Origens do Totalitarismo
Hannah Arendt
Parte I
ANTISSEMITISMO
Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória.
Roger Martin du Gard
3. Os Judeus e a Sociedade
3.3 - Entre o vício e o crime
Paris foi chamada com justiça la capitale du dixneuvième siècle (Walter Benjamin). Cheio de promessas,
o século XIX havia começado com a Revolução Francesa, testemunhara durante mais de cem anos o
esforço inútil para evitar que o cidadão degenerasse em burguês, alcançou seu apogeu no Caso Dreyfus e
manteve-se ainda por catorze anos de trégua mórbida. A Primeira Grande Guerra pôde ainda ser ganha
pelo encanto jacobino de Clemenceau, o último filho da Revolução Francesa, mas o século de glórias da
nation par excellence estava por terminar,[60] e Paris foi abandonada, sem significação política e sem
esplendor social, à vanguarda intelectual de todos os países. A França desempenhou papel insignificante
no século XX, que começou, após a morte de Disraeli, com a corrida colonial para a África, numa
competição pelo domínio imperialista da Europa. O declínio da França, portanto, motivado em parte pela
vitoriosa expansão econômica das outras nações, e em parte por desintegração interna, pôde assumir
formas e seguir leis inerentes ao Estado-nação.
O que ocorreu na França nos anos 80 e 90 aconteceria trinta a quarenta anos depois, em todos os
Estados-nações da Europa. A despeito das distâncias cronológicas e étnicas, a república alemã
de Weimar e a austríaca tinham historicamente muito em comum com a Terceira República da
França, e certos padrões políticos e sociais na Alemanha e na Áustria dos anos 20 e 30 pareciam
seguir quase conscientemente o modelo do fin-de-siècle francês.
O antissemitismo do século XIX alcançou na França seu clímax, e foi ali derrotado porque
manteve-se limitado à questão doméstica e nacional, sem contato com correntes imperialistas.
Os traços principais desse tipo de antissemitismo reapareceram na Alemanha e na Áustria após a
Primeira Grande Guerra, e seu efeito social sobre as respectivas comunidades judaicas foi
menos agudo, mas sujeito a outras influências.[61]
Escolhemos os salões do Faubourg Saint-Germain como exemplo do papel dos judeus na
sociedade não-judaica da França. Quando Mareei Proust — que era semijudeu e em situações de
emergência estava sempre pronto a identificar-se como judeu — saiu em busca do "tempo
perdido", escreveu realmente o que um dos seus críticos mais apologéticos chamou de uma
apologia pro vita sua. A vida daquele que foi o maior escritor da França do século XX foi
vivida quase exclusivamente em sociedade; os eventos se lhe afiguravam como eram refletidos
pela sociedade, de modo que os reflexos e as reconsiderações constituem a realidade específica
e a textura do mundo de Proust.[62] Em toda a Busca do tempo perdido, o indivíduo e suas
reconsiderações pertencem à sociedade, mesmo quando ele se retira para a solidão muda e
incomunicativa, na qual o próprio Proust finalmente desapareceu quando decidiu escrever sua
obra. Ali, sua vida, que ele insistia em transformar em experiência interior, e todos os
acontecimentos mundanos tornaram-se espelho em cujo reflexo surgia a única verdade. O
contemplador da experiência interna assemelha-se ao observador que percebe a realidade
somente quando esta é refletida.
