quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: A bolsa (01)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



A bolsa

INTRODUÇÃO

     A bolsa (em francês, La Bourse) começa ainda nesse ambiente artístico de Paris onde Balzac nos introduziu em Ao “Chat-qui-pelote”; mas depressa nos faz passar do ateliê do pintor Hipólito Schinner ao apartamento de suas vizinhas, que será o cenário de todo o enredo. Cenário reproduzido, aliás, com todas as minúcias, que até se poderiam achar excessivas se o autor não tomasse o cuidado de o descrever através da visão justamente de um pintor; de olhos acostumados a distinguir os pormenores, este, logo em sua primeira visita, os percebe e avalia melhor do que o faria qualquer outro observador, reconstituindo pelo conjunto deles a essência latente da vida de suas vizinhas, isto é, a pobreza escondida.
     Toda essa introdução é urdida com extrema habilidade; as minúcias da descrição, como o relato das impressões do pintor, preparam uma atmosfera de mistério que chega ao clímax com o episódio da bolsa. Fareja-se um segredo, aliás propositadamente sugerido pelo autor quando diz: “Nenhum pintor de costumes se animou, talvez por pudor, a nos iniciar na intimidade de certas existências parisienses, no segredo dessas moradias de onde saem tão frescas, tão elegantes toilettes, mulheres tão brilhantes que, exteriormente ricas, deixam em tudo os sinais de uma fortuna equívoca”. Essa expectativa, porém, fica insatisfeita; o happy end um pouco forçado de que Balzac se socorre não fornece resposta a todas as perguntas que ele mesmo formulou ou insinuou.
     Poder-se-ia notar também que o enxerto da novela no conjunto de A comédia humana não se opera com a mesma perfeição que na maioria das obras. Só ao chegar ao fim é que o autor parece ter se lembrado de que não explicara satisfatoriamente a ligação que existe entre duas das personagens; daí, nas últimas frases, um esclarecimento precipitado, que antes serve para desorientar o leitor, desviando-lhe a atenção do desfecho da própria novela. O trabalho do alinhavo é, aqui, por demais visível.

Paulo Rónai 



a SOFKA[1]

Não notou, senhorita, que ao colocarem duas figuras em adoração ao lado de uma bela santa, os pintores ou escultores da Idade Média sempre lhes davam uma semelhança filial? Ao ver seu nome entre os que me são caros e sob cuja proteção eu ponho minhas obras, lembre-se desta comovente harmonia, e aqui encontrará menos uma homenagem do que a expressão do afeto fraternal que lhe consagra

seu servidor
Balzac 


     Existe para as almas, facilmente expansivas, uma hora deliciosa que sobrevém no instante indeciso, em que ainda não é noite, mas em que já não é dia; a penumbra crepuscular projeta suas tintas imprecisas, ou seus estranhos reflexos, sobre todos os objetos, favorecendo um devaneio que se combina vagamente com os efeitos da luz e da sombra. O silêncio, que quase sempre reina nesse momento, torna-o mais particularmente caro aos artistas que se concentram, se colocam a alguns passos de suas obras, nas quais não podem mais trabalhar e as julgam, embriagando-se com o assunto cujo sentido íntimo se revela então aos olhos interiores do gênio. Aquele que não permaneceu pensativo, junto a um amigo, durante esse momento de sonhos poéticos, dificilmente compreenderá seus indizíveis benefícios. Graças ao claro-escuro, os ardis materiais, empregados pela arte, a fim de dar a impressão de realidade, desaparecem completamente. Se se trata de um quadro, as personagens que ele representa parecem falar e caminhar; a sombra torna-se sombra, e o dia, dia, a carne adquire vida, os olhos se movem, o sangue circula nas veias, e os estofos cintilam. A imaginação contribui para a realidade de cada detalhe e nada mais vê a não ser a beleza da obra. É a hora em que a ilusão reina despoticamente; talvez se erga com a noite! Não é a ilusão, para o pensamento, uma espécie de noite que povoamos de sonhos? A ilusão abre então as asas, transportando a alma para o mundo da fantasia, mundo fértil em caprichos voluptuosos, no qual o artista esquece o mundo positivo, o dia anterior, o dia seguinte, o futuro, tudo, até mesmo suas misérias, tanto as boas como as más.
     Nessa hora de magia, um jovem pintor, homem de talento, e que na arte nada mais via do que a própria arte, estava trepado numa escada dupla que lhe servia para pintar uma grande e alta tela, quase terminada. Nessa posição, criticando-se, admirando-se, de boa-fé, vogando na corrente de seus pensamentos, ele mergulhava numa dessas meditações que encantam a alma, ampliando-a, acariciando-a e consolando-a. Seu devaneio durou sem dúvida muito tempo. Caiu a noite. Ou fosse porque ele quisesse descer da escada, ou porque tivesse feito um movimento imprudente, por julgar já estar no chão — o acontecimento não lhe permitiu ter uma lembrança exata das causas do seu acidente —, caiu, batendo com a cabeça numa banqueta, perdeu os sentidos e ficou imóvel durante um lapso de tempo, cuja duração ignorou. Uma voz doce tirou-o da espécie de entorpecimento no qual se achava mergulhado. Quando abriu os olhos, uma luz intensa fez com que rapidamente os tornasse a fechar; mas, através do véu que lhe embotava os sentidos, ouviu o murmúrio de duas mulheres e sentiu duas mãos moças, tímidas, entre as quais sua cabeça repousava. Não tardou em voltar a si e pôde distinguir, ao clarão de uma dessas velhas lâmpadas chamadas de dupla corrente de ar, a mais deliciosa cabeça de moça que jamais vira, uma dessas cabeças que passam muitas vezes por um capricho do pincel, mas que, de súbito, materializou para ele as teorias desse belo ideal que cada artista imagina para si mesmo e do qual procede o seu talento. O semblante da desconhecida pertencia, digamos assim, ao tipo fino e delicado da escola de Proudhon e possuía também aquela poesia que Girodet [2] dava às suas figuras fantásticas. A suavidade juvenil das têmporas, a regularidade das sobrancelhas, a pureza das linhas, a virgindade fortemente impressa em todos os traços daquela fisionomia faziam da moça uma criatura perfeita. O talhe era flexível e delgado, as formas eram delicadas. Suas vestes, conquanto simples e asseadas, não revelavam nem fortuna nem miséria. Ao voltar a si, o pintor exprimiu sua admiração com um olhar de surpresa e balbuciou agradecimentos confusos. Sentiu na testa um lenço e reconheceu, não obstante o olor particular dos ateliês, o cheiro forte do éter, que sem dúvida fora usado para o tirar de seu desmaio. Viu, finalmente, uma mulher velha, parecida com as marquesas do Antigo Regime, a qual segurava a lâmpada, dando conselhos à jovem desconhecida.

