sexta-feira, 25 de abril de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - u)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(u)

continuando...

      Por mais desapontado que ficasse por ter achado na Srta. Simonet uma moça muito pouco diferente de todas que conhecia, assim como a minha decepção diante da igreja de Balbec cancelava-me o desejo de ir a Quimperlé, a Pont-Aven e a Veneza, dizia comigo que, ao menos por meio de Albertine, caso ela mesma não fosse o que eu havia esperado, poderia conhecer suas amigas do pequeno grupo. A princípio julguei que iria fracassar. Como ela devia permanecer ainda muito tempo em Balbec, e eu também, achara que o melhor seria não insistir em vê-la e esperar uma ocasião que me proporcionasse um encontro. Mas isso acontecia todos os dias; era muito de temer que ela se contentasse em responder de longe à minha saudação, a qual, neste caso, repetida diariamente por toda a temporada, não levaria a coisa alguma.
     Pouco tempo depois, certa manhã em que chovera e em que fazia quase frio, fui abordado no molhe por uma moça que usava boina e regalo, tão diferente daquela que vira na reunião em casa de Elstir, que parecia a meu espírito uma operação impossível reconhecer nela a mesma pessoa; todavia, pude reconhecê-la, mas após um momento de surpresa que julgo não ter escapado a Albertine. Por outro lado, lembrando-me naquele instante das "boas maneiras" que me haviam espantado, ela me deixou assombrado em sentido inverso pelo seu tom rude e suas maneiras "pequeno grupo". Quanto ao mais, a têmpora deixara de ser o centro ótico e tranquilizador do rosto, seja porque eu estivesse colocado do outro lado dela, seja porque a boina a tapasse, seja porque a vermelhidão fosse inconstante.

- Que tempo! - disse ela. - No fundo, o verão sem fim de Balbec é uma grande piada. Você não faz nada aqui? Nunca se vê você no golfe, nos bailes do cassino; tampouco anda a cavalo. Como deve se aborrecer! Não acha que a gente se imbeciliza ficando o tempo todo na praia? Ah, você gosta de bancar o lagarto, hein? Bem, você tem tempo. Vejo que não é como eu; adoro todos os esportes! Não esteve nas corridas da Sogne? Nós fomos até lá de bonde, e compreendo que não lhe agrade um calhambeque daqueles. Levamos duas horas até lá! No mesmo tempo, eu teria ido e voltado três vezes com a minha bicicleta.

     Eu, que havia admirado Saint-Loup quando ele se referira, com toda a naturalidade, ao pequeno trem de ferro local como "tortinho", devido às numerosas curvas que fazia, fiquei intimidado com a facilidade com que Albertine dizia "calhambeque". Sentia a sua maestria em um sistema de designações em que eu temia que ela percebesse e desprezasse a minha inferioridade.
     Também a riqueza de sinônimos que possuía o pequeno grupo para designar aquela estrada de ferro ainda não me fora revelada. Falando, Albertine conservava a cabeça imóvel, as narinas apertadas, e movia apenas a ponta dos lábios. Daí resultava um som como que arrastado e nasal, em cuja composição talvez entrassem heranças provincianas, uma afetação juvenil de fleuma britânica, lições de uma professora estrangeira e uma hipertrofia congestiva da mucosa do nariz. Tal emissão de voz, que aliás cedia bem depressa à medida que ia conhecendo as pessoas, e se tornava naturalmente infantil, poderia passar por desagradável. Era no entanto muito especial e me deixava encantado. Todas as vezes que ficava alguns dias sem vê-la, exaltava-me repetindo:

"Nunca se vê você no golfe", com o tom nasal com que ela falara, muito reta, sem mexer a cabeça. E então imaginava não existir pessoa mais desejável.

      Formávamos, naquela manhã, um desses pares que matizam aqui e ali o passeio do molhe com seus encontros, suas paradas, justo o tempo necessário para trocar algumas palavras antes de se despedirem para cada um tomar em separado o seu passeio divergente. Aproveitei essa imobilidade para olhar e saber em definitivo onde estava situado o sinalzinho. Ora, assim como um trecho de Vinteuil que me encantara na Sonata e que minha memória fazia vaguear do andante ao final, até o dia em que, tendo em mãos a partitura, pude encontrá-lo e imobilizá-lo na minha lembrança em seu lugar devido, no scherzo-da mesma forma o sinalzinho que me lembrava estar ora na face, ora no queixo, parou para sempre sobre o lábio superior abaixo do nariz. Do mesmo modo encontramos, com espanto, versos que sabíamos de cor, numa peça onde não suspeitávamos que estivessem.
      Naquele momento, como para que diante do mar se multiplicasse livremente, na variedade de suas formas, todo o rico conjunto decorativo que era o belo desfilar das virgens, a um tempo róseas e douradas, curtidas pelo sol e pelo vento, as amigas de Albertine, de pernas bonitas e lindo corpo, mas tão diversas umas das outras, mostraram seu grupo, que foi se desenrolando, avançando em nossa direção, mais perto do mar, numa linha paralela. Pedi licença a Albertine para acompanhá-la por alguns instantes. Infelizmente ela se contentou em lhes abanar com a mão.

- Mas suas amigas vão se queixar se não acompanhá-las. - disse-lhe, esperando que passeássemos juntos.

     Um rapaz de feições regulares, com raquetes na mão, se aproximou de nós. Era o jogador de bacará, cujas loucuras tanto indignavam a esposa do primeiro magistrado. Com ar frio, impassível, no qual evidentemente ele imaginava consistir a suprema distinção, cumprimentou Albertine.

- Está vindo do golfe, Octave? - indagou esta. - Correu tudo bem? Está em forma?
- Oh, isto me aborrece, estou em apuros - respondeu ele.
- André também estava lá?
- Sim, e fez setenta e sete. 
- Oh, mas é um recorde! 
- Eu tinha feito oitenta e dois ontem.

     Octave era filho de um industrial muito rico que deveria desempenhar um papel importantíssimo na organização da próxima Exposição universal. Espantou-me ver a que ponto, naquele moço e nos outros raros amigos masculinos dessas moças, o conhecimento que possuíam de tudo quanto era roupa, modo de vestir, charutos, bebidas inglesas, cavalos conhecimento que Octave possuía nos mínimos detalhes com uma infalibilidade altiva que atingia a modéstia silenciosa do sábio se desenvolvera isoladamente sem ser acompanhado da menor cultura intelectual. Não mostrava qualquer hesitação sobre a oportunidade do smoking ou do pijama, mas não suspeitava do caso em que se pode ou não empregar certa palavra, e nem mesmo das regras mais elementares do francês. Essa disparidade entre os dois tipos de cultura devia ser a mesma no caso de seu pai, presidente do Sindicato dos Proprietários de Balbec, pois, numa carta aberta aos eleitores, que acabara de afixar em todos os muros, dizia:

"Eu quis ver o prefeito para falá-lo a respeito disso, ele não quis ouvir minhas justas queixas."

     Octave, no cassino, ganhava prêmios em todos os concursos de bóston, tango, etc., o que lhe proporcionaria, se quisesse, um belo casamento nesse ambiente de "banhos de mar", onde não é no sentido figurado, mas no literal, que as moças acabam casando com seu "par". Octave acendeu um charuto enquanto dizia a Albertine:

- Com licença. - como se pede autorização para terminar um trabalho urgente enquanto se conversa. Pois ele nunca podia "ficar sem fazer nada", embora nunca fizesse coisa nenhuma. E, como a inatividade completa acaba por ter os mesmos efeitos que o trabalho exagerado, tanto no domínio moral como na vida do corpo e dos músculos, a constante nulidade intelectual que morava por trás da fronte sonhadora de Octave acabara por lhe conferir, apesar de seu aspecto tranquilo, ineficazes tentações de pensamento que o impediam de dormir à noite, como poderia ocorrer a um metafísico exausto.

      Imaginando que se conhecesse seus amigos poderia ter mais oportunidades de ver essas moças, estava a ponto de pedir para lhe ser apresentado. Assim o disse a Albertine, logo que ele foi embora repetindo:

- Estou em apuros. Pensava incutir-lhe a ideia de me apresentar da próxima vez. 
- O quê! - exclamou Albertine. - Não posso apresentá-lo a um gigolô! Isto aqui fervilha de gigolôs. Mas eles não poderiam conversar com você. Este joga muito bem o golfe, e pronto. Sei o que estou dizendo, não é absolutamente do seu gênero. 
- Suas amigas vão se queixar se as deixa assim - disse eu, esperando que ela propusesse irmos juntos ao encontro delas. 
- Nada disso, elas não têm necessidade alguma de mim.

     Passamos por Bloch, que me lançou um sorriso fino e insinuante e, embaraçado quanto a Albertine, a quem não conhecia, ou pelo menos conhecia "sem conhecer", abaixou a cabeça para o colarinho num movimento seco e rebarbativo. 

- Como é que se chama esse ostrogodo? perguntou Albertine. - Não sei por que me cumprimenta, visto que não me conhece. Portanto, não lhe retribuí seu cumprimento.
 
     Mas eu não pensava mais do que em rever Albertine e tentar conhecer suas amigas, e Doncieres, como elas não iam para lá e me obrigaria a voltar para casa depois da hora em que elas estariam na praia, me parecia ficar no fim do mundo. Disse a Bloch que aquilo era-me impossível.

- Pois bem, irei sozinho. Conforme os dois ridículos alexandrinos do Sr. Arouet, direi a Saint-Loup, para acalentar seu anticlericalismo: Saiba que meu dever não depende do seu. Faça o que lhe aprouver; eu cumprirei o meu.
- Reconheço que é um belo rapaz - disse-me Albertine -, mas o fato é que ele me desagrada.

     Jamais imaginara que Bloch pudesse ser tido como um belo rapaz. Era-o de fato. Com uma cabeça um tanto proeminente, um nariz bem recurvo, um ar de extrema finura, e de quem estava convencido da própria finura, tinha um rosto agradável. Mas não podia agradar Albertine. Era talvez devido às más qualidades de Albertine, à dureza e à insensibilidade do pequeno grupo, à grosseria dela para com tudo o que lhe não dizia respeito. Aliás, mais tarde, quando os apresentei, a antipatia de Albertine não diminuiu. Bloch pertencia a um meio no qual, entre o gracejo empregado na alta sociedade e o suficiente respeito pelas boas maneiras que deve ter um homem que tem "mãos limpas", ergueu-se entretanto uma espécie de compromisso particular que difere das maneiras da alta sociedade e é, apesar de tudo, uma forma singularmente odiosa de mundanismo. Quando era apresentado a alguém, Bloch se inclinava a um tempo com um sorriso de ceticismo e um respeito exagerado e, se se tratava de um homem, dizia:

- Encantado, senhor - com uma voz que se ria das palavras pronunciadas mas tinha consciência de pertencer a alguém que não era um sujeito grosseiro. Após esse primeiro momento de um costume que ele seguia e do qual, ao mesmo tempo, troçava (como quando dizia no dia 1° de janeiro: "Feliz Ano-Novo"), tomava um ar de finura e malícia e "proferia coisas sutis" que, muitas vezes, eram cheias de verdade, mas "irritavam os nervos" de Albertine. Quando lhe disse naquele primeiro dia que ele se chamava Bloch, ela exclamou: 
- Eu seria capaz de jurar que era judeu. É bem do jeito deles.

     Aliás, Bloch, a seguir, devia irritar Albertine de outra forma. Como diversos intelectuais, ele não podia dizer com simplicidade as coisas simples. Para cada uma, encontrava um qualificativo precioso e depois generalizava. Isto aborrecia Albertine, que não gostava muito de que se ocupassem como que ela fazia; quando torceu o pé e teve de ficarem sossego, Bloch observou:

- Ela está na espreguiçadeira mas, por ubiquidade, não deixa de frequentar simultaneamente indistintos golfes e remotos tênis.