Na verdade, não existe melhor testemunho daquele período em que a sociedade se havia
emancipado completamente dos interesses públicos, e quando a própria política chegou a fazer
parte da vida social. A vitória dos valores burgueses sobre o senso de responsabilidade do
cidadão significava a decomposição das questões políticas em fascinantes reflexos. Proust era
verdadeiro expoente dessa sociedade, pois estava envolvido em dois "vícios" elegantes, de que
ele, "a maior testemunha do judaísmo desjudaizado",[63] era portador: ao seu "vício" da homossexualidade juntava o "vício" de ser judeu. Na análise social e na
consideração individual ambos os "vícios" se assemelhavam.[64]
Disraeli havia descoberto que o vício é apenas o reflexo aristocrático daquilo que, quando é
cometido entre as massas, é crime. A perversidade humana, quando é aceita pela sociedade,
transforma-se, e o ato deliberado assume as feições da qualidade psicológica inerente, que o
homem não pode escolher nem rejeitar, que lhe é imposta de fora e que o domina de modo tão
compulsivo como a droga domina o viciado. Ao assimilar o crime e transformá-lo em vício, a
sociedade nega toda responsabilidade e estabelece um mundo de fatalidades no qual os homens
se veem enredados. O julgamento que via no crime todo afastamento comportamental das
normas espelhava pelo menos maior respeito pela dignidade humana. Aceito o crime como
espécie de fatalidade, todos podem ser suspeitos de alguma inclinação por ele. "A punição é um
direito do criminoso", do qual ele é privado se (nas palavras de Proust) "os juízes presumirem e
estiverem inclinados a perdoar o assassínio nos homossexuais e a traição nos judeus, por
motivos devidos a suposta (...) predestinação genética". Mas num certo momento essa tolerância
pode desaparecer, substituída por uma decisão de liquidar não apenas os verdadeiros criminosos
mas todos os que estão "racialmente" predestinados a cometer certos crimes, o que pode ocorrer
quando a máquina legal e política, refletindo a sociedade, vier a ser transformada pelos critérios
sociais em leis a pregarem essa necessidade de libertação social do perigo em potencial. Se for permitido estabelecer o código legal peculiar à aparente largueza de espírito que liberta o
homem de responsabilidade pelo crime tornado igual ao vício, ele será mais cruel e desumano
do que as leis normativas, mesmo que severas, pois estas respeitam e reconhecem a
responsabilidade do homem por sua conduta.
Contudo, o Faubourg Saint-Germain, descrito por Proust, estava ainda nos estágios iniciais
desse desenvolvimento. Proust descreve de que modo mon-sieur de Charlus, tolerado "a
despeito do seu vício", logo atingiu os cumes sociais graças ao seu encanto pessoal e nome
tradicional. Não mais precisava viver uma vida dupla e esconder suas dúbias amizades, mas,
sim, era até encorajado a trazê-las para as casas elegantes. Certos tópicos de conversação que,
por medo de que alguém suspeitasse de sua anomalia, ele antes teria evitado — amor, beleza,
ciúme — eram agora avidamente recebidos "em vista da experiência estranha, secreta, refinada
e monstruosa sobre a qual ele baseava suas opiniões".[65]
Algo muito semelhante aconteceu com os judeus. As "exceções" individuais e os judeus
enobrecidos haviam sido tolerados e até bem recebidos mesmo na sociedade do Segundo
Império, mas agora os judeus tornavam-se cada vez mais populares como tais. Em ambos os casos, a sociedade não modificava as suas ideias e
preconceitos: não se duvidava que os homossexuais eram "criminosos" nem que os judeus eram
"traidores"; apenas revisava-se a atitude em relação ao crime e à traição em geral. O que é
perturbador no tocante a essa aparente largueza de espírito não está no fato de as pessoas não se
horrorizarem diante da rejeição das normas, mas que se tornavam indiferentes perante o crime.
A doença mais bem escamoteada do século XIX, o tédio e o cansaço geral da burguesia, havia
eclodido como abcesso. Ora, os marginais e os párias, a quem a sociedade recorria em busca do
exótico, fossem quem fossem, jamais se deixavam dominar pelo tédio e, se dermos crédito à
opinião de Proust, eram os únicos na sociedade do fin-de-siècle ainda capazes de sentir e
externar paixão. Proust se encontra no labirinto das conexões e ambições sociais pela
capacidade de amar de Charlus. A paixão pervertida de monsieur de Charlus por Morei, a
devastadora lealdade do judeu Swann a sua cortesã, o próprio ciúme desesperado do autor por
Albertine, que é, no romance, a própria personificação do vício, deixam bem claro que Proust
considerava os marginalizados e os arrivistas, os habitantes de Sodoma e Gomorra, não somente
mais humanos, mas também mais normais.
A diferença existente entre o Faubourg Saint-Germain que havia descoberto a atração exercida
pelos judeus e pelos homossexuais e a ralé que gritava "morte aos judeus" consistia no fato de
que os salões ainda não se haviam associado abertamente ao crime. Isso significava que, por um
lado, ainda não desejavam participar ativamente na matança, e, por outro, que ainda
professavam antipatia pelos judeus e horror pelos sexualmente anormais. Naquela situação
equívoca, os novos membros da sociedade não podiam ainda confessar abertamente a sua
identidade, mas tampouco podiam escondê-la. Tais foram as condições que advieram do
complicado jogo de exibição e ocultamente, de meias confissões e distorções mentirosas, da
humildade exagerada e da exagerada arrogância, consequência do fato de que, se a esotérica
qualidade de ser judeu (ou homossexual) havia a ambos aberto as portas dos salões, ao mesmo
tempo tornava sua posição extremamente insegura. Nessa situação equívoca, a qualidade de
judeu era para o judeu tanto uma mancha física como um misterioso privilégio pessoal, ambos
inerentes a uma "predestinação racial".