— Senhor — respondeu a moça, a uma das perguntas feitas pelo pintor que ainda se achava atordoado pela queda —, minha mãe e eu ouvimos o barulho causado pelo seu corpo ao cair no chão e julgamos ter escutado um gemido. O silêncio que se seguiu ao tombo assustou-nos, e subimos apressadamente. Como achássemos a chave na porta, tivemos a feliz ideia de entrar e o vimos estendido no chão, sem movimento. Minha mãe foi buscar o necessário para fazer uma compressa e reanimá-lo. O senhor está ferido na testa, aí, sente?

— Sim, agora sim — disse ele.

— Oh! Isso não será nada — disse a velha senhora. — Por felicidade sua cabeça bateu nesse manequim. 

— Sinto-me muitíssimo melhor — murmurou o pintor —, de nada mais preciso além de um carro para regressar a casa. A porteira irá buscar um. 

     Quis renovar os agradecimentos às duas desconhecidas, mas, a cada frase, a velha senhora o interrompia dizendo: 

— Amanhã, senhor, não se esqueça de pôr umas sanguessugas ou de se fazer sangrar, beba algumas taças de vulnerário e tome cuidado consigo, porque as quedas são perigosas. 

     A moça olhava de soslaio para o pintor e para os quadros do ateliê. Sua atitude e seus olhares revelavam uma decência perfeita; sua curiosidade assemelhava-se à distração, e seus olhos pareciam exprimir esse interesse que as mulheres manifestam, com graciosa espontaneidade, por tudo quanto é desgraça em nós. As duas desconhecidas pareciam esquecer as obras do pintor, diante o sofrimento do artista. Depois que ele as tranquilizou sobre o seu estado, elas saíram examinando-o com uma solicitude igualmente despida de ênfase e de familiaridade, sem lhe fazer perguntas indiscretas nem tentar inspirar-lhe o desejo de conhecê-las. Seus atos tiveram um cunho de fina naturalidade e bom gosto. Suas maneiras nobres e simples causaram, a princípio, pouco efeito no pintor, porém mais tarde, quando relembrou todas as circunstâncias do acontecimento, ficou profundamente impressionado. Ao chegarem ao andar inferior ao do ateliê, a velha senhora exclamou suavemente. 

— Adelaide, deixaste a porta aberta.

— Foi para me socorrer — respondeu o pintor com um sorriso de gratidão.

— Mamãe, a senhora desceu faz pouco — replicou a moça corando.

— Quer que o acompanhemos até lá embaixo? — perguntou a mãe ao pintor. — A escada é escura.

— Agradeço-lhe, minha senhora, já me sinto melhor. 

— Agarre-se ao corrimão.

     As duas mulheres ficaram no patamar para iluminar o caminho ao jovem, enquanto ouviam o ruído de seus passos.

continua pág 391...
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.

(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843

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Leia também:
"Chat-Qui-Pelote"
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (57)
A bolsa
Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: A bolsa (01)
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[1] A Sofka da presente dedicatória é uma bela russa da alta sociedade parisiense, Sophie Koslowsky, filha do príncipe Koslowsky, aventureiro bem conhecido; foi ela que introduziu Balzac em várias famílias aristocráticas. Segundo as curiosíssimas memórias manuscritas, devidas a um contemporâneo, já citadas na introdução de Memórias de duas jovens esposas, cujo autor anônimo relata todos os diz que diz que malévolos que corriam sobre Balzac, as duas figuras em adoração de que se trata no prefácio seriam o próprio romancista e a srta. Sofka; a bela santa seria a condessa Guidoboni-Visconti, anteriormente — segundo o anônimo — amante do príncipe Koslowsky, amiga de sua filha Sophie e, no momento da dedicatória, amante de Balzac.
[2] Pierre Proudhon (1758-1823) e Anne-Louis Girodet de Roussy (1767-1824): pintores famosos da época.

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Estava ali

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Estava ali. A primeira reação de Fermina Daza foi de pânico. Chegou a pensar que não, que ele voltasse outro dia em hora mais apropriada, que não estava em condições de receber visitas, que não havia nada de que falar. Mas se repôs em seguida, e deu ordens para que o fizessem passar à sala e lhe levassem café enquanto ela se arrumava para atendê-lo. Florentino Ariza tinha esperado na porta da rua, ardendo sob o sol infernal das três, mas com as rédeas na mão. Estava preparado para não ser recebido, ainda que mediante desculpas amáveis, e essa certeza o mantinha tranquilo. Mas a decisão do recado o abalou à medula dos ossos, e ao entrar na sombra fresca da sala não teve tempo de pensar no milagre que estava vivendo, porque suas entranhas se encheram de pronto com uma explosão de espuma dolorosa. Sentou-se sem respirar, assediado pela lembrança maldita da cagada de pássaro em sua primeira carta de amor, e permaneceu imóvel na penumbra enquanto passava a primeira rajada de calafrios, resolvido a aceitar nesse momento qualquer desgraça, menos aquele percalço injusto.
     Ele se conhecia bem: apesar de sua prisão de ventre congênita, os intestinos o haviam traído em público três ou quatro vezes em seus muitos anos, e nas três ou quatro vezes tinha tido que se render. Só nessas ocasiões, e em outras de igual urgência, percebia a verdade de uma frase que gostava de repetir de brincadeira: "Não creio em Deus, mas tenho medo dele." Não teve tempo para dúvidas: tratou de rezar qualquer oração de que se lembrasse, mas não encontrou nenhuma. Quando menino, outro menino lhe ensinara umas palavras mágicas para que acertasse num passarinho com uma pedra: "Tino tino se não te acerto te escarabino." Experimentou quando foi ao monte pela primeira vez, com bodoque novo, e o pássaro caiu fulminado. De maneira confusa, achou que uma coisa tinha algo a ver com a outra, e repetiu a fórmula com fervor de oração, mas não surtiu o mesmo efeito. Uma torcedura das tripas feito um eixo de espiral o ergueu do assento, a espuma do seu ventre cada vez mais espessa e dolorida emitiu um queixume, e o deixou coberto de um suor gelado. A criada que trazia o café se assustou com seu semblante de morto. Ele suspirou: "É o calor." Ela abriu a janela, para ser amável, mas o sol da tarde deu em cheio no rosto dele, e foi preciso fechá-la de novo. Ele tinha compreendido que não aguentaria um momento mais, quando apareceu Fermina Daza quase invisível na penumbra, e se assustou ao vê-lo em semelhante estado.

— Pode tirar o paletó — disse.

     Mais que a torcedura mortal, ele sofreria se ela conseguisse ouvir suas tripas borbulhando. Mas conseguiu sobreviver ainda um instante para dizer que não, que só tinha passado para lhe perguntar quando poderia fazer uma visita. Ela, de pé, desconcertada, disse: "Mas já está aqui." E o convidou a passar ao pátio onde faria menos calor. Ele recusou com uma voz que a ela mais pareceu um suspiro de dor.