     Aquilo não passava de "literatura", mas que, devido às dificuldades que Albertine sentia que poderia lhe criar com as pessoas cujo convite recusara, dizendo que não podia se mover, bastou para que criasse aversão ao rosto e ao som da voz do rapaz que dizia tais coisas.
     Separamo-nos, Albertine e eu, combinando sair juntos um dia. Conversara com ela sem mais saber aonde cairiam minhas palavras e aonde iriam parar, como se lançasse pedras num abismo sem fundo. Que em geral sejam preenchidas, pela pessoa a quem as dirigimos, de um sentido que ela tira de sua própria substância e que é bem diferente do que havíamos posto nessas mesmas palavras, é um fato que a vida cotidiana nos revela permanentemente. Mas se, além disso, estamos juntos de uma pessoa cuja educação (como, para mim, a de Albertine) nos é inconcebível, desconhecidas as inclinações, as leituras, os princípios, não sabemos se nossas palavras nela despertam maior reação que num animal, a quem no entanto tivéssemos de fazer compreender certas coisas. De modo que tentar ligar-me a Albertine me parecia uma tomada de contato com o desconhecido, senão com o impossível, como um exercício tão incômodo feito o de domar um cavalo, tão repousante como o de criar abelhas ou cultivar rosas.
      Algumas horas antes, julgara que Albertine só responderia de longe ao meu cumprimento. Acabávamos de nos separar fazendo projeto de um passeio juntos. Prometi a mim mesmo, quando encontrasse Albertine de novo, ser mais ousado com ela, e já traçara previamente o plano de tudo o que lhe diria e até mesmo (agora que tinha a impressão absoluta de que ela devia ser leviana) de todos os prazeres que lhe exigiria. Mas o espírito é influenciável como a planta, como a célula, como os elementos químicos e o meio que o modifica, se nele o mergulhamos, vem a ser as circunstâncias, um quadro novo. Tornando-me diverso pelo fato de sua própria presença, quando me encontrei de novo com Albertine disse-lhe coisas bem diferentes das que havia planejado. Depois, lembrando-me da têmpora avermelhada, perguntava a mim mesmo se Albertine não gostaria mais de uma gentileza que soubesse desinteressada. Enfim, sentia-me embaraçado diante de alguns olhares seus, de certos sorrisos. Podiam significar costumes fáceis, mas também a alegria meio boba de uma moça brincalhona, mas no fundo honesta. Uma mesma expressão, do rosto como da linguagem, podia comportar diversas acepções, e eu vacilava como um aluno diante das dificuldades de uma tradução do grego.
      Desta vez nos encontramos quase em seguida com a moça alta, Andrée, a que havia saltado sobre o velho magistrado; Albertine teve de me apresentar. Sua amiga possuía olhos extraordinariamente claros, como a abertura das portas que, num quarto sombrio, dão para o sol e o reflexo esverdeado do mar imerso em luz. Passaram cinco senhores que eu conhecia muito bem de vista desde que chegara a Balbec. Muitas vezes indagara a mim mesmo quem seriam.

- Não são pessoas muito chiques - disse-me Albertine, com uma risadinha de desprezo. 
- O velhinho de cabelo pintado e luvas amarelas tem uma pinta, hein? 
- É o dentista de Balbec, é um bom tipo; o gordo é o prefeito, não o baixinho, esse você deve ter visto, é o professor de dança, também é detestável; não pode nos suportar porque fazemos muito barulho no cassino, estragamos suas cadeiras, queremos dançar sem tapete, de forma que nunca nos deu um prêmio, embora somente nós é que saibamos dançar. O dentista é um bom sujeito; por mim, o cumprimentaria, para enfurecer o professor de dança, mas não podia porque com ele está o Sr. de Sainte-Croix, o conselheiro-geral, um homem de muito boa família que aderiu aos republicanos por dinheiro; nenhuma pessoa decente o cumprimenta mais. Ele conhece meu tio, por causa do governo, mas o resto da minha família lhe volta as costas. O magro, de impermeável, é o regente da orquestra. Como? Não o conhece? Ele toca divinamente. Não foi ouvir a Cavalleria Rusticana? Ah, acho-a ideal! Ele dá um concerto esta noite, mas não podemos ir porque se realiza na sala da Prefeitura. No cassino, não teria problemas, mas, na sala da Prefeitura, de onde retiraram o Cristo, a mãe de Andrée teria uma apoplexia se fôssemos. Você pode me dizer que o marido de minha tia está no governo. Mas que quer? Minha tia é minha tia. E não é por isso que não gosto dela! Ela só teve um desejo na vida: livrar-se de mim. A pessoa que verdadeiramente me serviu de mãe, e com duplo valor, já que não é nada minha, é uma amiga a quem, aliás, amo como se fosse mãe. Vou lhe mostrar a sua foto. 
     Fomos abordados neste momento pelo campeão de golfe e jogador de bacará, Octave. 
     Julguei ter descoberto um laço comum entre nós porque, pela conversa, fiquei sabendo que era parente afastado dos Verdurin, que muito o estimavam. Mas ele falou com desdém das famosas quartas-feiras e acrescentou que o Sr. Verdurin ignorava o uso do smoking, e era muito constrangedor encontrá-lo em certos music-hafis, onde a gente bem gostaria de não ser saudado aos gritos de "Alô, malandro!" por um senhor de paletó e gravata preta de tabelião de aldeia.
     Depois Octave nos deixou e em breve foi a vez de Andrée, que chegara a seu chalé, onde entrou sem que, em todo o passeio, tivesse dito uma só palavra. Senti muito que fosse embora, tanto mais que, enquanto falava a Albertine de sua frieza para comigo, e comparava em pensamento a dificuldade que Albertine parecia ter em me unir às suas amigas com a hostilidade contra a qual parecia ter se chocado Elstir para satisfazer meus desejos no primeiro dia, passaram umas moças a quem saudei, as senhoritas d'Ambresac, que Albertine também cumprimentou. 
     Pensei que minha situação fosse melhorar diante de Albertine. Elas eram filhas de uma parenta da Sra. de Villeparisis e que também conhecia a Sra. de Luxemburgo.
     O Sr. e a Sra. d'Ambresac, que possuíam uma pequena herdade em Balbec e eram excessivamente ricos, levavam uma vida bem simples e sempre vestiam, o marido o mesmo gênero de casaco, e a mulher um costume escuro. Ambos faziam grandes cumprimentos à minha avó que não levavam a nada. As filhas, muito bonitas, vestiam-se com mais elegância, mas uma elegância citadina e não de balneário. Em seus vestidos longos, debaixo de grandes chapéus, davam a impressão de pertencerem a uma outra humanidade diversa da de Albertine. Esta sabia muito bem quem eram elas.

- Ah, você conhece as pequenas d'Ambresac? Muito bem, conhece gente muito chique. Além do mais, elas são bem simples. - acrescentou como se isso fosse uma contradição. - São muito gentis, mas de tal maneira bem-educadas que não as deixam ir ao cassino, principalmente por nossa causa, porque somos inconvenientes. Agradam-lhe? Diabo, isso depende... São bem umas patinhas brancas. Isso tem seu encanto, talvez. Se você gosta das patinhas brancas, está bem servido. Parece que elas podem agradar, pois uma delas já está noiva do marquês de Saint-Loup. E isto deu muita mágoa à mais moça, que estava apaixonada pelo rapaz. Quanto a mim, só a sua maneira de falar com a ponta dos lábios me deixa enervada. E depois, elas se vestem de uma forma ridícula. Vão jogar golfe com vestido de seda. Na sua idade, são mais pretensiosas no vestir que as mulheres idosas que sabem trajar-se. Veja a Sra. Elstir. Eis aí uma mulher elegante.
     
     Respondi que ela me parecera trajada com bastante simplicidade. Albertine se pôs a rir.

- Com bastante simplicidade, é certo, mas se veste admiravelmente bem e, para chegar ao que você chama de simplicidade, gasta um dinheiro louco.

      Os vestidos da Sra. Elstir passavam despercebidos aos olhos de quem não tivesse gosto apurado e sóbrio das coisas da toalete. Tal gosto me faltava. Elstir o possuía no mais alto grau, pelo que me disse Albertine. Não o havia desconfiado, e nem mesmo que as coisas elegantes, porém simples, que enchiam o seu ateliê, fossem maravilhas há muito desejadas por ele, que as seguira de venda em venda, conhecendo toda a sua história, até o dia em que ganhara dinheiro bastante para possuí-las. Mas sobre tal assunto Albertine, tão ignorante quanto eu, não podia me informar coisa alguma. Ao passo que, no que dizia respeito às toaletes, advertida por um instinto de coqueteria, e talvez por uma nostalgia de moça pobre que saboreia com mais delicadeza e desinteresse, nos ricos, aquilo que ela própria não poderá usar, soube falar muito bem dos requintes de Elstir, tão exigente que achava mal vestidas todas as mulheres, e que, colocando um mundo inteiro numa proporção, num matiz, mandava fazer para a mulher, a preços exorbitantes, sombrinhas, chapéus, capas, que ensinara Albertine a achar deliciosos, e que uma pessoa destituída de gosto não teria reparado mais do que eu. De resto, Albertine, que fizera um pouco de pintura sem que tivesse, aliás, segundo confessava, nenhuma "disposição" para tal, tributava uma grande admiração a Elstir e, graças ao que ele lhe dissera e mostrara, era entendida em quadros de uma forma que muito contrastava com sem entusiasmo pela Cavalleria Rusticana. E que, na verdade, embora isso ainda não notasse, ela era muito inteligente e, nas coisas que me dizia, a estupidez não era soma do seu ambiente e de sua idade. Elstir tivera sobre ela uma influência benéfica, mas parcial. Todas as formas da inteligência não haviam chegado a Albertine num mesmo grau de desenvolvimento. O gosto da pintura quase tinha alcançado o da toalete e de todas as formas de elegância, mas não fora seguido pelo gosto da música, que ficara bem para trás.
      De nada valeu que Albertine soubesse quem eram os Ambresac, pois, como quem pode o muito nem por isso também pode o pouco, depois de eu ter saudado aquelas moças, não a achei mais disposta do que antes a me fazer conhecer suas amigas.

- Você é muito amável para lhes dar tanta importância. Não lhes preste atenção, não valem nada. Que é que essas garotas têm para um homem do seu valor? Andrée, pelo menos, é bem inteligente. É uma boa garota, apesar de perfeitamente maluca, mas as outras são mesmo muito idiotas. 

     Depois de ter deixado Albertine, senti de repente muita mágoa de Saint-Loup, por ter me ocultado que estava noivo, e por fazer algo tão incorreto como casar sem antes romper com a amante. No entanto, poucos dias depois fui apresentado a Andrée e, como ela falou por muito tempo, aproveitei para lhe dizer que apreciaria muito vê-la no dia seguinte; mas ela me disse que era impossível, pois encontrara a mãe passando muito mal e não queria deixá-la sozinha. Dois dias após, tendo ido visitar Elstir, este me falou da enorme simpatia que Andrée sentia por mim; como lhe respondesse:

- Mas fui eu que tive muita simpatia por ela desde o primeiro dia; tinha lhe pedido para vê-la no dia seguinte e ela disse que não podia. 
- Sim, eu sei, ela me contou. - disse Elstir - Lamentou muito, mas havia aceitado ir a um piquenique a dez léguas daqui, aonde devia ir de break, e não podia mais desmarcar. 

