terça-feira, 17 de junho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Noite de Valburga (a)

Thomas Mann


A Montanha Mágica 

Capítulo V

Noite de Valburga 
.
continuando...

     Dentro de poucos dias faria sete meses que o jovem Hans Castorp se achava nessas alturas, ao passo que o primo Joachim, com cinco meses a mais nas costas, já se podia lembrar de quase doze meses de estadia, um ano inteiro, em conta redonda – redonda no sentido cósmico, uma vez que a Terra, desde o dia em que ali o deixara a potente locomotivazinha, dera uma volta completa em torno do Sol e regressara ao ponto onde então se achava. Estava-se na época do carnaval. Aproximavam-se os folguedos da terça-feira, e Hans Castorp indagou dos pensionistas com mais de um ano de permanência que tal era a festa ali em cima. 

– Magnífica! – respondeu Settembrini, a quem os primos haviam encontrado durante o exercício matinal. – Esplêndida! – acrescentou. – É tão alegre como no Prater; o senhor vai ver, engenheiro. “Cá viemos mui lampeiros figurar de cavalheiros...” – citou, e sua boca se pôs a transbordar de ironias, que ele acompanhou de gestos apropriados da cabeça, dos braços e dos ombros: – Que quer o senhor? Na própria maison de santé realizam-se às vezes bailes para os loucos e os idiotas. Pelo menos é o que li em alguma parte. Por que razão não o fariam também aqui? O programa contém as mais diversas danças macabras. Infelizmente, alguns dos convidados do ano passado não poderão estar presentes, uma vez que a festa termina às nove e meia... 
– Isso significa... Ah, sim! Essa é boa! – riu-se Hans Castorp. – O senhor inventa cada coisa! Às nove e meia! Você ouviu esta? É muito cedo para que “certa parte” da assistência do ano passado possa comparecer, acha o Sr. Settembrini. Ah, ah! é fantástico! Trata-se da parte que nesse ínterim disse definitivamente vale à carne, sabe? Você compreendeu o meu trocadilho?...[1] Mas estou mesmo curioso para ver isso – continuou. – Parece-me muito certo que aqui se celebrem as festas quando se apresentam. Assim, as etapas são marcadas, como de costume, por meio de entalhes, para que não haja uma monotonia confusa, que seria muito tediosa. Tivemos o Natal, e notamos o começo do ano novo. E agora vem o carnaval. Depois se aproximará o Domingo de Ramos -será que aqui servem rosquinhas? —, haverá a Semana Santa, a Páscoa e Pentecostes, seis semanas mais tarde. Em seguida será o dia mais longo do ano, o solstício de verão, e logo nos encaminharemos para o outono... 
– Pare! Pare com isso! – exclamou Settembrini, elevando os olhos para o céu e comprimindo as têmporas com as palmas da mão. – Cale-se! Não posso ouvir como o senhor se excede dessa maneira... 
– Perdão, quero dizer, justamente... Bem, parece que o Behrens se decidirá finalmente a me dar aquelas injeções para me desintoxicar. Tenho constantemente temperaturas entre 37,4 e 37,7. Isso não se modifica. Sou e continuo sendo um filho enfermiço da vida. Não sou propriamente um paciente a longo prazo. Radamanto nunca me condenou a uma pena determinada, mas acha que seria absurdo interromper o tratamento prematuramente, depois de tantos meses que estou aqui, e depois de ter, por assim dizer, empatado um tempo considerável. De que serviria fixar um prazo? Isso não significaria nada, pois quando ele diz, por exemplo: “Meio ano, pouco mais ou menos”, trata-se do mínimo, e é preciso que a gente se prepare para mais. Vejo isso no caso de meu primo, cujo fim devia ter chegado ao princípio deste mês – digo “fim” no sentido da alta definitiva —, mas, da última vez, o Behrens lhe acrescentou mais quatro meses até a cura completa. Sim, senhor, e depois que haverá? Haverá o solstício de verão, como eu já disse, sem a mínima intenção de melindrá-lo, e novamente estaremos a caminho do inverno. Ora, por enquanto só teremos o carnaval, e o senhor já sabe que acho muito acertado e bonito que a gente celebre todas as festas na ordem, como estão marcadas no calendário. A Srª. Stöhr me contou que o porteiro tem à venda umas cornetas de brinquedo.
     Era verdade. Desde o café da manhã na terça-feira de carnaval, que chegara depressa, ainda antes que se tivesse tempo de avistá-la de longe – desde as primeiras horas da manhã, ouvia-se na sala de refeições toda espécie de sons produzidos por instrumentos de sopro, que roncavam ou trilavam carregados do melhor humor. Durante o almoço foram jogadas serpentinas da mesa de Gänser, Rasmussen e da Kleefeld; algumas pessoas, como a Marusja dos olhos redondos, já levavam carapuças de papel, igualmente compradas no alojamento do porteiro coxo. Pela noite, porém, desenvolveu-se na sala e nas dependências uma animação festiva, no decorrer da qual... Unicamente o autor sabe por ora o que se passou no decorrer dessa animação festiva do carnaval, devido ao espírito empreendedor de Hans Castorp. Mas não nos deixemos arrastar pelo nosso conhecimento da história a abandonar a circunspeção do nosso estilo. Atribuamos ao tempo a honra que merece e não precipitemos a narrativa. Talvez até retardemos um pouco o curso dos acontecimentos, participando das inibições morais do jovem Hans Castorp, que por tanto tempo haviam atrasado a sua realização.
     À tarde, todo mundo foi a Davos-Platz para olhar o movimento carnavalesco nas ruas. Desfilavam as fantasias, os pierrôs e os arlequins, agitando as matracas. Entre os pedestres e as pessoas fantasiadas que ocupavam os trenós enfeitados e providos de guizos, iam sendo travadas batalhas de confete. Na hora do jantar, os pensionistas reuniram-se sumamente alegres em torno das sete mesas, decididos a manter o entusiasmo público nesse recinto fechado. As carapuças de papel, as cuícas e as cornetas do porteiro tinham sido vendidas com grande rapidez. O Promotor Paravant dera início aos disfarces mais completos, vestindo um quimono de senhora e um rabicho postiço, que, segundo as exclamações vindas de todos os lados, pertencia à esposa do Cônsul-Geral Wurmbrand; por meio de um encrespador, puxara para baixo as pontas do bigode, de maneira que parecia um chinês perfeito. A “administração” não ficava atrás. Cada mesa estava adornada de uma lanterna de papel, que mostrava uma lua multicor e tinha no seu interior uma vela acesa. Settembrini, ao entrar na sala e passar perto da mesa de Hans Castorp, citou uns versos que podiam referir-se a essa iluminação:

– “Perceberá candeios de mil cores. 
 Há lá festa; há de achar-se acompanhado...”

– murmurou com um sorriso fino e seco, enquanto, negligentemente, se dirigia ao seu lugar, onde o receberam com pequenos projéteis, bolinhas cheias de um líquido perfumado, que se quebravam com o choque e molhavam as vítimas. Numa palavra, a animação festiva foi extraordinária desde o início. Estrondeavam gargalhadas; serpentinas dependuradas dos lustres balançavam-se agitadas pelas correntes de ar; no molho dos assados boiavam confetes. A anã não tardou a trazer, com passo apressado, a primeira garrafa de champanha num recipiente de gelo. Misturavam o champanha com vinho da Borgonha, obedecendo a uma sugestão do advogado Einhuf. Pelo fim da refeição, apagaram-se as luzes do teto e a iluminação limitou-se às lanternas, que lançavam sobre o ambiente o claro-escuro variegado de uma noite italiana. A essa altura dos acontecimentos o bom humor era geral, e na mesa de Hans Castorp houve muitos aplausos quando Settembrini entregou um bilhete a Marusja, que tinha o lugar mais próximo dele. A moça, enfeitada de um gorro de jóquei, de papel de seda verde, fez circular o papelzinho, no qual se liam os seguintes escritos a lápis:

“Mas veja que esta noite é a festa das diabruras cá no monte; e eu também sou uma das figuras. Mas vá lá; faltarei contanto que releve a um pobre fogo-fátuo o modo como o leve”. 

     O Dr. Blumenkohl que, a essa época, novamente andava muito mal de saúde, esboçou aquela expressão, ou melhor, aquela contração dos lábios que lhe era peculiar, e murmurou algumas palavras relativas à procedência desses versos. Hans Castorp, por sua vez, achou-se na obrigação de dar uma resposta humorística. Tencionou escrever no bilhete uma réplica, que, na verdade, não poderia ser muito significativa. Remexeu os bolsos em busca de um lápis, mas não o encontrou e tampouco pôde consegui-lo de Joachim ou da professora. Pedindo auxílio, seus olhos estriados de vermelho dirigiram-se para o leste, no canto traseiro da sala, bem à esquerda. Viu-se então como aquela intenção fugaz degenerava em associações de ideias tão longínquas, que Hans Castorp empalideceu, esquecendo-se totalmente de seu intuito primitivo.  
     Havia, além disso, outros motivos para empalidecer. Mme. Chauchat, que tinha o seu lugar ali atrás, engalanara-se por causa do carnaval; trajava um vestido novo, ou pelo menos um vestido que Hans Castorp nunca a vira usar – de uma seda leve e escura, quase preta, que não cambiava senão de vez em quando com um brilho dourado-castanho; o decote, redondo e discreto, qual o de um vestido de garota, mal mostrava o pescoço, a junção das clavículas e, atrás, as vértebras da nuca, um tanto salientes sob os cabelos soltos, em virtude da posição avançada da cabeça; mas os braços de Clávdia estavam desnudos até os ombros, esses braços delgados e todavia cheios, braços frios, provavelmente, e que se destacavam tão brancos da seda escura do vestido, que Hans Castorp, fechando os olhos, murmurou de si para si: – Deus meu! – Nunca antes deparara com esse tipo de vestido. Conhecia vestidos de baile com decotes tais como permitia ou até prescrevia o caráter da festa, decotes muito mais amplos do que este, sem, contudo, produzirem efeito igualmente sensacional. Evidenciou-se, antes de tudo, ter-se enganado redondamente o pobre Hans Castorp, ao supor que o encanto e a insensata sedução desses braços, que só conhecia através de um véu de gaze fina, iam ser menos intensos sem essa auréola sugestiva. Engano! Ilusão fatal! A nudez completa, acentuada e deslumbrante desses magníficos membros de um organismo intoxicado, constituía um espetáculo muito mais emocionante do que a auréola de outrora, uma visão à qual não se podia responder de outra maneira que baixando a cabeça e repetindo, em voz surda: - Deus meu!
     Pouco mais tarde chegou outro bilhete com o seguinte conteúdo:

 “Quem viu jamais melhor sociedade? 
 Tudo moças, perfeitas donzelas! 
 Tudo moços digníssimos delas! 
 Que promessas à posteridade!” 

      Ressoavam aclamações e bravos. Já tinham progredido até o cafezinho, que era servido em pequenos bules de barro pardo; outros tomaram licores, como por exemplo a Srª. Stöhr, que gostava imensamente de bebidas fortes e doces. Os comensais começaram a levantar-se e a circular pela sala. Visitavam-se uns aos outros; trocavam de mesa. Parte dos pensionistas já passara para os salões, enquanto outros, mais sedentários, continuavam a fazer honra à mistura de vinhos. Settembrini chegou então pessoalmente, com a xícara de café na mão e o palito entre os dentes. Sentou-se como visitante à cabeceira da mesa, entre Hans Castorp e a professora. 

– “Montanhas do Harz” – disse. – “Região entre Schierke e Elend.[2]“ Será que lhe prometi demais, engenheiro? “Que feira! Gira-me a cabeça!” Mas espere um pouco, ainda não se esgotou o nosso engenho. Ainda não chegamos ao apogeu; estamos longe do fim. Como se ouve dizer, haverá outros disfarces. Algumas pessoas se retiraram, e isso nos permite esperar muita coisa. O senhor vai ver.