— Eu lhe imploro que seja amanhã. 

     Ela lembrou que amanhã era quinta-feira, dia da visita infalível de Lucrécia dei Real dei Obispo, mas encontrou uma solução definitiva: "Depois de amanhã às cinco." Florentino Ariza agradeceu, fez uma despedida de emergência com o chapéu, e foi embora sem provar o café. Ela continuou perplexa no centro da sala, sem entender o que acabava de acontecer, até que se extinguiu no fundo da rua a petardaria do automóvel. Florentino Ariza buscou então a posição menos dolorida no assento posterior, fechou os olhos, afrouxou os músculos e se entregou à vontade do corpo. Foi como tornar a nascer. O chofer, que depois de tantos anos a seu serviço já não se espantava com nada, manteve-se impassível. Mas ao abrir a porta diante do portal da casa, disse: 

— Tome cuidado, Seu Floro, que isso parece cólera.

     Mas era o de sempre. Florentino Ariza o agradeceu a Deus na sexta-feira às cinco em ponto, quando a criada o conduziu pela penumbra da sala até o pátio, onde encontrou Fermina Daza junto a uma mesinha posta para duas pessoas. Ofereceu-lhe chá, chocolate ou café. Florentino Ariza pediu café, muito quente e muito forte, e ela disse à criada: "Para mim o de sempre." O de sempre era uma infusão bem carregada de diversas classes de chás orientais, que lhe erguiam o ânimo depois da sesta. Quando ela terminou com o bule, e ele com a cafeteira, ambos já haviam ensaiado e interrompido vários temas, não tanto porque deveras tivessem interesse neles, como para evitar outros que nem ele nem ela ousavam abordar. Estavam ambos intimidados, sem entender o que faziam tão longe da juventude na varanda enxadrezada de uma casa de ninguém que ainda recendia a flores de cemitério. Pela primeira vez achavam-se diante um do outro a tão curta distância e com tempo bastante para se verem com serenidade depois de meio século, e ambos se haviam visto tal como eram: dois anciãos espreitados pela morte, sem nada em comum além da lembrança de um passado efêmero que já não era deles mas de dois jovens desaparecidos que podiam ser seus netos. Ela achou que ele ia convencer-se afinal da irrealidade de seu sonho, o que o redimiria da impertinência. 
     Para evitar silêncios incômodos ou temas indesejáveis, ela fez perguntas óbvias sobre os navios fluviais. Parecia mentira que ele, sendo o dono, só tivesse viajado uma vez, havia muitos anos, quando não tinha nada a ver com a empresa. Ela não sabia o motivo, e ele teria dado a alma para dizer qual. Tampouco ela conhecia o rio. Seu marido compartilhava sua aversão pelos ares andinos, e a disfarçava com argumentos variados: os perigos da altura para o coração, o risco de uma pneumonia, a falsidade dos da terra, as injustiças do centralismo. Por isso conheciam meio mundo mas não conheciam seu país. No momento havia um hidroavião Junkers que ia de povoado em povoado pela bacia do Madalena, como um gafanhoto de alumínio, com dois tripulantes, seis passageiros e os sacos do correio. Florentino Ariza comentou: "É feito um caixão de defunto aéreo." Ela estivera na primeira viagem de balão, e não tinha sofrido nenhum susto, mas mal podia crer que fosse a mesma pessoa que se atrevera a semelhante aventura. Disse: "É diferente." Querendo dizer que ela é que tinha mudado, não as maneiras de viajar.
     Às vezes se surpreendia com o barulho dos aviões. Ela os vira passar muito baixo, fazendo manobras acrobáticas, no centenário da morte do Libertador. Um deles, preto como um urubu enorme, passou roçando os telhados da Mangueira, deixou um pedaço de asa numa árvore vizinha, e ficou pendurado nos fios elétricos. Mas nem mesmo assim Fermina Daza assimilara a existência dos aviões. Nem tivera a curiosidade de ir nos últimos anos até a enseada de Manzanillo, onde amerissavam os hidroaviões depois que as lanchas da guarda enxotavam as canoas de pescadores e os botes de recreio, cada vez mais numerosos. Velha como estava, tinha sido escolhida para receber com um ramo de rosas Charles Lindbergh quando veio em seu voo de boa vontade, e não entendeu como podia se elevar nos ares um homem tão grande, tão louro, tão bonito, dentro de um aparelho que parecia de folha enrugada, e que dois mecânicos empurravam pela cauda para ajudar a subir. A ideia de que uns aviões não muito maiores pudessem carregar oito pessoas não lhe entrava na cabeça. Em compensação, tinha ouvido dizer que os navios fluviais eram uma delícia porque não jogavam como os do mar, mas enfrentavam outros perigos mais graves, como os bancos de areia e os assaltos de bandoleiros.
     Florentino Ariza explicou que tudo isso eram lendas de outros tempos: os navios atuais tinham salão de baile, camarotes amplos e luxuosos como quartos de hotel, com banheiro privado e ventiladores elétricos, e desde a última guerra civil não havia mais assaltos armados. Explicou ainda, com a satisfação de um triunfo pessoal, que estes progressos se deviam antes de mais nada à liberdade de navegação propugnada por ele, que estimulara a concorrência: em vez de uma empresa única, como antes, havia três muito ativas e prósperas. Contudo, o rápido progresso da aviação era um perigo real para todos. Ela procurou consolá-lo: os navios existiriam sempre, porque não eram muitos os loucos dispostos a se meterem num aparelho que parecia ser contra a natureza. Por último, Florentino Ariza falou nos progressos do correio, tanto no transporte como na distribuição, vendo se ela falava nas suas cartas. Não conseguiu.
     Pouco depois, no entanto, a ocasião chegou espontânea. Estavam muito afastados do tema, quando uma criada os interrompeu para entregar a Fermina Daza uma carta recebida nesse instante pelo correio urbano especial, de criação recente, que utilizava o mesmo sistema de distribuição dos telegramas. Ela não encontrou os óculos de ler, o que sempre lhe acontecia. Florentino Ariza conservou a serenidade.

— Não é necessário — disse: — esta carta é minha.

     Era. Ele a escrevera na véspera, num terrível estado de depressão por não ter podido superar a vergonha da primeira visita frustrada. Nela se desculpava pela impertinência de querer visitá-la sem permissão prévia, e desistia dos Propósitos de voltar. Ele a pusera na caixa sem pensar duas vezes, e quando refletiu melhor já era tarde. Mesmo assim, não lhe pareceram necessárias tantas explicações, embora pedisse a Fermina Daza o favor de não ler a carta.

— Claro — disse ela. — No fim das contas, as cartas são de quem as escreve. Não é certo?