Proust descreve longamente como a sociedade, constantemente à espreita do estranho, do
exótico, do perigoso, finalmente identifica o refinado com o monstruoso e se prontifica a admitir
monstruosidades — reais ou imaginárias — como a estranha e desconhecida "peça russa ou
japonesa representada por atores nativos".[66] A "personagem pintada, rechonchuda e apertada em
seus botões lembra uma caixa de origem exótica e dúbia, da qual escapa um curioso aroma de
frutos, de modo que só o pensamento de prová-los já excita o coração".[67] O "homem de gênio",
supõe-se, transmitirá um "senso de sobrenatural" e em torno dele a sociedade "se reúne como em torno de távola giratória, para aprender o
segredo do Infinito".[68] Na atmosfera dessa "necromancia", um cavalheiro judeu ou uma senhora
turca poderiam parecer "como se fossem realmente criaturas invocadas pelo esforço de um
médium".[69]
Obviamente, o papel do exótico, do estranho e do monstruoso não podia ser representado por
aqueles "judeus-exceção" individuais que, durante quase um século, haviam sido admitidos e
tolerados como "arrivistas estrangeiros", e de "cuja amizade ninguém sonharia orgulhar-se".[70] Muito mais adequados eram, naturalmente, aqueles judeus que ninguém até então havia
conhecido e que, no estágio inicial de sua assimilação, não eram identificados com a
comunidade judaica nem eram seus representantes, pois a identificação e certo grau de
conhecimento teriam limitado severamente a imaginação e as expectativas da sociedade.
Aqueles que, como Swann, revelavam uma inata inclinação pela sociedade e pelo bom gosto em
geral eram admitidos; mais entusiasticamente aceitos, porém, eram aqueles que, como Bloch,
pertenciam a "uma família de pouca reputação, (e) que tinham de suportar, como no fundo do
oceano, a incalculável pressão do que lhes era imposto não apenas pelos cristãos, mas por todas
as camadas intermediárias de castas judaicas superiores à sua, cada uma das quais esmagava
com desprezo a que estava imediatamente abaixo". A disposição da sociedade em receber o estranho e o viciado — o mais estranho e o mais viciado possível — pôs fim à ascensão de
várias gerações em que os recém-chegados tinham de "cavar o seu caminho em direção ao ar
livre, erguendo-se de uma família judia à outra família judia".[71] Não foi por acidente que isso
aconteceu pouco depois de a comunidade judaica nativa da França ter cedido ante a iniciativa e
a falta de escrúpulos de alguns aventureiros judeus alemães, demonstradas durante o escândalo
do Panamá; as exceções individuais, com ou sem título nobiliárquico, que ainda mais
avidamente do que antes buscavam a sociedade de salões, já antissemitas e monarquistas, onde
julgavam poder sonhar com os bons velhos tempos do Segundo Império, encontravam-se na
mesma categoria daqueles judeus que eles próprios jamais convidariam para uma visita em sua
casa. Se a qualidade de ser judeu, como a qualidade de ser exceção, constituía a verdadeira
razão para a aceitação dos judeus, então preferiam-se pelo menos aqueles que formavam
claramente "uma tropa sólida, homogênea e completamente diferente das pessoas que a viam
passar", aqueles que ainda não haviam "alcançado o mesmo estágio de assimilação" dos seus
irmãos arrivistas.[72]
Embora Disraeli fosse um daqueles judeus que foram aceitos na sociedade por serem exceções,
sua auto-representação secularizada de "eleito" prefigurou e esboçou as linhas ao longo das
quais iria se dar a auto-interpretação judaica. Se esta, fantástica e crua como era, não houvesse sido tão estranhamente semelhante ao que a
sociedade esperava dos judeus, eles jamais poderiam ter representado seu dúbio papel. Não, naturalmente,
que adotassem de maneira conspícua as convicções de Disraeli ou deliberadamente elaborassem aquela
auto-interpretação, ainda tímida, de seus predecessores prussianos do começo do século XIX; a maioria
deles tinha a sorte de ignorar toda a história judaica. Mas, onde quer que os judeus fossem educados,
secularizados e assimilados sob as condições ambíguas do Estado e sociedade na Europa central e
ocidental, perdiam aquela medida de responsabilidade política que sua origem implicava e que os judeus
banqueiros ainda haviam sentido, embora sob a forma de privilégio e domínio. A origem judaica, sem
conotações religiosas e políticas, tornou-se por toda parte uma qualidade psicológica, transformou-se em
"qualidade de judeus", e daí por diante podia ser considerada somente na categoria de virtude ou de vício.