     Com efeito, apareciam novas fantasias. Senhoras vestidas de homem, com os rostos enegrecidos mediante rolhas tisnadas, e que ofereciam um aspecto pouco natural, de opereta, pela opulência das suas formas. Cavalheiros que, por sua vez, se haviam fantasiado de mulher, trajando longos vestidos, em cujas saias tropeçavam, como, por exemplo, o estudante Rasmussen, numa roupa preta, enfeitada de lantejoulas, exibindo um decote cheio de espinhas e abanando-se, pela frente e por trás, com um leque de papel. Apareceu um mendigo, arrastando-se de joelhos dobrados, apoiado numa muleta. Um pensionista transformara roupas de baixo e um chapéu de senhora numa fantasia de pierrô; empoara o rosto de tal maneira que os olhos adquiriam uma expressão estranha, e, por meio de batom, dera à boca um certo relevo de sanguinolência; era o rapazote de unha comprida. Um grego da mesa dos “russos ordinários”, dotado de pernas bonitas, pavoneava-se em ceroulas de malha lilás, com uma golilha de papel e um florete, pretendendo ser um fidalgo espanhol ou um príncipe de conto de fadas, Todas essas fantasias haviam sido improvisadas, a toda a pressa, depois do fim da refeição. A Srª. Stöhr também não pôde permanecer no seu lugar por mais tempo. Sumiu, para logo reaparecer disfarçada de arrumadeira, com a saia e as mangas arregaçadas; tinha as fitas da touca de papel amarradas por baixo do queixo; munida de balde e vassoura, pôs-se a trabalhar, passando o pano molhado sob as mesas, entre as pernas das pessoas sentadas.

“A velha Baubo vem sozinha...”,

citou Settembrini ao vê-la, e não deixou de acrescentar, na sua pronúncia clara e plástica, o verso seguinte. Quando ela ouviu essas palavras, chamou-o de “galo italiano” e mandou-o parar com essas “porcarias”. Em nome da liberdade própria das máscaras, tuteou-o; pois esse tratamento já fora adotado em toda parte durante a refeição. Settembrini esteve a ponto de retrucar, quando uma barulheira e uma onda de gargalhadas, vindas do vestíbulo, o interromperam e atraíram a atenção da sala. 
     Seguidas de pensionistas que saíam dos salões, entraram solenemente duas estranhas figuras, que apenas acabavam de fantasiar-se. Uma vinha em trajes de diaconisa, mas seu hábito preto estava coberto, desde o pescoço até a barra, de faixas brancas, transversais; listras curtas, próximas umas das outras, e longas, mais espaçadas, dispostas à maneira da marcação de um termômetro. Levava um dos indicadores à boca pálida e trazia, na outra mão, uma papeleta de temperatura. O outro mascarado vinha vestido de azul, com os lábios e os sobrolhos pintados de azul, e com manchas azuis no rosto e no pescoço; usava um gorro de lã azul, colocado obliquamente na cabeça, e trajava uma espécie de macacão de alpaca azul, feito de uma só peça, atado nos tornozelos por meio de fitas e com enchimento na parte central do corpo para formar uma enorme barriga. As figuras foram reconhecidas como sendo a Srª. Iltis e o Sr. Albin. Ambos levavam cartazes de papelão, nos quais se podia ler: “A Irmã Muda” e “Joãozinho Azul”. A passo saltitante deram volta à sala.
     Quantos aplausos não receberam! Houve aclamações a não acabar. A Srª. Stöhr, com a vassoura debaixo do braço e com as mãos fincadas nos joelhos, riu-se desmedida e ordinariamente, como lhe permitia o seu papel de arrumadeira. Unicamente Settembrini mostrou se reservado. Seus lábios, sob a bela curva do bigode, comprimiram-se sobremaneira, após um rápido olhar aos dois mascarados, alvo de tantas palmas.
     Entre as pessoas que, formando o cortejo do Azul e da Muda, haviam voltado das dependências à sala de refeições, achava-se também Clávdia Chauchat, em companhia de Tamara, a moça dos cabelos lanosos, e daquele comensal de tórax côncavo, um certo Buligin, que usava smoking. Mme. Chauchat, no seu vestido novo, roçando a mesa de Hans Castorp, passou pela sala em diagonal, até a mesa do jovem Gänser e da Kleefeld, onde estacou, mãos nas costas, conversando e rindo, com os olhos oblíquos, enquanto os seus companheiros continuavam a seguir os fantasmas alegóricos e abandonavam a sala atrás deles. Também Mme. Chauchat enfeitara-se com uma carapuça de carnaval. Não era nem sequer um gorro comprado, mas sim daquele tipo que se faz para crianças, um tricórnio dobrado de papel branco. Usava-o atravessado, o que lhe ficava muito bem. O vestido de seda cambiante entre marrom-escuro e dourado deixava ver os pés e tinha saia godê. Nada mais diremos dos braços. Estavam nus até os ombros.

– “Repara!” – ouviu Hans Castorp a voz do Sr. Settembrini recitar como que de longe, enquanto seus olhares acompanhavam Mme. Chauchat, que, prosseguindo no caminho, se aproximava da porta envidraçada e saía da sala. – “É Lilith.” 
– Que Lilith? – perguntou Hans Castorp.
 
     O literato, gostando da pergunta correspondente ao texto, replicou: 

– “Lilith, a primeira mulher de Adão. Cuidado!...”

     Além deles, somente o Dr. Blumenkohl ainda permanecia à mesa, no seu lugar distante. Os demais companheiros, entre eles Joachim, tinham passado para os salões. Hans Castorp disse: 

– Hoje estás cheio de poesia e de versos. Que Lilith é essa, afinal? Adão casou-se duas vezes? Eu não sabia disso... 
– É a lenda hebraica que o diz. A tal Lilith transformou-se num fantasma noturno, perigoso aos jovens, sobre tudo pelos seus lindos cabelos. 
– Que horror! Um fantasma noturno com lindos cabelos! Isso não te agrada, hein? Então chegas e acendes, por assim dizer, a luz elétrica, para fazer os jovens voltarem ao bom caminho, não é? – disse Hans Castorp, divagando, porque bebera grandes quantidades daquela mistura de vinhos. 
– Escute, engenheiro, deixe disso! – ordenou Settembrini, de cenho carregado. – Sirva-se do tratamento que se emprega no Ocidente entre as pessoas cultas; use a terceira pessoa, por favor! Essa maneira de falar que o senhor está experimentando absolutamente não condiz com a sua pessoa. 
– Mas por que não? É carnaval. É a forma geralmente aceita nesta noite... 
– Sim, senhor, devido a um prazer imoral. O “tu” entre pessoas estranhas, isto é, entre pessoas que normalmente se tratam por “o senhor”, constitui repugnante selvageria, um jogo com o estado primitivo, um jogo silencioso que abomino, porque, no fundo, se dirige contra a civilização e contra a humanidade desenvolvida, e isso de uma forma insolente e despudorada. Eu não tratei o senhor por “tu”. Apenas citei um trecho da obra-prima da sua literatura nacional. Servi-me, portanto, de uma linguagem poética... 
– Eu também! Também eu falo, em certo sentido, poeticamente. É porque o momento me parece próprio para fazê-lo, só por isso! Não digo que me seja natural e fácil tratar-te por “tu”. Pelo contrário, custa-me certo esforço; lenho que me obrigar a isso. Mas faço-o com prazer, faço-o alegremente e de todo o coração... 
– De todo o coração? 
– Sim, de todo o coração. Podes acreditar-me. Já faz tempo que vivemos juntos aqui em cima! Uns sete meses; podes fazer o cálculo. Segundo os conceitos daqui não é grande coisa, mas, quando penso nas ideias que reinam lá embaixo, é tempo considerável. Bem, e esse tempo, nós o passamos um ao lado do outro, porque a vida nos reuniu aqui. Encontramo-nos quase todos os dias e tivemos palestras interessantes, frequentemente sobre assuntos dos quais lá embaixo eu não entenderia patavina. Mas aqui era diferente. Aqui achei-os importantes e pertinentes, de modo que todas as vezes que a gente discutia, prestei muita atenção. Ou melhor: todas as vezes que tu me explicavas as coisas na qualidade de um homo humanus, pois eu, com a minha falta de experiência, pouco sabia contribuir para o tema e apenas me limitava a achar digno de ser ouvido tudo quanto dizias. Graças a ti aprendi e compreendi muita coisa... O que me contaste de Carducci é o de menos, mas as relações que existem entre a república e o belo estilo, ou entre o tempo e o progresso da humanidade – se não houvesse o tempo seria impossível o progresso da humanidade, e o mundo não passaria de um charco estagnado e uma poça pútrida... Que saberia eu de tudo isso, se tu não me tivesses ensinado? Trato-te simplesmente por “tu” e não te dou outro nome. Desculpa-me, mas não sei como te falar de outra forma. Não há jeito. Aí te achas sentado, e chamo-te “tu”, simplesmente; é o quanto basta. Tu não és um homem qualquer que leva um nome, tu és um representante, Sr. Settembrini, um representante, neste lugar e a meu lado. Eis o que és – confirmou Hans Castorp, e com a palma da mão bateu sobre a toalha. – E agora quero agradecer-te – prosseguiu, aproximando a sua taça, cheia de borgonha misturado com champanha, da xícara de café do Sr. Settembrini, para tocá-la em cima da mesa –, agradecer te pelos cuidados que, durante estes sete meses, me devotaste de maneira muito amável; quero agradecer-te porque ajudaste nos seus exercícios e nas suas experiências o calouro que eu era e que se via assaltado por tantas impressões novas; porque procuraste exercer sobre mim uma influência corretiva, totalmente sine pecunia, por meio de historietas ou de forma abstrata. Tenho a sensação nítida de que chegou o momento de expressar a minha gratidão por isso e por tudo, e de pedir-te perdão por ter sido um mau aluno, um “filho enfermiço da vida”, como me chamaste. Quando me disseste isso, fiquei muito comovido, e cada vez que me lembro sinto a mesma emoção. Um filho enfermiço é o que fui sem dúvida também para ti e para a tua veia pedagógica, da qual me falaste logo no primeiro dia. Claro, pois aí temos mais uma dessas relações que tu me mostraste, a que existe entre o humanismo e a pedagogia. Com o tempo, eu descobriria muitas outras relações ainda... Perdoa-me e não guardes de mim recordações desfavoráveis! À tua saúde, Sr. Settembrini, viva! Esvazio a minha taça em homenagem aos teus esforços literários pelo extermínio dos sofrimentos humanos – terminou; e, inclinando-se para trás, sorveu em grandes tragos a mistura de vinhos. A seguir levantou-se, dizendo: – E agora vamos reunir-nos aos outros. 
– Escute, engenheiro, que lhe deu na veneta? – perguntou o italiano, com os olhos cheios de surpresa, e também se pôs de pé. – Isso soa como uma despedida... 
– Não; por que despedida? – respondeu Hans Castorp, esquivo. Esquivou-se não somente nas suas palavras, mas também fisicamente, descrevendo meio círculo com o corpo e avizinhando-se da professora, Srta. Engelhart, que viera buscá-los. No salão de música – anunciou ela – o conselheiro em pessoa estava preparando e distribuindo um ponche de carnaval, que a “administração” oferecia aos pensionistas. Que fossem para lá imediatamente se desejassem beber um copo. E eles se puseram a caminho.
   
continua pág 209...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Noite de Valburga (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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[1] “Vale” é uma palavra latina que significa “adeus”. É usada no final de um texto quando o autor se despede dos leitores. O trocadilho aqui se refere à palavra “carnaval” (Karneval = carne + vale). (N. do E.)
[2] Cenas do Fausto de Goethe. As demais citações de Settembrini são extraídas da mesma obra, particularmente da seção intitulada “Noite de Valburga”. (N. do E.)  

