Moby Dick
Herman Melville41 - Moby Dick
continuando...
Mas, mesmo afastadas as conjeturas sobrenaturais, havia o suficiente na forma
terrena e em seu caráter incontestável de monstro para abalar a imaginação com
força inusitada. Pois não era tanto sua extraordinária compleição que o distinguia
dos outros Cachalotes, mas – como foi dito em outro lugar – uma peculiar fronte
enrugada, branca como a neve, e uma corcova alta e branca, em forma de
pirâmide. Essas eram suas características proeminentes; os sinais pelos quais,
mesmo em mares ilimitados e ignorados pelos mapas, ele revelava sua
identidade, a distância, para os que a conheciam.
O resto de seu corpo estava tão rajado, manchado e marmorizado com esse
mesmo tom de mortalha que, afinal, ele ganhou o nome próprio de Baleia
Branca; um nome, aliás, plenamente justificado por seu aspecto fulgurante,
quando visto deslizando pelo mar azul escuro, ao meio-dia, deixando um rastro
lácteo de espuma cremosa no qual cintilavam faíscas douradas.
Não era sua grandeza insólita, nem sua coloração notável, nem mesmo sua
mandíbula inferior deformada que tanto conferiam a ele um terror natural, mas
sua perversidade inteligente e sem par que, segundo relatos, ele sempre revelava
em seus ataques. Mas, acima de tudo, eram suas retiradas traiçoeiras que talvez
amedrontassem mais do que qualquer outra coisa. Pois, quando nadava à frente
de seus perseguidores exultantes, com todos os sinais de estar em alerta, ele
muitas vezes se virava subitamente e, atacando-os, tanto lhes despedaçava os
botes, como os levava em desespero de volta ao navio.
Várias fatalidades já haviam acometido sua caça. Muito embora desastres
parecidos, ainda que pouco falados em terra, não fossem de modo algum
estranhos à pescaria; na maior parte dos casos, de tal forma se apresentava a
premeditação infernal de ferocidade da Baleia Branca que cada mutilação ou
morte causada não era de todo pensada como ataque de um agente irracional.
Imagine, então, a que ponto de enfurecimento, exaltado e inflamado, o
pensamento de seus mais desesperados caçadores foi impelido enquanto, por
entre os pedaços de botes triturados e os membros de companheiros dilacerados,
eles nadavam para longe dos coágulos brancos da ira demoníaca da baleia sob
um sol sereno e exasperador, que continuava a lhes sorrir como se iluminasse um
nascimento ou um casamento.
Seus três botes afundando à sua volta, e os remos e os homens a girar em
redemoinhos; um capitão, arrancando uma faca de cordas da proa arrebentada,
arremessou-se contra a baleia, como um duelista do Arkansas contra seu
adversário, tentando atingir às cegas, com uma lâmina de seis polegadas, a vida
profunda da baleia. Esse capitão era Ahab. E foi então que, subitamente, passando
por baixo dele com a foice de sua mandíbula inferior, Moby Dick cortou a perna
de Ahab, como faria uma ceifadeira com a grama no campo. Nenhum Turco de
turbante, nenhum Veneziano ou Malaio mercenário o teria atingido com tanta
malícia. Havia poucos motivos para duvidar de que, desde aquele encontro quase
fatal, Ahab nutrisse uma violenta sede de vingança contra a baleia, ainda mais
terrível porque, em sua morbidez frenética, atribuíra a ela não apenas todos os
seus infortúnios físicos, como também seus sofrimentos intelectuais e espirituais.
A Baleia Branca nadava diante dele como a encarnação monomaníaca de todos os
agentes malignos que alguns homens sentem corroendo-lhes o íntimo, até que
lhes reste apenas viver com a metade do coração e do pulmão. Aquela
perversidade inatingível que ali esteve desde o princípio; a cujo domínio mesmo
os cristãos modernos atribuem a metade dos mundos; que os antigos Ofitas do
Oriente reverenciavam com suas imagens demoníacas; – Ahab não desesperava e
as adorava como eles; mas, transferindo em delírio tais ideias ao abominado
cachalote branco, lançava-se, mesmo mutilado, contra ele. Tudo o que mais
enlouquece e atormenta; tudo o que alvoroça a quietude das coisas; toda a
verdade com certa malícia; tudo o que destrói o vigor e endurece o cérebro; tudo
o que há de sutilmente demoníaco na vida e no pensamento; em suma, toda a
maldade, para Ahab, se tornava visível, personificada e passível de ser enfrentada
em Moby Dick. Amontoou sobre a corcova branca da baleia toda a cólera e a
raiva sentidas por sua raça inteira, desde a queda de Adão; e então, como se seu
peito fosse um morteiro, ali fez explodir a granada de seu coração ardente.