     Embora a mentira fosse muito insignificante, pois Andrée me conhecia tão pouco, eu não deveria ter continuado a frequentar uma pessoa que era capaz de dizê-la. Pois as pessoas que assim começam continuam indefinidamente. 
     E, se fôssemos visitar todos os anos um amigo que da primeira vez não pôde comparecer a um encontro por se achar resfriado, encontrá-lo-íamos resfriado de novo e faltaria outra vez a um encontro, ao qual não compareceria pelo mesmo motivo permanente em lugar do qual ele julga ver motivos diversos, causados pelas circunstâncias.

continua na página 200...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - u)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa / VIII - Complica-se o enigma

Victor Hugo - Os Miseráveis

Segunda Parte - Cosette

Livro Quinto — Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa

VIII - Complica-se o enigma
     
     Deitada no chão, com a cabeça sobre uma pedra, a criança adormecera. Jean Valjean sentou-se ao lado dela e pôs-se a contemplá-la. 
     A pouco e pouco, à medida que observava, sentia-se mais tranquilo e readquiriu a liberdade do espírito.
     Notou-se então distintamente esta verdade: que o fundo da sua vida, dali em diante, enquanto existisse aquela criança, enquanto a tivesse junto de si, não teria necessidades senão para ela, não temeria coisa alguma senão por sua causa. Tendo despido a sobrecasaca para cobri-la, nem mesmo sentia que estava gelado de frio. 
     Entretanto, e através da meditação a que estava entregue, ouvia, desde algum tempo, um ruído singular.
     Era como o som de um guizo; este ruído par a do jardim e, ainda que fraco, ouvia-se distintamente. Assemelhava-se ao tinir constante que, durante a noite, se ouve nas vizinhanças de um redil.
      Jean Valjean voltou-se, olhou e viu que andava alguém no quintal. Pelo centro do meloal caminhava um ente que parecia ser um homem, levantando-se, baixando-se e parando, com movimentos regulares, como se estivesse estendendo ou arrastando alguma coisa pelo chão. Quem quer que era parecia coxear.
      Jean Valjean sentiu-se agitado pelo estremecimento contínuo dos desgraçados, a quem tudo se torna suspeito. Desconfiam do dia porque ajuda a que os vejam, e da noite porque contribui para que os surpreendam. Havia pouco tremia com a ideia de que o quintal fosse deserto, depois estremecia por ver que nele havia alguém.
     Dos terrores quiméricos caiu nos terrores reais. Pensou consigo mesmo que Javert e os beleguins não se tinham talvez retirado, que sem dúvida haviam deixado sentinelas na rua; que se aquele homem o descobrisse no quintal, julgá-lo-ia ladrão, pediria socorro e entregá-lo-ia. Em seguida tomou cuidadosamente Cosette nos braços, mesmo adormecida, e levou-a para trás de um montão de móveis velhos e desmantelados, que estava no canto mais recôndito da barraca. Cosette não fez o menor movimento. Dali pôs-se a observar o aspecto da criatura que andava no meloal.
     O que parecia extravagante era que o tinir do guizo acompanhava todos os movimentos do homem. Quando este se aproximava, aproximava-se também o som do guizo, e se ele se afastava levava-o consigo; se fazia algum movimento mais precipitado, o guizo acompanhava-o com um som trêmulo, e quando parava cessava o ruído.
      Parecia evidente que o guizo estava preso àquele homem; mas sendo assim o que podia aquilo significar? O que era aquele homem, que trazia um guizo pendente como se fora um carneiro? 
     Jean Valjean, mesmo fazendo estas reflexões, tocou nas mãos de Cosette e sentiu-as geladas.

— Valha-me Deus! — disse ele. E chamou em voz baixa: — Cosette!

 «Estará morta?» pensou ele; e ergueu-se, tremendo como varas verdes.

     Então atravessaram-lhe o espírito, em medonho turbilhão, as ideias mais medonhas. Há momentos em que somos assaltados por toda a espécie de Ideias hediondas, ideias que nos penetram violentamente no cérebro, qual multidão de fúrias. Quando se trata daqueles que amamos, a nossa prudência inventa toda a espécie de loucuras.
     Jean Valjean lembrou-se de que o sono ao relento pode ser mortal numa noite fria. 
     Cosette, extremamente pálida, tornara a cair no chão, depois dele a ter sacudido, sem fazer o mínimo movimento.
     Chegou-lhe o ouvido ao rosto e ouviu-lhe a respiração, mas tão fraca que parecia próxima a extinguir-se. Como a aqueceria? Como conseguiria acordá-la?
     Tudo o que não era isto se lhe apagou do pensamento; em seguida precipitou-se desorientado para fora do pardieiro.
     Era absolutamente indispensável que antes de um quarto de hora, Cosette estivesse numa cama, e próxima de um bom lume.

continua na página 357...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - VIII - Complica-se o enigma
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (8b) - Mal podia acreditar

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
8.

.continuando...
.
      Mal podia acreditar que aquela jovem altiva que certa vez lhe lera com ar majestoso e sobranceiro a carta de Gavríl Ardaliónovitch era a mesma que ali estava sentada ao seu lado. Não podia conceber que aquela severa e desdenhosa beldade não passasse na verdade de uma menina, de uma criançola que nem mesmo agora compreendia o sentido de todas as palavras.

- Vivestes sempre em casa, Agláia Ivánovna? Quero dizer, nunca estivestes em uma escola, como interna? Nunca estudastes em um instituto? 
- Em parte nenhuma. Permaneci sempre em casa, como se estivesse arrolhada em uma garrafa! E somente para casar é que me extrairão de dentro da garrafa. Por que é que está rindo outra vez? Será que está caçoando de mim, que passou para o lado deles? - ajuntou com a testa ameaçadoramente vincada - Não me faça zangar; que é que está pensando de mim? Estou certa que veio a este encontro todo compenetrado de que estou apaixonada por você e que por isso lhe marquei esta entrevista. - refletiu ela, irritadíssima. 
- Confesso que ontem cheguei a recear tal coisa - declarou Míchkin com a maior simplicidade. (Estava no auge da confusão.) - Mas hoje estou convencido de que...
- De quê?... - gritou Agláia Ivánovna; e o seu lábio inferior começou a tremer - Ficou com medo de que eu... Ousou imaginar que eu... ó céus! Suspeitou, acaso, que o convidei para o prender em uma armadilha? Para que nos descobrissem aqui, depois, e que assim se visse forçado a se casar comigo? 
- Agláia Ivánovna! Não vos envergonhais? Como pôde uma ideia vil desabrochar em vosso coração inocente! Juro que nem vós mesma acreditais em uma só dessas vossas palavras e que nem sabeis o que estais dizendo.

     Agláia ficou a olhar para o chão, muito séria, como que perplexa ela própria ante o que dissera. E balbuciou:

- Não estou envergonhada absolutamente. Como sabe que o meu coração é inocente? E que ousadia foi aquela de me mandar uma carta de amor?
- Uma carta de amor? Minha carta... uma carta de amor? Mas se foi uma carta a mais respeitosa possível! Uma carta que era a emanação da minha alma no momento mais amargo de minha vida! Pensei então em vós como em uma luz... Eu... 
- Está bem, está bem! - atalhou ela de chofre, em um tom inteiramente mudado, arrependida de todo e como que receosa. 

     Voltou-se para ele, embora tentando evitar olhá-lo, quase lhe tocando o ombro a pedir com veemência que não ficasse zangado. E acrescentou, terrivelmente transfigurada:

- Muito bem. De fato empreguei uma expressão estúpida. Mas o fiz com a intenção de experimentá-lo. Dou o dito por não dito. Se o ofendi, perdoe-me. Por favor, não me encare. Vire para lá. Você declarou que foi uma ideia ignóbil. Pois eu a disse somente para o magoar. Às vezes tenho medo do que vou dizer e assim mesmo digo! Acabou de confessar que escreveu aquela carta no momento mais lancinante da sua vida. Sei que momento foi esse. - olhava outra vez para o chão, o tom da voz era brando.
- Oh! Se soubésseis uma milésima parte!
 - Sei de tudo! - exclamou ela com renovada animação - Esteve vivendo na mesma casa mais de um mês com aquela mulher horrível com quem fugiu...

     Desta vez não ficou rubra, mas sim lívida, ao pronunciar tais palavras e se levantou sem saber o que estava fazendo: mas, caindo em si. logo tornou a se sentar. Por muito tempo seu lábio ainda tremia. O silêncio durou um minuto. O príncipe quedou muito atônito ante a subtaneidade daquela explosão, sem saber a que atribuí-la. E nisto Agláiá afirmou de modo categórico:

- Absolutamente não o amo!

     Míchkin não deu resposta. Ficaram em silêncio por mais um minuto. Abaixando então ainda mais a cabeça, ela proferiu depressa mas de modo quase inaudível: - Eu amo Gavríl Ardaliónovitch...

- Não é verdade! - rebateu o príncipe, em uma espécie de sussurro. 
- Então estou mentindo? É verdade, sim! Dei-lhe meu consentimento anteontem, aqui neste mesmo banco. 

     O príncipe sobressaltou-se e refletiu durante um minuto; depois, repetiu com energia:

- Não é verdade! É uma invenção isso tudo.
- Você é formidavelmente cortês. Pois saiba que ele se emendou e que me ama acima da própria vida. Queimou a mão diante de mim para provar que me ama acima da própria vida.
- Queimou a mão?!
- Sim, a mão. Não acredita? Acha que é mentira? Bem me importa.
 
     Míchkin permaneceu calado, de novo. Não havia nenhum traço de gracejo nas palavras de Agláia que continuava carrancuda.

- Isso se passou aqui? Neste banco? Então ele trouxe uma vela? Do contrário não percebo como poderia...
- Pois trouxe sim... Que há de extraordinário nisso? 
- Inteira, em um castiçal?
- Bem.., isto é... um pedaço, um toquinho só, já no fim.., ou inteira. Não vem ao caso. Acendeu a vela, pôs o dedo em cima da chama, ficou assim meia hora. Há alguma coisa impossível nisso?
- Ainda esta noite estivemos juntos. Estava com os dedos intatos.

     Agláia caiu em um acesso repentino de gargalhada, como uma criança.

 - Quer saber por que tive de lhe inventar toda essa mentira? - virou-se outra vez, de repente, para o príncipe com uma confiança infantil e o riso ainda lhe aflorava aos lábios - Porque, se uma pessoa precisa mentir, deve inventar com muita habilidade uma coisa fora do comum, bem excêntrica, inédita ou bastante rara; a mentira adquirirá foros de verdade. Sempre reparei nisso. Falhou esta vez porque não fiz com todas as regras.

     Nisto franziu novamente a testa, como a recordar-se de qualquer ato, voltou-se para o príncipe com uma expressão séria e até melancólica e declarou:

- Quando declamei o “cavaleiro pobre”, não obstante querer elogiá-lo indiretamente por algo, quis também desapontá-lo por causa de sua atitude, e mostrar-lhe que sabia de tudo.
- Sois muito injusta comigo e com essa infeliz mulher a quem vos referistes agora mesmo com falta de caridade, Agláia.
- É porque sei de tudo! De tudo! Eis por que falei deste modo. Sei que há seis meses passados lhe propôs casamento diante de uma porção de gente. Não me interrompa. Como vê, estou falando sem comentar. E depois disso ela fugiu com Rogójin; tempos depois você viveu com ela em qualquer localidade da província, ou em qualquer cidade até que ela o largou por qualquer outro. (Agláia enrubesceu de ressentimento.) E agora ela está outra vez com Rogójin que a ama como um louco. E, recentemente, você.., que não é o tolo que dizem, veio a galope parar aqui nas pegadas dessa mulher, logo que descobriu que ela voltara para Petersburgo. Ainda ontem de noite não hesitou em defendê-la; há poucos minutos estava sonhando com ela aqui mesmo... Como vê, sei de tudo. Foi por causa dela, sim, por causa dessa mulher, que você veio aqui para Pávlovsk, não foi? 
- Não nego - respondeu o príncipe brandamente, abaixando o olhar com certo modo soturno e vago, não suspeitando com que olhos chamejantes Agláia o fulminava - Por causa dela, com o fim de verificar se... Creio que ela não é feliz com Rogójin, muito embora... Enfim, conquanto não soubesse o que poderia fazer por ela aqui, de que forma ajudá-la, vim.