Se é verdade que a "qualidade de judeu" não se podia ter pervertido em vício interessante sem um
preconceito que a considerasse um crime, também é verdade que tal perversão só foi possível graças
àqueles judeus que a consideravam uma virtude inata.
Têm-se acusado os judeus assimilados de se alienarem do judaísmo, e frequentemente se pensa no
genocídio que os atingiu como um sofrimento tão horrível quanto insensato, na medida em que foi
desprovido até da antiga qualidade de martírio. Esse argumento despreza o fato de que, no que concerne
aos velhos modos de crença e de vida, a alienação era igualmente aparente nos países da Europa oriental.
Mas a noção costumeira de que os judeus da Europa ocidental eram "desjudaizados" é enganadora por
outra razão. O quadro pintado por Proust, em contraste com as afirmações obviamente unilaterais do
judaísmo oficial, mostra que nunca o fato de se ter nascido judeu representou um papel tão decisivo na
vida privada e na existência diária como entre os judeus assimilados. O reformador judeu que
transformou a religião nacional em denominação religiosa, sabendo que a religião é um assunto privado;
o revolucionário judeu que fingia ser um cidadão do mundo para desfazer-se da nacionalidade judaica; o
judeu educado, que era "um homem na rua e judeu em casa" — todos eles conseguiram converter uma
qualidade nacional em assunto privado. O resultado foi que suas vidas particulares, suas decisões e
sentimentos se tornaram centro de seu "judaísmo". E, quanto mais o fato do nascimento "judaico" perdia
seu significado religioso, nacional e econômico-social, mais obcecante se tornava esse "judaísmo"; os
judeus se obcecavam por ele como se fosse um defeito ou uma qualidade física, e se atinham a ele como
há quem se atenha a um vício.
A "disposição inata" de Proust nada mais é senão uma obsessão pessoal e particular, que era tão
amplamente justificada por uma sociedade na qual o sucesso e o fracasso dependiam do fato de se ter
nascido judeu. Proust viu nela, erradamente, a "predestinação racial", porque apenas enxergou e
descreveu seu aspecto social e seus efeitos sobre o indivíduo. E é verdade que, para o observador que a
registrasse, a conduta do grupo judaico mostrava a mesma obsessão que, nos padrões de conduta,
adotavam os homossexuais.
Ambos sentiam-se superiores ou inferiores, mas em ambos os casos orgulhosamente diferentes dos outros
seres normais; ambos acreditavam que a sua diferença era um fato natural adquirido por nascimento;
ambos estavam constantemente justificando, não o que faziam, mas o que eram; e, finalmente, ambos
hesitavam sempre entre a atitude de quem pede desculpas e a afirmação súbita e provocadora de quem se
julga elite. Como se a natureza houvesse congelado para sempre suas posições sociais, nenhum dos dois
podia sair do seu grupo e ingressar no outro. Também outros membros da sociedade sentiam a
necessidade de pertencer a um grupo — "a questão não é, como era para Hamlet, ser ou não ser, mas sim
pertencer ou não pertencer"[73] —, mas essa necessidade não era tão intensa. Uma sociedade que já se
desintegrava em pequenos grupos e não mais tolerava como indivíduos nem estranhos nem judeus nem
homossexuais, acolhendo-os apenas em virtude das circunstâncias peculiares que "permitiam" essa
aceitação, parecia corporificar os sentimentos de clã.
