segunda-feira, 30 de junho de 2025

Cinema: O Substituto

Estamos fracassando?


"estamos deixando todo mundo na mão, incluindo nos mesmos?"


"Henry Barthes é um professor de ensino médio, que apesar de ter o dom nato para se comunicar com os jovens, só dá aulas como substituto, para não criar vinculos com ninguém. Mas quando ele é chamado para lecionar em uma escola pública, se encontra em meio à professores desmotivados e adolescentes violentos e desencantados com a vida, que só querem encontrar um apoio para substituir seus pais negligentes ou ausentes. Sofrendo uma crise familiar, Henry verá três mulheres entrando em sua vida e vai começar a perceber como ele pode fazer a diferença, mesmo que isso venha com um alto custo."





"preciso ser bonita pra ser feliz... preciso fazer plástica pra ficar linda... preciso ser magra, famosa, estar na moda... os nossos jovens são ensinados que as mulheres são prostitutas, vadias, coisas para serem usadas, espancadas, envergonhadas, mortas... embrutecendo-se até a morte... para nos defendermos destes processos mentais temos que aprender a ler, estimular a nossa própria imaginação, cultivar a nossa própria consciência... para preservar as nossas mentes"


Elenco:

Adrien Brody - Henry Barthes
Sami Gayle - Erica
Christina Hendricks - Ms. Madison
James Caan - Mr. Seaboldt
Lucy Liu - Dr. Parker
Marcia Gay Harden - Diretora Carol Dearden
Bryan Cranston - Richard Dearden
William Petersen - Sarge
Blythe Danner - Ms. Perkins
Tim Blake Nelson - Mr. Wiatt
Betty Kaye - Meredith
Isiah Whitlock Jr. - Mr. Mathias
Doug E. Doug - Mr. Norris
Brennan Brown - Greg Raymond
Mary Joy - Rita
Jonathan Gutierrez - Garoto fumante
John Cenatiempo
Ronen Rubinstein - Gangster
Aaron Sauter - Marcus
Josh Pais - Pai de Meredith
Renee Felice Smith - Missy
Samantha Logan - Filha malcriada
Ralph Rodriguez


 um filme estadunidense de 2011, do gênero drama, dirigido por Tony Kaye


"e nunca me senti tão profundo e, ao mesmo tempo, tão alheio de mim e tão presente no mundo." Albert Camus


O Estrangeiro: Hoje, minha mãe morreu - Albert Camus


e você
deliberadamente acredita em mentiras 
sabendo que elas são falsas?

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (7a) - Contentava-se o príncipe

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

7.

     Contentava-se o príncipe em prestar atenção na conversa de Agláia com o Príncipe N... e Evguénii Pávlovitch quando, inesperadamente, o velhote anglomaníaco (que entretinha, a um canto, o velho dignitário, contando-lhe com muita animação uma história qualquer), pronunciou o nome de Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev. Míchkin virou-se logo na direção dos dois e ficou a escutar.
     Discorriam sobre negócios públicos e comentavam certos distúrbios havidos recentemente em propriedades rurais. Devia ser divertido o cunho da narrativa do anglomaníaco pois o velho, ao fim de cada período do locutor, desandava a rir. Aquele, de fato, narrava de modo muito pitoresco, ajudando o efeito com as mãos, pondo uma ênfase muito flexível nos fonemas. E contava como se vira obrigado, como consequência direta da recente legislação, a vender um esplêndido domínio na província, nada mais nada menos do que pela metade do valor real, embora não estivesse precisado de dinheiro; e como ao mesmo tempo se vira obrigado a conservar uma outra propriedade que estava arruinada, em litígio e sujeita a embaraços, tendo até gasto dinheiro com isso.

- Para evitar cair na aplicação da lei agrária, tive de protelar o inventário da propriedade antiga de Pavlíchtchev. Mais uma ou duas outras heranças como esta, e eles me arruínam... E deixe que lhe diga que eu deveria entrar na posse de nove mil acres de excelente terra.

     Estando por acaso o General Epantchín perto de Míchkin e lhe notando a atenção toda especial pela conversa, lhe disse baixo:

-  Nem tenha dúvida. Iván Petróvitch é parente do falecido Níkolái Andréievitch; aproveite o ensejo para travar conhecimento.

     O General Epantchín estivera até então a entreter um outro general que era o diretor da sua seção; desde muito percebera a situação deslocada do príncipe, preocupando-se com isso. Desejou trazê-lo com naturalidade para a conversação, e nesse sentido foi desentocá-lo, apresentando-o de novo àqueles grandes personagens.

- Pela morte dos pais, aqui o nosso Liév Nikoláievitch teve Nikolái Andréievitch como tutor! - explicou, indicando Míchkin a Iván Petróvitch.
- Agrada-me sobremodo ouvir isso - disse cortesmente este último. - E, de fato, recordo-me bem disso. Quando, à entrada, Iván Fiódorovitch nos apresentou, imediatamente reconheci o senhor. E foi pelo rosto; mudou pouco, é verdade. E me lembrei, embora o senhor só tivesse uns dez ou doze anos quando o vi. Aliás os seus traços são fáceis de guardar. Reconhecem-se logo...
- O senhor me viu quando eu era criança? 
     
     Iván Petróvitch reparou na surpresa do príncipe, e continuou:

- Sim, e há muito tempo! O senhor costumava viver em casa de meu primo, em Zlatovérkhovo. Não se recorda de mim? É muito provável que não se possa recordar.., O senhor, naqueles tempos, tinha uma espécie de doença: e que até me impressionou muito, naquela ocasião.
- Não me recordo do senhor, em absoluto - asseverou fervorosamente Míchkin. 

     Seguiram-se mais algumas palavras entre ambos. Da parte de Iván Petróvitch, muito calmas; da parte de Míchkin, muito agitadas. E logo ficou mais ou menos esclarecido que as duas senhoras, solteiras, primas de Pavlíchtchev, que tinham vivido na propriedade dele, em Zlatovérkhovo, e que haviam criado o príncipe, também eram primas de Iván Petróvitch. Este, como aliás qualquer outra pessoa, não saberia explicar o que induzira Pavlíchtchev a tomar tão a peito a proteção do jovem príncipe.

- “Não me ocorreu nenhuma curiosidade a respeito”. - ainda assim, parece que tinha uma excelente memória, pois ainda se lembrava de quanto a sua prima mais velha, Márfa Nikítichna, fora severa para com o seu pequenino pupilo - “tanto que, uma ocasião, me levantei a seu favor e ataquei o sistema de educação dela. Por qualquer coisinha, vara, e outra vez, vara! Convenhamos que para uma criança doente...” E como era mais terna a irmã caçula, Natália Nikítichna, para com a pobre criança... “Estão ambas - prosseguiu ele - na província de X... (embora não esteja certo se estão vivas) onde Pavlíchtchev lhes deixou pequenina propriedade extremamente bela. Parece-me que Márfa Nikítichna quis entrar para um convento, mas não tenho certeza, não. Acho que estou confundindo com outra pessoa... Foi ela, sim; contou-me no outro dia a senhora do médico.” 

     O príncipe ouvia com olhos radiantes de prazer e emoção. Calorosamente declarou que nunca se perdoaria de não ter ainda arranjado uma oportunidade para empreender uma visita às senhoras que o tinham educado, não obstante ainda poucos meses antes ter estado nas províncias do centro. Adiava sempre, tolhido por outros negócios. Mas que, desta vez.., estava decidido. Iria procurá-las nem que tivesse de se perder na província de X...

- Com que então o senhor conhece Natália Nikítichna!? Que delicada e santa natureza! E Márfa Nikítichna também!... Perdoe-me, mas acho que o senhor se engana no que disse de Márfa Nikítichna. Era severa, mas... como não haveria de perder a paciência com um idiota da marca que eu era naquele tempo? Ah! Ah! O senhor mesmo sabe muito bem que eu era um completo idiota. Ah! Ah! Ora, o senhor me viu, como é que não se lembraria disso? Diga-me, faça o favor, então... Meu Deus!... Então o senhor é parente de Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev?!
- Dou-lhe a minha palavra que sou - disse Iván Petróvitch com um sorriso, examinando o príncipe. 
- Oh! Eu não disse isso porque estivesse duvidando... E, na verdade, como haveria eu de duvidar afinal, ah, ah! Mas que homem que foi Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev! Que coração boníssimo!

     Míchkin não estava propriamente sem fôlego e sim “sufocado pela gratidão”, como disse no dia seguinte Adelaída a seu noivo, Príncipe Chtch ...

- Misericórdia e clemência! exclamou rindo Iván Petróvitch. - Por que não poderei eu também ser parente de um homem de coração boníssimo? 
- Oh! Meu Deus! - disse logo Míchkin  dominado pela confusão e cada vez mais afoito - Tornei a dizer uma estupidez. Mas isso tinha de acontecer porque eu... eu... eu... Mas eis outro despropósito que me ia saindo! Mas, quem sou afinal, digam, diante de tantos interesses, tão vastos interesses, comparado com um tão nobre coração? Pois o senhor bem sabe: ele foi realmente um coração nobilíssimo, não foi? Não foi? 

     O príncipe positivamente tremia todo. É difícil dizer por que motivo estaria tão agitado, em tal paroxismo de emoção, assim quase inconveniente, toda a sua maneira tão desproporcionada com o assunto geral e a conversa do seu grupo. Seu estado de espírito era consequência da mais viva e ardorosa gratidão que se estendia a Iván Petróvitch, senão a todos. “Espumava de felicidade”. Iván Petróvitch começou a fitá-lo mais detidamente, e o próprio dignitário passou a prestar-lhe uma atenção mais especial.
     A Princesa Bielokónskaia, contraindo os lábios, olhava para Míchkin com raiva. O Príncipe N..., Evguénii Pávlovitch, o Príncipe Chtch... e as moças interromperam a conversa e se puseram a escutar. Agláia apenas parecia assustada, mas Lizavéta Prokófievna tinha o coração em sobressalto. E a culpa era delas, mãe e filhas, que se tinham comportado de modo tão estranho, na antevisão de tudo, havendo decidido que seria melhor para o príncipe ficar toda a noite sentado e quieto. Mas a verdade é que quando o viram sentado, em completa solidão, perfeitamente satisfeito em seu canto, se sentiram mortalmente penalizadas. Aleksándra estivera a ponto de ir ter com ele, atravessando o salão e, para ficar mais próxima, se ajuntara ao grupo do Príncipe N..., perto da velha Bielokónskaia. Quando porém, agora, Míchkin resolvera falar, ficaram por demais preocupadas.

- Bem razão tem o senhor de dizer que ele foi o mais excelente dos homens. - pronunciou Iván Petróvitch com uma expressão onde já não havia traço de sorriso. - Sim, sim, era um excelente homem! Excelente e valioso. - acrescentou depois de uma pausa. - De valor sob qualquer aspecto, pode-se dizer - insistiu mais expressivamente ainda, depois de um outro intervalo. - E é muito agradável ouvir isso da sua parte!...
- Não foi com esse Pavlíchtchev que houve uma história extravagante com.., com o abade?.., o abade?... Esqueci o abade qual foi... mas todo o mundo andou falando disso em certa ocasião! - sobreveio o dignitário, tentando lembrar- se.  
- Com o Abade Goureau, um jesuíta - lembrou-lhe Iván Petróvitch. - E aí tem o senhor a que se expõe a nossa mais excelente e preciosa gente! Pois ele era, além de tudo, um homem de boa estirpe e de fortuna, viria a ser um gentil homem da câmara se tivesse preferido continuar nas funções... E não é que repentinamente abandonou a carreira para ingressar na Igreja Romana e se tornar um jesuíta, com a maior decisão, com uma espécie mesmo de entusiasmo? Mas morreu na hora certa... conforme todo o mundo disse.

     Míchkin ficou inteiramente pasmado.