     Parou e fitou Agláia que o escutava calada e séria.

- Ah! Veio sem saber por quê? Quer prova maior de que a ama e muitíssimo? - externou Agláia, a custo.
- Não - retrucou o príncipe. - Não. Eu não a amo. Oh! Se ao menos pudésseis saber e avaliar com que horror me recordo do tempo que passei com ela! - disse isto sacudido por um calafrio.
- Conte-me tudo.
- E nem há em tudo quanto se passou nada que não possais escutar. Se muita vez me passou pela mente, como quando vos escrevi, vos contar tudo, a vós e a mais ninguém, não sei o motivo de tal desejo. Com certeza porque vos quero muito. Essa infeliz criatura está convencida de que é a mulher mais pecaminosa e decaída deste mundo! Oh! Não a vilipendie nem a apedreje. Ela já se torturou demasiado com a consciência do seu imerecido opróbrio. E, meu Deus, ela não tem do que ser censurada, Ah! Não cessa declamar, a todo instante, do fundo da sua desdita, que não suporta mais viver no erro e que foi vítima dos outros, de um homem depravado e libertino. Mas se eu próprio asseverar isso, então ela será a primeira a não crer, a jurar com todas as forças de sua consciência que é culpada. Quando tentei desmanchar essa idéia fixa tão sinistra, o meu gesto a atirou em um abismo tal de escrúpulos que para fugir a isso se arrojou em um outro pior, tal o seu desatino. Só em recordar esse tenebroso tempo meu coração se estraçalha. Fugiu de mim. E sabeis por quê? Para quê? Para arranjar uma prova de que era uma criatura ignóbil. E o que ainda é talvez mais terrível á que ela própria ignora que agiu somente com esse intuito, decidida a praticar uma ação infame somente para poder dizer a si mesma: ‘Largaste-o, chafurdaste neste lodo! E agora? Duvidas agora de que és uma criatura infame?” Agláia, é difícil compreender tais complexidades. Quer saber? É bem provável que nessa contínua sensação de escrúpulo e de vergonha exista para ela uma espécie de terrível prazer anômalo, uma espécie de vingança contra alguém. As vezes consigo levá-la até onde um pouco de luz a faça ver claro dentro e fora da sua angústia. Mas acaba se rebelando sempre e me acusa amargamente de pretender incutir uma superação na sua miserável vivência (coisa que nem me acode ao cérebro). O que ela me disse quando lhe propus casamento! Que não condescendia em aceitar consolo ou ajuda de quem quer que fosse, tampouco desejando ser elevada a nenhum plano superior! Ontem reparastes nela? Cuidais que ela se sinta bem naquela roda? Que aquela gente seja companhia adequada para ela? Se soubésseis quando é bem educada, que compreensão manifesta pelas coisas, quando tem paz! Não raro me surpreendia deveras.
- Costumava pregar-lhe moral.., quando esteve com ela? Sermões, como este? 
- Oh! Não - continuou o príncipe pensativo, não percebendo o tom nem a pergunta. - Dificilmente lhe falo. Muitas vezes quero falar mas não sei o que deva dizer. Já me convenci que em certos casos o melhor de tudo é ficar quieto. Oh! Eu a amei. Eu a amei muito; mas depois... depois ela adivinhou a verdade. 
- Qual verdade? 
- Adivinhou que era somente piedade o que eu tinha por ela, já que não a amava mais.
- Como é que sabe? Talvez se tenha apaixonado por esse latifundiário com quem fugiu...
- Não, não; estou bem a par de tudo. Não fez mais do que se rir dele.
- E nunca riu de você?
- Não. Mas dá risadas estranhas quando se exaspera. Transforma-se em uma fúria terrível quando censura uma pessoa. A mim, por exemplo. Contra si mesma, também. Mas... depois... Não quero me lembrar, não quero me lembrar disso!... - e escondeu o rosto nas mãos.
- Sabe que ela me escreve cartas quase todos os dias?
- Então é verdade? exclamou o príncipe, perplexo - Ouvi falar, mas não acreditei.
- Quem lhe contou? - perguntou Agláia, receosa.
- Rogójin me disse ontem, mas de um modo vago.
- Ontem? Ontem de manhã? Ontem?... A que horas? Antes da banda tocar, ou depois?
- Depois, tarde da noite, por volta das onze horas.
- Ah! Se foi Rogójin... E sabe o que ela me escreve sempre nessas cartas?
- Seja o que for, não me surpreenderá. Está com o juízo alterado.
- Eis as cartas! - Agláia tirou três envelopes da sua bolsa e os largou no banco, perto do príncipe.
- Há uma semana exata que insiste, roga, implora e me incensa, para que me case com você. Oh! É bem esperta, apesar de louca. Em bom fundamento se apoia você para a achar bem mais sensata do que eu. Escreve que gosta de mim, que tenta diariamente arranjar um ensejo para me ver mesmo que seja de longe. Asseverou-me que você me ama, que tem certeza, desde muito; que você costuma falar com ela a meu respeito e... Tem um modo de escrever esquisito, extravagante! Não mostrei essas cartas a ninguém. Achei melhor aguardar que você aparecesse. Sabe qual é o sentido de tudo isso? É capaz de adivinhar?
- Loucura típica. Uma das muitas provas de sua insanidade mental - explicou o príncipe; e seus lábios começaram a tremer. 
- Está querendo chorar? 
- Não, Agláia. Não estou chorando. - e o príncipe ficou a fita-la. 
- Que lhe parece que devo fazer? Que é que me aconselha? Não posso ficar a receber indefinidamente essas cartas!
- Tende paciência, rogo-vos - exclamou Míchkin.
- Que podeis fazer nessa incerteza? 
- Farei tudo para impedir que ela continue a vos escrever.
- Então é um homem sem coração! - redarguiu Agláia. 
- Está vendo evidentemente que ela não está caída por mim, que é a você que ela ama, tão somente a você. Não disse ainda agora mesmo que notava tudo nela? Como não notou isso? Não compreendeu ainda do que se trata? O que estas cartas significam?... Ciúme! Mais do que ciúme. Ela... Será que você acredita piamente que ela se case com Rogójin, conforme garante aqui nestas cartas? Pois sim! No dia imediato ao nosso casamento se mataria!

     O príncipe estremeceu. Seu coração parou. Só pôde fazer uma coisa: ficar olhando para Agláia, completamente marasmado. E como lhe pareceu estranho verificar quanto essa menina aí era já tão acabadamente mulher!

- Deus bem sabe, Agláia, que para restituir a paz a essa criatura e a tornar feliz eu daria até mesmo a minha vida... Mas agora já não a posso amar, E ela sabe disso!
- Sacrifique-se então, Coisa aliás bem do seu feitio. Você é uma pessoa tão caridosa! E não me chame de Agláia!... Chamou-me simplesmente de Agláia, ainda ontem. Compete a você soerguê-la. É obrigado a tal gesto. Devia ir embora com ela outra vez a fim de lhe dar paz e sossego ao coração. Ora, você bem sabe que a ama! 
- Não posso sacrificar-me desta forma, apesar de já haver querido certa vez, e de ainda querer agora. Tenho a certeza de que comigo ela se perderia. E por isso me afasto. Devia ir vê-la hoje às sete horas, mas decerto não irei mais. Ela em seu orgulho nunca toleraria a minha compaixão... e acabaríamos caindo ambos na ruína. Sei quanto isso é esquisito, mas que é que em todo esse caso não é anormal? Dizeis que ela me ama. Mas isso é amor? Posso considerar amor o que presenciei? Não, amor não é, e sim qualquer outra coisa! 
- Mas que palidez é essa? - perguntou de chofre Agláia, pasmada para a fisionomia do príncipe.
- Não é nada. É que passei a noite em claro. Estou exausto.. Realmente, Agláia, eu e ela conversamos sobre vós. 
- Então, é verdade? Falou com ela sobre mim? E... e como se preocupou você comigo se apenas me viu uma vez?
- Não sei como isso se deu. Na minha treva de então sonhei que... Tive a ilusão decerto de que me era possível ir ao encontro de uma nova aurora. Não sei como me nasceu esse pensamento. O que vos escrevi naquela ocasião era verdade, embora eu não soubesse. Tudo não passou de um sonho em plena treva... Depois comecei a trabalhar. Contava permanecer ausente uns três anos. 
- Então veio por causa dela!? - e a voz de Agláia tremeu. 
- Sim, esse foi o motivo. 

     Houve de parte a parte um silêncio opressivo que se dilatou durante dois minutos. Agláia levantou-se do banco, e disse com voz entrecortada:

- Pois fique com a ideia, com a convicção de que essa... sua... mulher é uma louca! Mas eu não tenho nada de ver com as suas fantasias de louca... Intimo-o, Liév Nikoláievitch, a restituir estas cartas a essa mulher, da minha parte! E se ela ousar tomar a me escrever uma linha que seja, farei queixa a meu pai e então se há de providenciar o seu internamento em uma casa de correção!... 

     O príncipe levantou-se de um pulo e ficou boquiaberto diante da fúria repentina de Agláia. Foi como se uma espécie de névoa o envolvesse.

- Não podeis sentir uma coisa destas! Não pode ser! - balbuciou.
- Sinto! Sinto, sim! - gritou Agláia, fora de si. É a verdade, a pura verdade! 
- Que é que é verdade? Verdade o quê? - ouviram ambos uma voz aflita indagar, perto deles. Era Lizavéta Prokófievna que estava chegando.
- A verdade.., é que vou me casar com Gavríl Ardaliónovitch! Que amo Gavril Ardaliónovitch e que vou fugir de casa amanhã com ele! - bradou Agláia quase esbarrando na mãe. - Ouviu agora? Ficou satisfeita a sua curiosidade? Ou quer saber mais? - e correu para casa.
- Não, meu amigo, não se vá embora - disse Lizavéta Prokófievna sustando os passos do príncipe. - Você terá a bondade de me dar uma explicação. Que é que eu fiz para ter tantos aborrecimentos? Não consegui dormir a noite inteira.

     O príncipe seguiu-a.

O Idiota: Terceira Parte (8b) - Mal podia acreditar
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A Montanha Mágica - “Deus meu, eu vejo!” (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 


Capítulo V

“Deus meu, eu vejo!” 

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     Mme. Chauchat sentou-se junto à porta do laboratório, numa poltronazinha redonda, de braços um tanto estropiados, como que rudimentares. Recostando-se, cruzou ligeiramente as pernas e olhou para o vazio, enquanto seus olhos de quirguiz, nervosamente desviados pela sensação de ser observada, pareciam quase vesgos. Usava suéter branco e saia azul e tinha sobre os joelhos um livro da biblioteca do estabelecimento. Batia levemente no chão com os pés.
     Já depois de um minuto e meio mudou de atitude. Olhou em redor de si. Levantou-se com a expressão de quem está indeciso e não sabe aonde dirigir-se. E começou a falar. Perguntou alguma coisa. Dirigiu a palavra a Joachim, muito embora este parecesse absorto na leitura da revista, ao passo que Hans Castorp ali se achava sem nada fazer. Formava palavras na boca, emprestando-lhes a voz que saía da garganta branca. Era aquela voz pouco grave, um tanto áspera, agradavelmente velada, que Hans Castorp conhecia – conhecia desde muito tempo e já ouvira uma vez, a seu lado, no dia em que lhe dissera: “Com muito prazer. Mas você deve devolvê-lo sem falta depois da aula”. Mas aquelas frases haviam sido proferidas com mais fluência e com maior decisão. Desta vez, porém, chegavam as palavras um pouco arrastadas e trôpegas. A que falava não tinha um direito natural de usá-las; tomava-as apenas de empréstimo, como Hans Castorp já diversas vezes a ouvira fazer, experimentando um certo sentimento de superioridade, envolvido em humilíssimo deleite. Com uma das mãos no bolso do casaquinho de lã e a outra na nuca, perguntou Mme. Chauchat:

– Por favor, qual é a hora que marcaram para o senhor?