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte I Antissemitismo (2. Os Judeus. O Estado-Nação e o nascimento do antissemitismo: 2.3)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte I 
ANTISSEMITISMO

Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória. 
 Roger Martin du Gard

continuando... 

     2.3 - Os Primeiros Partidos Antissemitas 
          O surgimento simultâneo do antissemitismo como sério fator político na Alemanha, na Áustria e na França nos últimos vinte anos do século XIX foi precedido por uma série de escândalos financeiros e negócios fraudulentos, cuja origem principal era uma superprodução de capital disponível. Na França, a maioria dos membros do Parlamento e um número incrível de altos executivos governamentais estavam tão profundamente envolvidos em negociatas e subornos que a Terceira República jamais viria a recuperar o prestígio que perdeu durante as primeiras décadas de sua existência; na Áustria e na Alemanha, os aristocratas estavam entre os mais comprometidos. Em todos esses três países os judeus participavam dos escândalos, agindo individualmente como intermediários, sem que nenhuma casa judia enriquecesse com as fraudes do Caso Panamá e do Gründungsschwindel.
     Contudo, outro grupo de pessoas, além dos nobres, das autoridades governamentais e dos judeus, estava seriamente envolvido nesses fantásticos investimentos, cujos lucros esperados só eram igualados pelas perdas inacreditáveis. Esse grupo consistia principalmente nas classes médias inferiores, que agora subitamente viravam antissemitas. Haviam sido mais duramente atingidas que qualquer outro grupo: tinham arriscado pequenas economias e estavam permanentemente arruinadas. Sua credulidade tinha razões importantes. A expansão capitalista no cenário nacional tendia cada vez mais a liquidar os pequenos proprietários, para quem era uma questão de vida e morte aumentar rapidamente o pouco que possuíam, já que era demasiado fácil perderem tudo. Começavam a perceber que, se não conseguissem elevar-se até o status da burguesia, poderiam escorregar para o nível do proletariado. Mesmo que décadas de prosperidade geral freassem de modo considerável essa evolução, em nada mudaram a sua tendência. A ansiedade e o temor das classes médias inferiores correspondiam exatamente à previsão de Marx quanto à sua rápida dissolução.
     A classe média inferior, ou pequena burguesia, descendia das associações de artesãos e comerciantes que, durante séculos, se protegeram dos riscos da vida por meio de um sistema fechado, que bania a concorrência e era, em última instância, protegido pelo Estado. Consequentemente, atribuíram seu infortúnio ao sistema que os havia exposto às privações de uma sociedade competitiva e os destituíra de toda proteção especial e dos privilégios concedidos pelas autoridades públicas. Foram, portanto, os primeiros a exigir o "Estado protetor", que os escudasse contra as dificuldades e os mantivesse nas profissões e vocações herdadas. Como uma das principais características do século de livre comércio foi o acesso dos judeus a todas as profissões, era quase natural pensar nos judeus como representantes do sistema competitivo levado ao extremo,[38] mesmo que nada estivesse mais longe da verdade.
     Esse ressentimento, que, aliás, encontra-se em muitos escritores conservadores, foi estimulado quando aqueles que haviam esperado auxílio do governo ou apostado em milagres tiveram de aceitar a ajuda duvidosa dos banqueiros. Para o pequeno lojista, o banqueiro parecia ser o mesmo tipo de explorador que o proprietário da grande empresa industrial era para o trabalhador. Mas, enquanto os trabalhadores europeus, graças à sua experiência e à educação marxista, sabiam que era dupla a função do capitalista — de explorá-los, de um lado, mas, do outro, dar-lhes a oportunidade de produzir —, o pequeno lojista não encontrou quem o esclarecesse a respeito de seu destino social e econômico. Sua situação era pior que a do trabalhador e, baseado em sua experiência, considerava o banqueiro um parasita e usurário, que ele era obrigado a aceitar como sócio silencioso, embora esse banqueiro, ao contrário do industrial, nada tivesse a ver com o seu negócio. Não é difícil compreender por que um homem que usa o seu dinheiro única e diretamente para gerar mais dinheiro pode ser odiado com mais intensidade que o que obtém seu lucro através de um longo e complicado processo de produção. Como naquele tempo ninguém solicitava crédito se pudesse evitá-lo — e os pequenos comerciantes certamente não podiam fugir desse caminho —, os banqueiros pareciam explorar não a mão-de-obra e a capacidade produtiva, mas a infelicidade e a miséria.
     Muitos desses banqueiros eram judeus e, mais importante ainda, a imagem geral do banqueiro tinha traços definitivamente judaicos, por múltiplas razões históricas. Assim, o movimento esquerdista da classe média inferior e toda a propaganda contra o capital bancário tornaram-se antissemitas. Esse aspecto teve pouca importância na Alemanha, já industrializada, mas alcançou profundo significado na França e, em menor escala, na Áustria. Durante algum tempo pareceu que os judeus haviam realmente, pela primeira vez, entrado em conflito direto com outra classe, sem a interferência do Estado. Dentro da estrutura do Estado-nação, na qual a função do governo era mais ou menos definida por sua posição de domínio sobre todas as classes concorrentes, tal conflito poderia até ter constituído um modo viável, se bem que perigoso, de normalizar a posição dos judeus.
     Contudo, a esse elemento sócio-econômico foi logo acrescentado um outro, que, a longo prazo, revelou se mais nefasto. A posição dos judeus como banqueiros não dependia de empréstimos a pessoas necessitadas sem importância, mas, principalmente, da emissão de empréstimos estatais; os pequenos empréstimos eram deixados para os pequenos banqueiros, que desse modo se preparavam para alcançar as carreiras mais promissoras, já seguidas por seus confrades mais ricos e mais honrados. Mas o ressentimento social das classes médias inferiores abrangia todos os judeus e transformou-se num elemento político altamente explosivo, porque a pequena burguesia acreditava que esses judeus tão odiados estavam em vias de adquirir poder político. Não eram eles conhecidos por sua relação com o governo em outros assuntos? Por outro lado, o ódio social e econômico reforçava o argumento político com a violência impulsiva, até então desconhecida.
     Friedrich Engels observou certa vez que os protagonistas do movimento antissemita do seu tempo eram os nobres, e o coro era a ralé ululante da pequena burguesia. Isso se aplica não só à Alemanha, mas também ao socialismo cristão da Áustria e aos adversários de Dreyfus na França. Em todos esses casos, a aristocracia, no último e desesperado esforço, tentou aliar-se às forças conservadoras das igrejas — a Igreja Católica na Áustria e na França, a Igreja Protestante na Alemanha —, sob o pretexto de combater o liberalismo com as armas do cristianismo. A ralé era apenas o meio usado para fortalecer-lhe a posição, para dar-lhe maior ressonância à voz. Obviamente, a nobreza não desejava nem podia organizar a ralé, e a abandonaria logo que atingisse seu objetivo. Mas descobrira que os slogans antissemitas eram altamente eficazes para mobilizar amplas camadas da população.
     Os seguidores do capelão da corte Stoecker não organizaram os primeiros partidos antissemitas da Alemanha. Uma vez demonstrada a atração dos slogans antissemitas, os antissemitas radicais imediatamente se separaram do movimento berlinense de Stoecker, declararam guerra total ao governo, e fundaram partidos cujos representantes no Reichstag [o Parlamento] apoiavam, em todas as questões domésticas importantes, o maior partido oposicionista, o social-democrata, único partido da esquerda de então.[39] Rapidamente abandonaram sua inicial aliança de acomodação com as antigas forças; Boeckel, o primeiro membro antissemita do Parlamento, devia sua cadeira aos votos dos camponeses de Hessen, que ele afirmava defender contra os "Junkers e os judeus", isto é, contra a nobreza a cujo latifúndio os camponeses sucumbiam, e contra os judeus, de cujo crédito dependiam. Embora pequenos, esses primeiros partidos antissemitas logo se distinguiram dos demais partidos. Cada qual tinha a pretensão de ser não um partido entre partidos, mas um partido "acima de todos os partidos". No Estado-nação dividido entre partidos e classes, só o Estado e o governo colocavam-se acima de todos os partidos e classes, outorgando-se o direito de representar a nação como um todo. Os partidos eram reconhecidamente grupos cujos deputados representavam os interesses de seus eleitores. Embora lutassem pelo poder, ficava implícito que cabia ao governo estabelecer o equilíbrio entre os interesses em conflito e entre seus representantes. A pretensão dos partidos antissemitas de estarem "acima de todas as ideias" claramente anunciava sua aspiração de passar a representar toda a nação (da qual seriam excluídos os judeus), de galgar o poder exclusivo, apossar-se da máquina do Estado, substituir o Estado. E, como, por outro lado, continuavam organizados como partidos, ficava também claro que almejavam o poder estatal como partido, de modo que seus eleitores pudessem realmente dominar o país.
     A estrutura política do Estado-nação foi instituída quando nenhum grupo em particular estava mais em posição de exercer o poder político exclusivo, de modo que o governo assumia o verdadeiro domínio político, que nem sempre dependia de fatores apenas sociais e econômicos. Os movimentos revolucionários de esquerda, que lutavam por uma mudança radical das condições sociais, de início jamais visavam diretamente a essa suprema autoridade política. Haviam desafiado o poder da burguesia e a sua influência sobre o Estado, mas, ao mesmo tempo, dispunham-se sempre a aceitar a orientação do governo em assuntos estrangeiros, nos quais estavam em jogo os interesses de uma nação supostamente unificada. Em contraste com essa atitude, os grupos antissemitas preocupavam-se, também desde o início, com assuntos estrangeiros; seu ímpeto revolucionário era dirigido contra o governo em geral e não contra uma classe social, e o que realmente almejavam era destruir o padrão político do Estado-nação por meio de uma organização partidária.
     O fato de um partido pretender colocar-se acima de todos os partidos tinha outras implicações, mais significativas do que o antissemitismo. Se a questão consistisse apenas em desfazer-se dos judeus, a proposta feita por Fritsch num dos primeiros congressos antissemitas — de não criar um novo partido, mas disseminar o antissemitismo até que finalmente todos os partidos existentes fossem hostis aos judeus — teria chegado ao resultado almejado muito mais rapidamente.[40] Acontece que a proposta de Fritsch não encontrou eco, porque o antissemitismo já se transformara, na época, num instrumento para a liquidação não apenas dos judeus, mas também da estrutura política do Estado-nação.
     Não foi por acaso que esse alvo dos partidos antissemitas coincidisse com os primeiros estágios do imperialismo e encontrasse tendências parecidas tanto na Grã-Bretanha, embora não contagiada pelo antissemitismo, quanto nos movimentos antissemitas que, sob vários enfoques nacionalistas, pretendiam unificar, sob pretexto pan-europeu, a ideologia antissemita.[41] Na Alemanha, essas tendências não incorporaram o antissemitismo para se reforçar popularmente, mas se originaram diretamente dele, e os partidos antissemitas precederam (e sobreviveram) à formação de grupos puramente imperialistas, como a Liga Pangermânica, todos proclamando transcenderem a grupos partidários.
     Os movimentos análogos que, porém, se afastavam da demagogia dos partidos antissemitas com o fito de, por apresentarem mais seriedade, alcançar maiores chances de vitória foram aniquilados ou submersos pelo movimento antissemita, o que bem indica a importância política da questão. Os antissemitas estavam convencidos de que a sua pretensão de tomar o poder absoluto não era outra coisa senão aquilo que os judeus já haviam conseguido, e que o seu antissemitismo era justificado pela necessidade de eliminar os reais ocupantes dos postos de mando: os judeus. Assim, era necessário ingressar na área da luta contra os judeus para conquistar o poder político. Fingiam estar lutando contra os judeus exatamente como os trabalhadores lutavam contra a burguesia, e, atacando os judeus, que apresentavam — de acordo com a ideia geral — como detentores do poder por detrás dos governos, agrediam abertamente o próprio Estado, catalisando assim todos os descontentes e frustrados.
     A segunda característica altamente significativa dos novos partidos antissemitas está na organização supranacional de todos os grupos europeus ligados à mesma corrente, em flagrante contraste aos seus slogans nacionalistas. A sua preocupação supranacional indicava claramente que visavam não apenas à conquista do poder político da nação, mas que também almejavam — e já o haviam planejado — um governo intereuropeu, "acima de todas as nações".[42] Esse segundo elemento revolucionário, que significava o rompimento fundamental com o status quo, tem sido frequentemente esquecido, porque os próprios antissemitas usavam, apesar da sua característica revolucionária, a linguagem dos partidos reacionários, em parte devido a hábitos tradicionais, em parte porque mentiam conscientemente.
     Uma íntima relação liga as condições peculiares da existência judaica e a ideologia de grupos antissemitas. Os judeus constituíam o único elemento intereuropeu numa Europa organizada em base nacional. Era lógico que seus inimigos se organizassem de acordo com o mesmo princípio e, em sua luta contra o grupo-que-supera-as-nações, criassem um partido-que-supera-os-partidos, já que pretendiam eliminar esses pretensos manipuladores do destino político de todas as nações, apoderando-se de seus segredos e de suas armas.
     O sucesso do antissemitismo supranacional dependia ainda de outras considerações. Mesmo no fim do século XIX, e especialmente desde a guerra franco-prussiana em 1870, um número crescente de pessoas considerava antiquada a organização nacional da Europa, pois ela já não podia enfrentar adequadamente os novos desafios econômicos. Popularizava-se a convicção de que interesses idênticos envolviam toda a Europa.[43] Esse sentimento fornecia forte argumento a favor da organização internacional do socialismo. Mas, enquanto as organizações socialistas internacionais permaneciam passivas e desinteressadas no setor da política externa (isto é, precisamente nas questões em que seu internacionalismo poderia ter sido posto à prova), os antissemitas começavam pelos problemas de política externa e chegavam a prometer a solução de problemas domésticos em base supranacional. Se estudarmos as ideologias não pela aparência, mas analisando profundamente os verdadeiros programas dos respectivos partidos, verificaremos que os socialistas, muito mais interessados pelos assuntos domésticos, enquadravam-se melhor na estrutura do Estado-nação do que os antissemitas.
     Isso não significa, naturalmente, que as convicções internacionalistas dos socialistas não fossem sinceras. Ao contrário, eram mais fortes e até anteriores aos interesses supranacionais de classes, que ultrapassam as fronteiras de Estados nacionais. Mas a consciência da importância transcendental da luta de classes dentro de cada Estado levou-os a desprezar a herança que a Revolução Francesa havia legado aos partidos trabalhistas e que, se realizada, poderia tê-los guiado à teoria política articulada no sentido interaacionalista. Os socialistas mantiveram implicitamente intacta a validade do conceito "nação entre nações", todas pertencendo à família da humanidade; mas não foram capazes de transformar essa ideia em fato aceito pelo mundo dos Estados soberanos. Seu internacionalismo foi reduzido à convicção pessoal, compartilhada por todos, já desinteressados pela soberania nacional e agora também levados à indiferença irrealista pela política externa. Aliás, os partidos de esquerda não tinham, em princípio, objeções a Estados-nações, mas tão-só ao aspecto hegemônico das soberanias nacionais, a ponto de preconizarem como solução política a formação de estruturas federalistas, com a eventual integração de todas as nações em termos iguais, o que pressupunha, de certa forma, liberdade e independência nacional de todos os povos oprimidos. Por isso, os partidos socialistas podiam operar dentro dos limites do Estado-nação, pensando em emergir, quando decaíssem as estruturas sociais e políticas do Estado, como o único partido hostil a fantasias expansionistas, e que não sonhava com a destruição de outros povos.
     O supranacionalismo dos antissemitas abordava a questão da organização internacional do ponto de vista exatamente oposto. Seu objetivo era uma superestrutura estatal que destruísse as estruturas nacionais. Seu ultranacionalismo, que preparava a destruição do corpo político de sua própria nação, baseava-se no nacionalismo tribal, com um desmedido desejo de conquista, que constituiria uma das forças principais com que se poderiam aniquilar as fronteiras do Estado nação e de sua soberania.[44] Quanto mais eficientes se tornavam os meios de propaganda chauvinista, mais fácil era persuadir a opinião pública da necessidade de uma estrutura supranacional que — partindo da hegemonia do próprio grupo nacional — reinasse de cima e sem distinções nacionais, através de um monopólio universal da força e dos instrumentos de violência.
     Resta pouca dúvida de que a condição especial dos judeus — o fato de serem intereuropeus — poderia ter servido aos fins do federalismo socialista pelo menos tão bem quanto iria servir às sinistras conspirações dos supranacionalistas. Mas os socialistas se mostravam tão preocupados com a luta de classes, e tão despreocupados das consequências políticas dos conceitos que haviam herdado, que somente perceberam a existência dos judeus como fator político quando se defrontaram com um sério concorrente na frente doméstica: o antissemitismo desenfreado. Nessa oportunidade, estavam não só despreparados para integrar a questão judaica às suas teorias, mas também receosos de tocar no assunto. Nesse ponto, como em outras questões internacionais, deixaram a iniciativa aos supranacionalistas, que, na época, se faziam passar como os únicos a conhecer as respostas dos problemas mundiais.
     Pelo final do século, os efeitos das falcatruas dos anos 70 já haviam passado, e uma era de prosperidade e bem-estar geral, especialmente na Alemanha, pôs um fim às agitações prematuras da década de 80. Ninguém poderia ter previsto que esse fim era apenas uma pausa temporária, que todas as questões políticas não-resolvidas, juntamente com todos os ódios políticos não-apaziguados, iriam redobrar em força e violência após a Primeira Guerra Mundial. Na Alemanha, os partidos antissemitas, após alguns sucessos iniciais, caíram novamente na insignificância; seus líderes, após uma breve agitação da opinião pública, desapareceram pela porta traseira da história, nas trevas da confusão doida e do charlatanismo cura-tudo.