Cada sociedade exige de seus membros uma certa dose de representação — a capacidade de apresentar,
desempenhar, interpretar aquilo que se realmente é. Quando a sociedade se desintegra em grupos, essa
exigência não se aplica mais aos homens como indivíduos, e sim como membros dos grupos. A conduta
passa então a ser controlada por exigências silenciosas e não por capacidades individuais, exatamente do
modo como o desempenho de um ator deve enquadrar-se no conjunto de todos os outros papéis da peça.
Os salões do Faubourg Saint-Germain enquadravam-se nesse conjunto de grupos, cada qual exibindo um
padrão extremo de conduta. O papel dos anormais sexuais era exibir sua anomalia, o dos judeus era
representar a "magia negra", o dos aristocratas era mostrar que não eram como pessoas comuns, os
burgueses. A despeito do sentimento de clã, era verdade que, como observou Proust, "exceto em dias de
catástrofe geral, quando a maioria se agrupa em torno da vítima como os judeus se agruparam em torno
de Dreyfus",[74] todos esses recém-chegados evitavam relações com os outros membros de sua espécie. Os
sinais de distinção só sendo determinados pelo conjunto do grupo, os judeus — ou homossexuais —
sentiam-se privados de sua distinção numa sociedade de judeus ou de homossexuais, onde a condição de judeu ou de homossexual era a mais natural, mais desinteressante e mais banal do mundo. O mesmo,
contudo, era também verdadeiro com relação àqueles que os acolhiam, e que necessitavam de um
conjunto de elementos em contraponto, diante dos quais eles próprios pudessem ser diferentes, os não
aristocratas que admiravam os aristocratas, como estes admiravam os judeus ou os homossexuais.
Embora esses grupos não tivessem nenhuma consistência própria, dissolvendo-se logo que os membros
de outros grupos se afastavam, seus membros usavam de uma misteriosa linguagem de sinais, como se
necessitassem de algo estranho que os identificasse uns aos outros. Proust trata com detalhes a
importância desses sinais, especialmente para os recém-chegados. Contudo, ao contrário dos homossexuais, mestres em linguagem de sinais, que pelo menos escondiam um
segredo verdadeiro, os judeus usavam essa linguagem apenas para criar a esperada atmosfera de
mistério. Seus sinais indicavam, de modo misterioso e ridículo, algo que todo o mundo sabia:
que, no canto do salão da princesa de tal, estava sentado outro judeu que não podia abertamente
revelar sua identidade mas que, sem essa qualidade no fundo desprovida de sentido, nunca teria
galgado aquele lugar.
Vale notar que a nova sociedade mista do fim do século XIX, como os primeiros salões judeus
de Berlim, girava em torno da nobreza. A essa altura, a aristocracia havia perdido quase toda a
sua avidez pela cultura e a curiosidade pelos "novos espécimes da humanidade", mas
conservava ainda o velho desprezo pela sociedade burguesa. Ansiava pela distinção social como
resposta à igualdade política e à perda de posição e privilégios políticos que advieram com o
estabelecimento da Terceira República. Após a breve e artificial ascensão durante o Segundo
Império, a aristocracia francesa manteve-se apenas às custas de sentimento de clã e de pálidas
tentativas de reservar os mais altos postos do Exército para seus filhos. Muito mais forte que a
ambição política era o agressivo desdém pelos padrões da classe média, que, sem dúvida, foi um
dos principais motivos da aceitação de indivíduos e de grupos inteiros de pessoas que haviam
pertencido a classes socialmente rejeitadas. O mesmo motivo que havia levado os aristocratas
prussianos a se reunirem socialmente com atores e judeus levou na França os invertidos ao
prestígio social. Por outro lado, as classes médias não haviam adquirido a dignidade social,
embora houvessem, entretanto, galgado riqueza e poder. A ausência de uma hierarquia política
no Estado-nação e a vitória da igualdade tornou "a sociedade secretamente mais hierárquica à
medida que se tornava externamente mais democrática".[75] Como os círculos sociais exclusivos
do Faubourg Saint-Germain encarnavam o princípio da hierarquia, cada sociedade da França
"reproduzia as características mais ou menos modificadas, mais ou menos em caricatura daquela
sociedade do Faubourg Saint-Germain, que ela fingia, às vezes, (...) desdenhar,
independentemente do status ou das ideias políticas de seus membros". A sociedade
aristocrática pertencia ao passado apenas na aparência; na verdade, permeava todo o corpo
social (e não apenas o povo) e tinha suas ramificações não só na França; assim impunha "o tom
e a letra da vida social elegante".[76] Quando Proust sentiu a necessidade de uma apologia pro
vita sua e reanalisou a sua vida, vivida em rodas dos aristocratas, analisou a sociedade.