     E Joachim, após ter relanceado os olhos para o primo, respondeu, juntando os calcanhares, mas permanecendo sentado:

– Três e meia. 

     Ela voltou a falar: 

– A minha hora é três e quarenta e cinco. Que é que há? São quase quatro horas. Alguém entrou agora, não é? 
– Sim, duas pessoas – explicou Joachim. – As que estavam à nossa frente. O serviço está atrasado. Parece que o atraso é de meia hora. 
– Isto é desagradável – disse ela, apalpando o penteado num gesto nervoso. 
– Bastante – tornou Joachim. – Nós também já esperamos há quase meia hora. 

     Assim conversaram, e Hans Castorp escutava-os como que num sonho. Que Joachim falasse com Mme. Chauchat era quase como se ele mesmo o fizesse -se bem que, por outro lado, fosse muito diferente. Aquele “bastante” chocara Hans Castorp; a resposta parecia-lhe petulante ou pelo menos estranhamente fria, em vista das circunstâncias. Mas, afinal, Joachim podia falar assim – podia, em geral, falar com ela, e talvez até se gabasse desse atrevido “bastante”, com o mesmo ar de importância que assumira Hans Castorp perante Joachim e Settembrini, quando, ao lhe perguntarem quanto tempo pretendia permanecer em Davos, respondera: “Três semanas”. Dirigira ela a palavra a Joachim, ainda que este escondesse o rosto atrás do jornal. Sem dúvida fizera-o por ser o primo o pensionista mais antigo, a quem conhecia de vista havia mais tempo. Mas também por outra razão: entre ela e Joachim tinham cabimento relações civilizadas e uma troca de palavras articuladas; nada de selvagem, profundo, terrível e misterioso existia entre eles. Se uma certa pessoa de olhos castanhos, com um anel de rubi e com um perfume de flor de laranjeira houvesse esperado ali, perto deles, teria cabido a Hans Castorp tomar as rédeas da conversa e dizer “bastante”, independente e puro como se sentia em relação a ela. “Com efeito, bastante desagradável, senhorita”, teria dito e talvez, com um gesto desenvolto, tivesse tirado o lenço do bolso do paletó a fim de se assoar. “Tenha paciência, por favor. Estamos todos no mesmo barco.” E Joachim teria admirado sua leviandade – provavelmente sem experimentar o desejo sério de substituí-lo. Não, dada a situação, Hans Castorp tampouco tinha ciúmes de Joachim, não obstante ser o primo quem teve oportunidade de falar com Mme. Chauchat. Estava de acordo com o fato de ela se ter dirigido a Joachim. Assim fazendo, ela levara em conta as circunstâncias e demonstrara ter consciência delas... E o coração do jovem martelava.
    Após o tratamento displicente que Mme. Chauchat recebera da parte de Joachim, e no qual Hans Castorp até notara certa hostilidade contra a companheira de enfermidade, hostilidade que o fez sorrir apesar de toda a sua emoção, “Clávdia” tentou dar um passeio pela peça. Mas como faltasse espaço para isso, aproximou-se também da mesa, tirou dela uma revista ilustrada e voltou à poltrona dos braços rudimentares. Hans Castorp permanecia sentado, a contemplá-la, imitando o jeito do avô de apoiar o queixo na gravata, a ponto de se parecer ridiculamente com o velho. Mme. Chauchat tornara a cruzar as pernas, de maneira que a esbelteza das linhas, do joelho para baixo, tornava-se nítida sob a saia de tecido azul. Era de estatura apenas mediana, uma estatura agradável e harmoniosa aos olhos de Hans Castorp, mas tinha as pernas relativamente compridas e as cadeiras pouco largas. Já não se recostava na poltrona, mas, fincando na coxa mais elevada os antebraços cruzados, inclinava-se para a frente, com as costas convexas e os ombros tão avançados, que se salientavam as vértebras da nuca e quase se delineava, sob o suéter muito justo, a espinha dorsal, ficando comprimidos, de ambos os lados, os seios, que não eram opulentos e altos como os de Marusja, mas pequenos como os de uma menina. De súbito Hans Castorp lembrou-se de que também ela se achava à espera da radioscopia. O conselheiro áulico pintava-a, reproduzia sobre uma tela, por meio de óleo e corantes, sua aparência exterior. Dentro em breve, porém, dirigiria na penumbra sobre ela os raios que lhe revelariam o interior do corpo. E ao pensar nisso Hans Castorp voltou a cabeça com um ensombramento pudico da sua fisionomia e com aquele ar de discrição e reserva que lhe parecia adequado a essa visão.
     Não permaneceram os três reunidos por muito tempo na salinha de espera. Lá dentro, evidentemente, não haviam feito grandes cerimônias para liquidar os casos de Sacha e de sua mãe. Apressavam-se para recuperar o tempo perdido. Novamente a porta foi aberta pelo técnico de jaleco branco. Levantando-se, Joachim atirou a revista sobre a mesa, e Hans Castorp seguiu-o em direção à porta, não sem uma hesitação íntima. Despertaram nele escrúpulos cavalheirescos, bem como a tentação de dirigir, apesar de tudo, uma palavra convencional a Mme. Chauchat e de lhe oferecer a precedência, talvez até em francês, se isso fosse realizável. Apressadamente procurou os vocábulos e ponderou a sintaxe. Mas ignorava se esse tipo de galanteria estava em uso ali. Era possível que a ordem estabelecida ficasse acima de todo cavalheirismo. Joachim devia sabê-lo, e como não fizesse menção de ceder o seu lugar à senhora presente, apesar dos olhares comovidos e insistentes de Hans Castorp, este seguiu os passos do primo e atravessou a porta do laboratório, depois de ter passado por Mme. Chauchat, que continuava na sua posição inclinada e mal levantara os olhos. Estava ele por demais atordoado pelo que deixava atrás de si e pelas aventuras dos dez últimos minutos, para que a transferência do seu corpo ao gabinete de radioscopia pudesse produzir também uma modificação imediata do seu estado de alma. Não via nada ou apenas tinha percepções muito vagas nessa meia-luz artificial. Ouvia ainda a voz agradavelmente velada de Mme. Chauchat, quando dissera: “Que é que há?... Alguém entrou agora, não é?... Isto é desagradável...” E o som dessa voz lhe descia docemente pelas costas, fazendo-o estremecer. Via o joelho delineado sob o pano da saia; via as vértebras do pescoço salientarem-se na nuca curvada, por baixo dos curtos cabelos arruivados que nesse lugar pendiam frouxos, sem terem sido presos na trança, e um novo tremor passou-lhe pelo corpo. Deparou com o Dr. Behrens, de costas para os recém-entrados, de pé diante de um armário ou de uma estante saliente, ocupado em examinar uma chapa escura que mantinha, com o braço estendido, nas proximidades da fosca lâmpada do teto. Passando ao lado dele, chegaram ao fundo da sala, precedidos pelo técnico que fazia os preparativos para o exame. Pairava ali um cheiro esquisito. Uma espécie de ozônio deteriorado enchia a atmosfera. Entre as janelas vendadas de preto, a estante dividia o gabinete em duas partes desiguais. Distinguiam-se aparelhos de física, lentes côncavas, quadros de distribuição, instrumentos para medir, mas também uma caixa parecida com uma máquina fotográfica sobre uma armação de rodas, e dispositivos de vidro, embutidos em fileiras na parede. Não se sabia onde se estava, se no ateliê de um fotógrafo, se numa câmara escura, se na oficina de um inventor ou na cozinha de um bruxo tecnológico.
     Sem perder tempo, Joachim começou a desnudar-se até a cintura. O técnico, um jovem suíço atarracado, de faces rosadas, pediu a Hans Castorp que fizesse o mesmo. Acrescentou que os exames eram feitos rapidamente e que logo a seguir seria a vez dele... Enquanto Hans Castorp despia o colete, Behrens saiu da parte menor do recinto e foi ter com eles, na outra, mais espaçosa.

– Olá! – disse. – Vejam só os nossos Dióscuros! Castor e Pólux!... Rogo-lhes a fineza de suprimirem quaisquer gritos lancinantes! Esperem um pouco, num instante vamos passar luz através dos dois. Parece, Castorp, que o senhor tem medo de nos revelar o seu interior. Fique tranquilo, que tudo se passará segundo as regras da estética. Olhe aí, já viu a minha galeria particular? – E tomando Hans Castorp pelo braço, conduziu-o àquelas fileiras de vidros escuros, e dando volta a um comutador, acendeu a luz atrás delas. Eis que os vidros, iluminando-se, mostraram as suas imagens. Hans Castorp viu membros – mãos, pés, rótulas, pernas, coxas, braços e partes de bacias. Mas a forma viva, arredondada, daqueles fragmentos do corpo humano era fantasmagórica e de contornos vagos; circundava, como uma névoa ou uma aura pálida, o núcleo que ressaltava clara, minuciosa e decididamente: o esqueleto. 
– Muito interessante – disse Hans Castorp. 
– É de fato interessante – retrucou o conselheiro áulico. – Uma lição prática sumamente útil para a rapaziada. Anatomia de raios X, compreende? Um triunfo dos tempos modernos. Isto aqui é um braço de mulher, como o senhor pode perceber pela sua delicadeza. É com isso quê nos cingem nas horas de amor, sabe? – E pôs-se a rir, o que fazia levantar-se de um lado o lábio superior com o bigodinho aparado. Em seguida apagaram-se as chapas. Hans Castorp dirigiu-se para onde estavam preparando a radiografia de Joachim. 

     Isso se dava à frente daquela saliência a cujo outro lado se achara momentos antes o Dr. Behrens. Joachim sentara-se numa espécie de tamborete de carpinteiro, diante de uma tábua contra a qual apertava o peito, e que ao mesmo tempo abraçava. O técnico corrigiu-lhe a posição com movimentos moldadores, avançando ainda mais as espáduas de Joachim e fazendo-lhe massagem nas costas. Depois, encaminhou-se para trás da máquina fotográfica, para focalizar, encurvado e de pernas separadas, como um fotógrafo qualquer, a vista a tirar; expressou então a sua satisfação e, afastando-se, recomendou a Joachim que inalasse o ar profundamente e prendesse a respiração até que a chapa fosse batida. Dilataram-se e a seguir imobilizaram-se as costas arredondadas de Joachim. Nesse momento, o técnico fez a manobra adequada no quadro de distribuição. Durante dois segundos operaram energias terríveis cujo esforço era necessário para atravessar a matéria, correntes de milhares de volts, de cem mil, como Hans Castorp julgava lembrar-se. Apenas dominadas, em prol do seu objetivo, as forças procuraram escapar por um desvio. Descargas estouravam como disparos. Chispas azuis dançavam num aparelho de medição. Relâmpagos compridos passavam, crepitando, pela parede. Em qualquer parte, uma luz vermelha, semelhante a um olho, mirava o recinto, impassível e ameaçadora. Um frasco, nas costas de Joachim, enchia-se de qualquer substância verde. Depois, tudo sossegou. Desapareceram os fenômenos luminosos, e com um suspiro Joachim soltou o ar retido nos seus pulmões. Estava tudo terminado.