Parte I Antissemitismo (2. Os Judeus. O Estado-Nação e o nascimento do antissemitismo: 2.3)
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[38] Otto Glagau, Der Bankrott des Nationalliberalismus und die Reaktion [A bancarrota do liberalismo nacional e a reação], Berlim, 1878. Der Boersen und Gruendungsschwindel [As falcatruas da Bolsa e do solo], 1876, do mesmo autor, é um dos panfletos antissemitas mais importantes da época.
[39] Ver Wawrzinek, op. cit. Um instrutivo relato de todos esses acontecimentos, especialmente em relação ao capelão da corte Stoecker, em Frank, op. cit
[40] Essa proposta foi feita em 1886, em Cassei, onde foi fundado a Deutsche Antisemi-tische Vereinigung [Associação Anti-Semita Alemã].
[41] Para uma ampla discussão sobre os "partidos acima de partidos" e os movimentos de unificação ver o capítulo 8.
[42] O primeiro congresso internacional antijudeu realizou-se em 1882 em Dresden, com cerca de 3 mil delegados da Alemanha, Áustria-Hungria e Rússia; durante as discussões, Stoecker foi derrotado pelos elementos radicais, que se reuniram um ano mais tarde em Chemnitz [atual Karl-Marx-Stadt, na Alemanha Oriental] e fundaram a Alliance Antijuive Universelle. Um bom relato dessas reuniões e congressos, seus programas e discussões, pode ser encontrado em Wawr-zinek, op. cit.
[43] A solidariedade internacional dos movimentos operários era, até o ponto a que chegou, uma questão intereuropeia. Sua indiferença pela política externa também constituía uma espécie de autoproteção contra a participação ativa tanto nas políticas imperialistas de seus respectivos países como na luta contra elas. Uma vez que interesses econômicos estavam envolvidos, era bastante óbvio que todos os franceses, britânicos e holandeses sentiriam todo o impacto da queda de seus respectivos impérios, e não apenas os capitalistas e banqueiros.
[44] Ver o capítulo 8.

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sétimo - Parêntesis / II - O convento considerado como fato histórico

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Sétimo — Parêntesis

II - O convento considerado como fato histórico
     
     Debaixo do ponto de vista da história, da razão e da verdade, o monaquismo[*] é condenado.
     Os mosteiros, quando abundam num país, são tropeços que impedem a circulação, estabelecimentos que servem de embaraço, centros de preguiça onde se necessitam centros de trabalho. As comunidades monásticas são para a grande comunidade social o que o agárico é para o carvalho, o que para o corpo humano é a verruga. A sua prosperidade e nutrição são o empobrecimento do país. O regime monacal, bom no começo das civilizações, útil para produzir a redução da brutalidade pelo espiritual, é mau na virilidade dos povos. Além disto, quando ele se relaxa e entra no período do seu desregramento, como continua a dar o exemplo, torna-se mau por todas as razões que o faziam salutar no período da sua pureza.
      O tempo das instituições monásticas passou. Os claustros úteis na primeira educação da civilização moderna, impediram-na na sua crescença e são nocivos ao seu desenvolvimento. Como instituição e modo de formação para o homem, os mosteiros, bons no século X, discutíveis no século XV, são detestáveis no século XIX.
     A lepra monacal roeu até quase ao esqueleto duas nações admiráveis, a Itália e a Espanha, uma a luz, outra o esplendor da Europa por alguns séculos, e presentemente esses dois ilustres povos principiam a sarar, mas é em virtude da salutar e vigorosa higiene de 1789.
      O convento, o antigo convento de freiras, tal como ainda no princípio deste século aparece na Itália, na Áustria e na Espanha, é uma das mais sombrias incrustações da Idade Média. O claustro de que falamos, é o ponto de intersecção dos terrores. O claustro católico propriamente dito é todo cheio da negra irradiação da morte.
      Sobre todos, porém, o mais fúnebre é o convento espanhol. Debaixo de abóbadas repletas de trevas, prenhes de escuridão, sob zimbórios vagos pela muita sombra, erguem-se maciços altares babélicos da altura de catedrais; pendem de cadeias no meio das trevas imensos crucifixos brancos; ostentam-se nus sobre o ébano grandes Cristos de marfim, mais do que ensanguentados, vertendo sangue, medonhos e magníficos, com os ossos dos cotovelos à vista, com os tegumentos das rodelas dos joelhos dilacerados, com as carnes rasgadas em profundas chagas, coroados de espinhos de prata, pregados com cravos de ouro, com gotas de sangue de rubis na fronte e lágrimas de diamantes nos olhos. Os diamantes e os rubis parecem molhados e fazem chorar em baixo, nas sombras, criaturas cobertas com véus que trazem os rins pisados do cilício e das disciplinas com pontas de ferro, os seios esmagados por corseletes de vimes, os joelhos esfolados à força de rezar; mulheres que se julgam esposas; espectros que se julgam serafins. Acaso pensam estas mulheres? Não. Acaso têm vontade? Não. Acaso amam? Não. Acaso vivem? Não. Os nervos tornaram-se-lhes ossos; os ossos tornaram-se-lhes pedras. O seu véu é um tecido de sombras. O seu hálito por baixo do véu assemelha-se a não sei que trágica respiração da morte. A abadessa, uma larva, santifica-as e terrifica-as. São imaculadas, mas intratáveis. Eis o que são os antigos mosteiros de Espanha. Covis da devoção terrível, antros de virgens, lugares ferozes.
     A Espanha católica ainda era mais romana do que a própria Roma. O convento espanhol era o convento católico por excelência. Ninguém diria senão que estava no Oriente. O arcebispo era como um Kislaraga do céu, que aferrolhava e espiava aquele serralho de almas reservado para Deus. A monja era a odalisca, o eunuco era o padre. As abrasadas eram escolhidas em sonhos e possuíam Cristo. De noite descia da cruz o belo mancebo nu e tornava-se o êxtase da cela. Muros elevados guardavam de qualquer distração viva a sultana mística, que tinha o Crucificado por sultão. Um olhar estranho era uma infidelidade. O in pace substituía o saco de couro.
     O que no Oriente se lançava ao mar, no Ocidente lançava-se à terra. Em ambas as partes havia mulheres debatendo-se; para umas a vaga, para outras a cova; lá as afogadas, cá as enterradas. Monstruoso paralelo!
     Hoje os defensores do passado, como não podem negar estas coisas, sorriem.
     Está em moda uma estranha, mas cômoda maneira de suprimir as revelações da história, invalidar os comentários da filosofia e elidir todos os fatos molestos e todas as questões escuras. Declamações, repetem os parvos. Jean Jacques, declamador; Diderot, declamador; Voltaire a respeito de Calas, Labarre e Sirven, declamador. Não sei quem ultimamente descobriu que Tácito era um declamador, que Nero era uma vítima, e que decididamente se devia a gente compadecer «daquela pobre Holofernes».
     Os fatos, porém, são pertinazes e difíceis de destruir.
     O autor deste livro viu com os seus olhos, na abadia de Villers, a oito léguas de Bruxelas (coisas da Idade-Média que todos têm à mão), no meio do prado que serviu de pá o do claustro, o alçapão das masmorras em que quem entrava morria, e na margem do Dyle quatro calabouços de pedra, meios me dos no chão, meios debaixo de água. Eram quatro in pace. Em cada calabouço destes veem-se restos de uma porta de ferro, uma latrina e uma trapeira gradeada, que por fora fica a dois pés acima da água e por dentro a seis pés abaixo do solo. Ao longo da parede correm exteriormente quatro pés de água. O chão está sempre molhado. Esta terra úmida era o leito do habitante do in pace. Num dos calabouços vê-se um pedaço de uma golilha chumbada na parede; noutro uma espécie de caixão quadrado, formado de quatro lâminas de granito, demasiado curtas para caber nele uma pessoa deitada, demasiado baixas para a conter de pé. Pois metiam dentro uma criatura, com uma tampa de pedra por cima.
     Existe isto. Vê-se. Toca-se. Que declamadores aqueles in pace, aqueles calabouços, aqueles gonzos de ferro, aquelas golilhas, aquela elevada trapeira, ao nível da qual corre a água do rio, aquele caixão de pedra fechado com uma tampa de granito, como um túmulo, com a diferença de que o morto ali era um vivo, aquele solo húmido, ou antes, grossa camada de lodo, aquelas latrinas de que ainda hoje se veem os buracos!