     Ele deu um passo firme.

— Sem dúvida — disse. — Por isso são a primeira coisa que se devolve quando há um rompimento.

     Ela passou ao largo da intenção e devolveu a carta, dizendo: "É pena que não possa lê-la porque as outras me serviram muito." Ele respirou fundo, surpreendido de ouvir dela muito mais que esperara, e disse: "Não imagina como fico feliz em saber." Mas ela mudou o assunto, e ele não conseguiu que o retomasse pelo resto da tarde.
     Despediu-se passadas as seis, quando começaram a acender as luzes da casa. Sentia-se mais seguro, mas sem demasiadas ilusões, porque não esquecia o caráter volúvel e as reações imprevistas de Fermina Daza aos vinte anos, e não tinha razões para pensar que ela tivesse mudado. Por isso se atreveu a perguntar com uma humildade sincera se podia voltar outro dia, e a resposta tornou a surpreendê-lo. 

— O senhor volte quando quiser — disse ela. — Quase sempre estou só.

     Quatro dias depois, terça-feira, voltou sem se anunciar, e ela não esperou que servissem o chá para lhe falar de quanto tinham sido úteis suas cartas. Ele disse que não eram cartas num sentido estrito e sim folhas soltas de um livro que teria gostado de escrever. Ela também tinha entendido assim. Tanto assim que pensava em devolvê-las, desde que ele não visse isso como um desdouro, para que lhes desse melhor destino. Continuou falando do bem que lhe haviam feito no duro transe que estava vivendo, e o fazia com tanto entusiasmo, com tanta gratidão, talvez com tanto afeto, que Florentino Ariza ousou dar algo mais que um passo firme: um salto mortal. 

— Antes nós nos tratávamos por você — disse.  

     Era uma palavra proibida: antes. Ela sentiu passar o anjo quimérico do passado, e procurou evitá-lo. Mas ele foi mais fundo: "Em nossas cartas de antes, quero dizer." Ela se aborreceu, e teve que fazer um esforço sério para não demonstrá-lo. Mas ele percebeu, e compreendeu que devia avançar com mais tato, embora o tropeço lhe ensinasse que ela continuava tão arisca como na juventude, mas tinha aprendido a ser arisca com doçura.

— Quero dizer — disse ele — que estas cartas são coisa muito diferente.

— Tudo mudou no mundo — disse ela.

— Eu não — disse ele. — E a senhora?

     Ela ficou com a segunda chávena de chá no meio do caminho e o increpou com uns olhos que eram sobreviventes dos tempos da inclemência.

— Tanto faz — disse. — Acabo de completar setenta e dois anos. 

continua na página 231...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Estava ali
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

Os Bruzundangas - Capítulo X: Força Armada

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.

Capítulo X

Força Armada

     NA Bruzundanga não existe absolutamente força armada. Há, porém, cento e setenta e cinco generais e oitenta e sete almirantes. Além disto, há quatro ou cinco milheiros de oficiais, tanto de terra como de mar, que se ocupam em fazer ofícios nas repartições. O fim principal dessas repartições, no que toca ao Exército, é estudar a mudança de uniformes dos mesmos oficiais. Os grandes costureiros de Paris não têm tanto trabalho em imaginar modas femininas como os militares da Bruzundanga em conceber, de ano em ano, novos fardamentos para eles.
     Quando não lhes é possível de todo mudá-los, reformam o feitio do boné ou do calçado. É assim que já usaram os oficiais do Exército de lá, coturnos, borzeguins, sandálias, sabots e aquilo que nós chamamos aqui — tamancos.
     Entretanto, o Exército da Bruzundanga merece consideração, pois tem boas qualidades que desculpam esses pequenos defeitos. É às vezes abnegado e quase sempre generoso, e eu, que vivi entre os seus oficiais muito tempo, tendo tido muitas questões com eles, posso dizer que jamais os supus tão tolerantes. Foi, no que me toca, um traço que, além de me surpreender, me cativou imensamente. Demais, apesar de toda e qualquer presunção que se lhes possa atribuir, eles têm sempre um sincero respeito pelas manifestações da inteligência, partam elas de onde partirem.
     O mesmo não se pode dizer da Marinha. Ela é estritamente militar e os seus oficiais julgam-se descendentes dos primeiros homens que saíram de Pamir. Não há neles a preocupação de constante mudança de fardamento; mas há a de raça, para que a Bruzundanga não seja envergonhada no estrangeiro possuindo entre os seus oficiais de mar alguns de origem javanesa. Os mestiços de javaneses, entretanto, têm dado grandes inteligências ao país, e muitas.
     A Marinha da Bruzundanga, porém, com muito pouco entra para o inventário intelectual da pátria que ela diz representar no estrangeiro com os seus navios paralíticos.
     Se, de fato, lá houvesse Marinha, podia-se dizer que era mantida pelo povo da Bruzundanga para gáudio e alegria dos países estranhos.
     As principais produções dos arsenais de guerra do país são brinquedos aperfeiçoados; e os da Marinha são muito estimados na nação pela perfeição das redes de pescaria que lhe saem dos estaleiros.
     Uma das curiosidades da Armada daquele país é a indolência tropical dos seus navios que, às vezes, por mero capricho, teimam em não andar.
     Enfim, a força armada da Bruzundanga é a cousa mais inocente deste mundo. Em face dela, todo o pacifismo ou humanitarismo é perfeitamente ridículo.

Os Bruzundangas - Capítulo X: Força Armada
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Nova fase da luta: II - Marcha da divisão auxiliar

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1

Nova fase da luta 


II - 

Marcha da divisão auxiliar

     Os novos expedicionários, abalando de Monte Santo pela estrada recém-aberta, levavam um temor singularmente original: o medo cruelmente ansioso de não depararem mais um só jagunço a combater. Certo iam encontrar tudo liquidado; e sentiam-se escandalosamente traídos pelos acontecimentos.
     Partira em primeiro lugar, a 13 de setembro, a brigada dos corpos policiais do Norte, e tal precedência, oriunda exclusivamente de motivos de ordem administrativa, doera fundo no ânimo dos que compunham a brigada de linha, que marcharia alguns dias mais tarde, com o general Carlos Eugênio.