– O próximo réu! – chamou Behrens, dando uma cotovelada em Hans Castorp. – Não faça cera! O senhor vai ganhar uma cópia gratuita, Castorp. Assim poderá projetar os segredos do seu peito na parede, para divertir seus filhos e netos.

     Joachim retirara-se, e o técnico já estava mudando a chapa. O conselheiro instruiu pessoalmente o novato acerca do modo de se sentar e se agarrar. – Abraçar! – disse. – Dê um abraço à tábua! Quanto a mim pode imaginar qualquer coisa diferente. E aperte o peito firmemente contra ela, como se experimentasse sensações voluptuosas! Muito bem! Respire! Não se mexa! – ordenou. – E agora sorria! – Hans Castorp esperava de olhos piscos, com os pulmões repletos de ar. Atrás dele irrompeu a tempestade, estourando, pipocando, crepitando e amainando. A objetiva contemplara o seu interior.
     Ergueu-se, perturbado e aturdido pelo que acabava de lhe acontecer, ainda que a penetração nem de leve se lhe tivesse tornado sensível. – Ótimo! – elogiou o conselheiro áulico. – Agora vamos ver com os nossos próprios olhos. – E Joachim, como homem experimentado, já se encaminhara mais ao fundo da sala, para se colocar nas proximidades da porta de saída, junto a uma armação. Tinha às costas o volumoso aparelho, em cuja parte traseira se notava uma ampola de vidro, semicheia de água, com um tubo de evaporação. Diante dela, à altura do peito, achava se um anteparo emoldurado, suspenso em roldanas. À sua esquerda, no meio de um quadro de distribuição e de outro instrumental, elevava-se um globo vermelho com uma lâmpada, que foi acesa pelo Dr. Behrens, a cavaleiro sobre o tamborete à frente do anteparo. Apagou-se a luz do teto, e somente a vermelha iluminava a cena. Com um rápido gesto, o mestre fez desaparecer também esta, e profundas trevas envolveram as pessoas presentes.

– Antes de tudo os olhos têm de se adaptar – ouviu-se a voz do conselheiro áulico através da escuridão. – É preciso que nossas pupilas se alarguem imensamente, como as dos gatos, para que possamos enxergar o que queremos descobrir. Os senhores compreendem que não poderíamos ver bem nitidamente com os nossos olhos ordinários, habituados à luz. Antes de começarmos, devemos esquecer o dia claro com suas imagens alegres. 
– Lógico – disse Hans Castorp, que se achava de pé atrás do médico. Fechou os olhos, pois tanto fazia tê-los abertos ou cerrados, tão negra era a noite. – É necessário que os olhos tomem um banho de escuridão, para que possam enxergar uma coisa dessas. Entende-se. Acho até conveniente e indicado que a gente aproveite esse tempo para se concentrar um pouco, por assim dizer, numa prece silenciosa. Estou aqui de olhos fechados e sinto uma sonolência agradável. Mas que cheiro é esse?
– Oxigênio – explicou o conselheiro; – é o oxigênio que o senhor sente no ar. O produto atmosférico da nossa tempestade particular, compreende?... E agora abra os olhos! – acrescentou. – Já vai começar a evocação. – Hans Castorp obedeceu depressa.

     Ouviu-se a mudança de uma alavanca de lingueta. Um motor sobressaltou-se, pôs-se a cantar furiosos agudos, mas foi logo regulado por uma segunda manobra. O chão vibrava ritmicamente. A luzinha vermelha, oblonga e vertical, encarava-os, como uma ameaça muda. Em qualquer parte crepitou um relâmpago. E lentamente, com um brilho leitoso, qual uma janela que se iluminasse, ressaltou das trevas o pálido retângulo do anteparo luminoso, diante do qual o Dr. Behrens cavalgava o seu tamborete de sapateiro, com as coxas escancaradas, e com os punhos fincados nelas, apertando o nariz achatado contra a vidraça que lhe permitia a visão interior de um organismo humano.

– Está vendo, rapaz? – perguntou... Hans Castorp inclinou-se por cima do ombro dele, mas tornou a levantar a cabeça para olhar na direção onde supunha estarem, no meio da escuridão, os olhos de Joachim, que provavelmente tinham aquela mesma expressão meiga e triste do último exame. E perguntou ao primo: 
– Você permite? 
– Pois não – respondeu Joachim generosamente de dentro das trevas. O chão continuava vibrando, e as energias em ação estalavam e rumorejavam, enquanto Hans Castorp, curvado, espiava pela lívida janela, espiava através da ossatura vazia de Joachim Ziemssen. O esterno confundia-se com a espinha dorsal numa espécie de coluna escura, cartilaginosa. A fileira anterior das costelas estava entremeada pela das costas, que parecia mais pálida. As clavículas, em elegante curva, bifurcavam-se mais acima, para ambos os lados, e na suave auréola dos contornos da carne exibia-se, seco e nítido, o esqueleto dos ombros, a juntura dos úmeros de Joachim. Era muito clara a cavidade do peito, mas distinguia-se um sistema de veias, manchas escuras, uma negrejante aspereza. 
– Imagem clara – disse o conselheiro áulico. – É a magreza decente da mocidade militar. Já tive aqui panças impenetráveis. Não havia meio de distinguir a menor coisa que fosse. Seria preciso descobrir antes os raios capazes de atravessar tal camada de banha... Este aqui, sim, é um trabalho limpo. Pode ver o diafragma? – perguntou, apontando com o dedo para o arco escuro que subia e descia na parte inferior da janela... – Está vendo, à esquerda, essas bossas, essas protuberâncias? É a pleurisia que ele teve faz quinze anos... Respire profundamente! – ordenou. – Mais! Eu disse: “Profundamente!” – E o diafragma de Joachim erguia-se, trêmulo, o mais alto que podia. Notava-se um clareamento nas regiões superiores do pulmão, mas o conselheiro não estava satisfeito. – Insuficiente – observou. – O senhor vê os hilos? Veja as aderências! Está vendo as cavernas? É daí que vêm os tóxicos que o: embriagam. – Mas a atenção de Hans Castorp achava-se toda absorvida por alguma coisa parecida com um saco, qualquer massa estranha, como que animalesca, que aparecia, escura, atrás da coluna central, na sua maior parte à direita do espectador – massa que regularmente se dilatava e se contraía, um pouco à maneira de uma medusa a nadar.
– O senhor vê o coração? – perguntou o conselheiro, desprendendo novamente a manzorra da coxa e designando com o indicador aquele saco palpitante... Grande Deus! Era o coração o que Hans Castorp contemplava, o orgulhoso coração de Joachim. 
– Estou vendo o seu coração – disse com voz estrangulada. 
– Pois não – tornou Joachim, e sem dúvida sorria, resignado, ali na escuridão. Mas o médico mandou-os calar-se e deixar de trocar sentimentalismos. Estudou as manchas e as linhas, aspereza preta na cavidade interior do peito, e enquanto isso, Hans Castorp tampouco se cansava de olhar a forma sepulcral de Joachim, o seu esqueleto, essa armação descarnada, esse escanifrado memento. Sentia-se cheio de devoção e de terror. – Sim, sim, eu vejo – disse diversas vezes. – Deus meu! Eu vejo! – Ouvira falar de uma mulher, uma parenta, havia muito falecida, da família Tienappel, distinguida pelo dom, ou talvez pela desgraça, de uma visão sinistra, que suportara com toda a humildade: as pessoas que morreriam em breve apareciam-lhe sob a forma de esqueletos. Deste modo é que Hans Castorp via o bom Joachim, embora com a ajuda e por meio da aparelhagem da ciência física e óptica, de maneira que isso não queria dizer grande coisa e nada havia de sobrenatural, tratando-se ainda de um espetáculo que o primo lhe permitira expressamente. Sem embargo, sentiu-se de repente tomado de uma profunda compreensão do destino melancólico daquela tia visionária. Violentamente emocionado pelo que via, ou, no fundo, pelo fato de o ver, tinha a alma acossada por secretas dúvidas, a ponto de se perguntar se tudo aquilo se passava de forma lícita, se sua visão, naquelas trevas vibrantes e chispantes, era de fato inocente; e no seu peito mesclava-se o angustiante prazer da indiscrição com os sentimentos de comoção e de piedade. 

     Mas, poucos minutos após, ele mesmo se achava no pelourinho, em plena tempestade, enquanto Joachim vestia o seu corpo que tornara a ser opaco. De novo olhava o conselheiro áulico através da vidraça leitosa; dessa vez esquadrinhava o interior de Hans Castorp, e das suas observações feitas à meia voz, de certos resmungos abruptos e de algumas expressões vagas, parecia deduzir-se que o resultado correspondia às suas expectativas. Terminada a radioscopia, teve ainda a amabilidade de permitir que o paciente, a seus rogos insistentes, contemplasse a própria mão através do anteparo luminoso. E Hans Castorp viu o que devia ter esperado, mas que, em realidade, não cabe ver ao homem, e que jamais teria crido poder ver: lançou um olhar para dentro do seu próprio túmulo. Viu, antecipado pela força dos raios, o futuro trabalho da decomposição; viu a carne em que vivia, solubilizada, aniquilada, reduzida a uma névoa inconsistente, no meio da qual se destacava o esqueleto minuciosamente plasmado da sua mão direita, e em torno da primeira falange do dedo anular pairava, preto e frouxo, o anel-sinete que o avô lhe legara, um objeto duro desta terra, com o qual os homens adornam o seu corpo destinado a desfazer-se por baixo dele, para que fique novamente livre e se possa enfiar em outra mão que o use durante algum tempo. Com os olhos daquela parenta da família Tienappel, contemplou uma parte familiar do seu corpo, estudou-a com olhos videntes e penetrantes, e pela primeira vez na vida compreendeu que estava destinado a morrer. Enquanto isso, sua fisionomia tomou aquela expressão que costumava assumir quando ouvia música – expressão bastante tola, sonolenta e piedosa, com a boca entreaberta e a cabeça inclinada para um ombro. O conselheiro disse:

– Fantasmagórico, hein? Sim, senhor, inegavelmente há nisso qualquer coisa de fantasmagoria.

     E mandou sustar a energia. O chão serenou; esvaíram-se os fenômenos luminosos; a janela mágica voltou a envolver-se em trevas. A luz do teto foi acesa. E enquanto também Hans Castorp se vestia, Behrens dava aos jovens alguns esclarecimentos a respeito das suas observações, levando em conta os reduzidos conhecimentos de leigos dos dois. No que se referia a Hans Castorp, o resultado óptico confirmou o acústico com toda a precisão que a honra da ciência podia exigir. Haviam sido visíveis os lugares antigos tanto como outros, recentes, e partindo dos brônquios estendiam-se cordões muito adentro do órgão – cordões com nozinhos. Hans Castorp poderia verificá-los com seus próprios olhos no pequeno diapositivo que lhe seria entregue em breve. – Por conseguinte, calma, paciência, disciplina de homem! Comer, tirar a temperatura, repousar, esperar, não ter pressa. – Com isso voltou-lhes as costas. Foram-se os primos. Hans Castorp, ao sair atrás de Joachim, olhou por cima do ombro. Introduzida pelo técnico, Mme. Chauchat entrou no laboratório.

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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
“Deus meu, eu vejo!” (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

A Montanha Mágica - “Deus meu, eu vejo!” (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 


Capítulo V

“Deus meu, eu vejo!” 