O aspecto principal do papel dos judeus nessa sociedade fin-de-siècle foi paradoxal: foi o antissemitismo do Caso Dreyfus que abriu aos judeus as portas da sociedade, e foi o fim do Caso, ou
melhor, a descoberta da inocência de Dreyfus que pôs um fim à sua glória social.[77] Em outras
palavras, não importava o que os judeus pensassem de si mesmos ou de Dreyfus; só podiam representar o papel que
lhes fora ditado pela sociedade, enquanto essa mesma sociedade estivesse convencida de que
pertenciam a uma raça de traidores. Quando se descobriu que o traidor era uma vítima assaz
obtusa de uma conspiração ordinária, e se provou a inocência dos judeus, o interesse social
pelos judeus murchou tão rapidamente quanto o antissemitismo político. Os judeus passaram
novamente a ser vistos como mortais comuns, e retornaram à insignificância, de onde haviam
sido temporariamente guindados pelo suposto crime de um dos seus.
Imediatamente após a Primeira Grande Guerra, os judeus da Alemanha e Áustria gozaram,
essencialmente, do mesmo tipo de glória social, embora sob circunstâncias muito mais severas.
Na época, seu suposto crime era serem culpados da guerra, crime que, por não ser mais
identificado como ato único de único indivíduo, não podia ser negado, de modo que o
julgamento da ralé — para a qual a condição de judeu já era um crime — permaneceu
inalterado, e a sociedade pôde continuar até o fim a divertir-se e sentir-se fascinada com os
judeus. Se existe alguma verdade psicológica na teoria do bode expiatório, ela está no efeito da
atitude social em relação aos judeus; pois, quando a legislação antissemita forçou a sociedade a
expulsar os judeus, foi como se esses "filo-semitas" tivessem de expurgar-se de alguma
depravação secreta, limpar-se de algum estigma de que, misteriosa e perversamente, haviam gostado. É certo que essa psicologia não chega a explicar por que esses "admiradores" dos
judeus tornaram-se finalmente seus verdugos, e pode-se mesmo duvidar que estivessem entre os
principais dirigentes das fábricas de morte, embora seja espantosa a proporção das chamadas
classes educadas entre aqueles que realmente assassinaram os judeus. Mas explica a incrível
deslealdade exatamente daquelas camadas da sociedade que mais intimamente haviam
conhecido os judeus e que mais se haviam deleitado e encantado com seus amigos judeus.
Para os judeus, a transformação do "crime" do judaísmo no "vício" elegante da condição de
judeu era extremamente perigosa. Os judeus haviam podido escapar do judaísmo para a
conversão; mas era impossível fugir da condição de judeu. Além disso, se um crime é punido
com um castigo, um vício só pode ser exterminado. A interpretação dada pela sociedade ao fato
de se nascer judeu e ao papel dos judeus na estrutura da vida social está intimamente ligada à
catastrófica minuciosidade com que os mecanismos antissemitas puderam ser postos a
funcionar. O antissemitismo tinha suas raízes nessas condições sociais, e não só nas
circunstâncias políticas. E, embora o conceito de raça tivesse outros fins e funções, mais
imediatamente políticos, sua aplicação à questão judaica em seu mais sinistro aspecto deveu
muito do seu sucesso aos fenômenos e convicções sociais que virtualmente significavam o
consentimento da opinião pública.
As forças decisórias nesse processo de levar os judeus ao centro da tempestade de
acontecimentos eram indubitavelmente políticas; mas as reações da sociedade ao antissemitismo
e o reflexo psicológico da questão judaica no indivíduo tiveram algo a ver com aquele tipo
específico de crueldade, com aquela agressão premeditada contra todo indivíduo de origem
judaica, que já caracterizavam o antissemitismo do Caso Dreyfus. Essa caça apaixonada ao
"judeu em geral", "judeu de toda parte e de parte nenhuma", não pode ser compreendida se se
considera a história do antissemitismo como entidade própria, como mero movimento político.
