-las e mantê-las em ação; um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe. 

Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 1[c]- As Massas)
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[34] A própria prática tem sido abundantemente documentada. W. Krivitsky, em seu livro In Stalin 's secret services (Nova York, 1939), remonta esta diretriz diretamente a Stálin.
[35] Hitler escreveu em Mein Kampf (2 vols., 1? edição alemã, 1925 e 1927 respectivamente) que era melhor ter um programa antiquado do que permitir fcma discussão de programa (livro II, cap. V). Pouco depois, declararia publicamente: "Quando tomarmos o governo, o programa virá por si mesmo. (...) O primeiro passo deverá ser uma inconcebível onda de propaganda. Isto é, uma ação política que pouco teria a ver com os outros problemas do momento". Ver Heiden, op. cit., p. 203.
[36] Souvarine sugere (erradamente, em nossa opinião) que já Lênin havia abolido o papel de um programa partidário. "Nada podia mostrar mais claramente que o bolchevismo, como doutrina, não existia a não ser na cabeça de Lênin; todo bolchevista, se fosse deixado sozinho, desviava-se da 'linha' de sua facção (...) pois o que unia esses homens era o seu temperamento e a autoridade de Lênin, e não as ideias" (op. cit., p. 85).
[37] O programa de Gottfried Feder para o partido nazista, com os seus famosos 25 pontos, teve papel mais importante na literatura acerca do movimento do que no próprio movimento.
[38]  O impacto do lema, formulado pelo próprio Himmler, é difícil de traduzir. Em alemão, Meine Ehre heisst Treue indica uma devoção e uma obediência absolutas, que transcendem o significado da mera disciplina ou fidelidade pessoal. Nazi conspiracy, cujas traduções de documentos alemães e da literatura nazista são uma fonte indispensável de material, mas que, infelizmente, são muito irregulares, traduz a senha da SS como "Minha honra significa fidelidade" (V, 346).
[39] Mussolini foi provavelmente o primeiro líder de partido a rejeitar conscientemente um programa formal e substituí-lo apenas pela liderança e pela ação inspiradas. Por trás dessa atitude, estava a noção de que a atualidade do próprio momento era o principal elemento de inspiração, ao qual um programa partidário somente poderia prejudicar. A filosofia do fascismo italiano foi expressa pelo "atualismo" de Gentile e não pelos "mitos" de Sorel. Compare-se também o artigo "Fascism" da Encyclopedia of social sciences. O programa de 1921 foi formulado quando o movimento existia havia apenas dois anos, e continha, na maior parte, a sua filosofia nacionalista.
[40] Ernst Bayer, Die SA, Berlim, 1938. Traduzido do Nazi conspiracy, IV, 783.
[41] Isso ocorre pela primeira vez na Política de Platão, 305, onde a ação é interpretada em termos de archein eprattein — de ordenar o início de um ato e de executar a ordem.
[42] Hitlers Tischgespràche, p. 198.
[43Mein Kampf, livro I, cap. XI. Veja-se também, por exemplo, Dieter Schwartz, "An-griffe auf die nationalsozialistische Weltanschauung" [Ataques à ideologia nacional-socialista], em Aus dem Schwarzen Korps, n? 2, 1936, que responde à crítica óbvia de que o nacional-socialismo, após haver galgado o poder, continuava a falar de "luta": "Como ideologia [Weltanschauung], o nacional-socialismo não abandonará a sua luta até que (...) o modo de vida de cada indivíduo alemão tenha sido moldado segundo os seus valores fundamentais, postos em prática a cada dia".