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     Passou-se uma semana antes que Hans Castorp fosse convidado, por intermédio da Superiora, a Srta. von Mylendonk, a apresentar-se no gabinete de radiologia. Não quisera apressar o curso das coisas. Reinava grande azáfama no Berghof. Os médicos e o pessoal tinham, evidentemente, muito que fazer. Nos últimos dias haviam chegado novos pensionistas: dois estudantes russos com bastas cabeleiras e com camisas negras, fechadas, que não deixavam a descoberto a menor parte da roupa-branca; um casal holandês, que recebera lugares à mesa de Settembrini; um mexicano corcunda, que assustava os comensais com seus espantosos ataques de dispnéia, durante os quais se agarrava, com mãos de ferro, aos vizinhos, homem ou mulher, forçando-os, apesar de toda a resistência horripilada que lhe opusessem, e dos gritos de socorro que lançassem, a participarem da sua própria angústia. Numa palavra, a sala de refeições estava quase repleta, se bem que a temporada de inverno não começasse antes de outubro. E a pouca gravidade do caso de Hans Castorp, seu grau de enfermidade, mal lhe davam o direito de exigir atenção especial. A Srª. Stöhr, por exemplo, por mais estúpida e inculta que fosse, estava indubitavelmente muito mais enferma do que ele, e nem era bom falar do Dr. Blumenkohl. Seria faltar a todo senso de hierarquia e de distância não observar, no caso de Hans Castorp, uma reserva modesta, tendo-se ainda em conta que tal mentalidade estava de acordo com o espírito da casa. Os doentes leves não gozavam de muita consideração, como Hans Castorp deduzira de conversas que ouvira. Falava-se deles com desdém, conforme a escala de valores ali usada; eram olhados de través, não só por parte dos doentes graves e gravíssimos, senão também por aqueles que eram igualmente “leves”. Agindo assim, menosprezavam na verdade a si próprios, mas ao mesmo tempo salvaguardavam sua dignidade, por se submeterem à referida escala de valores. Isso é apenas humano. “Bah, esse sujeito!”, diziam um do outro. “Ele não sofre de nada, no fundo. Mal tem o direito de achar-se aqui. Não tem sequer uma caverna...” Tal era o espírito que reinava no sanatório; era, em certo sentido, aristocrático, e Hans Castorp inclinava-se diante dele, por um inato respeito à lei e à ordem, fosse qual fosse a sua natureza. Cada terra com seu uso, reza o provérbio. Manifestam pouca cultura os viajantes que zombam dos costumes e dos conceitos dos povos que os acolhem; há muitos tipos de qualidades suscetíveis de conferir honra a quem as possui. Mesmo em relação a Joachim, Hans Castorp observava um certo respeito e um quê de cerimônia, não só por ser o primo paciente mais antigo e seu guia e cicerone nesse mundo novo, mas antes de tudo por se tratar, sem a menor dúvida, do caso mais grave. Assim sendo, era compreensível a tendência de todos de tirar o maior efeito possível das particularidades do seu caso, até mesmo exagerando sua gravidade, na intenção de pertencer à aristocracia ou de se avizinhar dela. O próprio Hans Castorp, quando interrogado à mesa, acrescentava alguns décimos à temperatura verificada”, e não deixava de se sentir lisonjeado quando o advertiam com o dedo, como a um grande espertalhão. Mas, não obstante essa pequena gabolice, ainda continuava sendo personagem secundária, de maneira que paciência e discrição constituíam a atitude que lhe convinha.
     Reassumira, ao lado de Joachim, o estilo de vida das três primeiras semanas, aquele estilo já familiar, monótono e estritamente regulamentado; e tudo corria à maravilha desde o primeiro dia, como se jamais tivesse sofrido uma interrupção. Com efeito, esta fora insignificante, como Hans Castorp notou logo por ocasião do seu reaparecimento à mesa. Verdade é que Joachim, ligando deliberadamente uma importância especial a esse tipo de fatos marcantes, empenhara-se em adornar com algumas flores a mesa do primo ressuscitado. Mas a recepção por parte dos comensais foi pouco festiva e não se distinguiu quase em nada de outras, anteriores, precedidas de uma separação de três horas e não de outras tantas semanas. Não porque sentissem indiferença para com a sua pessoa singela e simpática, nem porque estivessem por demais ocupados consigo próprios, isto é, com seus tão interessantes corpos, mas somente pelo fato de não terem consciência do intervalo. E Hans Castorp podia segui-los sem esforço por esse caminho, já que se encontrava no seu lugar à extremidade da mesa, entre a professora e Miss Robinson, da mesma forma como se aí tivesse comido pela última vez na véspera.
     Se em sua própria mesa não se fazia grande caso do fim do seu retiro, como poderia preocupar-se com ele o resto da sala? Ali absolutamente ninguém o percebera, com a única exceção de Settembrini, que ao final da refeição se aproximara para uma saudação amistosa e brincalhona. Hans Castorp sentia-se, na verdade, inclinado a ver ainda uma exceção, a cujo respeito não nos arriscamos a opinar. Afirmava de si para si que Clávdia Chauchat dera pelo seu reaparecimento, logo quando entrara, atrasada como sempre, após ter batido a porta envidraçada; tinha certeza de que os olhos estreitos da russa o haviam fitado com um olhar ao qual ele respondera com outro; apenas se sentara, Mme. Chauchat voltara-se de novo para o lado dele, sorrindo por cima do ombro, como fizera três semanas atrás, antes de ele ter ido ao exame médico. E esse gesto fora tão pouco dissimulado, tão desprovido de consideração – tanto de consideração para com ele quanto para com os demais pensionistas –, que Hans Castorp vacilava sobre se devia sentir-se deliciado ou tomar essa atitude por um sinal de desprezo e irritar-se por causa dela. Fosse como fosse, seu coração contraíra-se convulsivamente sob a influência desses olhares, que de um modo fantástico e inebriante tinham negado e desmentido as conveniências segundo as quais se ignoravam mutuamente; contraíra-se quase que dolorosamente, já no momento em que se fechara com estrondo a porta envidraçada, momento esse que Hans Castorp aguardara com respiração ofegante.
     Para completarmos o nosso relato, convém acrescentar que as relações interiores entre Hans Castorp e a enferma da mesa dos “russos distintos”, a parte que seus sentidos e seu espírito modesto tomavam nessa pessoa de estatura média, de andar felino e de olhos de quirguiz, numa palavra, sua paixão -seja permitido o emprego dessa palavra, embora ela constitua um termo lá de baixo, da planície, e possa despertar a idéia de ser aplicável ao nosso caso aquela cançãozinha “No fundo de minha alma ecoa...” –, convém acrescentar, pois, que as referidas relações haviam feito grandes progressos durante o seu retiro. A imagem de Mme. Chauchat pairara diante dos olhos do jovem, quando, acordado de madrugada, contemplara o quarto que lentamente se delineava, ou quando, de tardezinha, fixara o olhar no crepúsculo cada vez mais denso – no próprio momento em que Settembrini entrara ali, acendendo subitamente a luz, flutuara essa imagem à sua frente com a mais absoluta nitidez, e fora por isso que Hans Castorp corara ao ver o humanista. Durante as diversas horas do dia subdividido, os pensamentos do enfermo haviam girado em torno da boca de Mme. Chauchat, das maçãs de seu rosto, de seus olhos, cuja cor, forma e posição lhe laceravam a alma, de suas costas lânguidas, da vértebra da nuca, que ressaltava no decote da blusa, dos braços aureolados pela finíssima gaze – e se silenciamos sobre o fato de ele se ter servido desse meio para fazer as horas passar tão depressa, foi porque participamos, simpaticamente, do desassossego de consciência que assomava em meio à assustadora felicidade causada por essas imagens e visões. Sim, existiam mesclados com ela o susto, o abalo psíquico, a esperança que se perdia no infinito, no vago, na mera aventura, existiam alegria e medo, um medo indefinível, mas que, às vezes, comprimia o coração do jovem – o coração no sentido próprio e fisiológico –, fazendo com que ele levasse uma das mãos à altura desse órgão e a outra à testa, qual uma viseira por cima dos olhos, e murmurasse:

– Deus meu!

     Pois, por trás da fronte havia pensamentos ou semi-pensamentos, aos quais as ditas imagens e visões deviam, na realidade, sua excessiva doçura, e que se referiam à negligência e à desconsideração de Mme. Chauchat, à sua situação de enferma, ao relevo e à acentuação que seu corpo recebia em virtude da doença, à corporificação de todo o seu ser, igualmente produzida pela enfermidade. E Hans Castorp, por decisão do médico, ia daí em diante participar desse efeito corporificador. Compreendia, por trás de sua fronte, a liberdade aventurosa com que Mme. Chauchat, ao voltar-se e sorrir para ele, ignorava o fato de eles não terem sido apresentados um ao outro, segundo as conveniências sociais, como se ambos não fossem seres sociais e não sentissem necessidade de se falar... Era precisamente isso que o assustava, que o apavorava da mesma forma como naquele instante quando, no gabinete de consultas, tirara os olhos do torso de Joachim e buscara os do primo; mas então foram a compaixão e a solicitude que lhe haviam causado esse susto, ao passo que agora experimentava emoções muito diferentes. 
     Assim, a vida do Berghof, tão confortável e tão bem regulamentada, recobrara o seu curso monótono, em seus estreitos limites. Hans Castorp, à espera da radiografia, continuava compartilhando-a com o bom Joachim e fazendo, hora por hora, as mesmas coisas que o primo, cuja vizinhança poderia ser considerada favorável ao nosso herói. Pois, embora se tratasse apenas de uma afinidade de enfermos, havia nela uma boa parte de honradez militar; uma honradez, na verdade, que despercebidamente já estava a ponto de achar satisfação no serviço representado pelo tratamento, de modo que esse serviço se tornava, por assim dizer, um sucedâneo do cumprimento do dever lá de baixo, e uma profissão substituta. Hans Castorp não era tão estúpido que não notasse claramente essa evolução. Mas sentia muito bem o efeito refreador que ela exercia sobre sua mentalidade de civil. Talvez fosse até essa vizinhança – o exemplo que dava e o controle que exercia – o que o livrava de passos imprudentes e de empresas precipitadas. Não lhe escapava o quanto o correto Joachim sofria por causa de determinado perfume de flor de laranjeira que o envolvia diariamente, e cuja atmosfera abrangia um par de olhos castanhos, redondinhos, um pequeno rubi, muita alegria risonha, pouco justificada, e uns seios exteriormente bem-formados. E a preocupação da honra e da razão, que fazia com que Joachim temesse e evitasse a influência dessa atmosfera, comovia Hans Castorp, impunha-lhe certa disciplina e certa ordem, e impedia-o, por assim dizer, de pedir à mulher de olhos estreitos que “lhe emprestasse um lápis”. Sem o corretivo dessa vizinhança – assim o indica a experiência – talvez se houvesse disposto a fazer o contrário.
     Joachim nunca falava da risonha Marusja, e esse fato proibia a Hans Castorp falar de Clávdia Chauchat na presença dele. Achava compensação à mesa, trocando secretamente opiniões com a professora sentada à sua direita; esforçava-se por corar as faces da solteirona, mediante algumas piadas a respeito do seu fraco pela graciosa enferma, e ao fazê-lo imitava aquela atitude com que o velho Castorp apoiava dignamente o queixo no nó da gravata. Insistia também com ela para que o inteirasse de novos e interessantes pormenores relativos à situação particular de Mme. Chauchat, à sua origem, ao seu marido, à sua idade e ao caráter da sua doença. Queria saber se ela tinha filhos. Não, senhor, não tinha. Que faria com filhos uma mulher como essa? Provavelmente estava proibida de tê-los, e por outro lado, que espécie de filhos teria? Hans Castorp teve que lhe dar razão. Opinou com uma objetividade forçada que agora já era um pouco tarde. Às vezes, o perfil de Mme. Chauchat lhe parecia um pouco rígido. Já teria ela passado dos trinta anos? A Srta. Engelhart protestou violentamente. Clávdia, trinta anos? Quando muito, vinte e oito. E no que se referia a seu perfil, como podia o vizinho dizer uma coisa dessas? O perfil de Clávdia era de uma delicadeza e de uma suavidade puramente juvenis, se bem que fosse um perfil interessante e não o de qualquer pequena sadia. E para castigá-lo, a Srta. Engelhart acrescentou sem transição que Mme. Chauchat recebia freqüentemente visitas de senhores, em particular de um patrício dela que morava em Davos-Platz e entrava à tarde no quarto dela. 
     Essas palavras acertaram no alvo. O rosto de Hans Castorp crispou-se apesar de todo o seu esforço, e também era forçada a maneira como proferiu as frases “Imaginem” e “Vejam só”, para passar por cima da novidade. Incapaz de dar pouca importância à existência desse compatriota, como fingira no começo, voltou a falar dele sem cessar, de lábios trêmulos. Era um homem moço?