É pouco provável que sua monomania tenha surgido no exato momento da
mutilação de seu corpo. Naquele momento, atirando-se contra o monstro, faca na
mão, ele apenas liberou uma hostilidade corporal, passional e repentina; e,
quando recebeu o golpe que o dilacerou, provavelmente sentiu apenas a dor
física da laceração, nada mais. Mas quando, depois desse choque, foi obrigado a
voltar para casa e, durante longos meses, dias e semanas, Ahab e a angústia
estiveram juntos, deitados numa rede, dobrando em pleno inverno aquele
assustador e tormentoso cabo da Patagônia; nesse momento, seu corpo dilacerado
e sua alma ferida sangraram juntos; e, assim fundidos, enlouqueceram-no. Foi só
então, na viagem de volta para casa, depois do encontro, que a monomania
definitiva o arrebatou, o que parece certo devido ao fato de que, de tempo em
tempo ao longo do trajeto, ele se mostrou completamente ensandecido; muito
embora alijado de uma perna, uma força vital ainda se escondia em seu peito
Egípcio, e de tal modo intensificada em seus delírios que seus pilotos foram
forçados a amarrá-lo ali mesmo, seguindo viagem enquanto ele vociferava em sua
rede. Numa camisa-de-força, ele se balançava com a loucura dos vendavais. E
quando passavam por latitudes mais benignas, e o navio de velas desfraldadas
navegava por lugares tranquilos, e os delírios do velho pareciam ter ficado
aparentemente para trás no cabo Horn, e ele saía de seu covil escuro para a luz e
o ar abençoados; mesmo então, quando ele trazia o rosto composto e firme,
embora pálido, e transmitia mais uma vez ordens calmas e coerentes; e seus
oficiais agradeciam a Deus por aquela loucura maligna ter acabado; mesmo
então, Ahab, em seu íntimo, continuava a delirar. A loucura humana é quase
sempre felina e muito astuta. Quando pensamos ter acabado, pode ser que apenas
tenha se transformado em algo mais sutil. A loucura de Ahab não havia cessado,
apenas se condensado; como o Hudson constante, quando aquele nobre nortista
corre estreito, mas insondável através das gargantas das Terras Altas. Mas, em sua
monomania de correnteza estreita, nem uma gota da ampla loucura de Ahab
havia se perdido; do mesmo modo, em sua ampla loucura, nem uma gota de seu
grande intelecto natural havia perecido. Aquilo que outrora fora agente vivo se
tornava instrumento vivo. Se um tropo tão exaltado é capaz de se sustentar, sua
demência própria atacou sua sensatez geral e a venceu, e a trouxe consigo e
voltou sua artilharia concentrada inteira contra o alvo de sua própria loucura; de
tal modo que, longe de ter perdido a energia, Ahab tinha agora, para aquela
finalidade, uma potência mil vezes mais forte do que jamais teve para um fim
sensato, quando em juízo perfeito.
Isto já é muito; ainda assim, o lado mais amplo, mais profundo e mais
sombrio de Ahab permanece desconhecido. Mas é inútil vulgarizar
profundidades, e toda verdade é profunda. Descendo muito além do coração
desse Hotel de Cluny cravado aqui onde estamos agora – embora seja grandioso e
maravilhoso, deixemo-lo; – parti, almas nobres e tristes, na direção daquelas
enormes salas Romanas, as Termas; onde muito abaixo das torres fantásticas da
superfície terrena do homem, sua raiz de grandeza, toda a sua essência
apavorante se encontra em posição de confronto; uma antiguidade sepultada sob
antiguidades, entronizada nos torsos! Num trono quebrado, os grandes deuses
caçoam do rei cativo; mas, como uma Cariátide, ele fica pacientemente sentado,
sustentando em sua fronte congelada os entablamentos acumulados dos séculos.
Descei, almas altivas e tristes! Interrogai aquele rei orgulhoso e triste! Uma
semelhança familiar! Sim, ele vos gerou, jovens realezas exiladas; e apenas por
meio de vosso monarca impiedoso vos será revelado o antigo segredo de Estado.