- Pavlíchtchev converteu-se à Igreja Romana? Impossível! -exclamou horrorizado.
- “Impossível”? Com efeito! - E Iván pronunciou isto com, firmeza. - Exagera muito, o senhor, não lhe parece, caro príncipe?... Principalmente tendo, como tem, tão alto conceito do falecido... Certamente que ele foi um homem de grande coração e isso, principalmente, atribuo eu o sucesso desse velhaco Goureau. Mas nem me pergunte que amolações e trapalhadas não tive eu depois com esse caso e com esse Goureau. Imagine o senhor disse voltando se para o dignitário -, tentaram demandar contra testamento e me vi obrigado a recorrer às mais vigorosas medidas para os repor no uso da razão, pois eles eram de primeira ordem neste gênero de especialidade. Formidável gente! Mas, louvado seja Deus! Tudo isso aconteceu em Moscou. Dirigi-me diretamente à Corte e logo os reconduzimos a um raciocínio mais lúcido. 
- O senhor nem imagina quanto me aflige e me faz pasmar asseverou o príncipe.
- Sinto muito. Mas como fato em si, tudo isso não passou de insignificante negócio e acabou em fumaça, como tais coisas sempre acabam. Nem penso mais nisso. No verão passado - virou-se para o velho - contaram-me que a Condessa K... entrou para um convento católico, no estrangeiro. Os russos, uma vez na mão desses velhacos, não se livram mais... especialmente estrangeiro. 
- Isso tudo provém do nosso tédio - murmurou, com autoridade, o velho dignitário. 
- As maneiras que eles empregam para conquistar prosélitos é repugnante e só própria deles. Sabem como intimidar o povo. Também a mim me pregaram um bom susto, em Viena, em 1832. É o que lhe digo! Mas não me apanharam. Fugi lhes das malhas, ah, ah! Consegui escapulir...
- A mim, o que me contaram, meu caro senhor, foi que o senhor fugiu de Viena para Paris com a Condessa Levítzkaia, abandonando o seu posto, e não por causa dos jesuítas - intrometeu-se inesperadamente a Princesa Bielokónskaia. 
- Procurando bem, deve haver nisso um jesuíta - retorquiu o velho dignitário, rindo ante a agradável recordação. Mas genialmente acrescentou, refugiando-se no pasmo do Príncipe Liév Nikoláievitch que o estava ouvindo de boca aberta e que ainda mais espantado ficou: - O senhor parece-me muito religioso, coisa que hoje em dia não se encontra com frequência entre gente nova.  

     Por qualquer motivo o príncipe se tornou objeto de atenção para ele que evidentemente quis estudá-lo mais intimamente.

- Pavlíchtchev, que era um homem iluminado e um cristão, um verdadeiro cristão - declarou Míchkin sem que isso fosse esperado -, como pôde aceitar uma fé que não é cristã? O catolicismo vale tanto como qualquer religião não cristã - ajuntou, de repente, olhando em volta, como a querer, com os olhos cintilantes, esquadrinhar todo o grupo.
- Ora, vamos, isso é exagerado - balbuciou o velho que olhou, surpreendido, para o General Epantchín. 
- Por que diz o senhor que o catolicismo é uma religião anticristã? - interrogou Iván Petróvitch virando-se lá da sua cadeira. - Que é então?
- Primeiramente é uma religião anticristã - começou o príncipe com excesso de animação, respondendo com uma presteza mais que afoita. - Em segundo lugar, o catolicismo é até pior do que o ateísmo, na minha opinião. Sim, esta é a minha opinião. O ateísmo apenas nega, ao passo que o catolicismo deturpa o Cristo, calunia, difama e se opõe ao Cristo. Prega o anticristo! Declaro e assevero que prega o anticristo. Esta é a convicção a que cheguei e que me atribulou. O catolicismo romano não consegue sustentar a sua posição sem uma política universal de supremacia e exclama: “Non possumus!” Assim, a meu ver, nem religião é, mas tão somente uma espécie de tentativa de continuação do Império Romano Ocidental, tudo nela está subordinado a esta ideia, começando mesmo pela fé. O Papa se apoderou da terra, seu trono terrestre, e empunhou o gládio. Desde então tudo continuou da forma antiga, sendo que à espada e ao gládio eles juntaram a mentira, a fraude, o embuste, o fanatismo, a superstição e a vilania. Divertiram-se com os mais santos. mais sinceros e mais ferventes sentimentos do povo. Trocaram tudo, tudo, pelo dinheiro, pela vil força terrena. E não é justamente isso que ensina o Anticristo? Como poderia o ateísmo deixar de provir dele? O ateísmo emergiu do próprio catolicismo romano! Este gerou aquele. Começou pelos seus adeptos: poderiam eles crer em si próprios? Um se fortaleceu com a reação contra o outro. Um foi procriado pela mentira e pela incapacidade espiritual do outro. Ateísmo! Entre nós são só as chamadas classes excepcionais que não creem, aquela camada que conforme tão bem se expressou Evguénii Pávlovitch, perdeu as suas raízes. Mas aí pela Europa uma formidável massa de gente está começando a perder a fé, um pouco por causa da treva e da mentira e muito, principalmente agora, por causa do fanatismo e do ódio da igreja e da cristandade. 

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (7a) - Contentava-se o príncipe
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sábado, 28 de junho de 2025

Massa e Poder - A Malta: A Malta de Caça

Elias Canetti

A MALTA

      A Malta de Caça

     Com todos os meios de que dispõe, a malta de caça move-se em direção a um ser vivo que deseja abater para, então, incorporar. O abater é, pois, sempre a sua meta mais próxima. O alcançar e o cercar são seus meios mais importantes. Seu alvo é um único e grande animal, ou um grande número de animais a fugir em massa diante de seus olhos.
     A presa está sempre em movimento e é perseguida. Tudo depende da rapidez do movimento da malta: ela deve correr mais que a caça, a m de cansá-la. Em se tratando de animais, e em se conseguindo cercá-los, a fuga em massa da presa converte-se em pânico: cada um dos animais caçados procurará, então, safar-se por seus próprios meios do cerco de seus inimigos.
     A caçada estende-se por um espaço amplo e cambiante. No caso da caça a um único animal, a malta seguirá existindo enquanto a caça for capaz de defender a própria pele. A excitação aumenta durante a caçada, exprimindo-se nos gritos que um caçador dirige a outro e que intensificam a sede de sangue.
     A concentração num único objeto — objeto este que está sempre em movimento, que se perde de vista mas reaparece, que desaparece com frequência e que se precisa novamente procurar, que jamais se vê livre do propósito assassino de seu perseguidor e é mantido incessantemente num estado de medo mortal —, tal concentração é a de todos juntos. Cada um tem em vista o mesmo objeto e se move em sua direção. A distância entre a malta e seu objeto, que diminui pouco a pouco, faz-se menor para todos. A caçada possui um ritmo mortal e comum a todos. Tal ritmo mantém-se pelo terreno cambiante, e faz-se mais violento quanto mais próximo se chega do animal. Uma vez que se alcançou o animal, chegada a hora de atingi-lo, todos têm oportunidade de matar, e todos experimentam fazê-lo. Suas lanças ou flechas podem concentrar-se numa única criatura. Elas constituem o prolongamento dos olhares cobiçosos ao longo da caçada.
     Todo estado dessa espécie tem seu m natural. Se clara e nítida é a meta almejada, nítida e súbita é também a transformação da malta, uma vez atingida aquela meta. O frenesi diminui no momento de abatê-la. Postados ao redor da vítima tombada, todos se fazem subitamente silentes. Os presentes formam o círculo de todos aqueles aos quais cabe uma porção da presa. Qual lobos, eles poderiam fincar os dentes na caça. Contudo, a incorporação a que as alcateias dão início com a vítima ainda viva é adiada pelos homens para um momento posterior. A partilha ocorre sem desavenças e segundo determinadas regras.
     Pouco importa se o que se abateu é grande ou vário: se a caçada foi empreendida por toda uma malta, a partilha da presa entre seus membros é indispensável. O processo que então tem início é exatamente o oposto daquele da formação da malta. Agora, cada um quer a sua parte, e que ela seja a maior possível. Não possuísse a partilha regras precisas; não houvesse algo como uma antiga lei a regulá-la, e homens experientes a velar por seu cumprimento, ela haveria de terminar em assassinato e morte. A lei da partilha é a mais antiga das leis.
     Da partilha, há duas versões fundamentalmente diversas: segundo uma, ela se restringe unicamente ao círculo de caçadores; segundo a outra, acrescem a estes também as mulheres e aqueles homens que não participaram da malta de caça. Originalmente, aquele que preside a partilha, a quem cabe zelar para que sua execução se dê em ordem, não extrai desse seu posto vantagem alguma. Pode mesmo ocorrer, conforme é o caso nas caças de alguns esquimós a baleias, que, em nome de sua honra, ele renuncie a tudo. O sentimento do caráter comunitário da presa pode ir bem longe: entre os koriaks da Sibéria, o caçador ideal convida a todos a servirem-se de sua presa, contentando-se com os restos que lhe deixarem.
     A lei da partilha é assaz complexa e variável. A porção de honra da presa nem sempre cabe àquele que lhe desferiu o golpe mortal. O direito a tal porção é, por vezes, daquele que viu primeiro a caça. Contudo, mesmo quem, de longe, foi apenas testemunha da morte pode ter direito a uma parte da presa. Nesse caso, os espectadores são considerados cúmplices do ato e, sendo corresponsáveis por ele, gozam também de seus frutos. Cito esse preceito extremo e não tão frequente com o intuito de mostrar quão forte é o sentimento de unidade que irradia da malta de caça. Qualquer que seja a regulamentação que reja a partilha, avistar e matar a presa são os dois atos considerados decisivos.

continua página 146...
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Massa e Poder - A Malta: A Malta de Caça
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Transformações (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Transformações 
.
continuando...

     Ambos os médicos, ora um, ora outro, ministravam o remédio, mas o conselheiro fazia-o com perícia, de um só golpe, esvaziando a seringa no próprio momento da picada. De resto não se preocupava com o lugar em que picava, de maneira que às vezes resultava uma dor infernal, e o ponto acometido permanecia por muito tempo duro e ardente. Além disso a injeção atacava fortemente o organismo em geral, abalando o sistema nervoso à maneira de um violento esforço desportivo. Isso e também a elevação momentânea da temperatura, que o remédio produzia, atestavam-lhe o poder que possuía. Era o que o conselheiro predissera e o que acontecia, segundo a regra e sem que o fenômeno anunciado desse motivo para queixas. A história toda levava apenas um instante, quando, finalmente, chegava a vez da pessoa; num ápice recebia-se o contra veneno sob a pele da coxa ou do braço. Mas, em certas ocasiões, quando o Dr. Behrens se achava bem disposto e não entristecido pelo tabaco, era possível entabular, durante a injeção, uma rápida palestra com ele, que Hans Castorp procurava dirigir, pouco mais ou menos, do seguinte modo: 