Medo glorioso

     É que os rebeldes decaíam tanto todos os dias, tão cheios de reveses e repelidos dos melhores pontos de apoio, e tão enleados nas malhas constritoras do cerco, que cada hora passada era para o heroísmo retardatário crudelíssimo diminuir nas probabilidades de compartir as glorificações do triunfo.
     A brigada nortista fez, por isto, um avançar vertiginoso, tropeando pelos caminhos desde o primeiro alvor da antemanhã e estacando somente quando as soalheiras queimosas esgotavam a soldadesca. A de linha alcançou-a, copiando a mesma celeridade, marchando aforradamente, aguilhoada identicamente pelo anelo doido de se medir, ao menos num recontro fugitivo, com aqueles pobres adversários.
     E arrojando-se pelos caminhos, os campeadores — nutridos, garbosos e sãos — lá se iam de abalada demandando a cidadela de barro, havia três meses varrida pelos canhoneios, rota pelos assaltos, devorada pelos incêndios e defendida por uma guarnição única.
     Ao alcançarem o sítio da Suçuarana, seis léguas distante de Canudos, reanimavam-se. Chegavam até lá soturnamente reboando os estampidos da artilharia. Em Caxomongó, se o vento era de feição, distinguiam mesmo o crebro crepitar dos tiroteios...


Caxomongó

     Entretanto nessa alacridade guerreira despontavam ainda inopinados sobressaltos. A luta sertanejo não perdera por completo o traço misterioso, que conservaria até ao fim. Avantajando-se no sertão, os sôfregos lutadores, à medida que se sentiam cada vez mais longe entre as chapadas ermas, passando pelos sítios tristonhos e destruídos — em pleno deserto — tinham entre as fileiras aguerridas irrefreáveis frêmitos de espanto. Fui testemunha de um deles.
     A brigada do coronel Sotero chegara no terceiro dia de marcha, a 15 de setembro, ao sítio de Caxomongó, à entrada da zona perigosa. A escala para quem vinha de Boa Esperança, numa várzea desimpedida rodeada de pinturescas serranias, ou da Suçuarana, à borda de uma ipueira farta, era estéril e lúgubre. O terreno, de grés vermelho e grosseiro, de estratos exageradamente inclinados de 45°, absorvendo logo, em virtude de tal disposição, as raras chuvas que ali tombam, engravecera a dureza da caatinga.
     O sítio, um pouco miserável, surge à borda do rio, e este, um valo de ribanceiras a prumo, altas de três metros, inteiramente entupido de pedras de todos os tamanhos, inteiramente seco, desaparece logo metendo-se entre colinas pouco altas e nuas.
     A tropa ali chegou em plena manhã. Os dois corpos do Pará, disciplinados como os melhores de linha, e o do Amazonas, com o uniforme característico que adotara desde a Bahia: cobertos, oficiais e soldados, de grandes chapéus de palha de carnaúba, desabados, dando-lhes aparência de numeroso bando de mateiros.
     Apesar da hora matinal, como encontrassem água bastante numa cacimba próxima, profundíssima e escura, lembrando a boca de uma mina, acamparam. Era a última escala. No outro dia atingiram o arraial. A paragem morta reanimou-se então, de súbito, cheia de tendas e barracas, armas em sarilhos, e a animação ruidosa de 968 combatentes. Pelas margens do rio alteavam-se ingaranas altas, cruzando-lhe as ramagãs ainda enfolhadas sobre o leito. Armaram-se por ali fora, suspensas , à maneira de redouças oscilantes nos galhos flexíveis, dezenas de redes.
     E o dia derivou tranquilamente.
     Nada havia a temer-se.
     Desceu a noite. Ouvia-se, muito longe, ao norte, soturno e com passado, rolando surdamente no silêncio, o bombardeio de Canudos...
     O inimigo ali constrito não tinha mais alentos para a venturosas algaras nos caminhos. A noite, como o dia , derivaria na mais completa placidez. Mas, dado que aparecessem, os jagunços viriam ao encontro de ainda não satisfeito anelo.


Rebate falso

     E a tropa adormeceu cedo, em paz...para despertar toda, às dez horas da noite, num abalo único.
     Detonara, no flanco esquerdo, um tiro. Uma sentinela do cordão de segurança, que se estendera em torno dos abarracamentos, lobrigara ou julgara lobrigar vulto suspeito deslizando na sombra; e disparara a espingarda. Era, certo, o inimigo anelado. Vinha como viera sobre outros expedicionários, de improviso, num arranco atrevido e subitâneo, e célere.
     Então sobre os que ansiavam tanto a medir-se com ele passou, alucinadoramente, a visão misteriosa da campanha. Avaliaram-na de perto. Dominou para logo os batalhões a hipnose de um espanto indescritível; estridularam cornetas, gritos de alarmas, brados de comandos, inquirições ansiosas; despencaram das redes, caindo sobre o lastro do rio, oficiais surpresos, pulando-lhe às tontas as bordas, esbarrando-se; caindo; precipitando-se — espadas desembainhadas, revólveres erguidos — entre as fileiras que se alinhavam num longo crepitar de estalidos de baionetas armando-se. E desencadeou-se o tumulto. Pelotões e companhias formando-se ao acaso; quadrados precipitadamente feitos como esperando cargas de cavalaria; seções de armas cruzadas prontas a carregarem contra o vácuo; e entre as seções, e os pelotões, e as companhias, parte dos combatentes pervagando, correndo, em busca da formatura embaralhada...
     Transcorridos minutos, os lutadores, presos de uma emoção que jamais imaginaram sentir, aguardavam o assalto. A brigada aparecia como uma longa esteira, revolta e coruscante, na onda luminosa do luar tranquilo e grande que abrangia a natureza adormecida e quieta.
     E fora um rebate falso...


Em busca de meia ração de glória

     Ao amanhecer extinguiram-se os temores. Volviam à impaciência heroica. Prosseguiam rápidos. Rompiam, intrêmulos, por dentro do valo sinuoso do rio Sargento, que desbordava numa enchente repentina de fardas. Galgavam logo adiante o morro desnudo cujas vertentes opostas abruptamente caíam para o vale de Umburanas. E tinham, de surpresa, na frente e embaixo, distante dois quilômetros — Canudos...
     Era um desaforo. Lá estavam as duas igrejas derruídas fronteando-se na praça lendária: a nova sem torres, alteando as paredes mestras arrombadas, fendidas de alto a baixo, um muradal cheio de entulhos; a velha em ruínas e denegrida, sem fachada, erguendo um pedaço do campanário derruído, onde o fantástico sineiro tantas vezes apelidara os fiéis para a oração e para o combate. Em volta a casaria unida. Tinham chegado a tempo. Já agora não lhes faltaria a meia ração de glória disputada. Entravam ovantes pelo acampamento, num belo aprumo de candidatos à História, procurando o pleito sanguinolento e fácil.