Ora, em seu coração, Ahab tinha alguns vislumbres, tais como: todos os meus
meios são razoáveis; minha motivação e meu objetivo, loucos. No entanto, sem
poder para anular, mudar ou evitar o fato; ele sabia que aos olhos da humanidade
ele disfarçara durante muito tempo; e, de certo modo, ainda disfarçava. Mas sua
dissimulação sujeitava-se apenas à sua perceptibilidade, não à sua determinação.
Ainda assim, foi tão bem-sucedido em seu disfarce que, quando por fim sua
perna de mármore pisou em terra, nenhum habitante de Nantucket pensou outra
coisa, senão que ele estivesse apenas naturalmente triste, e isso, de pronto, devido
ao acidente terrível que havia sofrido.
O relato de seu indiscutível delírio no mar também foi amplamente justificado
por uma causa semelhante. E, da mesma forma, as mudanças de seu humor que
sempre desde então, até o dia da partida do Pequod para a presente viagem,
apareciam estampadas em seu rosto. Também não é improvável que, longe de
desqualificar sua aptidão para outra viagem baleeira, considerados os sinais tão
sombrios, as pessoas astutas daquela ilha prudente se sentiam inclinadas a dar
guarida à ideia de que, por essas mesmas razões, ele estivesse mais capacitado e
preparado para uma perseguição tão repleta de fúria e selvageria quanto a
sangrenta caça às baleias. Atormentado por dentro e ferido por fora, com as duras
presas de uma ideia incurável nele cravadas; alguém como ele, poderiam dizer,
parecia ser o homem certo para erguer sua lança e arremessar seu ferro contra a
mais terrível de todas as bestas. Ou, se por qualquer razão, o considerassem
fisicamente incapaz de combater, ainda assim seria muito competente para, com
berros, animar e incitar os outros ao ataque. Mas, seja como for, certo é que, com
o desvairado segredo de seu ódio inabalável isolado e trancado em sua alma,
Ahab tinha propositadamente embarcado nessa viagem com o único e exclusivo
objetivo de perseguir a Baleia Branca. Tivessem alguns de seus antigos camaradas
de terra imaginado metade do que ele ocultava dentro de si, com que prontidão
suas almas honradas e horrorizadas teriam arrancado o navio desse homem tão
demoníaco! Eles queriam uma viagem lucrativa, com o lucro contado em dólares
da Casa da Moeda. Ahab estava determinado a conseguir uma vingança
audaciosa, implacável e sobrenatural.
Assim, pois, estava esse velho homem, grisalho e sem Deus, perseguindo com
maldições a baleia de Jó ao redor do mundo, comandando uma tripulação
composta basicamente de mestiços renegados, náufragos e canibais – também
debilitados moralmente pela incompetência da mera virtude ou honradez
perdida de Starbuck, pela invulnerável jovialidade, indiferente e despreocupada
de Stubb, e pela mediocridade que prevalecia em Flask. Tal tripulação, com tais
oficiais, parecia ser especialmente selecionada e reunida por uma fatalidade
diabólica para ajudá-lo em sua vingança monomaníaca. Por quais motivos eles
reagiram tão vigorosamente à ira do velho – que feitiço diabólico tomou conta de
seus espíritos, a ponto de às vezes acreditarem ser sua a raiva de Ahab; e a Baleia
Branca, inimiga inatingível, tão sua quanto dele; como é possível – o que a Baleia
Branca representava para eles, ou como em sua compreensão inconsciente, de
algum modo obscuro e insuspeito, ela parecia ter sido o grande demônio
imperceptível dos mares da vida, – para explicar isso tudo, seria necessário ir
mais fundo do que Ishmael consegue. O mineiro subterrâneo que trabalha em
todos nós, como pode alguém dizer para onde seu cabo conduz somente pelo
ruído abafado, nunca estático, de sua picareta? Quem não sente o arrastar
irresistível do braço? Que esquife rebocado por um navio de setenta e quatro
canhões pode ficar parado? Quanto a mim, cedi ao abandono das circunstâncias e
do lugar; e, ainda que estivesse apressado para enfrentar a baleia, não podia ver
naquela criatura coisa alguma além da maldade mais fatal.
Continua na página 183...
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Leia também:
Moby Dick: Etimologia, Excertos, Citações
Moby Dick: 1 - Miragens
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Moby Dick: 41 - Moby Dick (b)
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O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.
Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melville, sobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.
E você com o quê se identifica?