– Moço e bem-apessoado, segundo ouvi dizer – respondeu a professora. – Não tive ocasião de julgar com meus próprios olhos. 
– Doente? 
– Quando muito, ligeiramente. 
– Tomara –disse Hans Castorp sarcasticamente – que ele mostre um pouco mais da roupa-branca do que os seus patrícios da mesa dos “russos ordinários”. – E a Srta. Engelhart, ainda para castigá-lo, respondeu que podia garantir o contrário. Hans Castorp, terminando por admitir que esse era um assunto que merecia exame cuidadoso, encarregou-a seriamente de se informar sobre aquele compatriota que com tanta frequência visitava Mme. Chauchat. Mas, ao invés de trazer notícias a respeito desse ponto, ela comunicou-lhe alguns dias após um fato completamente diverso. 
 
     Havia a Srta. Engelhart descoberto que alguém pintava Cláudia Chauchat, que ela se deixava retratar, e perguntou a Hans Castorp se ele sabia. Podia estar certo de que a notícia procedia de fonte fidedigna. Desde algum tempo já, Mme. Chauchat posava no próprio Berghof, e quem era que lhe fazia o retrato? O conselheiro áulico! O Dr. Behrens recebia-a, para esse fim, quase diariamente no seu apartamento particular.
     Essa novidade emocionou Hans Castorp ainda mais que as anteriores. Daí por diante passou a fazer a seu respeito uma porção de pilhérias forçadas. Ora, ninguém ignorava que o doutor pintava a óleo. Que queria a professora? Não era coisa proibida, e todo mundo podia fazê-lo. E isso se passava nos aposentos do viúvo? Era de esperar que, pelo menos, a Srta. von Mylendonk assistisse às sessões.

– Ela não tem tempo para isso. 
– Mas o Behrens não deveria ter mais tempo que a Superiora – ponderou Hans Castorp com severidade. Essa observação soava definitiva, mas ele estava longe de abandonar o assunto. Fez toda uma série de perguntas, para saber pormenores acerca do retrato. Quis saber-lhe as dimensões, se era de meio corpo ou de corpo inteiro. A que horas posava Mme. Chauchat? Também nesse ponto a Srta. Engelhart mostrou-se incapaz de lhe oferecer outras particularidades e pediu-lhe que esperasse com paciência os resultados das investigações ulteriores. 

     Depois de se ter inteirado dessa notícia, Hans Castorp teve 37,7. Muito mais do que as visitas que Mme. Chauchat recebia, atormentavam-no e inquietavam-no as que ela fazia. A própria existência particular e pessoal de Mme. Chauchat, independentemente do seu conteúdo, já começara a causar-lhe sofrimento e desassossego, e quanto não se intensificariam essas sensações no momento em que ficasse sabendo de circunstâncias duvidosas relacionadas com esse conteúdo? Ainda que parecesse perfeitamente possível que as relações entre o visitante russo e a sua compatriota fossem de natureza banal e inocente, Hans Castorp sentia-se desde algum tempo inclinado a considerar a banalidade e a inocência como “lero-lero”. E tampouco podia decidir-se a formar uma opinião diferente quanto à pintura a óleo como base de relação entre um viúvo de vocabulário robusto e uma moça de olhos rasgados e andar felino. O gosto que o médico manifestara na escolha do seu modelo correspondia por demais ao seu próprio para que pudesse acreditar no caráter desinteressado da relação, e a recordação das faces azuladas e dos olhos proeminentes, estriados de vermelho, do conselheiro áulico, nada contribuía para diminuir o seu ceticismo.
     Um fato que Hans Castorp observou nesses dias, casualmente e por conta própria, exerceu sobre ele um efeito diferente, posto que novamente se tratasse de uma confirmação do seu gosto. À mesa colocada transversalmente à da Srª. Salomon e do colegial voraz de óculos, à esquerda da mesa dos primos e nas proximidades da porta lateral, havia um enfermo natural de Mannheim, como Hans Castorp ouvira dizer. Era um moço de trinta anos mais ou menos, com cabelos ralos e dentadura cariada, e que falava acanhadamente, o mesmo que de vez em quando tocava piano durante a reunião noturna, e quase sempre a marcha nupcial do Sonho de uma noite de verão. Diziam que era muito devoto – espírito que, por motivos óbvios, se encontrava frequentemente ali em cima. Hans Castorp soubera também que o moço assistia todos os domingos ao serviço religioso em Davos-Platz e lia durante o repouso livros edificantes, com um cálice ou um ramo de palmeira na capa. E esse rapaz – foi o que Hans Castorp notou um belo dia – dirigia seus olhares ao mesmo ponto que ele próprio; cravava-os na pessoa flexível de Mme. Chauchat, e isso de um modo entre tímido e indiscreto que tocava as raias do canino. Hans Castorp, após ter observado essa atitude pela primeira vez, não pôde deixar de verificá-la com muita frequência. Via o moço pela noite, na sala de jogo, entre os pensionistas, melancólico e absorto pelo aspecto da mulher formosa, apesar de contaminada, que se achava sentada ali, no sofá do pequeno salão, a conversar com Tamara (assim se chamava a moça extravagante de cabelos lanosos), com o Dr. Blumenkohl e com os cavalheiros de peito para dentro e ombros caídos da sua mesa. Via-o voltar-se, ir à toa de cá para lá, e virar de novo a cabeça lentamente por cima do ombro, em direção a Mme. Chauchat, olhando-a de esguelha, com uma contração lamentável do lábio superior. Via-o empalidecer e baixar os olhos, que imediatamente depois levantava outra vez, sempre que se cerrava a porta envidraçada e Mme. Chauchat deslizava até seu lugar. E observou diversas vezes como o coitado se plantava, após a refeição, entre a saída e a mesa dos “russos distintos”, para deixar que Mme. Chauchat passasse bem perto dele e para devorar, com os olhos cheios de tristeza até o fundo da alma, a mulher que nem dava pela sua presença.
     Também essa descoberta impressionou consideravelmente o jovem Hans Castorp, embora a mísera indiscrição do rapaz de Mannheim não o pudesse inquietar da mesma forma como as relações particulares entre Clávdia Chauchat e o Dr. Behrens, esse homem que lhe era tão claramente superior em anos, em personalidade e na posição que ocupava na vida. Clávdia absolutamente não se preocupava com o moço de Mannheim. Se fosse diferente, o fato não teria escapado à atenção aguçada de Hans Castorp. Não era, portanto, a pontada antipática do ciúme que ele sentia no coração. Mas o jovem experimentava todas as sensações que costuma experimentar um homem ébrio e apaixonado quando descobre no mundo exterior sua própria imagem, sentimento que formam a estranha mescla de repugnância e solidariedade. É impossível analisar e estudar tudo isso, se é que desejamos levar avante a nossa narrativa. Seja como for, aquilo que a observação do moço de Mannheim dava a pensar ao pobre Hans Castorp era muito forte para o seu estado de alma.
     Assim se passaram os oito dias até o da radioscopia de Hans Castorp. Ele não soubera que este seria o prazo, mas quando, certa manhã, na hora do café, a Superiora – ela outra vez tinha um terçol, que não podia ser o mesmo; parecia que esse mal inofensivo, mas desfigurador, tinha origem na sua constituição – deu-lhe ordem de se apresentar à tarde no laboratório, haviam decorrido precisamente oito dias. Hans Castorp devia comparecer em companhia do primo, meia hora antes do chá, pois ao mesmo tempo se tiraria um novo retrato do interior de Joachim, visto a última radiografia dele ter sido tirada havia muito tempo.
     Cortaram, pois, nesse dia, uns trinta minutos do repouso principal e desceram às três e meia em ponto pela escadaria de pedra até o porão fictício. Lado a lado, estavam sentados na pequena sala de espera que separava o gabinete de consultas do laboratório de radioscopia. Joachim, para quem essas coisas não representavam nada de novo, parecia completamente calmo; Hans Castorp, porém, achava-se numa expectativa um tanto febril, já que, até esse momento, nunca haviam lançado olhares à vida interior do seu organismo. Não estavam sós. Quando entraram, já se encontravam na peça alguns pensionistas, com revistas surradas sobre os joelhos, e que esperavam como eles; havia lá um jovem gigante sueco, que na sala de refeições tinha o seu lugar à mesa de Settembrini, e do qual se dizia que, na época da sua chegada, em abril, estivera tão doente que haviam hesitado em admiti-lo; desde então, porém, engordara trinta e seis quilos e estava a ponto de receber alta como totalmente curado; além dele, estava lá uma senhora da mesa dos “russos ordinários”, uma mãe de mísero aspecto, com seu filho ainda mais mísero, um garoto feio e narigudo de nome Sacha. Essas pessoas esperavam havia mais tempo do que os primos. Evidentemente, entrariam antes deles. Decerto se produzira algum atraso no gabinete de radioscopia, e disso resultaria chá frio para os primos.
     No gabinete estavam ocupados. Ouvia-se a voz do Dr. Behrens, que dava ordens. Já haviam passado as três e meia, quando a porta foi aberta – quem a abriu foi um assistente técnico que trabalhava nessa seção. Mandaram entrar o gigante sueco, aquele felizardo. Sem dúvida, seu antecessor fora-se por outra porta. Desse momento em diante, as coisas desenrolaram-se mais depressa. Ao cabo de dez minutos já se ouviam os vigorosos passos do escandinavo completamente curado, essa publicidade ambulante do lugar e do sanatório, que se afastava pelo corredor. Foi, então, recebida a mãe russa com Sacha. Mais uma vez, como por ocasião da entrada do sueco, notou Hans Castorp que na sala de radioscopia reinava penumbra, isto é, uma meia-luz artificial, exatamente como do outro lado, no gabinete analítico do Dr. Krokowski. As janelas estavam cobertas de cortinas; a luz do dia estava excluída, e luziam apenas algumas lâmpadas elétricas. Enquanto eram introduzidos Sacha e sua mãe e Hans Castorp os acompanhava com os olhos, descerrou-se, nesse preciso momento, a porta do corredor, e o enfermo seguinte entrou na sala de espera. Chegava muito cedo, em vista do atraso dos exames. Era Mme. Chauchat.
     Era mesmo Clávdia Chauchat que, de repente, se achava na exígua peça. Hans Castorp, de olhos arregalados, reconheceu-a, e sentiu perfeitamente como o sangue lhe fugia do rosto e o maxilar inferior se lhe afrouxava, a ponto de forçá-lo a abrir a boca. A entrada de Clávdia efetuara-se de modo despercebido, inopinado, e de chofre compartilhava ela com os primos aquele recinto, onde um segundo antes não estivera ainda. Joachim lançou um olhar rápido para Hans Castorp, e logo após não somente baixou os olhos, mas tornou a tirar da mesa a revista ilustrada que depusera ali pouco antes, e escondeu o rosto atrás das folhas desdobradas. Hans Castorp não teve bastante energia para fazer o mesmo. Depois de empalidecer, corou violentamente, e o coração pulsava-lhe descompassado.

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Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
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“Deus meu, eu vejo!” (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.