continua na página 390...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sétimo - II - O convento considerado como fato histórico
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 
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[*] Monaquismo é um estilo de vida dedicado à prática religiosa, caracterizado pela renúncia aos bens materiais, pela busca da perfeição espiritual e, em muitos casos, pela vida em comunidade ou isolamento.

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (5a) - A bem dizer

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte
5.


      A bem dizer, Varvára Ardaliónovna, em sua conversa com o irmão, exagerara um pouco a veracidade das notícias relativas ao compromisso do príncipe para com Agláia. Talvez, como mulher de visão aguda, tivesse adivinhado o que estava para acontecer em um futuro imediato; talvez, desapontada pelo fato do seu sonho (no qual, contudo, nunca tinha acreditado, realmente), se ter esfumado, fosse ela demasiado humana para se pagar essa decepção, destilando amargo veneno no coração do irmão, exagerando a calamidade, apesar de o amar sinceramente e se sentir triste por causa dele. Em todo o caso não obtivera tais informações com suas amigas, as moças Epantchín; havia apenas conjeturas, meias palavras, silêncios significativos e insinuações. Talvez até as irmãs de Agláia tagarelassem um pouco com o fim de virem a saber qualquer coisa da própria Varvára Ardaliónovna. Bem podia ser o caso que nem elas mesmas se pudessem privar do prazer muito feminino de martirizar uma amiga, um pouco, mormente a tendo conhecido desde a infância; não podiam deixar de ter pressentido, ao menos por alto, o que essa amiga alvejava. Por outro lado o príncipe, também, embora houvesse dito a verdade ao assegurar a Liébediev que não tinha nada para lhe dizer e que nada de importante lhe acontecera, podia se ter enganado. Algo de muito estranho certamente estava acontecendo a todos eles; nada tinha acontecido e, todavia, ao mesmo tempo, muita coisa estava acontecendo. Varvára Ardaliónovna, com o seu infalível instinto feminino, adivinhara este último fato.
     É muito difícil, ainda assim, explicar de maneira categórica como foi que todo o mundo na casa dos Epantchín foi ferido ao mesmo tempo pela mesma ideia de que alguma coisa vital acontecia a Agláia e que o seu destino estava sendo decidido. Mas assim que tal ideia relampejou sobre todos eles, logo se puseram a insistir que tinham sentido desconfianças e previsto isso havia muito, tudo se tendo clareado desde o episódio do “pobre cavaleiro” e até mesmo antes, apenas se tendo dado o seguinte: que não tinham, àquela altura, querido acreditar em coisa assim tão absurda. Foi o que as irmãs declararam; Lizavéta Prokófievna, naturalmente, previra e soubera de tudo muito antes de qualquer outra pessoa; e até, por isso, por muito tempo o seu coração tinha doído.
     Mas tivesse sabido cedo ou tarde, o fato foi que só pensar no príncipe se lhe tornou insuportável porque a arremessou muito longe para fora daquilo com que estava contando. Havia nisso uma pergunta que requeria uma imediata resposta; mas não só era impossível respondê-la como também a pobre Lizavéta Prokófievna, por mais que lutasse, não conseguia sequer ver claramente a pergunta. O caso era mesmo difícil.

 “Era o príncipe um bom partido, ou não? Era tudo isso bom, ou não? Se não era uma coisa assim tão boa (e indubitavelmente não era), por que modo não o era? E se, talvez, fosse uma boa coisa (o que também era possível), por que modo o era, então?”

     O próprio chefe da família, Iván Fiódorovitch, ficou naturalmente mais surpreendido do que todos, mas, imediatamente depois, confessou: “em verdade, sempre tive uma vaga suspeita de tudo isso, agora como antes me parecia imaginar algo deste jaez”.
     E recaiu em silêncio ante os ameaçadores olhares da mulher; ficava calado, de manhã, mas, à noite, a sós com ela, e compelido a explicar-se, repentinamente, com desacostumado arrojo, saía-se com opiniões destas: “afinal de contas, pergunto eu, que importância tem isso?” (Silêncio.) “Tudo isso seria muito estranho, logicamente, se fosse verdadeiro, mas se ele nem toca nisso! (Silêncio, outra vez.) “E por outro lado, se encararmos a coisa sem preconceitos, o príncipe é um camarada encantador, palavra de honra, e... e, e - bem, o nome, o nome de nossa família, tudo isso tem assim o ar de que quisemos levantar o nome de nossa família que tinha decaído aos olhos do mundo, isto é, encarando sob este ponto de vista, já que sabemos muito bem o que o mundo é. O mundo é o mundo! E, além disso, o príncipe não deixa de ter fortuna, conquanto de segunda ordem: ter, lá isso tem, e... e...” (prolongado silêncio e completo colapso).
     Ao ouvir tais palavras do marido, a cólera de Lizavéta Prokófievna ultrapassava todos os limites. Na opinião dela tudo quanto tinha acontecido era “uma loucura imperdoável e criminosa, uma espécie de alucinação fantástica, estúpida e absurda!” Em primeiro lugar “este príncipe é um doente, um idiota e, em segundo lugar - um louco. Nem sabe nada do mundo nem nele tem sequer um lugar. A quem se poderia apresentá-lo, onde colocá-lo? Era uma espécie de democrata incrível; não tinha arranjado sequer um emprego... e... que haveria de dizer a princesa Bielokónskaia? E era esse, era esse, afinal, a espécie de marido que haviam imaginado e planejado para Agláia?”
     Este último argumento, naturalmente, era o principal. Ante tal reflexão o coração materno estremecia, sangrando e chorando, muito embora, ao mesmo tempo, qualquer coisa palpitasse dentro dele, sussurrando: Mas por que não é o príncipe o que desejavas?” E esse protesto do seu próprio coração atormentava Lizavéta Prokófievna muito mais do que todo o resto.
     As irmãs de Agláia, por qualquer razão, ante o pensamento do príncipe, ficavam contentes. Nem achavam estranho isso. E, resumindo, podiam a qualquer momento ficar do lado dele, completamente. Mas ambas, lá consigo mesmas; tinham decidido ficar quietas. Já fora notado na família, como uma regra invariável, que quanto mais obstinadas e enfáticas fossem as oposições e as objeções de Lizavéta Prokófievna em qualquer caso em discussão, mais certo sinal seria isso de que ela já estava quase a concordar com todos.
     Mas Aleksándra não conseguiu ficar perfeitamente calada. A mãe, que desde muito a tinha escolhido como conselheira, chamava-a a todo instante, servindo-se não só de suas opiniões como de suas reminiscências; isto é, não se fartava com coisas assim:

“Como foi que tudo isso se passou? Como foi que ninguém viu? Por que foi que não me vieram dizer? Que negócio foi esse do tal horrendo pobre cavaleiro? Por que havia de ser ela só, Lizavéta Prokófievna, a se incomodar com tudo, a reparar e prever tudo, enquanto os outros não faziam mais do que contar quantas vezes o galo cantava?”

     E assim por diante.
     Aleksándra, no começo, se encolheu, acabando por dar razão à ideia do pai de que, aos olhos do mundo, a escolha do Príncipe Míchkin como marido para uma das Epantchín parecia muito satisfatória. E, pouco a pouco se inflamando, acabou por acrescentar que o príncipe, de maneira alguma era um doido e nem nunca o tinha sido; quanto a ter ou não importância - era impossível vir a saber- se de que dependeria a importância de um homem decente, havia alguns anos para cá, entre nós, na Rússia; se dos seus triunfos no serviço, o que era essencial, ou se de alguma coisa mais. A tudo isso a mãe prontamente retorquia que ela, Aleksándra, era uma “niilista” e que esse seu parecer era típico da sua noção quanto à questão “feminista”. 
     Meia hora depois despachou-se para a cidade e de lá para a ilha Kámennii para se encontrar com a Princesa Bielokónskaia que, afortunadamente, aconteceu estar realmente, então, em Petersburgo, embora já pronta para deixar a cidade. 
     A Princesa Bielokónskaia era a madrinha de Agláia.
     A velha princesa escutou os jatos verbais febris e desesperados de Lizavéta Prokófievna e absolutamente não se comoveu com as lágrimas dessa mãe estonteada, chegando até a encará-la sarcasticamente. A velha dama era uma déspota terrível; não consentiria nem às suas mais antigas amigas porém - se em pé de igualdade com ela. 
     Considerava Lizavéta Prokófievna apenas como sua “protegida”, como o fora havia já trinta e cinco anos antes, nunca se tendo podido reconciliar com a precipitação e independência do seu caráter. Entre outras coisas observou que, “como sempre, estavam eles precipitados e querendo transformar uma colina em uma cadeia de montanhas; que, tanto quanto tinha ouvido, em nada ficava convencida de que tivesse havido algo de sério, a bem dizer; e não seria, em tal caso, melhor esperar até que sobreviesse alguma coisa de fato? Que o príncipe, na sua opinião, era um jovem decente apesar de doentio, excêntrico e quase sem importância. O único ponto mau, em tudo isso, é que ele mantinha uma amante”.
     A Sra. Epantchiná logo se deu conta de que a princesa estava ressentida com eles porque Evguénii Pávlovitch, que por ela lhes fora apresentado, tinha fracassado.
      Voltou a Pávlovsk em um estado de irritação ainda maior do que aquele em que estava, e descompôs todo o mundo, de uma vez, baseando-se em que “todos tinham ficado malucos” e que as coisas não eram feitas assim por ninguém, exceto eles.