Aspecto do acampamento

     O acampamento mudara; perdera a aparência revolta dos primeiros dias. Era como um outro arraial despontando à ilharga de Canudos. Atravessando o leito vazio do Vaza-Barris, os recém-vindos enveredavam por uma sanga flexuosa; topavam, a meio caminho à direita, entranhado em larga reentrância, vasto alpendre coberto de couro — o hospital de sangue; e, a breve trecho, atingiam a tenda do comandante-geral.
     Nesse trajeto viam-se dentro de um novo povoado.
     Havia-se reconstruído o bairro conquistado. De uma e outra banda do caminho, eretas ao viés das encostas, arruadas ou acumuladas pelos vales diminutos, pintalgando, numerosas e esparsas, o tom pardo dos abarracamentos, sucediam-se pequenas casas de aspecto original e festivo — feitas todas de folhagens, tetos e paredes verdes de ramas de juazeiros, de forma singularmente imprópria aos habitadores. Mas eram as únicas ajustáveis ao meio. A canícula abrasante, transmudando as barracas em fornos adurentes, inspirara aquela arquitetura bucólica e primitiva.
     Nada que denunciasse, ao primeiro lance de vistas, a estada de um exército. Tinha-se a impressão de chegar em vilarejo suspeito dos sertões. E encontrando-se os primitivos povoadores — homens à paisana, mal compostos, arrastando espadas e sobraçando espingardas; na maior parte cobertos de chapéus de couro com presilhas; descalços ou calçando alpercatas; e, num ou noutro ponto, mulheres maltrapilhas cosendo tranquilamente às portas ou passando arcadas sob achas de lenha, completava-se a ilusão. O estranho entrava a desconfiar que um engano na rota o havia desnorteado para o meio dos jagunços — até atingir a tenda do general, mais longe. Galgado o cerro em cujo sopé esta se erigia, chegava-se, no topo, à comissão de engenharia, em casebre que não fora destruído; e, metido o olhar pelos resquícios das paredes espessadas de rachões de pedra, via-se de perto, dali cem metros, a praça das igrejas. Estava-se sobre a encosta que tinha à base as paliçadas e palancas do trecho mais perigoso do sítio, centralizado pelo 25.º Batalhão — a "linha negra" — lado por onde entrara mais fundo nos flancos do arraial o assalto de 18 de julho. Volvendo à esquerda, sob o anteparo da linha descontínua de choupanas por ali dispersas, passava-se, dados mais alguns passos, pelo quartel-general da 1.ª coluna. Descia-se a vertente sul seguindo por um releixo coleante, tendo à meia encosta, noutro casebre exíguo, o da segunda. Chegava-se à Repartição do Quartel-Mestre-General e acampamento do Batalhão Paulista, embaixo, numa planura arenosa, que o Vaza-Barris alaga nas enchentes. Continuando a rota, depois de atravessar o leito daquele sob o abrigo do espaldão de pedra, abarreirando-o de uma margem à outra e guarnecido pelo 26.°, alcançava-se a tranqueira extrema do cerco, prolongada pelo 5.° da Bahia distendido na acanaladura funda do rio da Providência. Dali duzentos metros, atentando para a esquerda, contemplava-se, alcandorada no alto, bojando na corcova da fazenda Velha, à maneira de um baluarte pênsil — a trincheira Sete de Setembro.
     Percorrendo desse modo a cercadura dos entrincheiramentos, os novos expedicionários tinham, nítida, a situação, traduzindo-se o exame feito num diluente do otimismo anterior. Aquele segmento do sítio era ainda escasso se o defrontavam com a amplitude do arraial. Este surpreendia-os. Afeitos às proporções exíguas das cidades sertanejas, tolhidas e minúsculas, assombrava-os aquela Babilônia de casebres, avassalando colinas.

continua na página 313...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Quartaaaa sotefasão: Bette Davis Eyes

Kim Carnes


em meio ao seu brilho
uma dança profunda
segredos guardados
hipnotizam
mistérios e vulcões
desejos
emoções
mãos quentes
carinhos provocantes
a brisa do mar
deslizam em meio peito
canta
em cada leve afago
o mundo desperta
esplêndido e largo
olhos de Bette Davis
se derramam em mim
derreto
o tempo é só uma invenção boba
passos de seda
beijo que me encanta
cada olhar seu
é um amor desatado
na tela
na vida
lá está a estrela
ao mesmo tempo, singela
lábios doces
mãos quentes
olhos de Bette Davis






Seu cabelo é Harlowe dourado
Her hair is Harlowe gold
Seus lábios doce surpresa
Her lips sweet surprise
Suas mãos nunca estão frias
Her hands are never cold
Ela tem olhos de Bette Davis
She's got Bette Davis eyes
Ela vai ligar sua música em você
She'll turn her music on you
Você não terá que pensar duas vezes
You won't have to think twice
Ela é pura como a neve de Nova Iorque
She's pure as New York snow
Ela tem olhos de Bette Davis
She got Bette Davis eyes

E ela vai provocar você
And she'll tease you
Ela constrangerá você
She'll unease you
Todo o melhor só para agradá-lo
All the better just to please you
Ela é precoce e ela sabe exatamente
She's precocious and she knows just
O que se faz para um profissional corar
What it takes to make a pro blush
Ela tem Greta Garbo em vista
She got Greta Garbo stand off sighs
Ela tem olhos de Bette Davis
She's got Bette Davis eyes

Ela te deixar leva-la para casa
She'll let you take her home
Isso aguça o apetite dela
It whets her appetite
Ela vai coloca-lo no trono dela
She'll lay you on her throne
Ela tem olhos de Bette Davis
She got Bette Davis eyes
Ela vai dar o tombo você
She'll take a tumble on you
Jogá-lo como se fosse um dado
Roll you like you were dice
Até que você saia azul
Until you come out blue
Ela tem olhos de Bette Davis
She's got Bette Davis eyes

Ela vai expô-lo, quando ela nevar em você
She'll expose you, when she snows you
Fora de seus pés com as migalhas que ela te joga
Off your feet with the crumbs she throws you
Ela é feroz e sabe exatamente exatamente
She's ferocious and she knows just
O que se faz para um profissional corar
What it takes to make a pro blush
Todos os rapazes acham que ela é uma espiã
All the boys think she's a spy
Ela tem olhos de Bette Davis
She's got Bette Davis eyes

E ela vai provocar você
And she'll tease you
Ela constrangerá você
She'll unease you
Todo o melhor só para agradá-lo
All the better just to please you
Ela é precoce, e ela sabe exatamente
She's precocious, and she knows just
O que se faz para um profissional corar
What it takes to make a pro blush

Todos os rapazes acham que ela é uma espiã
All the boys think she's a spy
Ela tem olhos de Bette Davis
She's got Bette Davis eyes



A HISTÓRIA por trás da canção BETTE DAVIS EYES de KIM CARNES






Bette Davis Eyes 
- Jackie DeShannon (1974)






Ruth Elizabeth "Bette" Davis (Lowell, 5 de abril de 1908 — Neuilly-sur-Seine, 6 de outubro de 1989), foi uma atriz estadunidense de cinema, televisão e teatro. Conhecida por sua vontade de interpretar personagens antipáticas, ela era venerada por suas atuações numa variada gama de gêneros cinematográficos; de melodramas policiais, filmes de época e comédias, embora seus maiores sucessos tenham sido romances dramáticos. Ganhadora de dois Oscars, ela foi a primeira atriz a acumular dez indicações.