Houve fatores sociais não explicados na história política ou econômica, ocultos sob a tona dos
acontecimentos, nunca percebidos pelo historiador, e registrados apenas pela força mais
penetrante e apaixonada dos poetas e romancistas — homens que a sociedade havia impelido à
desesperada solidão e isolamento de uma apologia pro vita sua —, fatores que mudaram o rumo
que o mero antissemitismo político teria tomado, se fosse abandonado a si próprio, e que o teria
levado a leis antijudaicas, e até à expulsão em massa, mas não ao coletivo extermínio
indiscriminado.
Desde a época em que o Caso Dreyfus e a ameaça política que ele constituiu aos direitos dos
judeus da França produziram uma situação social na qual os judeus gozavam de uma glória
ambígua, o antissemitismo apareceu na Europa como uma mistura indissolúvel de motivos
políticos e elementos sociais. A primeira reação da sociedade a um forte movimento antissemita
era uma marcante preferência pelos judeus, de sorte que a observação de Disraeli, de que "não
há raça atualmente (...) que tanto deleite e fascine e enalteça e enobreça a Europa como os
judeus", se tornava particularmente verdadeira em tempo de perigo. O "filo-semitismo" social
sempre terminava por dotar o antissemitismo político daquele fanatismo misterioso sem o qual o
antissemitismo não poderia ter-se tornado o melhor lema para organizar as massas. Todos os
déclassés da sociedade capitalista estavam finalmente prontos a unir-se e a estabelecer suas
próprias organizações populares; sua propaganda e sua atração repousavam na premissa de que
uma sociedade que havia demonstrado estar disposta a incorporar à sua estrutura o crime sob a
forma de vício estaria agora pronta a purificar-se do mal, reconhecendo abertamente os
criminosos para publicamente cometer os crimes.
continua página 99...
________________
Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.3)
_________________
[60] Yves Simon, La grande crise de Ia Republique Française, Montreal, 1941, p. 20: "O espírito da Revolução Francesa
sobreviveu à derrota de Napoleão por mais de um século. (...) Venceu, mas apenas para desaparecer, sem ser notado, no dia 11 de
novembro de 1918. A Revolução Francesa? Suas datas deveriam ser fixadas em 1789-1918".
[61] O fato de certos fenômenos psicológicos não terem sido tão marcantes nos judeus alemães e austríacos provavelmente resulta,
em parte, da profunda influência do movimento sionista sobre os intelectuais judeus. O sionismo, na década que se seguiu à
Primeira Grande Guerra, e mesmo na década que a antecedeu, devia sua força menos à perspicácia política que à análise crítica de
reações psicológicas e fatos sociológicos. Sua influência era principalmente pedagógica e ia muito além do círculo relativamente
pequeno dos membros do movimento sionista.
[62] Comparem-se as interessantes observações sobre esse assunto, feitas por Emmanuel Levinas, em "L'Autre dans Proust",
noDeucalion, n? 2, 1947.
[63] J. E. van Praag, "Mareei Proust témoin du Judaisme déjudaisé", em Revue Juive de Genève, 1937, n?s 48, 49, 50. Uma curiosa coincidência (ou seria mais do que uma coincidência?) ocorre no filme Crossfire [No Brasil, Rancor], que lida com a
questão judaica. A história foi tomada de The brickfoxhole, de Richard Brooks, em que o judeu assassinado de Crossfire era um
homossexual.
[64] Para o texto que segue, ver especialmente Sodome et Gomorrhe, parte I.
[65] Sodome et Gomorrhe, parte II, capítulo III.
[66] lbid.
[67] lbid.
[68] Le côté de Guermantes, parte I, capítulo I.
[69] lbid.
[70] lbid.
[71] A Vombre des jeunesfilies enfleurs, II, "Noms de pays: le pays".
[72] lbid.
[73] Sodome et Gomorrhe, parte II, capítulo III.
[74] Sodome et Gomorrhe, parte I.
[75] Le côté de Guermantes, parte II, capítulo III.
[76] Ramon Fernandez, "La vie sociale dans 1'oeuvre de Mareei Proust", em Les Cahiers Mareei Proust, n? 2, 1927, XVI.
[77] "Mas, era o momento em que, das consequências do Caso Dreyfus, nascera um movimento antissemita, paralelo a um
movimento mais intenso, de penetração dos israelitas na sociedade. Não erravam os políticos ao pensarem que a descoberta do erro judiciário constituiria um golpe no antissemitismo. Mas, pelo
menos provisoriamente, um antissemitismo mundano seria assim, ao inverso, acrescido e exasperado." Ver A fugitiva, capítulo II.