– Lembro-me com o maior prazer daquela agradável hora de café que passamos na sua casa, senhor conselheiro, no outono do ano passado. Ainda ontem, ou talvez um pouco antes, falei com meu primo a esse respeito... 
– Gaffky 7 – disse o médico. – É o último resultado. O rapaz decididamente não faz menção de se desintoxicar. E contudo nunca me suplicou tanto como agora, nunca insistiu tanto comigo em ir-se embora, para brandir o sabre. Esse criançola! Anda choramingando por causa dos seus quinze meses, como se fossem séculos que ele desperdiça aqui! Quer partir de qualquer maneira. Então já lhe disse a mesma coisa? O senhor deveria falar-lhe da sua parte, seriamente e com firmeza. Esse sujeito vai se arruinar totalmente, ao engolir antes do tempo a poética cerração de vocês, com aquilo que ele tem à direita, em cima. Um ferrabrás como ele não precisa de muita massa cinzenta, mas o senhor, como homem mais circunspecto e como civil de formação burguesa, tem a obrigação de fazê-lo entrar no juízo, antes que ele cometa alguma loucura. 
– É o que faço, senhor conselheiro – respondeu Hans Castorp, sem deixar de dirigir o rumo da conversa. – Faço isso muitas vezes, quando ele procura rebelar-se, e eu acho que Joachim voltará à razão. Mas os exemplos que a gente tem diante dos olhos nem sempre são os melhores. É isso o que está ruim. A cada instante há alguém que parte; partem para a planície, por iniciativa própria, sem verdadeira autorização, e no entanto com uma alegria festiva, como se a partida fosse justificada. Isso exerce uma certa sedução sobre caracteres fracos. Faz pouco tempo, por exemplo... deixe ver quem partiu recentemente... Uma senhora, da mesa dos “russos distintos”, Mme. Chauchat. Ouvi dizer que ela viajou para Daghestan. Bem, Daghestan, eu não conheço o clima daquela região. Pode ser que seja menos desfavorável do que o nosso ar da praia. Mas em todo caso é um país plano, do nosso ponto de vista, embora geograficamente talvez seja montanhoso; não sou muito forte nessas coisas. Como é possível viver lá embaixo sem estar curado, num país onde faltam os conceitos básicos e ninguém tem uma ideia das nossas regras nem sabe quando se deve observar o repouso ou tomar a temperatura? Aliás, ela tenciona voltar de qualquer jeito, como me disse ocasionalmente... Mas, afinal, por que chegamos a falar dela?... Pois é, aquele dia encontramos o senhor no jardim; não é, doutor? Lembra-se ainda? Quer dizer, o senhor nos encontrou a nós, quando estávamos sentados num banco – sei ainda qual foi – e fumávamos. Ou melhor, quem fumava era eu, pois meu primo não fuma, inexplicavelmente. E o senhor também estava fumando. Então oferecemos um ao outro as nossas marcas preferidas; lembro-me perfeitamente. O seu Brasil me agradou muitíssimo, embora seja preciso tratá-lo como a um potro, com prudência; senão, acontece alguma coisa como aquela que se passou com o senhor depois dos dois pequenos Havanas, quando esteve a ponto de dançar a sua última dança. A gente pode gracejar sobre aquilo, porque tudo terminou bem... Recentemente encomendei em Bremen mais algumas centenas de Maria Mancini. Estou muito acostumado a essa marca, que me é simpática sob todos os aspectos. É verdade que o frete e a alfândega a encarecem sensivelmente, e se o senhor me aumentar de novo o prazo da minha permanência, sou capaz de me converter ao fumo daqui. Nas vitrines se veem charutos muito bonitos... E depois tivemos oportunidade de ver os seus quadros; lembro-me como se fosse hoje. Gostei sumamente dos seus trabalhos. Fiquei mesmo surpreendido ao ver quanta coisa o senhor consegue fazer com tintas a óleo. Eu nunca me atreveria a tanto. Foi nessa ocasião que vimos também o retrato de Mme. Chauchat, com a pele magistralmente reproduzida. Francamente, senti-me entusiasmado. Naquela época ainda não conhecia o modelo, ou apenas de vista e de nome. Depois, pouco antes da sua partida, cheguei a conhecê-la pessoalmente. 
– Não diga! – respondeu o conselheiro áulico. Era a mesma resposta que dera – o leitor nos permita esse retrospecto – quando Hans Castorp, antes do primeiro exame médico, lhe comunicara que tinha um pouco de febre. E não disse mais nada. 
– Sim, senhor, conheci-a pessoalmente – confirmou Hans Castorp. – Sei por experiência que não é fácil entabular relações com pessoas estranhas aqui em cima, mas entre Mme. Chauchat e eu a coisa arranjou-se, casualmente, à última hora. Saiu uma palestra que... – Hans Castorp acabava de receber a injeção, e aspirando o ar por entre os dentes, deu um chiado de dor. – Fff! Dessa vez tenho certeza, doutor, que o senhor acertou num nervo importantíssimo. Ah! sim, está doendo barbaramente. Muito obrigado, um pouquinho de massagem faz bem... Pois é, saiu uma palestra que fez com que nos conhecêssemos melhor. 
– Sim? E então? – perguntou o conselheiro, sacudindo a cabeça, com cara de quem espera uma resposta cheia de elogios e põe na pergunta, de antemão, a confirmação dos esperados elogios, baseada na experiência própria.
– Acho que o meu francês claudicou bastante – esquivou-se Hans Castorp. – Afinal de contas, donde saberia eu falar melhor? Mas, no momento preciso, as palavras estão à mão, de maneira que conseguimos entender-nos mais ou menos bem. 
– Não duvido. E então? – voltou o Conselheiro a indagar, acrescentando por sua conta: – Bonitinha, não é? 

     Hans Castorp, abotoando o colarinho, achava-se de pé, com as pernas e os cotovelos escancarados, e com o rosto levantado para o teto. 

– No fundo é uma velha história – disse. – Acontece nas estações de cura que duas pessoas ou até duas famílias vivam durante semanas sob o mesmo teto e contudo completamente distanciadas. Um dia travam conhecimento, apreciam-se sinceramente, e ao mesmo tempo ficam sabendo que uma delas está a ponto de partir. Imagino que tais ocorrências deploráveis se passem frequentemente. Num caso desses, a gente gostaria de conservar, pelo menos, um certo contato, ter notícias um do outro, quero dizer, por correspondência. Mas Mme. Chauchat... 
– Ué... ela não quer? – riu-se o conselheiro jovialmente. 
– Isso mesmo. Ela não quis saber disso. Será que ela também não escreve ao senhor, assim de vez em quando? 
– Que idéia! – respondeu Behrens. – Ela nem pensa nisso. Primeiramente por preguiça, e além disso, em que língua escreveria? Eu não sei ler russo. Arranho-o um pouco, em caso de necessidade, mas não leio nem uma palavra. E o senhor tampouco, não é? Bem, e quanto ao francês ou ao alemão, nossa gatinha sabe miá-los com muita graça, mas para escrever se veria em apuros. Não se esqueça da ortografia, meu amigo! Sim, senhor, com isso temos de nos conformar. Mas ela volta de vez em quando. É uma questão de técnica ou de temperamento, como eu já lhe disse. Uns partem às vezes e precisam voltar mais dia menos dia, enquanto outros ficam logo o tempo suficiente para nunca mais terem necessidade de voltar. Se o seu primo partir agora – não deixe de lhe dizer isso bem claramente – é possível que o senhor ainda esteja aqui para assistir às solenidades do regresso dele. 
– Mas, doutor, quanto tempo acha o senhor que eu... 
– Que o senhor? Que ele! Acho que ele ficará menos tempo lá embaixo do que passou aqui em cima. Esta é a opinião da minha humilde pessoa, e seria muita amabilidade sua se a transmitisse a ele.

     Era aproximadamente nesses termos que se desenrolava esse tipo de conversa, dirigidas com astúcia por Hans Castorp, embora com um resultado entre nulo e ambíguo. Quanto ao tempo que era preciso permanecer ali para presenciar a volta de um enfermo partido prematuramente, a resposta fora equívoca, e, no que se refere a certa pessoa desaparecida, fora até nula. Hans Castorp nada ouviria dela, enquanto os separasse o mistério do espaço e do tempo; ela não lhe escreveria, e ele tampouco encontraria uma oportunidade para fazê-lo... Mas, refletindo bem, como poderia ser de outra forma? Não fora uma ideia muito pedante e burguesa da sua parte essa de sugerir uma troca de cartas, ao passo que outrora considerara desnecessário e nem sequer desejável que se falassem? E lhe “falara” ele realmente, no sentido que o Ocidente culto dá a essa palavra? Falara-lhe naquela noite em que estivera a seu lado? Não se expressara apenas numa língua estrangeira, como que num sonho, e de modo pouco civilizado? Para que então escrever em papel de carta ou cartões-postais, como os dirigia de vez em quando ao pessoal lá de casa, na planície, a fim de relatar as vicissitudes dos resultados dos exames médicos? Não tinha Clávdia razão de se sentir desobrigada de escrever, devido à liberdade que a doença lhe outorgava? Falar, escrever – deveras um assunto eminentemente humanista e republicano, um assunto para o mestre Brunetto Latini, que redigira aquele livro sobre as virtudes e os vícios, doutrinara os florentinos e lhes ensinara a discursar e a governar a sua república em conformidade com as regras da política...
     Com isso, os pensamentos de Hans Castorp começaram a rumar para Lodovico Settembrini, e ele corou, assim como fizera certa vez quando o escritor entrara de súbito no seu quarto de doente, acendendo repentinamente as luzes. Sem dúvida, Hans Castorp poderia ter dirigido ao italiano também as suas perguntas relativas aos enigmas transcendentais, fosse apenas para provocá-lo ou para resmonear, sem a esperança de receber uma resposta do humanista, que só se preocupava com os interesses terrestres da vida. Mas, desde o baile de carnaval e a cena emocionada com que Settembrini saíra da saleta de música, as relações entre Hans Castorp e ele haviam-se entibiado até certo ponto, o que se explicava pela consciência pesada de um e pelo profundo agastamento pedagógico do outro. A conseqüência era que se evitavam mutuamente e, durante semanas inteiras, não trocaram palavra alguma. Continuava Hans Castorp a ser um “filho enfermiço da vida” aos olhos do Sr. Settembrini? Não, provavelmente o desenganara este homem que procurava a moral na virtude e na razão... E Hans Castorp punha-se a recalcitrar com relação ao Sr. Settembrini; cerrava o cenho e franzia os lábios cada vez que se encontravam, enquanto o olhar negro e brilhante do italiano pousava nele numa reprovação silenciosa. Não obstante, essa birra se desfez imediatamente, quando o literato, semanas após, voltou a lhe dirigir a palavra, se bem que o fizesse apenas de passagem e sob a forma de alusões mitológicas, cuja compreensão requeria certa cultura ocidental. Foi depois da refeição; encontraram-se perto da porta envidraçada que já não se fechava com estrondo. Ao passar pelo jovem, e na intenção de não se demorar junto dele, Settembrini disse: 

– Pois então, engenheiro, gostou da romã?

     Hans Castorp sorriu, satisfeito, mas um tanto acanhado. 

– Como?... Que é que o senhor quer dizer, Sr. Settembrini? Uma romã? Mas não nos serviram romãs! Nunca na vida comi... Isto é, um dia, sim, bebi xarope de romã com soda. Achei muito doce.

     O italiano, que já se achava a alguma distância, virou a cabeça e retrucou: 

– Aconteceu algumas vezes que os deuses ou os mortais visitaram o reino das sombras e encontraram o caminho de volta. Mas os habitantes do Inferno sabem que quem comeu dos frutos desse reino lhes pertence para sempre. 

     E prosseguiu no caminho, com as suas eternas calças claras de tecido xadrez, deixando atrás Hans Castorp, que deveria sentir-se “trespassado” por essas palavras cheias de significação. E, com efeito, o jovem se ressentiu até certo ponto, posto que, entre irritado e divertido em virtude de tamanha pretensão, murmurasse de si para si: 

– Latini, Carducci, spaghetti, deixe-me em paz! Mesmo assim, essas primeiras palavras que lhe haviam sido concedidas, tornaram-no muito feliz. Pois, apesar do troféu, da macabra lembrança que ele levava sobre o coração, afeiçoara-se ao Sr. Settembrini, a cuja presença ligava grande importância, e a idéia de se ver para sempre rejeitado e abandonado pelo italiano indubitavelmente lhe pesaria na alma de modo mais opressivo e mais cruel do que os sentimentos de um aluno que rodasse nos exames e gozasse das vantagens da ignomínia, à maneira do Sr. Albin... Contudo, não se atreveu a entabular, da sua parte, uma conversa com o seu mentor, e este deixou passar outras semanas inteiras antes de entrar novamente em contato com seu discípulo enfermiço.

     Isso sucedeu quando as ondas marinhas do tempo, rolando no seu ritmo eternamente invariável, haviam trazido a Páscoa, que foi celebrada no Berghof, assim como eram observadas escrupulosamente todas as etapas e todos os marcos miliários, para se evitar a monotonia confusa. Na hora do café da manhã cada pensionista encontrou ao lado do talher um tufo de violetas; no segundo café da manhã, todos receberam ovos coloridos, é a mesa festiva do almoço estava enfeitada de coelhinhos de açúcar e chocolate. 