Bette Davis Eyes




Her hair is Harlowe gold
Her lips sweet surprise
Her hands are never cold
She's got Bette Davis eyes
She'll turn her music on you
You won't have to think twice
She's pure as new york snow
She got Bette Davis eyes

And she'll tease you
She'll unease you
All the better just to please you
She's precocious and she knows just
What it takes to make a pro blush
She got Greta Garbo stand off sighs
She's got Bette Davis eyes

She'll let you take her home
It whets her appetite
She'll lay you on her throne
She got bette davis eyes
She'll take a tumble on you
Roll you like you were dice
Until you come out blue
She's got Bette Davis eyes

She'll expose you, when she snows you
Off your feet with the crumbs she throws you
She's ferocious and she knows just
What it takes to make a pro blush
All the boys think she's a spy
She's got Bette Davis eyes

And she'll tease you
She'll unease you
All the better just to please you
She's precocious, and she knows just
What it takes to make a pro blush
All the boys think she's a spy
She's got Bette Davis eyes

Composição: Donna Weiss / Jackie DeShannon


Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Pois não só recebera as cartas

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
.

continuando...

      Pois não só recebera as cartas como as lera com grande interesse, encontrando nelas sérios motivos de reflexão para continuar vivendo. Estava na mesa, tomando café com a filha, quando recebeu a primeira. Abriu-a por curiosidade ao ver que estava escrita a máquina, e um rubor súbito lhe abrasou o rosto ao reconhecer a inicial da assinatura. Mas se dominou e guardou a carta no bolso do avental. Disse: "São pêsames do governo." A filha se espantou: "Já chegaram todos." Ela não se alterou: "Chegou mais um." Seu propósito era queimar a carta mais tarde, longe das perguntas da filha, mas não resistiu à tentação de dar antes uma olhada. Esperava uma réplica merecida à sua carta de injúrias, que tinha começado a lhe pesar no momento mesmo em que a mandou, mas a partir do cabeçalho senhorial e dos propósitos do primeiro parágrafo compreendeu que alguma coisa tinha mudado no mundo. Ficou tão intrigada que se trancou no quarto para ler a carta com tranquilidade antes de queimá-la, e leu três vezes sem tomar fôlego.
     Eram meditações sobre a vida, o amor, a velhice, a morte: ideias que tinham passado muitas vezes a voejar como pássaros noturnos sobre sua cabeça, mas que se desmanchavam numa esteira de penas quando procurava segurá-las. Ali estavam, nítidas, simples, tal como teria gostado de dizê-las, e uma vez mais lamentou que o marido não estivesse vivo para comentá-las com ele, como costumavam comentar antes de dormir certos acontecimentos do dia. Desse modo se revelava um Florentino Ariza desconhecido, com uma clarividência que não correspondia às missivas febris da juventude nem à sua conduta sombria da vida inteira. Eram antes as palavras do homem que tia Escolástica imaginava inspirado pelo Espírito Santo, e este pensamento tornou a assustá-la como da primeira vez. Em todo caso, o que mais contribuiu para acalmar seu ânimo foi a certeza de que aquela carta de velho sábio não era uma tentativa «e reiterar a impertinência da noite do luto, e sim uma maneira muito nobre de apagar o passado.
     As cartas seguintes acabaram de apaziguá-la. Queimou as de todos os modos, depois de lê-las com um interesse crescente, ainda que elas enquanto as queimava lhe fossem deixando um sedimento de culpa que não conseguia dissipar. Foi por isso que quando começou a recebê-las numeradas encontrou a justificação moral que estava desejando para não destruí-las. Sua intenção inicial, em todo caso, não era conservá-las para si mas esperar uma ocasião de devolvê-las a Florentino Ariza para que não se perdesse algo que a ela parecia de tanta utilidade humana. O mal foi que o tempo passou e as cartas continuaram chegando, uma cada três ou quatro dias de todo o ano, e ela não soube como devolvê-las sem dar a impressão da desfeita que não queria cometer, e sem ter que apresentar razões numa carta que seu orgulho se negava a escrever.
     Aquele primeiro ano tinha bastado para que assumisse a viuvez. A lembrança purificada do marido deixou de ser um tropeço em seus atos cotidianos, em seus pensamentos íntimos, em suas intenções mais simples, e se converteu numa presença vigilante que a guiava sem estorvá-la. Às vezes o encontrava, não como uma aparição mas em carne e osso, onde em verdade lhe fazia falta. Animava-se com a certeza de que ele estava ali, vivo ainda mas sem seus caprichos de homem, sem suas exigências patriarcais, sem a necessidade exaustiva de que ela o amasse com o mesmo ritual de beijos importunos e palavras ternas com que a amava. Agora o entendia melhor que quando estava vivo, entendia a ansiedade de seu amor, a urgência de encontrar nela a segurança que parecia ser o suporte de sua vida pública, e que na realidade nunca teve. Um dia, no cúmulo da exasperação, ela havia gritado: "Você nem repara como sou infeliz." Ele tirou os óculos com um gesto muito seu, sem se alterar, inundou-a com as águas diáfanas de seus olhos pueris, e numa só frase atirou-lhe em cima o peso de sua sapiência insuportável: "Lembre sempre que o mais importante num bom casamento não é a felicidade e sim a estabilidade." Desde suas primeiras solidões de viúva ela compreendeu que a frase não escondia a ameaça mesquinha que lhe havia atribuído em seu tempo, e sim a pedra de toque que a ambos proporcionara tantas horas felizes.
     Em suas tantas viagens pelo mundo, Fermina Daza comprava todas as coisas que lhe chamassem a atenção pela novidade. Ela as desejava devido a um impulso primário que o marido se comprazia em racionalizar, e eram coisas belas e úteis enquanto estavam sem seu meio de origem, nas vitrines de Roma, de Paris, de Londres, ou daquela Nova York trepidante do charleston onde começavam a crescer os arranha-céus, mas não resistiam à prova das valsas de Strauss com torresmos e das batalhas de flores a quarenta graus à sombra. Por isso regressava com meia dúzia de baús verticais, enormes, de metal laqueado, fechaduras e cantoneiras de cobre como féretros de fantasia, dona e senhora das últimas maravilhas do mundo, que no entanto só valiam seu peso em ouro no instante fugaz em que alguém do seu mundo local as via por uma vez. Pois com essa finalidade tinham sido compradas: para que os outros as vissem uma vez. Ela adquirira noção do vazio de sua imagem pública desde muito antes de começar a envelhecer, e com frequência dizia em casa: "Precisamos nos livrar de tantas bugigangas que já não nos deixam onde viver." O doutor Urbino fazia troça dos seus propósitos estéreis, pois sabia que os espaços liberados só iam servir para que ela os enchesse de novo. Mas ela insistia, já que na verdade não havia lugar para uma coisa mais, nem havia em canto algum algo que na realidade servisse para algo, como camisas penduradas em maçanetas de porta ou abrigos de inverno europeu socados nos armários da cozinha. Havia por isso as manhãs em que se levantava de espírito destemido e investia contra os guarda-roupas, esvaziava os baús, desmantelava os desvãos, e armava uma guerra sem quartel aos montões de roupa demasiado vista, chapéus nunca usados por falta de ocasião enquanto ainda estavam na moda, sapatos copiados por artistas da Europa dos que as imperatrizes usavam para ser coroadas, e que aqui eram desprezados pelas senhoritas de alta linhagem por serem idênticos aos que as pretas compravam no mercado para andar em casa. Durante toda a manhã o pátio permanecia em estado de emergência, e dava trabalho respirar na casa devido às lufadas acres das bolas de naftalina. Mas a calma se restabelecia em poucas horas, já que no final ela se compadecia de tanta seda espalhada pelo chão, tantos brocados inúteis e desperdícios de passamanaria, tantas caudas de raposas azuis condenadas à fogueira.