“Por que estavam com essa precipitação? Que é que tinha acontecido? Tanto quanto eu possa ver, não aconteceu nada ainda! Esperem até que sobrevenha algo ponderável! Afinal, Iván Fiódorovitch está sempre a imaginar coisas e a transformar outeiros em cordilheiras!”

     A conclusão disso era que deviam ficar calmos, esperar, e olhar tudo friamente. Mas, ai dela! A calma não durou nem dez minutos.
     O primeiro golpe no seu rosto foram as notícias do que tinha acontecido durante a sua ausência, quando fora à Ilha Kámennii. (A visita da Sra. Epantchiná se dera no dia seguinte ao em que o príncipe fora pagar a visita deles, cerca da meia-noite em vez das nove horas.)
     Em resposta às impacientes perguntas maternas, responderam as irmãs minuciosamente, começando por declararem que nada de mais tinha acontecido durante a ausência dela”; que o príncipe tinha vindo e demorado; que, por mais de meia hora, Agláia ficara sem descer para vê-lo mas que acabara por descer e logo convidara o príncipe para jogar xadrez; mas que o príncipe não sabia como se jogava aquilo, tendo Agláia logo se aborrecido dele; mas que, como estava muito animada, zombara de tal ignorância, ao que ele ficou muito envergonhado; riu-se ela pavorosamente, a tal ponto que até dava pena olhar-se para ele, tendo ela então sugerido jogarem cartas. E que jogaram duraki, tendo então acontecido o oposto, pois o príncipe jogava aquilo de maneira prodigiosa, como um professor; que, mesmo Agláia trapaceando e mudando de baralho e furtando no nariz dele, ainda assim ele ganhara todas as cinco vezes que ela dera cartas. Que Agláia “subiu a serra”, quase perdendo a compostura, tendo dito tais coisas mordazes e horrendas ao príncipe que ele deixou de rir e ficou inteiramente pálido, principalmente quando ela lhe disse, por fim, “que não poria o pé na sala enquanto ele estivesse lá” e que positivamente era sem propósito vir ele visitá-las de noite, depois da meia- noite, depois de tudo quanto tinha acontecido. E que batera com a porta e saíra. Que o príncipe se fora como de um funeral, apesar de todos os esforços das duas para o consolarem. E que então, inesperadamente, um quarto de hora depois que o príncipe saíra, Agláia desceu às carreiras para a varanda, sem mesmo ter tido o cuidado de enxugar os olhos ainda molhados de lágrimas. Descera porque Kólia tinha chegado, trazendo um ouriço. E todas começaram logo a espiar o ouriço. Kólia explicou que o ouriço não era dele; que saíra a passear com um colega de escola, Kóstia Liébediev; que esse tinha ficado lá fora e estava com vergonha de entrar porque carregava uma machadinha; que haviam comprado o ouriço e a machadinha de um camponês que encontraram. O camponês vendera o ouriço por cinquenta copeques, tendo eles tentado persuadi-lo a vender também a machadinha porque “não precisava dela”, e que era uma boa machadinha. E logo Agláia começou a instar com Kólia para que lhe vendesse o ouriço, ficando muito animada e chegando até a chamá-lo de “querido”. Por muito tempo Kólia não quis atendê-la até que por fim correu até Kóstia Liébediev e o intimou a vir; de fato aquele viera, com machadinha e tudo, mas muito encabulado. E eis que então ficou esclarecido que o ouriço não era deles, absolutamente; pertencia a um outro, a um terceiro garoto, chamado Petróv, que entregara dinheiro aos dois para comprarem a História de Schlosser, para ele, de um quarto garoto que, precisando de dinheiro, vendia barato. Que tinham ido pois comprar a História de Schlosser, mas haviam acabado por não resistir e comprado o ouriço! De maneira que o ouriço e a machadinha pertenciam ao terceiro garoto a quem os iam levar em vez da História de Schlosser. Mas tanto Agláía insistiu que acabaram decidindo vender-lhe o ouriço. Logo que Agláía comprou o ouriço, o colocou, com a ajuda de Kólia, em um cesto de vime, cobrindo-o com um guardanapo; e então começou ela a instar com Kólia para levar aquilo para o príncipe, da parte dela, pedindo que aceitasse como um sinal do seu profundo respeito”. Kólia anuiu, radiante, e prometeu fazê-lo sem falta, mas logo começou a amolá-la para saber “que é que o ouriço representava a ponto de fazer dele um presente”. Agláia respondeu que ele não tinha nada com isso. Retrucou ele que estava convencido que havia naquilo alguma alegoria. Agláia, zangando-se, correra atrás dele, chamando-o de “confiado”. Kólia respondeu logo que se não fosse o respeito que tinha pelo sexo feminino e, mais ainda, pelo que chamou de “convicções próprias”, lhe mostraria ali mesmo, imediatamente, como sabia responder a tais insultos. Contudo acabou Kólia indo levar o ouriço, muito satisfeito, com Kóstia Liébediev a correr atrás dele. Vendo Agláia que Kólia sacudia demais o cesto, o chamou lá na varanda, advertindo-o: “Por favor, não vá derrubar, Kólia querido!”, como se um minuto antes não tivesse estado a brigar com ele. Kólia parara. E também ele, como se não tivesse estado a xingá-la antes, exclamou com a maior justeza: “Não derrubo não, Agláia Ivánovna, fique descansada”, retornando a correr com a maior velocidade. Depois do que, Agláia se pusera a rir tremendamente. E subira muito contente para o seu quarto, tendo o resto do tempo ficado na melhor índole.
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (5a) -  A bem dizer
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Massa e Poder - A Areia

Elias Canetti


A AREIA


      Das qualidades da areia que possuem importância no presente contexto, cumpre destacar especialmente duas. A primeira delas é a pequenez, a uniformidade de suas partes. Trata-se aí de uma só qualidade, uma vez que os grãos de areia somente são percebidos como uniformes por serem tão pequenos. A segunda é sua infinidade. Não se pode abrangê-la com os olhos: sua quantidade é sempre maior do que a que eles são capazes de perceber. Onde a areia apresenta-se em pequenos montes não se lhe dá atenção. Realmente notável ela se faz apenas quando incontável, como a areia do mar e a do deserto.
     O movimento incessante da areia faz com que ela se situe aproximadamente a meio caminho entre os símbolos de massa líquidos e os sólidos. Ela forma ondas como o mar e pode rodopiar no ar qual uma nuvem; o pó é uma areia ainda mais na. Uma sua característica significativa é o modo pelo qual a areia constitui uma ameaça, a maneira pela qual ela se apresenta ao indivíduo como algo agressivo e hostil. O caráter uniforme, gigantesco e inanimado do deserto coloca o homem diante de um poder quase insuperável, um poder composto de incontáveis partículas homogêneas. Tal poder o sufoca como o mar, mas de uma maneira mais astuciosa, porque mais demorada.
     A relação do homem com a areia do deserto antecipa algumas de suas atitudes futuras: a luta que, com um poder crescente, ele tem de travar contra enormes legiões de minúsculos inimigos. A secura da areia foi transferida para os gafanhotos. O homem que cultiva plantas os teme feito à areia: o que eles deixam para trás é o deserto.
     É de se admirar que a areia tenha podido algum dia tornar-se um símbolo da descendência. Mas o fato que tão bem conhecemos da Bíblia demonstra quão violento é o desejo de uma multiplicação gigantesca. A ênfase absolutamente não recai aí apenas sobre a qualidade. Decerto, o que se deseja para si é toda uma legião de filhos vigorosos e íntegros. No que se refere, porém, ao futuro mais distante, enquanto soma da vida de gerações, o que se quer é mais do que grupos ou legiões: quer-se uma massa de descendentes, e a maior, a mais extensa e incontável das massas que se conhece é a da areia. Em que pouca medida importa aí a valoração individual dos descendentes, tal é o que se depreende de um símbolo chinês equivalente. Os chineses equiparam os descendentes a uma nuvem de gafanhotos, e as qualidades do número, da coesão e da inseparabilidade destes tornam-se um modelo obrigatório para a descendência.
     Um outro símbolo para a descendência utilizado na Bíblia são as estrelas. Também aí o que importa é seu caráter incontável; não se fala da qualidade de estrelas isoladas e excepcionais. Mas que elas permaneçam, que jamais pereçam, que estejam sempre presentes, isso é importante.

continua página 134...
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Leia também:

Massa e Poder - A Areia
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Era um tipo de raciocínio)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Primeira Parte

continuando...

     Era um tipo de raciocínio de que o Sr. de Norpois, formado na mesma escola que o príncipe, seria capaz. Pode-se troçar da pedantesca simplicidade com que os diplomatas do tipo de Norpois se extasiam diante de uma palavra oficial mais ou menos insignificante. Mas a sua infantilidade tem uma contrapartida: os diplomatas sabem que, na balança que assegura esse equilíbrio, europeu ou outro, que se denomina paz, os bons sentimentos, os bons discursos e as súplicas pesam muito pouco; e que o peso pesado, o verdadeiro, o determinante, consiste em outra coisa, na possibilidade que o adversário tem, se é bastante forte, ou não tem, de contentar um desejo por meio de troca. Essa ordem de verdades, que uma pessoa inteiramente desinteressada, como a minha avó, por exemplo, não teria compreendido, o Sr. de Norpois e o príncipe von*** se tinham muitas vezes visto às voltas com ela. Encarregado dos negócios em países com os quais muitas vezes tínhamos estado a dois passos da guerra, o Sr. de Norpois, ansioso com o aspecto que iam tomando os acontecimentos, sabia muito bem que não era por meio da palavra "Paz", ou da palavra "Guerra" que elas lhe seriam notificadas, mas por uma outra, aparentemente banal, terrível ou abençoada, que o diplomata, com a ajuda de sua cifra, saberia ler de imediato, e à qual, para resguardar a dignidade da França, responderia com outra palavra, igualmente banal, mas por baixo da qual o ministro da nação inimiga veria logo: Guerra. E até mesmo, segundo um costume antigo, análogo ao que dava ao primeiro encontro de dois seres prometidos um ao outro a forma de uma entrevista fortuita num espetáculo do Teatro do Ginásio, o diálogo em que o destino ditaria a palavra "Guerra" ou a palavra "Paz" em geral não ocorria no gabinete do ministro, mas no banco de um "Kurgarten", onde o ministro e o Sr. Norpois iam ambos beber copinhos de uma água curativa nas fontes termais. Por uma espécie de tácita convenção, eles se encontravam à hora regulamentar, primeiramente dando juntos alguns passos de um passeio que, sob sua aparência benigna, os dois interlocutores sabiam que era tão trágico quanto uma ordem de mobilização. Ora, em um negócio privado como aquela candidatura ao Instituto, o príncipe utilizara-se do mesmo sistema de induções que havia posto em prática na carreira, e do mesmo método de leitura através dos símbolos superpostos. 
     Decerto não se pode pretender que minha avó e seus raros semelhantes fossem os únicos a ignorar esse gênero de cálculo. Em parte, a média da humanidade, exercendo profissões traçadas com antecedência, fica, devido à sua falta de intuição, no mesmo nível de ignorância de minha avó, que o devia ao seu grande desinteresse. Muitas vezes é preciso descer até os seres sustentados, homens ou mulheres, para ter de procurar o móvel da ação ou palavras aparentemente as mais inocentes, no interesse e na necessidade de viver. Qual o homem que não sabe que, quando vai pagar a uma mulher e esta lhe diz: "Não falemos de dinheiro", esta frase deve ser interpretada, como se diz em música, como "um compasso de silêncio", e que, se mais tarde ela lhe declara: "Fizeste-me sofrer muito, muitas vezes me ocultaste a verdade, não aguento mais", ele deve entender: 

"Um outro protetor mais me oferece"? E mesmo isso não passa da linguagem de uma cocote bem próxima das mulheres da sociedade. Os apaches fornecem exemplos mais impressionantes. Mas o Sr. de Norpois e o príncipe alemão, se os apaches lhes eram desconhecidos, tinham se acostumado a viver no mesmo plano das nações, as quais também são, apesar de sua grandeza, criaturas de astúcia e egoísmo, que só se domam pela força, pela consideração do seu interesse, que pode levá-las ao assassínio, um assassínio também muita vez simbólico, já que a simples hesitação em combater ou a recusa em combater podem significar para uma nação: "perecer". Mas, como tudo isso não está escrito nos diversos Livros Amarelos e outros, o povo é de índole pacifista; se é guerreiro, o é instintivamente, por ódio, por rancor, e não pelos motivos que moveram os estadistas prevenidos pelos Norpois.