– Já fez alguma vez uma viagem por mar, tenente, ou o senhor, engenheiro? – perguntou o Sr. Settembrini, quando, depois da refeição, com o palito entre os dentes, se aproximou da mesinha dos primos, no vestíbulo. Como a maioria dos pensionistas, tinham abreviado, nesse dia, de um quarto de hora o repouso principal, para instalar-se diante de uma xícara de café e de um cálice de conhaque. – Esses coelhinhos e esses ovos coloridos relembram-me a vida num vapor grande, diante de um horizonte vazio há semanas, no deserto salino. Tal vida se passa sob condições cujo perfeito conforto não consegue fazer esquecer, senão superficialmente, a sua natureza monstruosa, ao passo que nas zonas mais profundas da alma a consciência dela continua doendo em forma de um secreto horror... Reencontro aqui o espírito com que, a bordo de uma arca dessas, as festas da terra ferma são piedosamente observadas. Refletem-se nisso as reminiscências de pessoas que vivem fora do mundo, recordações sentimentais do calendário... Na terra firme seria hoje a Páscoa, não é? Na terra firme celebram hoje o aniversário do rei – e nós também o fazemos, o melhor que podemos. Nós também somos criaturas humanas... Não tenho razão?

     Os primos concordaram com ele. Realmente, era assim. Hans Castorp, comovido pelo fato de o italiano ter falado com ele, e instigado pelo remorso, elogiou a observação em altos brados. Achou-a espirituosa, magnífica, literária, e fez tudo para lisonjear o Sr. Settembrini. Indiscutivelmente, era apenas de um modo superficial – assim como o Sr. Settembrini acabava de expressar-se com tanta plasticidade – que o conforto de um transatlântico fazia olvidar as circunstâncias e o seu caráter perigoso. Se ele podia tomar a liberdade de desenvolver algumas ideias por sua conta – havia nesse conforto perfeito até uma certa provocação, algo semelhante àquilo que os antigos chamavam hybris (para agradar ao seu interlocutor, chegou a citar os próprios antigos!) Mencionou também a altivez do Rei Baltasar e outras coisas nefandas. Por outro lado, porém, o luxo a bordo envolvia – usou mesmo o verbo “envolver” – um grande triunfo do espírito humano e da honra humana. O homem, ao transferir esse luxo e esse conforto para as águas coroadas de espuma salgada e ao mantê-lo ali, audaciosamente, plantava, por assim dizer, o pé na cerviz dos elementos, das potências bravias, e isso envolvia a vitória da civilização humana sobre o caos, se lhe era permitido servir-se dessa expressão...

     O Sr. Settembrini escutou-o atentamente, com os pés e os braços cruzados, enquanto, num gesto gracioso, cofiava com o palito o bigode sinuoso. 

– É interessante – disse. – O homem não pode fazer observações gerais de certa extensão, a respeito de qualquer assunto que seja, sem se trair inteiramente, sem depositar nelas, malgrado seu, toda a sua personalidade, sem representar, de alguma forma parabólica, o tema fundamental e o problema primitivo da sua vida. É isso o que acaba de lhe acontecer, engenheiro. Aquilo que o senhor disse agora brotou de fato do fundo de seu Eu e expressou também, de um modo poético, o estado momentâneo desse Eu: continha a fase experimental... 
Placet experiri – riu-se Hans Castorp, pronunciando o “c” à italiana e sacudindo a cabeça afirmativamente. 
Sicuro, se se trata, no caso em apreço, da paixão respeitável de explorar o mundo e não de mera licenciosidade. O senhor mencionou a hybris. Serviu-se desse termo. Mas a hybris da razão em face das potências tenebrosas é a mais alta humanidade, e quando atrai sobre si a vingança de divindades ciumentas, per esempio, quando a arca de luxo vai a pique, achamo-nos sempre à frente de um fim honroso. Também a façanha de Prometeu era hybris, e as torturas que ele padeceu no penedo da Cítia são consideradas por nós o mais sagrado dos martírios. Mas que se deve dizer daquela outra hybris, da perdição na experiência libidinosa, feita com as potências contrárias s à razão e hostis ao gênero humano? Há honra nelas? Pode haver honra em tal conduta? Si o no?

     Hans Castorp mexia a colher na xícara, se bem que esta não contivesse mais nada. 

– Engenheiro, engenheiro! – prosseguiu o italiano, meneando a cabeça, e a mirada dos olhos negros fixou-se pensativamente no espaço. – Não teme o senhor o furacão do segundo círculo do Inferno, o furacão que agita e sacode os pecadores da carne, os infelizes que sacrificaram a razão à volúpia? Gran Dio! Quando tenho a visão do senhor varrido pelo vendaval, voando de cá para lá, de cabeça para baixo, sinto-me com vontade de cair ao chão, de tanto pesar, assim como cai um cadáver...

     Riram-se, contentes de ouvi-lo gracejar e dizer coisas poéticas. Settembrini, porém, acrescentou: 

– O senhor vai se lembrar, engenheiro, como na noite de carnaval, bebendo vinho, se despediu em certo sentido de mim. Sim, senhor, foi uma espécie de despedida. Bem, hoje é a minha vez. Tal como os senhores me veem agora, estou a ponto de lhes dizer adeus. Vou sair desta casa.

     Os primos ficaram pasmados. 

– Não é possível. Está apenas brincando! – exclamou Hans Castorp, como o fizera numa ocasião semelhante. Estava quase tão assustado como naquele outro dia. Mas também Settembrini replicou: 
– Nem um pouquinho. É como digo. Além disso, o senhor já andava preparado para ouvir essa notícia. Avisei-o de que estava decidido a levantar as minhas tendas e a estabelecer-me definitivamente em qualquer parte da “aldeia”, logo que se mostrasse insustentável a minha esperança de poder voltar, dentro de um prazo mais ou menos previsível, ao mundo do trabalho. Que quer o senhor que eu faça? Esse momento chegou. É coisa certa que não me posso curar. Posso prolongar a minha vida, mas só aqui. A sentença, o veredicto final é “prisão perpétua”. O Dr. Behrens acaba de pronunciá-lo com o seu peculiar bom humor. Muito bem, tiro as consequências. Aluguei uma habitação. Estou tratando do transporte dos meus modestos bens terrenos e dos utensílios do meu ofício literário... Não fica longe daqui, na “aldeia”. Nós nos veremos seguidamente, não há dúvida. Não perderei o senhor de vista, mas, como habitante da mesma casa, tenho a honra de me despedir.

     Era essa a comunicação que Settembrini lhes fizera no domingo de Páscoa. Os primos se haviam mostrado extraordinariamente comovidos. Demorada e repetidamente falavam com o literato sobre a sua decisão e as modalidades que lhe permitiriam observar o regime também na sua morada particular; tratavam do modo de levar adiante aqueles vastos trabalhos enciclopédicos que tomara a si, a sinopse de todas as obras-primas das belas-letras sob o ponto de vista dos conflitos originados pelo sofrimento e do seu extermínio; finalmente se informaram também a respeito dos futuros aposentos do Sr. Settembrini, que se achavam na casa de um “merceeiro”, como se expressava o italiano. Esse merceeiro alugara o andar superior da sua casa a um alfaiate natural da Boêmia, que por sua vez sublocava cômodos... Essas conversas, conforme explicamos, já pertenciam ao passado. O tempo ia avançando, e desde então já trouxera consigo mais de uma transformação. Settembrini realmente deixara de morar no Sanatório Internacional Berghof, e passara-se para a casa de Lukacek, alfaiate de senhoras, onde morava fazia semanas. Sua mudança não se realizara num trenó, senão a pé. Saíra ele envolto num curto sobretudo amarelo, de mangas e gola de peles. Acompanhara-o um homem, transportando, num carrinho de mão, a bagagem literária e terrena do escritor, que fora visto afastar-se, brandindo a bengala, após ter beliscado, com o dorso de dois dedos, as faces de uma das criadas, postada junto ao portão do edifício... Como já ficou dito, o mês de abril achava-se relegado quase inteiramente – mais de três quartas partes – à sombra do passado. Verdade é que ainda reinava pleno inverno. Pela manhã, a temperatura atingia uns escassos 6 graus acima de zero, nos quartos, ao passo que fora fazia 9 abaixo. Quando se deixava o tinteiro na sacada, durante a noite, a tinta congelava-se, formando um pedaço de gelo parecido com hulha. Mas era coisa sabida que a primavera vinha se aproximando. De dia, quando brilhava o sol, já se sentia pairando no ar um suave e delicado pressentimento. O período do degelo estava iminente, e a isso estavam ligadas as transformações que, irresistivelmente, se realizavam no Berghof. Nem sequer a autoridade e a palavra viva do conselheiro eram capazes de deter-lhe a progressão, posto que combatesse o preconceito popular contra o degelo, em toda parte, nos quartos e na sala, por ocasião de exames, visitas e refeições.

continua pág 233...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Transformações (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Doença da minha avó)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Primeiro

      Doença da minha avó. 
      Doença de Bergotte. 
      O duque e o médico. 
      Declínio da minha avó. 
      Sua morte.
      Atravessamos a avenida Gabriel, no meio da multidão de passeantes. Fiz a minha avó sentar-se num banco e fui procurar um fiacre. Ela, em cujo coração eu sempre me colocava para ajuizar a pessoa mais insignificante, agora estava fechada para mim, tornara-se uma parte do mundo exterior, e, mais do que a simples passantes, eu ainda era forçado a lhe calar o que pensava de seu estado, silenciar acerca da minha inquietação. Não poderia falar-lhe disso com mais confiança que a uma pessoa estranha. Ela acabava de me restituir os pensamentos, os desgostos, que desde a minha infância lhe confiara para sempre. Ainda não estava morta. Eu já me sentia só. E até aquelas alusões que ela fizera aos Guermantes, a Moliere, a nossas conversas sobre o pequeno clã, assumiam uma aparência sem apoio, sem causa, fantástica, porque saíam do nada dessa mesma criatura que amanhã talvez já não existisse e para quem já não teriam sentido algum, daquele nada incapaz de concebê-las que minha avó seria em breve.

- Senhor, não digo que não, mas o senhor não marcou hora comigo, não tem número. Além disso, não é meu dia de consulta, O senhor deve ter o seu médico. Não posso substituí-lo, a menos que ele me mande chamar para uma conferência. É uma questão de ontologia...

     No momento em que eu fazia sinal para um fiacre, havia encontrado o célebre professor E***, quase amigo de meu pai e de meu avô, de qualquer modo em relações com eles, e que morava na avenida Gabriel, e, tomado de súbita inspiração, fizera-o parar no instante em que entrava em casa, pensando que talvez desse um conselho excelente para a minha avó. Mas, apressado, depois de ter apanhado a sua correspondência, queria despedir-me e só lhe pude falar subindo com ele no elevador, do qual me pediu para deixar apertar os botões, o que nele era mania.  

- Mas, meu senhor, não lhe peço que receba minha avó, há de compreender depois do que lhe disser, ela não tem condições de subir; pelo contrário, peço-lhe que passe daqui a meia hora em nossa casa, para onde ela vai voltar. 
- Passar em sua casa? Mas, senhor, nem pense nisso. Vou jantar na casa do ministro do Comércio, preciso fazer uma visita antes, vou me vestir imediatamente e, para cúmulo da desgraça, uma das minhas duas casacas se rasgou e a outra não tem botoeira para colocar as condecorações. Rogo-lhe, faça-me o favor de não tocar nos botões do elevador, o senhor não sabe manejá-los, é preciso prudência em tudo. Essa botoeira vai me atrasar ainda mais. Enfim, por amizade com os seus familiares, se a sua avó vier logo, poderei recebê-la. Mas previno-lhe que só terei exatamente um quarto de hora para atendê-la.