— Isto é pecado queimar — dizia — com tanta gente, que não tem o que comer. 

     Assim, a queima se acalmava, se acalmou sempre, e as coisas se limitavam a trocar de lugar, de seus cantos de privilégio às antigas cavalariças transformadas em depósito de sobras, enquanto os espaços liberados, tal como ele dizia, começavam a encher de novo, a transbordar de coisas que viviam um instante e iam morrer nos guarda-roupas: até a seguinte queima. Ela dizia: "Devia-se inventar o que fazer com as coisas que nem servem para nada nem se pode jogar fora:" Assim era: amedrontava-se com a voracidade dos objetos invadindo os espaços do viver, desalojando os humanos, encurralando-os, até que Fermina Daza os punha onde não se vissem. Pois não era tão ordenada quanto acreditava, mas tinha um método próprio e desesperado de parecer que era: escondia a desordem. No dia em que morreu Juvenal Urbino tiveram que desocupar a metade do gabinete e amontoar as coisas nos quartos para ter um espaço em que velá-lo.
     A passagem da morte pela casa deixou a solução. Uma vez que queimou a roupa do marido, Fermina Daza percebeu que o pulso não lhe havia tremido, e com o mesmo impulso continuou armando a fogueira de tempos em tempos, atirando tudo às chamas, o velho e o novo, sem pensar na inveja dos ricos nem na desforra dos pobres que morriam de fome. Por último, fez cortar pela raiz o pé de manga até não ficar nenhum vestígio da desgraça, e deu o louro vivo de presente ao novo Museu da Cidade. Só então respirou a gosto numa casa como sempre a sonhara: ampla, fácil e sua.
     Ofélia, a filha, lhe fez companhia três meses e voltou a Nova Orleans. O filho trazia os seus a almoçar em família aos domingos, e sempre que podia durante a semana. As amigas mais próximas de Fermina Daza começaram a visitá-la uma vez superada a crise do luto, jogavam baralho diante do quintal pelado, ensaiavam novas receitas de cozinha, punham-na em dia quanto à vida secreta do mundo insaciável que continuava existindo sem ela. Uma das mais assíduas foi Lucrécia dei Real dei Obispo, uma aristocrata à moda antiga com quem sempre manteve boa amizade, e que se aproximou mais dela a partir da morte de Juvenal Urbino. Entrevada de artrite e arrependida de sua vida airada, Lucrécia dei Real não só lhe fazia então a melhor companhia, como a consultava acerca dos projetos cívicos e mundanos que se preparavam na cidade, o que fazia com que ela se sentisse útil por si mesma e não pela sombra protetora do marido. Contudo, nunca como então se identificou tanto com ele, pois lhe tiraram o nome de solteira por que sempre a haviam chamado, e começou a ser a viúva de Urbino.
     Era inconcebível, mas à medida que se aproximava o primeiro aniversário da morte do marido, Fermina Daza se sentia entrando num âmbito de sombra, fresco, silencioso: a floresta do irremediável. Não estava ainda muito consciente, nem o esteve durante vários meses, de quanto a ajudaram a recobrar a paz de espírito as meditações escritas de Florentino Ariza. Foram elas, aplicadas a suas experiências, que lhe permitiram entender sua própria vida, e esperar com serenidade os desígnios da velhice. O encontro na missa de ano foi uma ocasião providencial de dar a entender a Florentino Ariza que ela também, graças às suas cartas de ânimo, estava disposta a apagar o passado.
     Dois dias depois recebeu dele uma carta diferente: escrita a mão, em papel de linho, e com seu nome completo de remetente muito claro no dorso do envelope. Era a mesma letra florida das primeiras cartas, a mesma vontade lírica, mas aplicadas a um parágrafo singelo de gratidão pela deferência do cumprimento na catedral. Fermina Daza continuou pensando nela com as saudades alvoroçadas vários dias depois de lê-la, e com a consciência tão limpa que na quinta-feira seguinte perguntou a Lucrécia dei Real dei Obispo, sem que viesse à baila, se por acaso conhecia Florentino Ariza, o dono dos navios do rio. Lucrécia respondeu que sim: "Parece que é um súcubo perdido." Repetiu a versão corrente de que nunca se soubera de mulher dele, embora fosse tão bom partido, e que tinha um escritório secreto onde levava os meninos que perseguia de noite pelo cais. Fermina Daza tinha escutado essa lenda até onde ia sua memória, e nunca acreditou nela ou lhe deu importância. Mas quando a ouviu repetida com tanta convicção por Lucrécia dei Real dei Obispo, de quem também se dissera numa época que tinha gostos esquisitos, não pôde resistir à premência de pôr as coisas no seu devido lugar. Contou que conhecia Florentino Ariza desde menino. Relembrou que a mãe dele tinha armarinho na Rua das Janelas, e que além disso comprava camisas e lençóis velhos para desfiar e vender como algodão de emergência durante as guerras civis. E concluiu com firmeza: "É gente honesta, feita à força de pulso." Foi tão veemente que Lucrécia deu o dito por não dito: "No fim das contas, de mim também dizem o mesmo." Fermina Daza não teve a curiosidade de perguntar a si mesma por que fazia uma defesa tão apaixonada de um homem que não passara de uma sombra em sua vida. Continuou pensando nele, sobretudo quando chegava o correio sem nova carta. Tinham transcorrido duas semanas de silêncio, quando uma das empregadas a despertou da sesta com um sussurro de alarma.

— Senhora — disse — aí está seu Florentino.

continua na página 227...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Pois não só recebera as cartas
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."