     No inverno seguinte, o príncipe esteve seriamente enfermo; curou-se, mas seu coração ficou irremediavelmente afetado.

"Diabo!", pensou, "não há tempo a perder no caso do Instituto; pois, se demoro muito, arrisco-me a morrer antes de ser nomeado. Seria verdadeiramente desagradável."

     Escreveu um ensaio sobre a política dos últimos vinte anos para a Revue des Deux Mondes e, em muitos pontos, referiu-se ao Sr. de Norpois nos termos mais elogiosos. Este foi visitá-lo para agradecer, acrescentando que não sabia como expressar a sua gratidão. O príncipe disse para si mesmo, como alguém que acaba de experimentar outra chave para a fechadura: "Ainda não é esta", e, sentindo-se um tanto sufocado ao levar o Sr. de Norpois até a porta, pensou: "Com os diabos! Esses sujeitos vão me deixar arrebentar antes de me aceitarem. Apressemo-nos."
     Na mesma noite, encontrou-se com o Sr. de Norpois na ópera:

- Meu caro embaixador - disse-lhe -, o senhor me dizia esta manhã que não sabia como me provar o seu reconhecimento; é muito exagero de sua parte, pois não me deve coisa alguma, mas vou ter a indelicadeza de tomá-lo ao pé da letra.

     O Sr. de Norpois não estimava menos o tato do príncipe do que o príncipe o seu. Compreendeu logo que não era um pedido que lhe ia fazer o príncipe de Faffenheim, e sim um oferecimento, e, com uma sorridente afabilidade, achou-se no dever de escutá-lo. 

- Bom, vai me achar muito indiscreto. Existem duas pessoas às quais sou muito ligado, e de forma completamente diversa, como vai compreender, e que se fixaram há pouco em Paris, onde contam viver de agora em diante: minha mulher e a grã-duquesa Jean. Elas darão alguns jantares, principalmente em honra ao rei e à rainha da Inglaterra, e o seu sonho seria de poder oferecer aos convivas uma pessoa a quem, sem a conhecer, ambas tributam grande admiração. Confesso que não sabia como fazer para lhes contentar o desejo, quando soube há pouco, pelo maior dos acasos, que o senhor conhecia essa pessoa; sei que vive muito retirada, só deseja ver pouca gente, happy few; mas, se o senhor me der o seu apoio, com a benevolência que me tem testemunhado, estou certo de que ela permitiria que o senhor me apresentasse em sua casa e que eu lhe transmitisse o desejo da grã-duquesa e da princesa. Talvez até consentisse em vir jantar com a rainha da Inglaterra e, quem sabe, se não a aborrecermos demais, passar conosco o feriado da Páscoa em Beaulieu, na casa da grã-duquesa Jean. Esta pessoa se chama a marquesa de Villeparisis. Confesso que a esperança de me tornar um dos convivas habituais de semelhante círculo de espírito me consolaria, me faria encarar sem tédio a renúncia a me candidatar ao Instituto. Em sua casa, também se cuida de coisas da inteligência e de finas conversas.

     Com uma sensação inexprimível de prazer, o príncipe sentiu que a fechadura não resistia e que, por fim, aquela chave entrava. 

- Uma tal opção é bem inútil, meu caro príncipe - respondeu o Sr. de Norpois -; nada se harmoniza melhor com o Instituto que o salão do qual o senhor está falando e que é um autêntico viveiro de acadêmicos. Transmitirei o seu pedido à senhora marquesa de Villeparisis: ela certamente ficará lisonjeada. Quanto a ir jantar em sua casa, ela sai muito pouco, e isso talvez seja mais difícil. Mas eu o apresentarei, e o senhor mesmo poderá defender a sua causa. Principalmente, não é necessário renunciar à Academia; almoço precisamente, de amanhã a quinze dias, na casa de Leroy Beaulieu, para logo depois ir em sua companhia a uma sessão importante. Sem ele, ninguém pode ser eleito; eu já lhe havia falado no seu nome, que ele naturalmente conhece às maravilhas. Fez-me algumas objeções. Mas acontece que ele precisa do apoio do meu grupo para a próxima eleição, e tenho a intenção de voltar à carga; dir-lhe-ei muito francamente os laços bastante cordiais que nos unem, não lhe esconderei que, se o senhor se candidatar, pediria a todos os meus amigos que votassem no senhor (o príncipe soltou um profundo suspiro de alívio), e ele sabe que tenho amigos. Acho que, se conseguisse me certificar do seu concurso, suas chances seriam bem fortes. Vá, portanto, nesse dia, às seis da tarde, à casa da Sra. de Villeparisis; eu o introduzirei e poderei lhe dar conta da minha entrevista da manhã.  

     Assim é que o príncipe de Faffenheim fora induzido a visitar a Sra. de Villeparisis. Minha profunda desilusão se deu quando ele falou. Eu não imaginara que, se uma época tem traços característicos e gerais mais fortes que uma nacionalidade, de modo que, num dicionário ilustrado, onde se dá até o retrato legítimo de Minerva, Leibnitz, com sua peruca e seu mantéu, difere pouco de Marivaux ou de Samuel Bernard, uma nacionalidade tem traços particulares mais fortes que uma casta. Ora, tais traços se traduziram diante de mim, não por um discurso em que julgasse de antemão ouvir o roçagar dos elfos e a dança dos Kobolds, mas por uma transposição que não menos legitimava essa origem poética: o fato de que, inclinando-se pequeno, vermelho e barrigudo, diante da Sra. de Villeparisis, o governador do Reno lhe disse:

- Pom tia, zenhorra marrquesa - com o mesmo sotaque de um porteiro alsaciano. 
- Não quer que lhe alcance uma taça de chá ou um pedaço de torta recheada? Está muito boa - disse-me a Sra. de Guermantes, desejosa de se mostrar o mais gentil possível. 
- Faço as honras desta casa como se fosse a minha - acrescentou num tom irônico, que dava à sua voz algo um tanto gutural, como se ela estivesse abafando um riso rouco. 
- O senhor - disse a Sra. de Villeparisis ao Sr. de Norpois - vai lembrar que daqui a pouco tem algo a dizer ao príncipe a respeito da Academia? - 

     A Sra. de Guermantes baixou os olhos, e deu uma virada no pulso para ver as horas. 

- Oh, meu Deus; é tempo de me despedir da minha tia, devo ainda passar na casa da Sra. de Saint-Ferréol, e vou cear na casa da Sra. Leroi. 

     E levantou-se sem se despedir de mim. Acabava de ver a Sra. Swann, que pareceu bem constrangida ao dar comigo. Sem dúvida, lembrava-se de me ter dito, antes que a qualquer outra pessoa, estar convencida da inocência de Dreyfus. 

- Não quero que minha mãe me apresente à Sra. Swann - disse-me Saint-Loup. - É uma antiga prostituta. Seu marido é judeu, e ela nos prega o nacionalismo. Ora, aí está o meu tio Palamede.

     A presença da Sra. Swann tinha para mim um interesse especial, por causa de um fato ocorrido alguns dias antes e que é preciso relatar, devido às conseqüências que teria mais tarde, e que seguiremos em detalhe no momento oportuno. Assim, alguns dias antes desta visita, recebi uma que de modo algum esperava: a de Charles Morei, o filho, desconhecido de mim, do antigo criado de quarto do meu tio-avô. Esse tio-avô (em cuja casa eu vira a dama cor-de-rosa) tinha morrido no ano anterior. Seu criado de quarto manifestara diversas vezes a intenção de vir visitar me; eu ignorava o motivo de sua visita, mas tê-lo-ia recebido de boa vontade, pois sabia por Françoise que ele conservara um verdadeiro culto à memória de meu tio e em todas as oportunidades fazia a sua romaria ao cemitério. Obrigado, no entanto, a ir tratar-se em sua terra, e contando ficar muito tempo lá, enviou-me o filho. Fiquei surpreso ao ver entrar um belo moço de dezoito anos, vestido antes com luxo do que bom gosto, mas que, entretanto, parecia tudo, menos um lacaio. Aliás, fez questão, desde o começo, de cortar os laços com a domesticidade de onde saía, informando-me, com um sorriso satisfeito, que obtivera o primeiro prêmio do Conservatório. O objetivo de sua visita era este: dentre as lembranças recebidas de meu tio Adolphe, seu pai separara algumas que julgara inconveniente enviar a meus pais, mas que, segundo pensava, eram de natureza a interessar um rapaz da minha idade. Eram fotografias de atrizes célebres, de grandes cocotes que meu tio conhecera, as últimas imagens daquela vida de velho boêmio que ele separava, por um compartimento estanque, de sua vida de família. Enquanto o jovem Morei as mostrava, dei-me conta de que ele procurava me falar como a um igual. Sentia, em dizer "você" e usar o menos possível "senhor", o prazer de alguém cujo pai nunca havia empregado, ao dirigir-se a meus pais, senão a "terceira pessoa". Quase todas as fotos traziam uma dedicatória do tipo: "Ao meu. melhor amigo." Uma atriz mais ingrata e mais prudente escrevera: "Ao melhor dos amigos", o que lhe permitia, conforme me asseguraram, dizer que meu tio não era de modo algum o seu melhor amigo, mas o amigo que lhe prestara o maior número de pequenos serviços, o amigo de que ela se servia, um homem excelente, quase um velho animal. Por mais que o jovem Morei procurasse fugir às suas origens, sentia-se que a sombra de meu tio Adolphe, venerável e desmedida aos olhos do velho lacaio, não cessara de flutuar, quase sagrada, sobre a infância e a juventude do filho. Enquanto eu olhava as fotografias, Charles Morei examinava o meu quarto. E, como eu procurasse um lugar para guardá-las: 

- Mas como é que - disse ele (num tom em que a censura não tinha necessidade de se expressar, de tanto que se continha nas próprias palavras) não vejo uma só fotografia do seu tio neste quarto?