     Eu partira de imediato, sem mesmo ter saído do elevador, que o professor E*** pusera ele próprio em movimento para me fazer descer, não sem me olhar com desconfiança.
     Bem dizemos que a hora da morte é incerta, mas, quando dizemos isto, afiguramo-nos essa hora como situada num espaço vago e longínquo, não imaginamos que ela tenha uma relação qualquer com o dia já começado, e possa significar que a morte ou sua primeira posse parcial de nós, após a qual não nos larga mais poderá ocorrer nessa mesma tarde, tão pouco incerta, essa tarde em que o emprego de todas as horas está previamente agendado. A gente se empenha em passear para obter, em um mês, o total de ar puro necessário, hesitamos quanto à escolha de uma capa para levar, do cocheiro para chamar, estamos num fiacre, o dia está inteiramente diante de nós, curto, porque desejamos voltar a tempo para receber uma amiga; também gostaríamos que fizesse bom tempo amanhã; e não desconfiamos que a morte que caminhava em nós em outro plano escolheu precisamente aquele dia para entrar em cena, dentro de alguns minutos, mais ou menos no instante em que o carro alcançasse os Champs-Élysées.
     Talvez aqueles a quem habitualmente assusta a singularidade própria da morte encontrem algo de tranquilizador nesse gênero de morte esse gênero de primeiro contato com a morte porque aí ela se reveste de uma aparência conhecida, familiar, cotidiana. Precederam-na um bom almoço e a mesma caminhada que fazem as pessoas de boa saúde. Um regresso em carro descoberto se superpõe ao seu primeiro ataque; por mais doente que estivesse minha avó, afinal diversas pessoas poderiam dizer que às seis da tarde, quando voltamos dos Champs-Élysées, elas a haviam cumprimentado, passando de carro descoberto, num tempo magnífico. Legrandin, que se dirigia para a praça da Concórdia, tirou o chapéu para nós, detendo-se com ar de espanto. Eu, que ainda não me desligara da vida, perguntei à minha avó se ela havia correspondido, lembrando-lhe que ele era suscetível. Minha avó, decerto me achando muito superficial, erguera a mão como para dizer:

"E então? Isso não tem nenhuma importância." 

     Sim, poderia ser dito, momentos antes, enquanto eu buscava um fiacre, que minha avó estava sentada num banco, na avenida Gabriel, que logo depois ela havia passado em carro descoberto. Mas seria mesmo verdade? O banco, ele, para que se mantenha numa avenida embora também esteja submetido a certas condições de equilíbrio -, não necessita de energia. Mas, para que uma criatura viva seja estável, mesmo apoiada num banco ou dentro de um carro, é preciso uma tensão de forças que em geral não percebemos, assim como não percebemos a pressão atmosférica, pois se exerce em todos os sentidos. Talvez se se fizesse o vácuo em nós e se nos deixassem suportar a pressão do ar, sentiríamos, no instante que precederia a nossa destruição, o terrível peso que nada mais neutralizaria. Da mesma forma, quando os abismos da doença e da morte se abrem em nós e que nada mais temos a opor ao tumulto com que o mundo e o nosso próprio corpo desabam sobre nós, então, até sustentar o peso de nossos músculos, até o arrepio que nos devasta a medula, então, até mesmo manter-nos imóveis no que de hábito julgamos não ser mais que a simples posição negativa de uma coisa, exige, se desejamos que a cabeça permaneça ereta e o olhar tranquilo, uma energia vital e torna-se objeto de uma luta exaustiva.
     E, se Legrandin nos olhara com aquele ar de espanto, era que, a ele como aos que então passavam, no fiacre em que minha avó parecia estar sentada sobre a banqueta, ela lhes aparecera afundando, deslizando para o abismo, agarrando-se desesperadamente às almofadas que mal podiam reter seu corpo precipitado, os cabelos em desordem, o olhar perdido, já incapaz de fazer frente ao assalto das imagens que sua pupila não conseguia mais sustentar. Ela aparecera, embora a meu lado, mergulhada nesse mundo desconhecido em cujo seio já recebera os golpes de que ostentava os sinais quando a vira há pouco nos Champs-Élysées, seu chapéu, seu rosto e seu casaco desarrumados pela mão do anjo invisível com quem havia lutado.
     Desde então, tenho pensado que aquele momento de seu ataque não deve ter surpreendido de todo a minha avó, que talvez ela mesma o houvesse previsto muito tempo antes, e vivera à sua espera. Sem dúvida, não tinha sabido quando viria o instante fatal, incerta, semelhando-se aos amantes que uma dúvida do mesmo gênero leva alternativamente a alimentar esperanças sem fundamento e suspeitas injustificadas sobre a fidelidade de sua amante. Mas é raro que essas grandes enfermidades, como a que por fim acabava de feri-la em pleno rosto, não se alojem por muito tempo no doente antes de matá-lo, e durante esse período não se façam logo conhecer, como um vizinho ou locatário sociável. É um terrível conhecimento, menos pelos sofrimentos que provoca do que pela estranha novidade das restrições definitivas que impõe à vida. Vemo-nos morrer, neste caso, não no próprio momento da morte, porém meses e até anos antes, desde que ela horrendamente veio morar conosco. A doente trava conhecimento com o estranho que ela ouve ir e vir pelo cérebro.
     Decerto não o conhece de vista, mas, pelos ruídos que o ouve fazer regularmente, deduz os seus hábitos. Será um malfeitor? Certa manhã, não o ouve mais. Foi-se embora.
     Ah, se fosse para sempre! De noite, ele voltou. Quais são os seus desígnios? O médico, submetido à indagação, como uma amante adorada, responde com juramentos acreditados num dia, postos em dúvida no outro. De resto, mais que o da amante, o médico desempenha o papel dos domésticos interrogados. Eles não passam de terceiros. A amante que pressionamos, que suspeitamos esteja a ponto de nos trair, é a própria vida e, embora sintamos que já não é a mesma, ainda acreditamos nela, pelo menos ficamos em dúvida até o dia em que ela enfim nos abandona.
     Coloquei minha avó no elevador do professor E*** e, um instante após, ele veio ao nosso encontro e nos fez passar ao seu gabinete. Porém aí, por mais pressa que tivesse, seu jeito mal humorado mudava, de tão fortes que são os hábitos, e ele se mostrava amável e até mesmo jovial com seus pacientes. Como sabia que minha avó era muito letrada, e ele o era igualmente, pôs-se a citar durante dois ou três minutos, e aludindo ao tempo radioso que fazia, versos lindos sobre o verão. Sentara-a numa poltrona, ficando ele contra a luz, de maneira a observá-la bem. Seu exame foi minucioso, precisou até que eu saísse por um momento. Continuou ainda o exame e depois, tendo terminado, embora o quarto de hora já se esgotasse, pôs-se a fazer novos recitativos à minha avó. Dirigiu-lhe mesmo algumas pilhérias com bastante finura, que eu teria preferido ouvir em outra ocasião, mas que me tranquilizaram completamente devido ao tom engraçado do médico. Lembrei-me então que o Sr. Fallieres, presidente do Senado, sofrera há muitos anos um falso ataque, e que, para desespero de seus concorrentes, retomara suas funções três dias depois, preparando mesmo, segundo se dizia, uma candidatura mais ou menos remota à Presidência da República. Minha confiança num pronto restabelecimento de minha avó foi tanto mais completa porque, no momento em que me lembrava do exemplo do Sr. Fallieres, fui distraído dessa comparação por uma sonora gargalhada que rematou um gracejo do professor E***. Após o que, ele puxou o relógio, franziu febrilmente as sobrancelhas ao ver que estava atrasado cinco minutos e, ao passo que se despedia, tocava a campainha para que lhe trouxessem a sua casaca imediatamente. Deixei a minha avó passar primeiro, fechei a porta e pedi ao doutor que me dissesse a verdade. 

- A sua avó está perdida - disse ele. - É um ataque provocado pela uremia. Em si, a uremia não é fatalmente uma doença mortal, mas o caso me parece desesperador. Nem preciso lhe dizer que espero estar enganado. Além disso, com Cottard, estão em excelentes mãos. Com licença - disse ao ver entrar uma camareira com sua casaca nos braços. - O Senhor sabe que vou jantar com o ministro do Comércio, e tenho uma visita para fazer antes. Ah, a vida não é um mar de rosas, como se crê na sua idade.

     E estendeu-me graciosamente a mão. Eu voltara a fechar a porta e um lacaio nos guiava no vestíbulo, a mim e à minha avó, quando ouvimos grandes gritos de cólera. A camareira se esquecera de abrir a botoeira para as condecorações. Aquilo ainda ia levar dez minutos. O professor continuava sempre a esbravejar, enquanto eu olhava, no patamar da escada, para a minha avó, que estava perdida. Como está sozinha cada pessoa! 
     Regressamos a casa.
     O sol declinava; inflamava um muro interminável que o nosso fiacre tinha de ladear antes de atingir a rua em que morávamos, muro sobre o qual a sombra do carro e do cavalo, projetada pelo poente, se destacava em negro sobre o fundo avermelhado, como um carro fúnebre numa terracota de Pompéia. Enfim chegamos. Fiz a enferma sentar-se ao pé da escadaria, no vestíbulo, e subi para avisar a minha mãe. Disse-lhe que minha avó voltara um tanto adoentada, e tivera uma tonteira. Desde as minhas primeiras palavras, a fisionomia de minha mãe atingiu o paroxismo de um tal desespero, entretanto já resignado, que compreendi que há muitos anos ela o trazia preparado dentro de si mesma para um dia incerto e final. Não me perguntou nada; parecia que, assim como a maldade gosta de exagerar os sofrimentos dos outros, ela não queria admitir, por ternura, que sua mãe estivesse muito mal, principalmente que se tratasse de uma doença que podia afetar a inteligência. Mamãe estremecia, seu rosto chorava sem lágrimas, ela se apressou a dizer que fossem buscar o médico, mas, como Françoise perguntasse quem estava doente, não pôde responder, a voz se lhe embargou na garganta. Desceu correndo comigo, e apagando do rosto o soluço que o contraía. Minha avó esperava embaixo, no canapé do vestíbulo, mas, logo que nos ouviu, ergueu-se, ficou em pé, fez a mamãe alegres acenos com a mão. Eu lhe envolvera metade da cabeça com uma mantilha de renda branca, dizendo que era para que não sentisse frio na escada. Não queria que mamãe notasse muito a alteração da fisionomia, o desvio da boca; minha precaução era inútil: mamãe se aproximou da minha avó, beijou-lhe a mão como a de seu Deus, susteve-a, ergueu-a até o elevador com infinitas precauções, em que havia, junto com o medo de não se mostrar cuidadosa e de magoá-la, a humildade de quem se sente indigno de tocar o que conhece de mais precioso; mas nem uma só vez ergueu os olhos e fitou o rosto da enferma. Talvez para que esta não se entristecesse ao pensar que a sua vista poderia inquietar a filha. Talvez de medo de uma dor mais intensa que ela não ousava afrontar. Talvez por respeito, pois não julgava que lhe fosse permitido sem impiedade constatar vestígios de algum enfraquecimento intelectual no rosto venerado. Talvez para melhor conservar, posteriormente, intacta, a imagem do verdadeiro rosto de sua mãe, radiante de espírito e bondade. Assim subiram elas, uma ao lado da outra, minha avó meio oculta em sua mantilha, minha mãe desviando o olhar.
     Durante todo esse tempo, havia uma pessoa que não tirava seus olhos do que se podia adivinhar dos traços modificados de minha avó que a filha desta não ousava ver, uma pessoa que lançava sobre eles um olhar assombrado, indiscreto e de mau agouro: era Françoise. Não que não amasse sinceramente a minha avó (até ficara decepcionada e quase escandalizada pela frieza de mamãe, a quem desejaria ter visto lançar-se chorando nos braços de sua mãe), mas tinha uma certa inclinação a imaginar sempre o pior, trouxera da infância duas particularidades que pareceriam dever excluir-se, mas que, quando se ajuntam, se fortalecem: a falta de educação das pessoas do povo, que não procuram dissimular as impressões, até mesmo o doloroso espanto que nelas causa a vista de uma alteração física que seria mais delicado não parecer notar; e a rudeza insensível da campônia que arranca as asas das libélulas antes de ter ocasião de torcer o pescoço aos frangos, e que não dispõe do pudor que a faria ocultar o interesse que sente ao ver a carne que sofre.
     Quando, graças aos cuidados perfeitos de Françoise, minha avó se viu acomodada na cama, percebeu que falava mais facilmente; a pequena ruptura ou obstrução de uma artéria, causada pela uremia, certamente fora bem leve. Então quis atender a mamãe, assisti-la nos instantes mais cruéis que esta já havia atravessado.

- Muito bem, minha filha - disse-lhe segurando a mão e conservando a outra adiante da boca para dar essa causa aparente à leve dificuldade que ainda tinha para pronunciar certas palavras -, é assim que tens pena da tua mãe? Pareces acreditar que uma indigestão não é desagradável! 

     Então, pela primeira vez os olhos de minha mãe fitaram apaixonadamente os de minha avó, não desejando ver o restante de sua face, e ela disse, começando a lista desses falsos juramentos que não podemos cumprir: 

- Mamãe, logo ficarás curada; é a tua filha quem te promete.

     E, encerrando o seu amor mais forte e toda a sua vontade para que a mãe sarasse, num beijo a quem os confiou e que acompanhou com o pensamento, com todo o seu ser até a beira dos lábios, foi depositá-lo humilde e piedosamente na testa adorada.
     Minha avó se queixava de uma espécie de aluvião de cobertas que se formava o tempo todo sobre sua perna esquerda e que ela não conseguia erguer. Mas não percebia que era ela mesma a causa daquilo, de modo que todos os dias acusava injustamente Françoise de "forrar" mal a sua cama. Devido a um movimento convulsivo, ela repelia daquele lado todas as vagas dessas cobertas espumantes de fina lã que ali se amontoavam como as areias numa enseada depressa transformada em praia (se não construíssem um dique) pelos afluxos sucessivos da maré.
     Minha mãe e eu (cuja mentira era previamente desmascarada por Françoise, perspicaz e injuriosa) nem mesmo queríamos dizer que minha avó estivesse gravemente enferma, como se isso pudesse agradar aos inimigos que aliás ela não possuía, e como se fosse mais afetuoso achar que ela não estava tão mal assim, em suma, pelo mesmo sentimento instintivo que me fizera supor que Andrée se queixava demais de Albertine para muito poder amá-la. Os mesmos fenômenos se reproduzem, dos particulares à massa, nas grandes crises. Numa guerra, aquele que não ama o seu país não fala mal dele, mas julga-o perdido, lamenta-o, vê preta a situação.
     Françoise nos prestava um serviço infinito, com sua faculdade de passar sem dormir, de fazer os trabalhos mais pesados. E, se, tendo ido se deitar após várias noites passadas em claro, éramos obrigados a chamá-la um quarto de hora depois que adormecesse, ela sentia-se tão feliz de poder fazer o trabalho mais penoso como se se tratasse das coisas mais simples do mundo, que, longe de rezingar, mostrava no rosto a satisfação e a modéstia. Apenas quando chegava a hora da missa e a do desjejum, minha avó podia estar agonizante que Françoise se eclipsava a tempo de não se atrasar. Não podia nem queria ser substituída pelo seu jovem lacaio. Decerto trouxera de Combray uma ideia muito alta dos deveres de cada um para conosco; não teria tolerado que um dos nossos criados nos "faltasse". Isso a fizera uma educadora tão nobre, tão imperiosa, tão eficaz, que jamais houvera em nossa casa criados tão corrompidos que não se modificassem logo, e apurassem a sua concepção de vida a ponto de não mais tocarem num tostão e de se precipitarem por menos serviçais que até então fossem para me tirar das mãos e não deixar que me cansasse carregando o menor pacote. Mas também em Combray Françoise contraíra o hábito, trazido a Paris, de não poder suportar qualquer auxílio em seu trabalho. Ver que lhe prestavam ajuda parecia-lhe uma ofensa, e alguns criados ficaram semanas inteiras sem obter uma resposta dela à sua saudação matinal, chegando até a sair de férias sem que ela lhes dissesse adeus e sem adivinharem o motivo, na verdade pela única razão de que tinham querido fazer um pouco do seu trabalho, num dia em que estava adoentada. E, naquele momento em que minha avó passava tão mal, a tarefa de Françoise lhe parecia particularmente sua própria. Não desejava, ela, a titular, deixar que lhe furtassem o seu papel naqueles dias de gala. Assim, seu jovem lacaio, afastado por ela, não sabia o que fazer, e, não contente em ter, a exemplo de Victor, tirado meu papel de cartas no meu escritório, pusera-se também a carregar volumes de versos da minha bibliografia. Lia-os durante boa parte do dia, não só por admiração pelos poetas que os haviam composto, mas também para, na outra parte do dia, ornamentar de citações as cartas que escrevia aos amigos da aldeia. Certamente pensava deslumbrá-los desse modo. Mas, como não tinha muita lógica nas ideias, imaginara que aqueles poemas, encontrados em minha biblioteca, eram coisa conhecida de todos e às quais é costume a gente se referir. De forma que, escrevendo àqueles camponeses cujo pasmo prelibava, entremeava suas próprias reflexões com versos de Lamartine, como se dissesse: quem viver, verá, ou até: bom-dia.
     Por causa dos tormentos de minha avó, permitiram que tomasse morfina. Infelizmente, se esta os acalmava, contribuía para aumentar a taxa de albumina. Os golpes que destinávamos ao mal que se instalara em minha avó acabavam sempre por fracassar; era ela, era o seu pobre corpo interposto que os recebia, sem que ela se queixasse mais que com um débil gemido. E as dores que lhe causávamos não eram compensadas por um bem que não lográvamos obter-lhe. O mal feroz que desejaríamos exterminar, quase não o tocáramos, só fazíamos exasperá-lo ainda mais, talvez apressando a hora em que a cativa seria devorada. Nos dias em que a taxa de albumina se mostrava muito alta, o doutor Cottard, após alguma hesitação, recusava a morfina. Nesse homem tão insignificante, tão vulgar, havia, naqueles breves instantes em que deliberava, em que os perigos de um tratamento ou outro lutavam dentro de si até que se decidisse por um deles, uma espécie de grandeza própria de um general que, vulgar no resto de sua vida, é um grande estrategista e, num momento delicado, depois de ter refletido por um instante, conclui pelo que é militarmente mais sábio e diz: 

"Fazer frente a Leste."

     Do ponto de vista clínico, por menos esperanças que tivesse em pôr um fim àquela crise de uremia, era necessário não cansar os rins. Mas, por outro lado, quando minha avó ficava sem morfina, suas dores tornavam-se insuportáveis; recomeçava perpetuamente um certo movimento que lhe era difícil fazer sem gemer.
     Em grande parte, o sofrimento é uma espécie de necessidade do organismo de tomar consciência de um estado novo que o inquieta, de tornar a sensibilidade adequada a esse estado. Pode-se distinguir essa origem da dor no caso de incômodos que não o são para todo mundo.

continua na página 144...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Doença da minha avó)
Volume 7

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Cinema: Um tipo de loucura

Um tipo de loucura


Aos 70 anos de idade, Daniel Hart resgata sua esposa Elna, que sofre de demência, do lar de idosos onde ela mora. Ele deseja levá-la ao litoral, onde pretende roubar um veleiro para que os dois possam, enfim, viajar pelo mundo como sempre planejaram. Um homem e sua esposa fogem de seus filhos adultos: "Esqueçam de nós. Eu tive uma vida maravilhosa. Agora é sua vez de terem uma vida maravilhosa. Amo vocês. Prometam que terão a sua vida maravilhosa."

Onde assistir?
Amazon Prime Video





Diretor: Christiaan Olwagen

Elenco: Sandra Prinsloo, Ian Roberts, Erica Wessels, Evan Hengst, Amy Louise Wilson, Ashley de Lange, Luke Volker

1h39min
2025
Cinema Sul-Africano

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.3)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte I 
ANTISSEMITISMO

Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória. 
 Roger Martin du Gard