     Senti a vermelhidão me subir ao rosto, e balbuciei: 

- Acho que não tenho. 
- Mas como, você não tem uma só fotografia de seu tio Adolphe, de quem gostava tanto? Vou lhe mandar uma, que pegarei dentre as muitas que meu pai possui, e espero que a colocará no lugar de honra, sobre esta cômoda que lhe proveio justamente de seu tio. -

     É verdade que, como eu não tinha sequer uma fotografia de meu pai ou de minha mãe no quarto, não havia nada de chocante que ali não existisse uma do meu tio Adolphe. Mas não era difícil adivinhar que, para Morei, que transmitira ao filho essa maneira de ser, meu tio era o personagem importante da família, de quem meus pais unicamente herdavam um brilho amortecido. Eu era mais favorecido porque meu tio dizia diariamente que eu seria uma espécie de Racine, de Vaulabelle, e Morei me considerava mais ou menos como um filho adotivo, como o filho de eleição de meu tio. Bem depressa percebi que o filho de Morei era bastante "arrivista". Assim, naquele dia, perguntou-me, por ser também o seu tanto compositor, e capaz de musicar alguns versos, se eu não conhecia algum poeta de posição importante no mundo da nobreza. Citei-lhe um. Ele não conhecia as obras desse poeta e jamais ouvira falar no seu nome, de que tomou nota.
     Ora, soube que pouco depois ele escrevera ao poeta, dizendo-lhe ser admirador fanático de suas obras e que musicara um soneto seu, e ficaria feliz se o libretista lhe conseguisse uma audição na casa da condessa***. Era ir um pouco depressa demais e desmascarar o seu plano. O poeta, melindrado, não respondeu.
     Aliás, Morei parecia possuir, além da ambição, uma viva tendência às realidades mais concretas. Havia reparado, no pátio, na sobrinha de Jupien ocupada em fazer um colete e, embora me dissesse apenas ter precisamente necessidade de um colete "de fantasia", senti que a moça lhe causara uma grande impressão. Não hesitou em pedir que descesse e o apresentasse, "mas não relacionado com a sua família, o senhor me compreende, conto com sua discrição quanto a meu pai, diga apenas um grande artista seu amigo, compreende, é preciso impressionar bem os comerciantes." Embora me tivesse insinuado que, não o conhecendo bastante para chamá-lo "caro amigo", ele compreendia, eu poderia lhe dizer, diante da moça, algo como "não caro Mestre, evidentemente..., mas, se quiser: ''caro grande artista"' evitei, na loja, "qualificá-lo", como diria Saint-Simon, e me limitei a responder aos seus "você" com "você". Entre algumas peças de veludo, ele encomendou uma do mais vivo vermelho, e tão gritante que, apesar do seu mau gosto, nunca mais pôde usar esse colete. A moça voltou a trabalhar com suas duas "aprendizes", mas pareceu-me que a impressão fora recíproca, e que Charles Morei, que ela julgou pertencesse ao "meu mundo" (apenas mais elegante e mais endinheirado), lhe agradara singularmente. Como eu ficara muito espantado por encontrar, entre as fotografias que me enviara seu pai, uma do retrato de Miss Sacripant (isto é, Odette) por Elstir, disse a Charles Morei, acompanhando-o até o portão principal:

- Receio que você não possa me informar. Será que meu tio conhecia bastante esta senhora? Não vejo em que época da vida de meu tio possa situá-la; e isto me interessa, por causa do Sr. Swann... - Justamente eu me esquecia de lhe dizer que meu pai havia recomendado que chamasse a sua atenção para essa senhora.

     De fato, essa demi-mondaine almoçava na casa do seu tio no último dia em que o viu. Meu pai estava indeciso se podia ou não fazê-la entrar. Parece que o senhor agradou bastante àquela mulher leviana, e ela esperava revê-lo. Mas, justamente por aquela época, houve uma briga na família, pelo que me disse meu pai, e o senhor nunca mais avistou seu tio. - Sorriu nesse instante para a sobrinha de Jupien, dando-lhe adeus de longe. Ela o observava, sem dúvida admirando o seu rosto magro, de feições regulares, seus cabelos leves e os olhos alegres. Apertando-lhe a mão, eu pensava na Sra. Swann, e dizia para mim mesmo, espantado, de tal modo eram diferentes e separadas na minha recordação, que de agora em diante teria de identificá-la com a "dama cor-de-rosa".
     O Sr. de Charlus logo se sentou ao lado da Sra. Swann. Em todas as reuniões em que se achava, e desdenhoso quanto aos homens, cortejado pelas mulheres, ia logo se juntar à mais elegante, de cuja toalete se sentia envaidecido. A casaca ou o fraque do barão faziam-no parecer se com esses retratos, pintados por um grande colorista, de um homem de preto, mas que tem perto de si, sobre uma cadeira, uma capa deslumbrante que vai pôr para um baile à fantasia. Essa familiaridade, em geral com alguma Alteza, proporcionava ao Sr. de Charlus as distinções que apreciava. Por exemplo, em decorrência disso, acontecia que as donas de casa deixavam, numa festa, que o barão tivesse uma cadeira só para ele na frente, na companhia das damas, enquanto os outros homens se amontoavam no fundo. Além disso, muito absorto, ao que parecia, em contar em voz alta histórias divertidas à dama encantada, o Sr. de Charlus estava dispensado de cumprimentar os outros e, por conseguinte, de ter deveres a cumprir.
     Por detrás da barreira perfumada que lhe erguia a beldade escolhida, ele estava isolado no meio de um salão como num camarote no meio de uma sala de espetáculos e, quando vinham cumprimentá-lo, através, por assim dizer, da formosura da sua companheira, era desculpável que respondesse com muita brevidade e sem interromper o que falava a uma senhora. Decerto a Sra. Swann não era exatamente o tipo de pessoa com quem ele apreciava se mostrar desse modo. Mas professava admiração por ela, amizade por Swann, sabia que ela ficaria lisonjeada com o seu desvelo, e ele próprio sentia-se encantado por estar comprometido com a mais bela pessoa ali presente.
     A Sra. de Villeparisis, aliás, só estava meio contente com a visita do Sr. de Charlus. Este, apesar de lhe achar graves defeitos, gostava muito dela. Mas, por momentos, sob o ímpeto da cólera, devido a agravos imaginários, endereçava-lhe, sem resistir a seus impulsos, cartas de extrema violência em que levava em conta coisas miúdas que até então parecia não ter notado. Entre outros exemplos, posso citar este fato, porque minha temporada em Balbec me pôs ao corrente dele: a Sra. de Villeparisis, receando não ter levado dinheiro suficiente para prolongar suas férias em Balbec, e não querendo mandar vir dinheiro de Paris por ser avara e por temer os gastos supérfluos, pedira emprestados três mil francos ao Sr. de Charlus. Este, um mês depois, descontente com a tia por um motivo insignificante, reclamou o empréstimo por um despacho telegráfico. Recebeu dois mil novecentos e noventa e alguns francos. Vendo a tia alguns dias após em Paris e conversando amistosamente com ela, fez-lhe notar, com muita doçura, o erro cometido pelo banco encarregado da remessa. 

- Mas não houve erro - respondeu a Sra. de Villeparisis -, o despacho pelo telégrafo custa seis francos e setenta e cinco cêntimos. 
- Ah, desde o momento em que não é intencional, tudo bem - replicou o Sr. de Charlus. - Falei apenas para o caso da senhora ignorá-lo, porque então, se o banco tivesse agido da mesma forma com pessoas que lhe sejam menos íntimas do que eu, isso poderia contrariá-la. 
- Não, não há erro algum. 
- No fundo, a senhora teve toda a razão - concluiu alegremente o Sr. de Charlus, beijando com ternura a mão da tia. De fato, ele não lhe queria mal por isso, de modo algum, e sorria apenas daquela pequena mesquinharia. Mas, pouco tempo depois, julgando que, num caso de família, sua tia quisera enganá-lo e "armar todo um complô contra ele", e, como ela se escudasse bobamente atrás de homens de negócios com os quais precisamente achava que ela se aliara contra ele, o Sr. de Charlus lhe escrevera uma carta transbordante de furor e insolência. "Não me contentarei em me vingar", acrescentou em pós-escrito, "vou torná-la ridícula. A partir de amanhã vou contar a todo o mundo a história do despacho telegráfico e dos seis francos e setenta e cinco cêntimos que a senhora reteve sobre os três mil francos que lhe emprestei; vou desonrá-la." Em vez disso, foi no dia seguinte pedir perdão à tia Villeparisis, arrependido de uma carta em que havia frases verdadeiramente horríveis. Além disso, a quem poderia ele contar a história do despacho telegráfico? Não desejando a vingança, mas sim uma sincera reconciliação, agora mesmo é que devia calar-se a respeito dela. Mas antes já a contara por toda parte, quando estava de bem com a tia, contando-a sem maldade, para fazer rir, e porque era a indiscrição em pessoa. Contara-a, mas sem que a Sra. de Villeparisis o soubesse. De modo que, tendo sabido pela sua carta que ele pretendia desonrá-la divulgando um episódio onde ele próprio lhe declarara que ela agira bem, a Sra. de Villeparisis pensara que ele se enganara antes, e mentia fingindo amá-la. Tudo isto se pacificara, mas ambos não sabiam exatamente a opinião que um tinha do outro. Decerto, trata-se aí de um caso um tanto especial de brigas intermitentes. De natureza diversa eram as brigas de Bloch e de seus amigos. De outra natureza ainda, as do Sr. de Charlus, como se verá, com pessoas bem diferentes da Sra. de Villeparisis. Apesar disso, é preciso lembrar que a opinião que temos uns dos outros, as relações de amizade, de família, não têm nada de fixo a não ser em aparência, e são eternamente mutáveis como o mar. Daí, tanto rumor de divórcio entre esposos que parecem tão perfeitamente unidos e que, pouco depois, falam ternamente um do outro; tantas infâmias ditas por um amigo que julgávamos inseparável e com quem nos reconciliaremos antes de termos tido tempo de nos recobrar da surpresa; tantas alianças desfeitas entre os povos, em tão pouco tempo. 
- Meu Deus, a coisa está ardendo entre meu tio e a Sra. Swann - disse-me Saint-Loup. - E mamãe que, em sua inocência, vem perturbá-los. Aos puros, tudo é puro!

     Eu observava o Sr. de Charlus. O pequeno tufo de seus cabelos cinzentos, seu olho, cuja sobrancelha estava erguida pelo monóculo e que sorria, sua botoeira com flores rubras, formavam como que os três vértices móveis de um triângulo convulsivo e impressionante. Não ousara cumprimentá-lo, pois ele não me fizera nenhum aceno. Ora, ainda que ele não se tivesse virado na minha direção, eu estava convencido de que me havia visto; enquanto contava alguma história à Sra. Swann, cujo esplêndido manto cor de amor-perfeito flutuava até mesmo sobre um joelho do barão, os olhos errantes do Sr. de Charlus, idênticos aos de um camelô que teme a chegada do rapa, certamente haviam explorado cada parte do salão, descobrindo todas as pessoas que ali se encontravam. O Sr. de Châtellerault foi cumprimentá-lo sem que nada no rosto do Sr. de Charlus revelasse que ele tivesse percebido o jovem duque antes do momento em que este se achou à sua frente. Era assim que, nas reuniões um pouco numerosas como esta, o Sr. de Charlus conservava, de forma quase constante, um sorriso sem direção determinada nem destinação especial, e que, preexistente desse modo aos cumprimentos dos recém-chegados, apresentava se, quando estes penetravam em sua zona, desprovido de qualquer sinal de amabilidade para com eles. Não obstante, era necessário que eu fosse cumprimentar a Sra. Swann. Mas, como ela ignorava que eu conhecia a Sra. de Marsantes e o Sr. de, Charlus, mostrou-se bastante fria, temendo sem dúvida que eu lhe pedisse para ser apresentado. Então, encaminhei-me para o Sr. de Charlus e logo me arrependi, pois, devendo muito bem ter-me visto, não o deixou transparecer em coisa alguma. No momento em que me inclinei diante dele, encontrei, distante de seu corpo, do qual impedia-me de me aproximar todo o comprimento de seu braço estendido, um dedo viúvo, por assim dizer, de um anel episcopal, que ele dava a impressão de oferecer, para que o beijassem no lugar consagrado, e pareceu que eu havia penetrado, contra a vontade do barão, e por um arrombamento cuja responsabilidade ele me deixava, na permanência e na dispersão anônima e vaga de seu sorriso. Essa frieza não foi própria a encorajar a Sra. Swann a abandonar a sua. 

- Como pareces cansado e inquieto - disse a Sra. de Marsantes ao filho, que tinha vindo saudar o Sr. de Charlus.

     E com efeito, os olhos de Robert pareciam por instantes atingir uma profundeza que logo abandonavam, como um mergulhador que tocou o fundo. Tal fundo, que fazia tanto mal a Robert quando o tocava, que ele o abandonava logo para a ele retornar um momento após, era a idéia de que havia rompido com a amante. 

- Não quer dizer nada - acrescentou sua mãe acariciando-lhe o rosto. - É bom estar com o meu filhinho.
  
continua na página 120...
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Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Era um tipo de raciocínio)
Volume 4
Volume 5
Volume 7