3.  Os Judeus e a Sociedade
     3.3 - Entre o vício e o crime
          Paris foi chamada com justiça la capitale du dixneuvième siècle (Walter Benjamin). Cheio de promessas, o século XIX havia começado com a Revolução Francesa, testemunhara durante mais de cem anos o esforço inútil para evitar que o cidadão degenerasse em burguês, alcançou seu apogeu no Caso Dreyfus e manteve-se ainda por catorze anos de trégua mórbida. A Primeira Grande Guerra pôde ainda ser ganha pelo encanto jacobino de Clemenceau, o último filho da Revolução Francesa, mas o século de glórias da nation par excellence estava por terminar,[60] e Paris foi abandonada, sem significação política e sem esplendor social, à vanguarda intelectual de todos os países. A França desempenhou papel insignificante no século XX, que começou, após a morte de Disraeli, com a corrida colonial para a África, numa competição pelo domínio imperialista da Europa. O declínio da França, portanto, motivado em parte pela vitoriosa expansão econômica das outras nações, e em parte por desintegração interna, pôde assumir formas e seguir leis inerentes ao Estado-nação.
     O que ocorreu na França nos anos 80 e 90 aconteceria trinta a quarenta anos depois, em todos os Estados-nações da Europa. A despeito das distâncias cronológicas e étnicas, a república alemã de Weimar e a austríaca tinham historicamente muito em comum com a Terceira República da França, e certos padrões políticos e sociais na Alemanha e na Áustria dos anos 20 e 30 pareciam seguir quase conscientemente o modelo do fin-de-siècle francês.
     O antissemitismo do século XIX alcançou na França seu clímax, e foi ali derrotado porque manteve-se limitado à questão doméstica e nacional, sem contato com correntes imperialistas. Os traços principais desse tipo de antissemitismo reapareceram na Alemanha e na Áustria após a Primeira Grande Guerra, e seu efeito social sobre as respectivas comunidades judaicas foi menos agudo, mas sujeito a outras influências.[61]
     Escolhemos os salões do Faubourg Saint-Germain como exemplo do papel dos judeus na sociedade não-judaica da França. Quando Mareei Proust — que era semijudeu e em situações de emergência estava sempre pronto a identificar-se como judeu — saiu em busca do "tempo perdido", escreveu realmente o que um dos seus críticos mais apologéticos chamou de uma apologia pro vita sua. A vida daquele que foi o maior escritor da França do século XX foi vivida quase exclusivamente em sociedade; os eventos se lhe afiguravam como eram refletidos pela sociedade, de modo que os reflexos e as reconsiderações constituem a realidade específica e a textura do mundo de Proust.[62] Em toda a Busca do tempo perdido, o indivíduo e suas reconsiderações pertencem à sociedade, mesmo quando ele se retira para a solidão muda e incomunicativa, na qual o próprio Proust finalmente desapareceu quando decidiu escrever sua obra. Ali, sua vida, que ele insistia em transformar em experiência interior, e todos os acontecimentos mundanos tornaram-se espelho em cujo reflexo surgia a única verdade. O contemplador da experiência interna assemelha-se ao observador que percebe a realidade somente quando esta é refletida.
     Na verdade, não existe melhor testemunho daquele período em que a sociedade se havia emancipado completamente dos interesses públicos, e quando a própria política chegou a fazer parte da vida social. A vitória dos valores burgueses sobre o senso de responsabilidade do cidadão significava a decomposição das questões políticas em fascinantes reflexos. Proust era verdadeiro expoente dessa sociedade, pois estava envolvido em dois "vícios" elegantes, de que ele, "a maior testemunha do judaísmo desjudaizado",[63] era portador: ao seu "vício" da homossexualidade juntava o "vício" de ser judeu. Na análise social e na consideração individual ambos os "vícios" se assemelhavam.[64]
     Disraeli havia descoberto que o vício é apenas o reflexo aristocrático daquilo que, quando é cometido entre as massas, é crime. A perversidade humana, quando é aceita pela sociedade, transforma-se, e o ato deliberado assume as feições da qualidade psicológica inerente, que o homem não pode escolher nem rejeitar, que lhe é imposta de fora e que o domina de modo tão compulsivo como a droga domina o viciado. Ao assimilar o crime e transformá-lo em vício, a sociedade nega toda responsabilidade e estabelece um mundo de fatalidades no qual os homens se veem enredados. O julgamento que via no crime todo afastamento comportamental das normas espelhava pelo menos maior respeito pela dignidade humana. Aceito o crime como espécie de fatalidade, todos podem ser suspeitos de alguma inclinação por ele. "A punição é um direito do criminoso", do qual ele é privado se (nas palavras de Proust) "os juízes presumirem e estiverem inclinados a perdoar o assassínio nos homossexuais e a traição nos judeus, por motivos devidos a suposta (...) predestinação genética". Mas num certo momento essa tolerância pode desaparecer, substituída por uma decisão de liquidar não apenas os verdadeiros criminosos mas todos os que estão "racialmente" predestinados a cometer certos crimes, o que pode ocorrer quando a máquina legal e política, refletindo a sociedade, vier a ser transformada pelos critérios sociais em leis a pregarem essa necessidade de libertação social do perigo em potencial. Se for permitido estabelecer o código legal peculiar à aparente largueza de espírito que liberta o homem de responsabilidade pelo crime tornado igual ao vício, ele será mais cruel e desumano do que as leis normativas, mesmo que severas, pois estas respeitam e reconhecem a responsabilidade do homem por sua conduta.
     Contudo, o Faubourg Saint-Germain, descrito por Proust, estava ainda nos estágios iniciais desse desenvolvimento. Proust descreve de que modo mon-sieur de Charlus, tolerado "a despeito do seu vício", logo atingiu os cumes sociais graças ao seu encanto pessoal e nome tradicional. Não mais precisava viver uma vida dupla e esconder suas dúbias amizades, mas, sim, era até encorajado a trazê-las para as casas elegantes. Certos tópicos de conversação que, por medo de que alguém suspeitasse de sua anomalia, ele antes teria evitado — amor, beleza, ciúme — eram agora avidamente recebidos "em vista da experiência estranha, secreta, refinada e monstruosa sobre a qual ele baseava suas opiniões".[65]
     Algo muito semelhante aconteceu com os judeus. As "exceções" individuais e os judeus enobrecidos haviam sido tolerados e até bem recebidos mesmo na sociedade do Segundo Império, mas agora os judeus tornavam-se cada vez mais populares como tais. Em ambos os casos, a sociedade não modificava as suas ideias e preconceitos: não se duvidava que os homossexuais eram "criminosos" nem que os judeus eram "traidores"; apenas revisava-se a atitude em relação ao crime e à traição em geral. O que é perturbador no tocante a essa aparente largueza de espírito não está no fato de as pessoas não se horrorizarem diante da rejeição das normas, mas que se tornavam indiferentes perante o crime.
    A doença mais bem escamoteada do século XIX, o tédio e o cansaço geral da burguesia, havia eclodido como abcesso. Ora, os marginais e os párias, a quem a sociedade recorria em busca do exótico, fossem quem fossem, jamais se deixavam dominar pelo tédio e, se dermos crédito à opinião de Proust, eram os únicos na sociedade do fin-de-siècle ainda capazes de sentir e externar paixão. Proust se encontra no labirinto das conexões e ambições sociais pela capacidade de amar de Charlus. A paixão pervertida de monsieur de Charlus por Morei, a devastadora lealdade do judeu Swann a sua cortesã, o próprio ciúme desesperado do autor por Albertine, que é, no romance, a própria personificação do vício, deixam bem claro que Proust considerava os marginalizados e os arrivistas, os habitantes de Sodoma e Gomorra, não somente mais humanos, mas também mais normais.
     A diferença existente entre o Faubourg Saint-Germain que havia descoberto a atração exercida pelos judeus e pelos homossexuais e a ralé que gritava "morte aos judeus" consistia no fato de que os salões ainda não se haviam associado abertamente ao crime. Isso significava que, por um lado, ainda não desejavam participar ativamente na matança, e, por outro, que ainda professavam antipatia pelos judeus e horror pelos sexualmente anormais. Naquela situação equívoca, os novos membros da sociedade não podiam ainda confessar abertamente a sua identidade, mas tampouco podiam escondê-la. Tais foram as condições que advieram do complicado jogo de exibição e ocultamente, de meias confissões e distorções mentirosas, da humildade exagerada e da exagerada arrogância, consequência do fato de que, se a esotérica qualidade de ser judeu (ou homossexual) havia a ambos aberto as portas dos salões, ao mesmo tempo tornava sua posição extremamente insegura. Nessa situação equívoca, a qualidade de judeu era para o judeu tanto uma mancha física como um misterioso privilégio pessoal, ambos inerentes a uma "predestinação racial".
     Proust descreve longamente como a sociedade, constantemente à espreita do estranho, do exótico, do perigoso, finalmente identifica o refinado com o monstruoso e se prontifica a admitir monstruosidades — reais ou imaginárias — como a estranha e desconhecida "peça russa ou japonesa representada por atores nativos".[66] A "personagem pintada, rechonchuda e apertada em seus botões lembra uma caixa de origem exótica e dúbia, da qual escapa um curioso aroma de frutos, de modo que só o pensamento de prová-los já excita o coração".[67] O "homem de gênio", supõe-se, transmitirá um "senso de sobrenatural" e em torno dele a sociedade "se reúne como em torno de távola giratória, para aprender o segredo do Infinito".[68] Na atmosfera dessa "necromancia", um cavalheiro judeu ou uma senhora turca poderiam parecer "como se fossem realmente criaturas invocadas pelo esforço de um médium".[69]
     Obviamente, o papel do exótico, do estranho e do monstruoso não podia ser representado por aqueles "judeus-exceção" individuais que, durante quase um século, haviam sido admitidos e tolerados como "arrivistas estrangeiros", e de "cuja amizade ninguém sonharia orgulhar-se".[70]  Muito mais adequados eram, naturalmente, aqueles judeus que ninguém até então havia conhecido e que, no estágio inicial de sua assimilação, não eram identificados com a comunidade judaica nem eram seus representantes, pois a identificação e certo grau de conhecimento teriam limitado severamente a imaginação e as expectativas da sociedade.
     Aqueles que, como Swann, revelavam uma inata inclinação pela sociedade e pelo bom gosto em geral eram admitidos; mais entusiasticamente aceitos, porém, eram aqueles que, como Bloch, pertenciam a "uma família de pouca reputação, (e) que tinham de suportar, como no fundo do oceano, a incalculável pressão do que lhes era imposto não apenas pelos cristãos, mas por todas as camadas intermediárias de castas judaicas superiores à sua, cada uma das quais esmagava com desprezo a que estava imediatamente abaixo". A disposição da sociedade em receber o estranho e o viciado — o mais estranho e o mais viciado possível — pôs fim à ascensão de várias gerações em que os recém-chegados tinham de "cavar o seu caminho em direção ao ar livre, erguendo-se de uma família judia à outra família judia".[71] Não foi por acidente que isso aconteceu pouco depois de a comunidade judaica nativa da França ter cedido ante a iniciativa e a falta de escrúpulos de alguns aventureiros judeus alemães, demonstradas durante o escândalo do Panamá; as exceções individuais, com ou sem título nobiliárquico, que ainda mais avidamente do que antes buscavam a sociedade de salões, já antissemitas e monarquistas, onde julgavam poder sonhar com os bons velhos tempos do Segundo Império, encontravam-se na mesma categoria daqueles judeus que eles próprios jamais convidariam para uma visita em sua casa. Se a qualidade de ser judeu, como a qualidade de ser exceção, constituía a verdadeira razão para a aceitação dos judeus, então preferiam-se pelo menos aqueles que formavam claramente "uma tropa sólida, homogênea e completamente diferente das pessoas que a viam passar", aqueles que ainda não haviam "alcançado o mesmo estágio de assimilação" dos seus irmãos arrivistas.[72]
     Embora Disraeli fosse um daqueles judeus que foram aceitos na sociedade por serem exceções, sua auto-representação secularizada de "eleito" prefigurou e esboçou as linhas ao longo das quais iria se dar a auto-interpretação judaica. Se esta, fantástica e crua como era, não houvesse sido tão estranhamente semelhante ao que a sociedade esperava dos judeus, eles jamais poderiam ter representado seu dúbio papel. Não, naturalmente, que adotassem de maneira conspícua as convicções de Disraeli ou deliberadamente elaborassem aquela auto-interpretação, ainda tímida, de seus predecessores prussianos do começo do século XIX; a maioria deles tinha a sorte de ignorar toda a história judaica. Mas, onde quer que os judeus fossem educados, secularizados e assimilados sob as condições ambíguas do Estado e sociedade na Europa central e ocidental, perdiam aquela medida de responsabilidade política que sua origem implicava e que os judeus banqueiros ainda haviam sentido, embora sob a forma de privilégio e domínio. A origem judaica, sem conotações religiosas e políticas, tornou-se por toda parte uma qualidade psicológica, transformou-se em "qualidade de judeus", e daí por diante podia ser considerada somente na categoria de virtude ou de vício. Se é verdade que a "qualidade de judeu" não se podia ter pervertido em vício interessante sem um preconceito que a considerasse um crime, também é verdade que tal perversão só foi possível graças àqueles judeus que a consideravam uma virtude inata.
     Têm-se acusado os judeus assimilados de se alienarem do judaísmo, e frequentemente se pensa no genocídio que os atingiu como um sofrimento tão horrível quanto insensato, na medida em que foi desprovido até da antiga qualidade de martírio. Esse argumento despreza o fato de que, no que concerne aos velhos modos de crença e de vida, a alienação era igualmente aparente nos países da Europa oriental. Mas a noção costumeira de que os judeus da Europa ocidental eram "desjudaizados" é enganadora por outra razão. O quadro pintado por Proust, em contraste com as afirmações obviamente unilaterais do judaísmo oficial, mostra que nunca o fato de se ter nascido judeu representou um papel tão decisivo na vida privada e na existência diária como entre os judeus assimilados. O reformador judeu que transformou a religião nacional em denominação religiosa, sabendo que a religião é um assunto privado; o revolucionário judeu que fingia ser um cidadão do mundo para desfazer-se da nacionalidade judaica; o judeu educado, que era "um homem na rua e judeu em casa" — todos eles conseguiram converter uma qualidade nacional em assunto privado. O resultado foi que suas vidas particulares, suas decisões e sentimentos se tornaram centro de seu "judaísmo". E, quanto mais o fato do nascimento "judaico" perdia seu significado religioso, nacional e econômico-social, mais obcecante se tornava esse "judaísmo"; os judeus se obcecavam por ele como se fosse um defeito ou uma qualidade física, e se atinham a ele como há quem se atenha a um vício.
     A "disposição inata" de Proust nada mais é senão uma obsessão pessoal e particular, que era tão amplamente justificada por uma sociedade na qual o sucesso e o fracasso dependiam do fato de se ter nascido judeu. Proust viu nela, erradamente, a "predestinação racial", porque apenas enxergou e descreveu seu aspecto social e seus efeitos sobre o indivíduo. E é verdade que, para o observador que a registrasse, a conduta do grupo judaico mostrava a mesma obsessão que, nos padrões de conduta, adotavam os homossexuais.
     Ambos sentiam-se superiores ou inferiores, mas em ambos os casos orgulhosamente diferentes dos outros seres normais; ambos acreditavam que a sua diferença era um fato natural adquirido por nascimento; ambos estavam constantemente justificando, não o que faziam, mas o que eram; e, finalmente, ambos hesitavam sempre entre a atitude de quem pede desculpas e a afirmação súbita e provocadora de quem se julga elite. Como se a natureza houvesse congelado para sempre suas posições sociais, nenhum dos dois podia sair do seu grupo e ingressar no outro. Também outros membros da sociedade sentiam a necessidade de pertencer a um grupo — "a questão não é, como era para Hamlet, ser ou não ser, mas sim pertencer ou não pertencer"[73] —, mas essa necessidade não era tão intensa. Uma sociedade que já se desintegrava em pequenos grupos e não mais tolerava como indivíduos nem estranhos nem judeus nem homossexuais, acolhendo-os apenas em virtude das circunstâncias peculiares que "permitiam" essa aceitação, parecia corporificar os sentimentos de clã.
     Cada sociedade exige de seus membros uma certa dose de representação — a capacidade de apresentar, desempenhar, interpretar aquilo que se realmente é. Quando a sociedade se desintegra em grupos, essa exigência não se aplica mais aos homens como indivíduos, e sim como membros dos grupos. A conduta passa então a ser controlada por exigências silenciosas e não por capacidades individuais, exatamente do modo como o desempenho de um ator deve enquadrar-se no conjunto de todos os outros papéis da peça. Os salões do Faubourg Saint-Germain enquadravam-se nesse conjunto de grupos, cada qual exibindo um padrão extremo de conduta. O papel dos anormais sexuais era exibir sua anomalia, o dos judeus era representar a "magia negra", o dos aristocratas era mostrar que não eram como pessoas comuns, os burgueses. A despeito do sentimento de clã, era verdade que, como observou Proust, "exceto em dias de catástrofe geral, quando a maioria se agrupa em torno da vítima como os judeus se agruparam em torno de Dreyfus",[74] todos esses recém-chegados evitavam relações com os outros membros de sua espécie. Os sinais de distinção só sendo determinados pelo conjunto do grupo, os judeus — ou homossexuais — sentiam-se privados de sua distinção numa sociedade de judeus ou de homossexuais, onde a condição de judeu ou de homossexual era a mais natural, mais desinteressante e mais banal do mundo. O mesmo, contudo, era também verdadeiro com relação àqueles que os acolhiam, e que necessitavam de um conjunto de elementos em contraponto, diante dos quais eles próprios pudessem ser diferentes, os não aristocratas que admiravam os aristocratas, como estes admiravam os judeus ou os homossexuais. Embora esses grupos não tivessem nenhuma consistência própria, dissolvendo-se logo que os membros de outros grupos se afastavam, seus membros usavam de uma misteriosa linguagem de sinais, como se necessitassem de algo estranho que os identificasse uns aos outros. Proust trata com detalhes a importância desses sinais, especialmente para os recém-chegados. Contudo, ao contrário dos homossexuais, mestres em linguagem de sinais, que pelo menos escondiam um segredo verdadeiro, os judeus usavam essa linguagem apenas para criar a esperada atmosfera de mistério. Seus sinais indicavam, de modo misterioso e ridículo, algo que todo o mundo sabia: que, no canto do salão da princesa de tal, estava sentado outro judeu que não podia abertamente revelar sua identidade mas que, sem essa qualidade no fundo desprovida de sentido, nunca teria galgado aquele lugar.
     Vale notar que a nova sociedade mista do fim do século XIX, como os primeiros salões judeus de Berlim, girava em torno da nobreza. A essa altura, a aristocracia havia perdido quase toda a sua avidez pela cultura e a curiosidade pelos "novos espécimes da humanidade", mas conservava ainda o velho desprezo pela sociedade burguesa. Ansiava pela distinção social como resposta à igualdade política e à perda de posição e privilégios políticos que advieram com o estabelecimento da Terceira República. Após a breve e artificial ascensão durante o Segundo Império, a aristocracia francesa manteve-se apenas às custas de sentimento de clã e de pálidas tentativas de reservar os mais altos postos do Exército para seus filhos. Muito mais forte que a ambição política era o agressivo desdém pelos padrões da classe média, que, sem dúvida, foi um dos principais motivos da aceitação de indivíduos e de grupos inteiros de pessoas que haviam pertencido a classes socialmente rejeitadas. O mesmo motivo que havia levado os aristocratas prussianos a se reunirem socialmente com atores e judeus levou na França os invertidos ao prestígio social. Por outro lado, as classes médias não haviam adquirido a dignidade social, embora houvessem, entretanto, galgado riqueza e poder. A ausência de uma hierarquia política no Estado-nação e a vitória da igualdade tornou "a sociedade secretamente mais hierárquica à medida que se tornava externamente mais democrática".[75] Como os círculos sociais exclusivos do Faubourg Saint-Germain encarnavam o princípio da hierarquia, cada sociedade da França "reproduzia as características mais ou menos modificadas, mais ou menos em caricatura daquela sociedade do Faubourg Saint-Germain, que ela fingia, às vezes, (...) desdenhar, independentemente do status ou das ideias políticas de seus membros". A sociedade aristocrática pertencia ao passado apenas na aparência; na verdade, permeava todo o corpo social (e não apenas o povo) e tinha suas ramificações não só na França; assim impunha "o tom e a letra da vida social elegante".[76] Quando Proust sentiu a necessidade de uma apologia pro vita sua e reanalisou a sua vida, vivida em rodas dos aristocratas, analisou a sociedade.
     O aspecto principal do papel dos judeus nessa sociedade fin-de-siècle foi paradoxal: foi o antissemitismo do Caso Dreyfus que abriu aos judeus as portas da sociedade, e foi o fim do Caso, ou melhor, a descoberta da inocência de Dreyfus que pôs um fim à sua glória social.[77] Em outras palavras, não importava o que os judeus pensassem de si mesmos ou de Dreyfus; só podiam representar o papel que lhes fora ditado pela sociedade, enquanto essa mesma sociedade estivesse convencida de que pertenciam a uma raça de traidores. Quando se descobriu que o traidor era uma vítima assaz obtusa de uma conspiração ordinária, e se provou a inocência dos judeus, o interesse social pelos judeus murchou tão rapidamente quanto o antissemitismo político. Os judeus passaram novamente a ser vistos como mortais comuns, e retornaram à insignificância, de onde haviam sido temporariamente guindados pelo suposto crime de um dos seus.
     Imediatamente após a Primeira Grande Guerra, os judeus da Alemanha e Áustria gozaram, essencialmente, do mesmo tipo de glória social, embora sob circunstâncias muito mais severas. Na época, seu suposto crime era serem culpados da guerra, crime que, por não ser mais identificado como ato único de único indivíduo, não podia ser negado, de modo que o julgamento da ralé — para a qual a condição de judeu já era um crime — permaneceu inalterado, e a sociedade pôde continuar até o fim a divertir-se e sentir-se fascinada com os judeus. Se existe alguma verdade psicológica na teoria do bode expiatório, ela está no efeito da atitude social em relação aos judeus; pois, quando a legislação antissemita forçou a sociedade a expulsar os judeus, foi como se esses "filo-semitas" tivessem de expurgar-se de alguma depravação secreta, limpar-se de algum estigma de que, misteriosa e perversamente, haviam gostado. É certo que essa psicologia não chega a explicar por que esses "admiradores" dos judeus tornaram-se finalmente seus verdugos, e pode-se mesmo duvidar que estivessem entre os principais dirigentes das fábricas de morte, embora seja espantosa a proporção das chamadas classes educadas entre aqueles que realmente assassinaram os judeus. Mas explica a incrível deslealdade exatamente daquelas camadas da sociedade que mais intimamente haviam conhecido os judeus e que mais se haviam deleitado e encantado com seus amigos judeus. Para os judeus, a transformação do "crime" do judaísmo no "vício" elegante da condição de judeu era extremamente perigosa. Os judeus haviam podido escapar do judaísmo para a conversão; mas era impossível fugir da condição de judeu. Além disso, se um crime é punido com um castigo, um vício só pode ser exterminado. A interpretação dada pela sociedade ao fato de se nascer judeu e ao papel dos judeus na estrutura da vida social está intimamente ligada à catastrófica minuciosidade com que os mecanismos antissemitas puderam ser postos a funcionar. O antissemitismo tinha suas raízes nessas condições sociais, e não só nas circunstâncias políticas. E, embora o conceito de raça tivesse outros fins e funções, mais imediatamente políticos, sua aplicação à questão judaica em seu mais sinistro aspecto deveu muito do seu sucesso aos fenômenos e convicções sociais que virtualmente significavam o consentimento da opinião pública.
     As forças decisórias nesse processo de levar os judeus ao centro da tempestade de acontecimentos eram indubitavelmente políticas; mas as reações da sociedade ao antissemitismo e o reflexo psicológico da questão judaica no indivíduo tiveram algo a ver com aquele tipo específico de crueldade, com aquela agressão premeditada contra todo indivíduo de origem judaica, que já caracterizavam o antissemitismo do Caso Dreyfus. Essa caça apaixonada ao "judeu em geral", "judeu de toda parte e de parte nenhuma", não pode ser compreendida se se considera a história do antissemitismo como entidade própria, como mero movimento político. Houve fatores sociais não explicados na história política ou econômica, ocultos sob a tona dos acontecimentos, nunca percebidos pelo historiador, e registrados apenas pela força mais penetrante e apaixonada dos poetas e romancistas — homens que a sociedade havia impelido à desesperada solidão e isolamento de uma apologia pro vita sua —, fatores que mudaram o rumo que o mero antissemitismo político teria tomado, se fosse abandonado a si próprio, e que o teria levado a leis antijudaicas, e até à expulsão em massa, mas não ao coletivo extermínio indiscriminado.
     Desde a época em que o Caso Dreyfus e a ameaça política que ele constituiu aos direitos dos judeus da França produziram uma situação social na qual os judeus gozavam de uma glória ambígua, o antissemitismo apareceu na Europa como uma mistura indissolúvel de motivos políticos e elementos sociais. A primeira reação da sociedade a um forte movimento antissemita era uma marcante preferência pelos judeus, de sorte que a observação de Disraeli, de que "não há raça atualmente (...) que tanto deleite e fascine e enalteça e enobreça a Europa como os judeus", se tornava particularmente verdadeira em tempo de perigo. O "filo-semitismo" social sempre terminava por dotar o antissemitismo político daquele fanatismo misterioso sem o qual o antissemitismo não poderia ter-se tornado o melhor lema para organizar as massas. Todos os déclassés da sociedade capitalista estavam finalmente prontos a unir-se e a estabelecer suas próprias organizações populares; sua propaganda e sua atração repousavam na premissa de que uma sociedade que havia demonstrado estar disposta a incorporar à sua estrutura o crime sob a forma de vício estaria agora pronta a purificar-se do mal, reconhecendo abertamente os criminosos para publicamente cometer os crimes.

Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.3)
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[60]  Yves Simon, La grande crise de Ia Republique Française, Montreal, 1941, p. 20: "O espírito da Revolução Francesa sobreviveu à derrota de Napoleão por mais de um século. (...) Venceu, mas apenas para desaparecer, sem ser notado, no dia 11 de novembro de 1918. A Revolução Francesa? Suas datas deveriam ser fixadas em 1789-1918".
[61]  O fato de certos fenômenos psicológicos não terem sido tão marcantes nos judeus alemães e austríacos provavelmente resulta, em parte, da profunda influência do movimento sionista sobre os intelectuais judeus. O sionismo, na década que se seguiu à Primeira Grande Guerra, e mesmo na década que a antecedeu, devia sua força menos à perspicácia política que à análise crítica de reações psicológicas e fatos sociológicos. Sua influência era principalmente pedagógica e ia muito além do círculo relativamente pequeno dos membros do movimento sionista.
[62]  Comparem-se as interessantes observações sobre esse assunto, feitas por Emmanuel Levinas, em "L'Autre dans Proust", noDeucalion, n? 2, 1947.
[63]  J. E. van Praag, "Mareei Proust témoin du Judaisme déjudaisé", em Revue Juive de Genève, 1937, n?s 48, 49, 50. Uma curiosa coincidência (ou seria mais do que uma coincidência?) ocorre no filme Crossfire [No Brasil, Rancor], que lida com a questão judaica. A história foi tomada de The brickfoxhole, de Richard Brooks, em que o judeu assassinado de Crossfire era um homossexual.
[64] Para o texto que segue, ver especialmente Sodome et Gomorrhe, parte I.
[65] Sodome et Gomorrhe, parte II, capítulo III.
[66] lbid.
[67] lbid.
[68] Le côté de Guermantes, parte I, capítulo I.
[69] lbid.
[70] lbid.
[71] A Vombre des jeunesfilies enfleurs, II, "Noms de pays: le pays".
[72] lbid.
[73] Sodome et Gomorrhe, parte II, capítulo III.
[74] Sodome et Gomorrhe, parte I.
[75] Le côté de Guermantes, parte II, capítulo III.
[76] Ramon Fernandez, "La vie sociale dans 1'oeuvre de Mareei Proust", em Les Cahiers Mareei Proust, n? 2, 1927, XVI.
[77] "Mas, era o momento em que, das consequências do Caso Dreyfus, nascera um movimento antissemita, paralelo a um movimento mais intenso, de penetração dos israelitas na sociedade. Não erravam os políticos ao pensarem que a descoberta do erro judiciário constituiria um golpe no antissemitismo. Mas, pelo menos provisoriamente, um antissemitismo mundano seria assim, ao inverso, acrescido e exasperado." Ver A fugitiva, capítulo II.